Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1507/11.0TBPBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CRÉDITO
PRESCRIÇÃO
CITAÇÃO
DEVEDOR
PROCESSO
NULIDADE
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: J1 DA SECÇÃO CÍVEL DA INSTÂNCIA CENTRAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 306, Nº 1 E 23, NºS 1 E 2 DO C. CIVIL.
Sumário: 1. Enquanto se encontrar pendente inquérito penal para averiguação da inerente responsabilidade com base no facto fundante do direito de indemnização do lesado, não corre contra este o prazo de prescrição desse direito, nos termos do art.º 306, nº 1, do C. Civil.

2. Mesmo que declarada nula no processo, a citação de um devedor em processo pendente pode valer como expressão do credor da intenção de exercer o direito, nos termos do art.º 323, nºs 1 e 2 do C. Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., B... e C... propuseram no J1 da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Leiria uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra D... e E..., S.A., alegando, em síntese:

Os AA. são viúva e filhos de F..., falecido em 5 de Julho de 2008; o marido e pai dos AA. foi vítima de acidente de trabalho quando exercia a sua actividade profissional como operador de fabrico ao serviço da 2ª Ré; aquele acidente ocorreu quando a vítima operava com um máquina dotada de um mecanismo semi-automático correspondente a uma prensa para fabrico de blocos em betão, que havia sido recentemente adquirida pela 2ª Ré à 1ª Ré; que tendo sido esta Ré quem concebeu e fabricou a aludida máquina, a mesma continha um erro de concepção do circuito de comandos dos movimentos de subida e descida do molde e contra molde bem como do circuito hidráulico, não cumprindo os requisitos de segurança estabelecidos na Directiva 93/37CE, transposta pelo DL 320/2001 de 12/12; por força desse erro de concepção, a vítima foi esmagada por uma súbita entrada em funcionamento do molde e contra molde, quando, com a máquina parada, procurava realinhar o filme de plástico que se encontrava no seu interior; a 2ª Ré, entidade empregadora da vítima, não providenciou a sua formação e instrução, nem providenciou pelo seu acompanhamento na manipulação da máquina, que se achava ao serviço daquela Ré há apenas 3 semanas; os Autores sofreram um conjunto de danos patrimoniais e não patrimoniais com a morte daquele seu familiar.

Rematam pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento: à A. A..., de € 108.502,33, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação, e de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais; ao A. B... a quantia de € 32.148, 84, por danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação, e € 30.000,00 de danos não patrimoniais; ao A. C... a quantia de € 38.578,60, a título de danos patrimoniais, quantia que deverá ser acrescida de juros desde a citação, e de € 30.000,00 de danos não patrimoniais; aos AA., como únicos herdeiros do falecido, em partes iguais e solidariamente, ainda as quantias de € 60.000,00, pela indemnização do dano morte, e € 15.000,00, pelo sofrimento da vítima antes de morrer.

Contestaram as Rés, tendo a Ré D... invocado na sua contestação a excepção da prescrição, aduzindo que por ser de 3 anos o prazo de prescrição do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil do produtor, esse prazo ter-se-ia completado em 5 de Julho de 2011, e, por conseguinte, muito antes da citação da contestante e mesmo da entrada da acção em juízo.

Responderam os AA. à matéria da excepção, alegando que tendo corrido inquérito criminal por força do acidente, de cujo arquivamento apenas foram notificados em 6 de Outubro de 2008, a prescrição excepcionada não ocorreu.

Na audiência prévia, pronunciando-se sobre a prescrição, veio o Sr. Juiz a julgar tal excepção improcedente.

Inconformada, desta decisão interpôs a Ré D... recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

                                                                                  *

São os seguintes os pressupostos de facto a ter em consideração:

 

A – Sob o nº 285/08. 4GBPBL dos Serviços do MºPº de Pombal correu termos um inquérito-crime para apuramento de eventuais responsabilidades no acidente que provocou a morte de F..., ocorrida em 05.07.2008. 

B – Em 6.10.2008 foram os AA. notificados do despacho de arquivamento que nesses autos foi proferido em 30.09.2008.

C – A presente acção deu entrada em 29.06.2011, litigando os AA. com apoio judiciário, o qual, além do mais, abrangia a dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

D – Em 06.09.2011 a Ré D... arguiu a nulidade da sua citação, invocando a não observância de formalidades essenciais (não tradução da p.i. e documentos que a acompanhavam).

E – Em 13.09.2011 foram os AA. notificados dessa arguição.

F – Por despacho de 28.10.2011 foi declarada nula a citação da Ré D... com fundamento na ausência de tradução da petição inicial para a língua alemã, ao abrigo do art.º 247, nº 1, do CPC e do Regulamento nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007, ordenando-se a repetição da mesma.

G – Também aí foi oficiosamente determinada a tradução da petição e documentos que a acompanhavam.

H – A Ré D... veio a ser devidamente citada para contestar em 7.03.2013.

          

                                                                                  *

A apelação.

Nas conclusões com as quais encerra a respectiva alegação, a Ré e apelante D... suscita as seguintes questões:

1º- A relativa a saber se o prazo prescricional do direito de indemnização dos AA. começou a correr desde a data da morte do respectivo marido e pai, momento a partir do qual puderam demandar a apelante em acção cível autónoma, em separado da acção penal;

2º - A que se prende com o saber se ao prazo da prescrição do direito dos AA. não é aplicável a presunção constante do nº 2 do art.º 323 do CC.   

Sobre o início da contagem do prazo prescricional do direito de que os AA. se arrogam.

Bate-se a recorrente pela tese de que não há qualquer interferência entre o inquérito penal que foi instaurado para determinação da eventual responsabilidade (penal) decorrente do acidente que vitimou o familiar dos AA. e o que se discute na presente acção.

Isto é, que não há qualquer razão para trazer à colação o princípio da adesão que está plasmado no art.º 71 do CPP, princípio de que a decisão recorrida se serviu para aplicar o disposto no art.º 306 do CC, e, desse modo, remeter o início do prazo da prescrição do direito dos AA. para o momento da notificação do despacho de arquivamento ali proferido.

Argumenta a apelante que no inquérito-crime identificado nos autos não estiveram em averiguação quaisquer factos pelos quais figurassem como denunciados funcionários seus; e de que, por outro lado, na vertente acção, não constitui causa de pedir qualquer erro de concepção da máquina que era manipulada pela vítima quando se deu o acidente.

Daí parte para a conclusão de que nenhuma conexão material existe entre a factualidade que foi objecto daquele inquérito e a que se discute nestes autos.

Mas não tem razão.

Não merece, desde logo, crítica por parte desta Relação, o postulado da decisão recorrida segundo o qual a recorrente D... surge demandada nos presentes autos à luz da responsabilidade do produtor, especificamente objecto do DL nº 383/89 de 6 de Novembro. Na verdade, para fundar a demanda da Ré e ora apelante, é invocado o incumprimento em que ela teria incorrido como fabricante/produtora da máquina que era manipulada pela vítima, pelo desrespeito das normas de segurança constantes da Directiva 98/37/CE (transposta para a ordem interna pelo DL 320/21 de 12.12).

É isso que inequivocamente decorre do teor do art.º 40 e seguintes da p.i..

De forma que o prazo de prescrição do direito de indemnização dos lesados a ter em atenção é efectivamente o prazo de três anos especialmente previsto no art.º 11, nº 1, daquele diploma.

Mas também não se subscreve aqui o que aparece afirmado na alegação recursiva quanto à suposta irrelevância dos factos investigados no inquérito nº 285/08.4GPBL para o objecto do vertente litígio, irrelevância que adviria da circunstância de no aludido inquérito não terem sido denunciados funcionários/colaboradores da Ré, ora apelante.

É que o inquérito penal não tem de correr contra pessoas determinadas: visa em primeira linha apurar a existência de um crime, e, nessa situação, dos seus autores. É o que sem margem para controvérsia se retira do teor do art.º 262 do C.P.P., onde se estatui que:

“1. O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles (…).

2. Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”.

Deflui dos pressupostos de facto acima enunciados que o mencionado inquérito penal se destinou ao apuramento da verificação de eventuais responsabilidades criminais no acidente que vitimou F....

O curso de tal inquérito justificou a dilação do início da contagem do prazo da prescrição do direito dos AA. para a data subsequente à notificação do despacho de arquivamento, notificação que se verificou em 06.10.2008.

Tal como se enfatizou na decisão recorrida, a regra é a da obrigatória adesão da acção civil à acção penal, de harmonia com o art.º 71 do CPP.

E se é certo que a alínea f) do art.º 72 do m. Código permite a dedução autónoma da pretensão ressarcitiva pelo lesado contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou apenas contra estas, isso não legitima a ilação de que o lesado está obrigado àquela dedução para evitar o transcurso do prazo de prescrição.

O lesado tem “direito à adesão”, embora dela possa abdicar nas excepções identificadas no art.º 72 do CPP. Este “direito à adesão” não se compatibiliza com o dever de exercer separadamente o direito de indemnização no prazo prescricional que a lei estipula. Isto é, o lesado pode não instaurar a acção em separado, o que equivale a dizer que não tem o dever de a instaurar.

O art.º 71 CPP tem de ser interpretado não só no sentido de que a lei privilegia a decisão cível no processo penal, como ainda naqueloutro de que ao lesado civil é conferido o direito a ver satisfeito o seu interesse ressarcitivo pela via da adesão ao processo penal.

Pelo que, enquanto pender o inquérito, esse direito não lhe pode ser coarctado.

A pendência do inquérito faculta-lhe a possibilidade de nele ver apreciada a questão da responsabilidade civil em conjunto com a penal.

Porque assim é, a sua situação cabe, de certo modo, na previsão do art.º 306, nº 1, do CC: enquanto o lesado civil ou titular do direito de indemnização puder usar a adesão ao processo penal esse seu direito não deve ser separadamente exercido e o prazo de prescrição não pode começar a contar-se.

Por conseguinte, por lhe ser legalmente reconhecido o direito a ver apreciada a sua pretensão ressarcitiva no processo penal, será, em princípio, só a partir do conhecimento do arquivamento do inquérito respectivo que o lesado está efectivamente livre – o que aqui na prática acaba por significar “sem alternativa” – para deduzir uma acção cível direccionada para o mesmo desiderato.  

Citamos aqui – por se nos afigurar que, por outras, e, porventura, mais adequadas palavras, melhor se ilustra esta mesma ideia – o que neste mesmo sentido se escreveu no Ac. do STJ de 13.10.2009, proferido no Pró. 206/09.7YFLSB (Relator Ex.mo Cons. Salazar Casanova):

“Não é, ademais, razoável que o início da contagem prescricional para o exercício do direito de indemnização possa correr durante a pendência do inquérito. Admitir o contrário, representaria, em certos casos, negar, na prática, o exercício da acção cível ao lesado que visse o processo crime ser arquivado decorridos que fossem mais de três anos sobre a verificação dos factos danosos, apesar desse processo /(penal) ter estado sempre em andamento “normal durante aquele período de tempo”. […] Destarte, só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal ficará o lesado habilitado a deduzir, em separado, a acção de indemnização, face ao disposto no n.º1 do artigo 306.º do Código Civil”.[Ac. do S.T.J. de 22-1-2004 (Ferreira de Almeida) (P. n.º 4084/03) in C.J., 1, pág. 36/39]. (…) O prazo de prescrição para instauração de acção cível deve aguardar o desfecho do processo-crime que haja sido instaurado, pois ao lesado assiste o direito de pedir indemnização civil no âmbito da acção penal (artigo 71.º do C.P.P.). O lesado pode renunciar a uma tal opção, deduzindo o pedido cível em separado em momento anterior, não podendo, no entanto, ser sancionado pelo não exercício de tal faculdade, o que traduziria uma contradição nos termos”.

Conclui-se, desta forma, que tendo os AA. sido notificados do arquivamento do inquérito em 06.10.2008, a partir de 07.10.2011 passaram a estar obrigados a exercer em acção autónoma o respectivo direito de indemnização contra os responsáveis  civis e, nomeadamente, contra a apelante D....

Improcede, deste modo, a questão suscitada.

Quanto à aplicação da presunção da parte final do nº 2 do art.º 323 do CC.

Rebela-se ainda a apelante contra a consideração da decisão recorrida de que, apesar não ter sido oportunamente oferecida pelos AA. a tradução para a língua alemã da petição inicial e documentos que a acompanhavam, a demora verificada com citação da Ré (ora recorrente) não é imputável àqueles, pois beneficiariam da interrupção da prescrição cinco dias após a apresentação daquele articulado, nos termos do art.º 323, nº 2, do CC.

Essencialmente, o que a apelante agora contrapõe é que a sua citação para contestar a acção – em termos válidos ou correctos com a tradução em falta – apenas teve lugar em 07.03.2013 por força daquilo que entende ter constituído uma omissão imputável aos AA., omissão que se materializaria na não junção da tradução e na falta de requerimento para que o tribunal por ela providenciasse.

Também aqui se nos afigura que não é de acolher a argumentação recursiva.

Vejamos.

Compulsado o acervo fáctico, pode nele constatar-se:

Que os AA. instauraram a acção em 29.06.2011.

Que o prazo de prescrição de 3 anos do direito de indemnização que com a acção os AA. quiseram fazer valer, contado da notificação do arquivamento do inquérito, terminava em 7.10.2011.

Que sem notificar os AA. para a prática de qualquer acto, o tribunal avançou para a citação da Ré D..., citação que foi consumada sem a tradução da petição e documentos.

Que ainda em 6 de Setembro de 2011, portanto a um mês da data em que se completaria o prazo da prescrição, foi arguida a nulidade da citação pela Ré D....

Que tal nulidade foi decidida e declarada por despacho de 28.10.2011;

Que, em consequência, no mesmo despacho foi oficiosamente determinado que se procedesse”à tradução da petição inicial e dos documentos que a acompanham”, por “entidade/pessoa idónea que vier a ser indicada pela secção”.

Dispõe o nº 2 do art.º 323 do CC que “Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram cinco dias”.

Ora os AA., litigando com apoio judiciário, apresentaram a petição e documentos em língua portuguesa e aguardaram que se realizasse a citação. Fizeram-no com mais de três meses de antecedência em relação à data em que se completaria o prazo prescricional.

Desde logo se dirá que, sendo a razão de ser da interrupção da prescrição a expressão/manifestação pelo titular do direito da intenção de o exercer, não se veria motivo para que a primeira citação da Ré D..., mesmo que nula, não pudesse valer com esse restrito efeito, através da retroacção da posterior e válida citação, retroacção que se limitaria a essa específica consequência.

Por outras palavras, ainda que a Ré, ora apelante, só haja sido regular e validamente citada em Março de 2013, não deixaria de ser razoável que, somente no que toca ao efeito interruptivo da prescrição que a lei liga à citação, aquela pudesse retrotrair à data em que teve lugar a que foi declarada inválida (e que ocorreu antes de 6.10.2011).

É que assentando a prescrição na ideia de sanção contra a inacção do credor, essa inacção não se patenteia – antes pelo contrário, o que se evidencia é a sua cessação – se ele propõe a acção e o devedor é objecto de uma citação, mesmo que inválida.

Com a citação válida – subsequente – o devedor fica a saber que o credor já num momento anterior expressou a intenção de exercer o seu direito.

Atentemos, em todo o caso, na questão do facto imputável.

Percorrendo a materialidade provada não descortinamos a suposta imputabilidade aos AA. do atraso na citação (válida).    

Do que se retira do acervo fáctico, os AA. não deixaram de cumprir qualquer determinação do tribunal tendente à regularização da citação da apelante.

Até porque no despacho que atendeu à arguição da nulidade da citação da Ré D... foi o próprio tribunal que, oficiosamente, ordenou que se procedesse à tradução da petição e documentos por  pessoa a indicar pela secção.

Não se pode sustentadamente afirmar que a citação da apelante tenha ultrapassado o prazo prescricional por algum facto imputável aos AA..

Donde que eles devam aproveitar do disposto no art.º 323, nº 2, do C. Civil, ou seja, deve a prescrição do direito objecto da vertente acção ter-se por interrompida, nos termos desse inciso legal, cinco dias após ter sido requerida (requerimento que é contemporâneo da entrada da acção – 29/06/2011). Por conseguinte, bem antes de esgotado o prazo da prescrição.

Pelo que também não colhe o que motivou a apelante quanto a esta segunda questão.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

                  
1. Enquanto se encontrar pendente inquérito penal para averiguação da inerente responsabilidade com base no facto fundante do direito de indemnização do lesado, não corre contra este o prazo de prescrição desse direito, nos termos do art.º 306, nº 1, do C. Civil.
2.  Mesmo que declarada nula no processo, a citação de um devedor em processo pendente pode valer como expressão do credor da intenção de exercer o direito, nos termos do art.º 323, nºs 1 e 2 do C. Civil.        
                    

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins