Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
178/05.7TBYND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA EXECUTIVA
HIPOTECA
ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.289, 291, 824, 1022, 1057 CC, DL Nº 321-B/90 DE 15/10, DL Nº 64-A/2000 DE 22/4
Sumário: 1 - A venda forçada em processo executivo não afecta a relação locatícia validamente celebrada antes da constituição de qualquer direito real de garantia sobre o locado, maxime da hipoteca, tendo plena aplicação o regime geral de transmissão previsto no artigo 1057.º, e consequentemente, a posição do senhorio transmitir-se-á para o terceiro adquirente do arrendado, que sucede nos respectivos direitos e obrigações.

2 - Quando as partes denominavam um contrato de “contrato-promessa de arrendamento comercial” mas previam no mesmo todas as cláusulas típicas do contrato de arrendamento, tinha de considerar-se que estávamos perante um contrato de arrendamento comercial, e não perante um contrato-promessa de arrendamento comercial, porquanto naquele escrito já se encontravam todos os elementos essenciais do contrato de arrendamento previstos pelo artigo 1022.º do CC.

3 - Estando o acordo entre as partes datado de 27-10-1999, a validade ou invalidade do contrato de arrendamento decorrente da inobservância das regras de forma, rege-se pela lei vigente à data da celebração do contrato.

4 - Àquela data, a validade formal de um contrato de arrendamento urbano destinado a uma actividade comercial, regia-se pelo disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, de acordo com o qual deviam ser reduzidos a escritura pública os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.

5- Apesar de entretanto ter entrado em vigor a simplificação introduzida pelo DL n.º 64-A/2000, de 22-04, após cuja entrada em vigor a escritura pública foi dispensada nos contratos de arrendamento urbano para comércio, indústria e exercício de profissão liberal, esta alteração não veio convalidar os contratos de arrendamento anteriormente celebrados sem observância da exigência legal de forma, os quais são nulos.

6 - Ao invés do que acontecia na vigência do n.º 3 do art.º 1029.º do CC, aditado pelo DL n.º 67/75, de 19-12, segundo o qual, no caso da al. b) do n.º 1, a falta de escritura pública era sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só era invocável pelo locatário que podia fazer a prova do contrato por qualquer meio, a nulidade em apreço passou a seguir o regime geral e, como tal, é de conhecimento oficioso e invocável por qualquer interessado (artigo 286.º do CC).

7- Perante a nulidade, por vício de forma, do contrato de arrendamento celebrado pelo Recorrente na qualidade de arrendatário, a detenção e utilização do prédio e a recusa em proceder à sua entrega à Exequente que o adquiriu em venda judicial, “constitui mera ocupação intitulada de coisa alheia, sendo ilegítima e não merecedora de qualquer protecção jurídica – artigos 289.º e 291.º do CC”, mormente a que resultaria da existência de um contrato formalmente válido celebrado anteriormente à constituição da hipoteca sobre o imóvel.

8 - Acresce que, apesar de o contrato de arrendamento para comércio poder ser celebrado por simples documento escrito desde 2000, mesmo que tal tivesse ocorrido, no caso em apreço continuava a ser um contrato nulo por via do preceituado no artigo 9.º, n.º 7, do RAU, uma vez que o local se destinava a fim habitacional.

9- Atenta a respectiva nulidade, o contrato de arrendamento invocado pelo Recorrente como fundamento do seu direito de permanecer no imóvel no confronto com o adquirente em venda judicial do mesmo não pode prevalecer, porquanto, à nulidade contratual aplica-se o regime previsto no artigo 289.º do CC, com a consequente obrigação de entrega do imóvel.

10 - Entre o direito ao trabalho e o direito de propriedade, não existe qualquer prevalência legalmente consagrada, não violando o despacho recorrido qualquer preceito constitucional.

11- E, finalmente, também não se mostra que a Exequente esteja a actuar com abuso do direito ao pedir a entrega a quem ocupa sem título válido, o imóvel que adquiriu em venda judicial, livre e devoluto.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO
1. JL (…), na execução para entrega de coisa certa que foi movida pela Caixa A..., S.A. contra JA (…), invocando a qualidade de arrendatário do prédio, sito na Rua (...) Tondela, adjudicado à Exequente, interpôs o presente recurso de apelação do despacho proferido nos autos em 23.11.2012, com o seguinte teor:
«Uma vez que a jurisprudência maioritária tem entendido que a venda em processo executivo faz caducar a arrendamento nos termos do disposto no artigo 824º nº 2 do Código Civil (neste sentido, vejam-se, entre outros os Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/03/2006, 21/10/2008 e 09/10/2012, todos disponíveis, in, www.dgsi.pt ) defere-se o requerido pelo exequente no requerimento electrónico com a referência 348526, determinando-se a notificação do arrendatário para no prazo de 15 ( quinze ) dias proceder á desocupação e entrega do imóvel ao exequente».
Terminou a minuta recursória formulando as seguintes conclusões:
«1ª- O Tribunal de Tondela decidiu no despacho proferido electronicamente nos Autos em 23.11.2012, com a referência 1505785, notificar o arrendatário para no prazo de 15 (quinze) dias proceder á desocupação e entrega do imóvel sito na Rua (...)Tondela , inscrito na matriz inicialmente sob o artigo urbano (...)º , hoje artigo (...)º da freguesia e concelho de Tondela, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o nº (...), ao exequente, Caixa A...s, despacho este que é contrário á Lei e á Jurisprudência dominante.
Senão vejamos,
2ª – O ora recorrente veio informar a Exequente e a Srª Agente de Execução que os pais do executado celebraram com ele um contrato de arrendamento urbano datado 27.10.1999.
3ª - Este contrato foi celebrado pelo prazo de 5 anos, renovável de acordo com a Lei na altura em vigor e foi assinado pelas partes, pelo que é válido.
4ª - O recorrente ocupa desde então e legitimamente o imóvel em questão.
5ª – O recorrente não tem qualquer outro imóvel onde possa exercer a sua actividade profissional.
6ª - A desocupação do r/c do imóvel causa um prejuízo imenso ao recorrente, que é muito superior à vantagem que é conferida à exequente.
7ª - Sendo certo que como já se referiu o recorrente não tem outra oficina para onde possa ir exercer a sua actividade profissional.
8ª – A desocupação põe a subsistência do Recorrente e do seu agregado familiar.
9ª – O direito ao trabalho consagrado na Constituição é um bem maior do que a simples entrega do imóvel livre e devoluto à exequente.
10ª- A aquisição pela credora hipotecária do direito de propriedade sobre o prédio hipotecado, por meio de adjudicação, não importa, sem mais, a caducidade deste contrato de arrendamento que tinha sido celebrado validamente pelo anterior proprietário e estava em vigor à data dessa adjudicação, como é o caso nos autos.
11ª – Assim, o direito ao arrendamento deve assim manter-se na esfera jurídica do aqui recorrente, mantendo-se válido o contrato de arrendamento, celebrado entre o recorrente e os pais do executado, posteriormente com o executado e agora com a Caixa A...S.A..
12ª – O douto despacho recorrido ao investir a exequente na posse do imóvel e ordenar a entrega efectiva das chaves do r/c do mesmo, violou a Lei fundamental, designadamente os artigos 58º e 59º da Constituição da República, e o artigo 824º, nº 2, entre outros do Código Civil.
13ª- Efectivamente, as relações locatícias constituídas antes do registo de qualquer hipoteca, e bem assim como aquelas cuja eficácia, perante terceiros, dependa do registo e este haja sido efectuado, é que subsistem, mesmo ocorrendo a venda da coisa locada, em processo de execução.
14ª- Os contratos de arrendamento não sujeitos a registo não caducam com a venda executiva, se a constituição da relação locativa for anterior à data do registo da hipoteca, garantia invocada nesta execução.
15ª- Recaindo hipoteca sobre imóvel objecto de venda executiva, constituída  e registada, em data posterior à do contrato de arrendamento celebrado entre o locatário e os executados senhorios, a locação é oponível ao adquirente do imóvel, não se extinguindo o arrendamento, que prevalece sobre aquela garantia real, após a realização da venda executiva.
16ª- O regime legal decorrente do artigo 1057º é aplicável à venda de coisa locada, em processo executivo, por se tratar de hipótese que deve considerar-se incluída, no âmbito do disciplinado pelo artigo 824º, nº 2, ambos do CC.
17ª- Nestes termos, a venda judicial/adjudicação do imóvel ocorrida no Autos não afectou o contrato de arrendamento que sobre ele incide, houve sim uma transmissão da posição do locador, facto regulado por Lei, atento o disposto no artigo 1057º do C.C..
18ª- Atento o alegado, deve ser concedido total provimento ao presente recurso, julgando-se o agravo procedente e, em consequência, revogar-se a decisão proferida em 23.11.2012 pelo 2º Juízo do Tribunal de Tondela a de fls. dos Autos, devendo considerar-se válido o contrato de arrendamento do ora recorrente e em consequência seja decidido que o recorrente pode continuar a utilizar o r/c do imóvel sito na Rua (...)Tondela, inscrito na matriz inicialmente sob o artigo urbano (...)º, hoje artigo (...)º da freguesia e concelho de Tondela, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o nº (...), na qualidade de arrendatário.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO e com o douto suprimento de V.Exªs, deve ser concedido total provimento ao presente recurso, julgando-se o agravo procedente e, em consequência, revogar-se a decisão proferida em 23.11.2012 pelo 2º Juízo do Tribunal de Tondela a de fls. dos Autos, com as inerentes consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».
           
2. Para instruir o presente recurso de agravo o Recorrente juntou 23 documentos, de entre os quais um intitulado “contrato promessa de arrendamento”, vários cheques e recibos de renda e, por certidão, as seguintes peças processuais dos Autos de Execução nº 178/05.7TBTND – 2º Juízo do Tribunal de Tondela:
1- Requerimento Executivo de fls. 3 a fls. 43;
2- Escritura Pública de constituição de hipoteca outorgada no Cartório Notarial de Santa Comba Dão em 21 de Agosto de 2001, fls. 33 a fls 37;
3- Certidão da Conservatória do registo predial de Tondela, fls. 84 a fls. 85;
4- Auto de Penhora, fls. 69 a fls 74;
5- Auto de abertura de propostas, a fls. 163 a fls 164;
6- Requerimento da Srª Agente de Execução Madalena Sanches, a fls. 177 a fls. 180;
7- Despacho electrónico deste 2º Juízo do Tribunal de Tondela datado de 23/11/2012, com a referência 1505785;
8- Requerimento de interposição de recurso a fls. 182 a fls. 200; e despacho electrónico do 2º Juízo do Tribunal de Tondela datado de 05.03.2013, com a referência 1574839, a admitir o presente recurso.

3. A Caixa A...apresentou contra-alegações pugnando, desde logo, pela inadmissibilidade do presente recurso e concluindo pela respectiva improcedência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso[1].
O presente recurso de apelação integra duas questões essenciais, a apreciar segundo a sua ordem lógica, e versa matéria estritamente de direito:
A primeira, consiste em apreciar a validade do invocado contrato de arrendamento;
A segunda, em saber se, existindo contrato de arrendamento, atenta a data da sua celebração, o mesmo caduca ou não com a venda da fracção ao credor reclamante;
Em consequência, decidir se deve ou não ser proceder-se, no âmbito destes autos, à entrega efectiva do imóvel ao Banco adquirente, conforme determinado no despacho recorrido.
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II – Fundamentos
II. 1. De facto
Os factos que importam à decisão do presente recurso, para além dos já constantes do relatório supra, são os seguintes[2]:
1. Por documento particular outorgado no dia 27 de Outubro de 1999, o ora recorrente celebrou um contrato-promessa de arrendamento com R (…), pais de JA (…), executado nos Autos, do r/c do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Tondela, inscrito na matriz predial sob o artigo urbano (...)º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o nº (...).
2. Desse documento consta que o contrato é por prazo certo e com a duração efectiva de cinco anos, a partir do seu início que se considera no dia 1 de Novembro de 1999.
3. Consta ainda que o promitente arrendatário ficou autorizado a partir de 1 de Novembro de 1999, a ocupar e utilizar o rés-do-chão em causa, podendo nele efectuar as obras acima previstas e dar início à exploração do estabelecimento.
 4. No aludido documento particular, ficou estipulada uma renda mensal de 55.000$00 no primeiro ano da vigência deste contrato e a partir do segundo ano de 60.000$00.
5. Na cláusula sexta do referido documento estabeleceu-se que o local arrendado destina-se a “stand” de vendas de motos motorizadas e bicicletas, motores de rega, motosserras atomizadores e acessórios e afinação e assistência dos mesmos.
6. O referido acordo foi-se renovando mesmo já depois da morte dos acima citados (…), nunca tendo sido celebrada a Escritura Pública que nos termos da cláusula décima seria efectuada logo que fosse obtida a licença de utilização a emitir pela Câmara Municipal de Tondela, em data então a acordar entre os dois outorgantes.
7. JA (…), executado nos autos, adquiriu o identificado prédio urbano, que se encontra inscrito no registo como destinado a habitação, por partilha da herança de (…) casada com (…), no regime da comunhão geral.
8. Em garantia de um contrato de empréstimo, o referido JA (…) outorgou com a Caixa A...em escritura de constituição de hipoteca sobre o identificado imóvel, celebrada em 20 de Agosto de 2001 no Cartório Notarial de Santa Comba Dão.
9. A referida hipoteca foi registada provisoriamente por natureza na Conservatória do Registo Predial de Tondela, em 6 de Agosto de 2001 pela Ap. 3, tendo sido convertida em 23-08-2001, e a penhora sobre o imóvel foi registada em 01.06.2005.
10. O ora recorrente emitiu vários cheques a favor de JA (…), e a seu favor foram emitidos diversos recibos de renda correspondentes ao identificado imóvel, pelo menos, nos anos de 2009, 2010 e 2011.
11. Nos autos de execução o ora recorrente foi constituído fiel depositário do imóvel na qualidade de arrendatário.
12. Do auto de abertura de propostas em carta fechada realizado em 24 de Junho de 2011 consta que se encontrava presente o ora recorrente, na qualidade de arrendatário do imóvel objecto da venda, tendo nesse acto sido adjudicado o imóvel à Exequente em virtude de aquele não ter exercido o direito de preferência.
13. No dia 17-02-2012, a solicitadora de execução não procedeu à diligência de entrega quanto “à parte do imóvel que se encontra arrendada”, solicitando se devia ou não proceder à diligência, com o fundamento de constar nos autos “que existe um arrendatário (de uma loja no rés-do-chão, n.º 143)”; e ainda que “o mesmo foi sempre notificado nos autos na qualidade de preferente”.
14. Por carta datada de 21 de Março de 2012, o ora Recorrente manifestou à Senhora solicitadora de execução “o espanto e incompreensão” quanto à notificação para entrega do imóvel, expondo que sempre pagou as rendas desde a celebração do contrato, primeiro ao primitivo senhorio e depois ao seu filho, ora executado; que sempre foi tratado nos autos como arrendatário tendo sido notificado para exercer a preferência na aquisição; que não o tendo feito aguardou que lhe fosse comunicado o título de transmissão do imóvel pela adquirente, que nunca o contactou, solicitando que lhe fosse indicado o NIB da conta bancária para proceder ao depósito das rendas devidas pelo arrendamento do imóvel.
14. Por carta datada de 8 de Junho de 2012, enviou exposição semelhante ao Ilustre mandatário da Exequente, ora recorrida.
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II.2 – O mérito do recurso
II.2.1. Questão prévia
A Apelada sustenta que a questão suscitada pelo Recorrente JL (…) indicada como “A primeira, consiste em verificar-se qual a data em que foi celebrado o contrato de arrendamento do ora recorrente, que é anterior ao registo da hipoteca, garantia invocada nestes Autos de Execução” não pode merecer a apreciação deste tribunal porquanto os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, sendo que na instância recorrida o ora Recorrente não alegou qualquer facto capaz de proporcionar resposta à questão ora suscitada, pelo que, sendo os recursos meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas, como é o caso, não pode tal questão ser apreciada.
Afigura-se-nos, porém, que apesar de o nosso sistema de recursos não se destinar a apreciar questões novas mas a reapreciar questões já decididas, como afirma a Recorrida, o certo é que tal não obsta que o Tribunal da Relação aprecie todas as questões das quais dependa a decisão da questão que é suscitada pelo Recorrente.
E independentemente da forma como as questões a decidir foram pelo mesmo elencadas - in casu, aproveitando parcialmente o segmento do Acórdão proferido pela ora Relatora no processo n.º 1734/10.7TBFIG, de 09-10-2012, citado pela Mm.ª Juiz a quo e disponível em www.dgsi.pt – tal não significa que este Tribunal esteja sujeito às mesmas na exacta forma como o Recorrente as coloca. Posto é que decida as questões que são objecto do recurso.
E, no caso em apreço, tendo a Exequente e ora Recorrida pedido a entrega pelo ora Recorrente do imóvel por aquela adquirido em venda judicial, intitulando-se este arrendatário do mesmo - e sendo inclusivamente assim designado no despacho recorrido -, dúvidas não subsistem que, atentos os fundamentos do despacho, é incontornável que este Tribunal terá que apreciar se é ou não de revogar o despacho recorrido que determinou «a notificação do arrendatário» e ora Recorrente, «para no prazo de 15 (quinze) dias proceder à desocupação e entrega do imóvel ao exequente» e, para o efeito, terá necessariamente que apreciar todas as questões que relevam para tal decisão e que são as supra elencadas no objecto do recurso.
Para o efeito, na situação sub judice não releva que esta questão não tenha antes sido colocada, pela simples mas evidente razão que o ora Recorrente foi sempre tratado nos autos como arrendatário, situação que não podia ser ignorada pela Recorrida porque consta desde logo do auto de penhora. Por isso, a apreciação da data da celebração do contrato, só assumiu relevo para a tutela dos eventuais direitos do ora Recorrente quando o mesmo foi notificado do despacho de que agora recorre.
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II.2.2. Do contrato
Conforme já emerge do anteriormente exposto, a Exequente fundou a sua pretensão de entrega do imóvel, na sua aquisição em venda judicial no âmbito do processo de execução, pretendendo que o adquiriu livre e desonerado de todos os ónus e encargos que sobre o mesmo anteriormente incidissem, ao abrigo do disposto no artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil[3].
E foi precisamente ao abrigo deste normativo que a Mm.ª Juíza a quo, - deferindo a pretensão da Exequente, com fundamento no facto de ser “jurisprudência maioritária aquela que defende que a venda em processo executivo faz caducar o arrendamento” -, determinou a notificação do “arrendatário” para no prazo de 15 dias proceder à desocupação e entrega do imóvel.
Ora, pressuposto deste despacho é - como do mesmo claramente transparece e os próprios autos espelham -, em primeiro lugar, que o Recorrente é arrendatário do imóvel cuja entrega livre foi pedida pela Exequente; e, em segundo lugar, que a venda judicial faz sempre caducar o contrato de arrendamento.
Verifica-se, porém, que o primeiro pressuposto não é líquido, porquanto, invocando o ora Recorrente como fundamento do seu direito de se manter no imóvel adquirido pela Exequente, a celebração de um contrato de arrendamento anteriormente à constituição da hipoteca de que aquela beneficia, foi o próprio quem juntou aos autos um documento particular intitulado “contrato-promessa de arrendamento”, cuja nulidade a Recorrida invoca; e o segundo pressuposto do despacho não atentou naquilo que a jurisprudência maioritária defende e que não é em todos os casos o que consta do despacho recorrido.
Efectivamente, conforme já havíamos sublinhado no acórdão citado pela Mm.ª Juiz a quo e seguido de perto pelo recorrente, o que tem sido objecto de maior controvérsia é a questão de saber como se deve articular o preceituado pelos artigos 1057.º e 824.º do Código Civil.
Na verdade, o artigo 1057.º do CC, que se refere à transmissão da posição do locador, estatui que “[o] adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”.
Ora, é precisamente o preceituado neste artigo que tem estado no cerne da discussão sobre a natureza jurídica do direito do arrendatário[4], dividindo a doutrina entre os que consideram tratar-se de um direito real[5] e os que sustentam estarmos perante um direito pessoal de gozo[6].
Consideramos que o legislador do NRAU[7], confrontado com esta querela doutrinária, adoptou o entendimento que vê no direito do arrendatário um direito de raiz estruturalmente obrigacional, ao fazer regressar ao Código Civil, e precisamente ao Livro das Obrigações, o tratamento legal do contrato de arrendamento[8].
Efectivamente, o artigo 1057.º do CC consagra o princípio-regra de que a situação jurídica do locatário subsiste, não obstante a alienação do direito com base no qual o contrato foi celebrado, havendo unicamente uma modificação subjectiva quanto à pessoa do locador.
Deste modo, se o locador, proprietário ou usufrutuário do bem dado em locação dispuser do respectivo direito, transmitirá a posição contratual emergente da locação para o adquirente, o qual ipso jure fica investido na posição de locador.
“Trata-se de um caso em que um contrato, celebrado entre duas partes, acaba por vincular um terceiro, que nada teve a ver com a celebração daquele contrato e que nem sequer interveio na estipulação das suas cláusulas, mas que, por força da aquisição da coisa sobre a qual o contrato incide, se vê obrigado a cumprir os seus termos”[9].
Este é o regime regra aplicável à alienação do imóvel por acto do senhorio.
Porém, as dificuldades que se levantam não são quanto ao regime regra mas quanto ao problema da subsistência ou não do contrato de arrendamento no caso da venda executiva do imóvel arrendado, o qual tem sido objecto de divergências doutrinais e jurisprudenciais, havendo, ao invés do que foi feito no despacho recorrido, que distinguir diversas situações:
Assim, se a relação arrendatícia for constituída depois da penhora do locado, esta será inoponível à execução, nos termos do disposto no art.º 819.º do CC, pelo que a venda judicial do arrendado não determinará a transmissão para o adquirente da posição de senhorio[10].
Trata-se de situação linear porquanto estando o imóvel onerado já com uma penhora que visa dar satisfação aos direitos do credor, mal se compreenderia que o senhorio pudesse onerar o imóvel com um arrendamento e este fosse oponível ao credor beneficiário de tal garantia.
Questão que tem motivado acesa controvérsia na doutrina e jurisprudência é a que se refere à subsistência versus caducidade do contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de um direito real de garantia, como a hipoteca, e antes da penhora do locado, com a venda executiva.
Defendemos o entendimento maioritário[11], ou seja, que neste caso o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva, sendo aplicáveis os artigos 819.º e 824.º, n.º 2, este por analogia, e não o art.º 1057.º, todos do CC[12].
Por fim, se o arrendamento for anterior ao registo da hipoteca/penhora não caduca, antes se opera a transmissão da posição contratual do senhorio, nos termos do art.º 1057.º do CC, podendo o locatário defender o seu direito contra o adquirente mesmo em venda judicial[13], porquanto já não se justifica a tutela que os supra referidos artigos estabelecem para aqueles credores que vêem onerado o imóvel hipotecado por acto do devedor posterior à constituição do seu direito.
Assim, nesta situação, a venda forçada não afectará a relação locatícia validamente celebrada antes da constituição de qualquer direito real de garantia sobre o locado, maxime da hipoteca, tendo plena aplicação o regime geral de transmissão previsto no artigo 1057.º.
Consequentemente, a posição do senhorio transmitir-se-á para o terceiro adquirente do arrendado, que sucede nos respectivos direitos e obrigações.
Ora, é esta situação a que o Recorrente defende ter acontecido no seu caso, invocando ser arrendatário do imóvel adquirido pela Recorrida, por haver celebrado com o pai do executado na qualidade de senhorio, um contrato de arrendamento, em 27 de Outubro de 1999, dando início à exploração do estabelecimento em 1 de Novembro do mesmo ano.
Por seu turno, a Recorrida invoca a nulidade do contrato de arrendamento e não aceita a data da respectiva celebração.
Comecemos por apreciar a primeira questão, porque a segunda só se torna relevante - pelas razões já expendidas -, quanto a aquilatar da caducidade ou subsistência do contrato em caso de improcedência daquela.
Antes de mais, cumpre afirmar que, apesar de o Recorrente se referir sempre a que o documento particular que juntou aos autos é um contrato de arrendamento, conforme supra se expendeu na matéria de facto, o mesmo foi intitulado como sendo um contrato-promessa de arrendamento.
Ora, o contrato-promessa não se confunde com o contrato prometido (artigo 410.º do CC). Efectivamente, trata-se da convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, esse sim, o contrato relativamente a cujo objecto a vontade das partes é dirigida, enquanto aquele constitui um acordo que tem por “objecto uma obrigação de prestação de facto, que consiste na celebração do contrato prometido, através das declarações negociais que lhe são próprias, formalizadas ou não, consoante os requisitos de forma impostos por lei.
Refere-se, assim, sempre, funcionalmente, a outro negócio, constituindo este o seu objecto; logo, o objecto imediato do contrato-promessa consiste na realização do contrato prometido, constituindo o deste último objecto mediato daquele”[14].
Acontece, no entanto, que para contornar a imposição legal de forma mais solene nos arrendamentos para comércio ou indústria, cuja exigência de escritura pública determinava o controlo pelo notário da existência da necessária licença de utilização (artigo 9.º do RAU), muitas vezes ocorria, como no caso em apreço, que não estando o prédio licenciado para o fim a que se destinava - no caso o imóvel tem como fim a utilização habitacional - as partes se socorressem desta designação de “contrato-promessa de arrendamento”, quando afinal visavam celebrar desde logo um contrato de arrendamento.
Assim, a jurisprudência passou a entender pacificamente que quando as partes denominavam um contrato de “contrato-promessa de arrendamento comercial” mas previam no mesmo todas as cláusulas típicas do contrato de arrendamento, nomeadamente, a utilização pelo “promitente” inquilino do locado a partir de data próxima à assinatura do mesmo, com o correspectivo e imediato pagamento da renda, e apenas ficando para o “contrato prometido” a formalização daquele pela celebração da escritura pública, tinha de considerar-se que estávamos perante um contrato de arrendamento comercial, e não perante um contrato-promessa de arrendamento comercial[15], porquanto naquele escrito já se encontravam todos os elementos essenciais do contrato de arrendamento previstos pelo artigo 1022.º do CC.
Foi o que aconteceu no caso dos autos em que, apesar da denominação que lhe deram, com o escrito junto aos autos pelo Recorrente as partes então contratantes quiseram celebrar desde logo um contrato de arrendamento comercial, quando o fim a que se destinava a fracção era um fim habitacional. Logo, por via do disposto no artigo 9.º, n.º 7, do RAU, o contrato de arrendamento não habitacional de locais licenciados apenas para habitação é nulo e, só por tal, é nulo o contrato de arrendamento celebrado entre o ora Recorrente e o então senhorio, sem prejuízo das sanções ali legalmente previstas para o senhorio infractor e do direito do arrendatário a indemnização.
Mas, o mesmo contrato também é nulo por falta de forma legal, conforme defendido pela Recorrida.
Na verdade, para o efeito da apreciação da validade formal do contrato de arrendamento cuja existência foi invocada, temos que tomar como data de celebração e fim do contrato os indicados pelo Recorrente, porquanto é ao mesmo que aproveita a validade do contrato desde tal data que é anterior ao registo da hipoteca.
Para o efeito, importa antes de mais, apreciar qual o regime legal aplicável à formação do contrato de arrendamento urbano em apreço, porque à mesma se reconduz a questão colocada.
Estando o acordo datado de 27-10-1999, em conformidade com o disposto no artigo 12.º, n.ºs 1 e 2 do CC, a validade ou invalidade do contrato de arrendamento decorrente da inobservância das regras de forma, rege-se pela lei vigente à data da celebração do contrato.
Assim, àquela data, a validade formal de um contrato de arrendamento urbano destinado a uma actividade comercial, rege-se pelo disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, de acordo com o qual devem ser reduzidos a escritura pública os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.
Com efeito, apesar de entretanto ter entrado em vigor a simplificação introduzida pelo DL n.º 64-A/2000, de 22-04, após cuja entrada em vigor a escritura pública foi dispensada nos contratos de arrendamento urbano para comércio, indústria e exercício de profissão liberal, com a revogação tácita da al. b) do n.º 1 do art.º 1029.º do CC, atento o disposto no art.º 12.º, n.º 2, do CC, esta alteração não veio convalidar os contratos de arrendamento anteriormente celebrados sem observância da exigência legal de forma. Logo, são nulos os arrendamentos que tenham sido celebrados até à data de entrada em vigor do DL n.º 64-A/2000, de 22-04, sem escritura pública – cfr. art.º 220.º do CC[16].
Efectivamente, “o DL n.º 64-A/2000, de 22-04, que aboliu a exigência de escritura pública para o contrato de arrendamento para comércio ou indústria, não tem carácter interpretativo. Assim, o referido DL n.º 64-A/2000 não é aplicável a contrato de arrendamento para comércio celebrado por simples documento particular antes da sua entrada em vigor, contrato esse nulo, pois que não formalizado através da escritura pública exigida pela al. b) do n.º 2 do art.º 7.º do RAU e pela al. f) do n.º 2 do art.º 80.º do CN (na redacção vigente à época)”[17].
O mesmo se diga quanto ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela novíssima Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, já que a norma de aplicação da lei no tempo prevista no artigo 59.º, n.º 1, e de acordo com o princípio geral que rege as leis de forma tempus regit actum, implica que a lei nova só visa os factos novos quanto às condições de validade dos contratos[18], isto apesar de a mesma se aplicar às relações contratuais que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Acresce que, ao invés do que acontecia na vigência do n.º 3 do art.º 1029.º do CC, aditado pelo DL n.º 67/75, de 19-12, segundo a qual no caso da al. b) do n.º 1 [arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal], a falta de escritura pública era sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só era invocável pelo locatário que podia fazer a prova do contrato por qualquer meio, situação que foi mantida quanto aos contratos do pretérito pelo art.º 6.º do DL n.º 321-B/90, de 15-10, que aprovou o RAU, a nulidade em apreço passou a seguir o regime geral e, como tal, é de conhecimento oficioso e invocável por qualquer interessado (artigo 286.º do CC).
Desta sorte, conclui-se que o contrato em apreço foi celebrado com inobservância da forma legalmente exigida e, também por tal, é nulo.
Ora, perante a nulidade, por vício de forma, do contrato de arrendamento celebrado pelo Recorrente na qualidade de arrendatário, a detenção e utilização do prédio e a recusa em proceder à sua entrega à Exequente que o adquiriu em venda judicial, “constitui mera ocupação intitulada de coisa alheia, sendo ilegítima e não merecedora de qualquer protecção jurídica – artigos 289.º e 291.º do CC”[19], mormente a que resultaria da existência de um contrato formalmente válido anteriormente à constituição da hipoteca sobre o imóvel.
Efectivamente, no caso em apreço, nem sequer poderia nunca ser adoptado o entendimento de que tratando-se de um contrato-promessa de arrendamento comercial, celebrado por escrito na altura em que era exigida a celebração por escritura pública do contrato de definitivo, mas respeitado pelas partes como contrato definitivo já no domínio de aplicação da lei nova que deixou de exigir aquela forma solene para o contrato definitivo (escritura pública), sempre poderiam as partes celebrar novo contrato formalmente válido[20].
 É que, apesar de o contrato poder ser celebrado por simples documento escrito desde 2000, o certo é que o mesmo continuava a ser um contrato nulo por via do preceituado no indicado artigo 9.º, n.º 7 do RAU.
Como tal, atenta a respectiva nulidade, o contrato de arrendamento invocado pelo Recorrente como fundamento do seu direito de permanecer no imóvel no confronto com o adquirente em venda judicial do mesmo não podia prevalecer, porquanto, à nulidade contratual aplica-se o regime previsto no artigo 289.º do CC, com a consequente obrigação de entrega do imóvel.
Nas suas conclusões, invoca ainda o Recorrente que o direito ao trabalho consagrado na Constituição da República Portuguesa prevalece sobre o direito de propriedade do adquirente do imóvel em venda judicial.
Afigura-se-nos, porém, que não lhe assiste qualquer razão.
Efectivamente, os invocados direitos constitucionais, sendo ambos direitos fundamentais, encontram-se consagrados nos artigos 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do mesmo capítulo da Constituição da República Portuguesa, relativo aos direitos e deveres económicos.
Portanto, equiparados na Lei Fundamental, entre eles não existe qualquer prevalência legalmente consagrada já que, se “todos têm direito ao trabalho”, também “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da lei”.
Como assim, não existe a invocada prevalência do direito ao trabalho sobre o direito de propriedade, não violando o despacho recorrido qualquer preceito constitucional.
E, finalmente, ainda que não tenha sido suscitada tal questão pelas partes, porque é a única que, em nosso entender, podia levar à solução pretendida pelo Recorrente, sendo de conhecimento oficioso e podendo ser conhecida pelo tribunal superior ainda que não tenha sido colocada na primeira instância, diremos desde já que, in casu, também não se mostra que a Exequente esteja a actuar com abuso do direito ao pedir a entrega do imóvel que adquiriu em venda judicial, livre e devoluto.
Efectivamente, para obviar a situações que se nos deparam como clamorosamente injustas, o artigo 334.º do Código Civil consagra o instituto do abuso do direito, que se configura como uma verdadeira excepção, considerando ilegítimo o exercício de um direito quanto o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
      Ora, quer a doutrina, quer a jurisprudência são concordantes em afirmar que o abuso do direito foi adoptado na nossa lei na concepção objectiva[21], e para se concluir pela ilegitimidade do exercício do direito torna-se necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará concretamente de determinada forma; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada; ou seja frustrada a boa fé da parte que confiou[22].
A jurisprudência tem entendido pacificamente que o instituto do abuso do direito não justifica que se considere válido, leia-se subsistente e eficaz para produzir todos os seus efeitos, um contrato de arrendamento comercial não formalizado por escritura pública exigida por lei[23].
            Tal não significa, porém, que em casos pontuais, dos quais uma das manifestações mais evidentes é o venire contra factum proprium possa verificar-se uma actuação de quem exerce o direito que integre esta excepção.
Exemplo disso encontra-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[24] no qual se decidiu que, «estando provado que desde 01.01.1998 até, pelo menos, 13.03.2006, o Réu sempre foi tratado e reconhecido como arrendatário comercial das partes do imóvel que foram objecto do denominado “contrato promessa de arrendamento”, ao qual se não seguiu a então necessária escritura pública, pagando as respectivas rendas, sendo-lhe passados os correspondentes recibos, quer pela primitiva proprietária, quer posteriormente pela Autora, que ambas lhe comunicaram qual o coeficiente de actualização das rendas, que, no anúncio da proposta de venda dos imóveis, em sede de liquidação de massa falimentar (onde a Autora os adquiriu), constava expressamente a existência de um contrato de arrendamento sobre tais imóveis celebrado entre a falida e o Réu, tem de concluir-se que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé o comportamento da Autora, a qual pretende que o Réu proceda à entrega dos espaços ocupados dos imóveis, com fundamento na nulidade do contrato de arrendamento por vício de forma».
Ora, como é bom de ver pelo referido exemplo, o caso não tem paralelo com a situação que agora nos ocupa em que, apesar de ter sido sempre tratado como arrendatário no processo, o Recorrente nunca efectuou o pagamento de qualquer renda a favor da Exequente que integrasse um comportamento concludente deste no sentido da aceitação da sua qualidade como arrendatário.
Mas, mais do isso, o ora Recorrente, nem sequer depositou à ordem dos autos as rendas devidas, limitando-se a enviar escrito para que lhe fosse indicado um NIB para o fazer, sem acautelar pela consignação em depósito o pagamento das rendas.
Portanto, não há qualquer comportamento imputável à exequente mercê do qual deva actuar-se o instituto do abuso de direito, paralisando o direito que a Exequente pretende ver exercido na execução.
Tal não significa, porém, que o ora Recorrente não tenha qualquer direito decorrente da nulidade do contrato de arrendamento e dos prejuízos que tal situação lhe acarrete, mormente aquele que expressamente decorre do artigo 9.º n.º 7, do RAU.
No entanto, tal direito não obsta à cominação decorrente da nulidade do contrato de arrendamento que o torna inoponível ao actual proprietário do imóvel.
Concluindo, pelos fundamentos expostos e não pelos vertidos no despacho recorrido, deve, não obstante, confirmar-se tal despacho na parte em que ordena a notificação do ora Recorrente para proceder à entrega do imóvel à Exequente.
*****
II.- 3. Síntese conclusiva:
I - A venda forçada em processo executivo não afecta a relação locatícia validamente celebrada antes da constituição de qualquer direito real de garantia sobre o locado, maxime da hipoteca, tendo plena aplicação o regime geral de transmissão previsto no artigo 1057.º, e consequentemente, a posição do senhorio transmitir-se-á para o terceiro adquirente do arrendado, que sucede nos respectivos direitos e obrigações.
II - Quando as partes denominavam um contrato de “contrato-promessa de arrendamento comercial” mas previam no mesmo todas as cláusulas típicas do contrato de arrendamento, tinha de considerar-se que estávamos perante um contrato de arrendamento comercial, e não perante um contrato-promessa de arrendamento comercial, porquanto naquele escrito já se encontravam todos os elementos essenciais do contrato de arrendamento previstos pelo artigo 1022.º do CC.
III -  Estando o acordo entre as partes datado de 27-10-1999, a validade ou invalidade do contrato de arrendamento decorrente da inobservância das regras de forma, rege-se pela lei vigente à data da celebração do contrato.
IV - Àquela data, a validade formal de um contrato de arrendamento urbano destinado a uma actividade comercial, regia-se pelo disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, de acordo com o qual deviam ser reduzidos a escritura pública os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.
V - Apesar de entretanto ter entrado em vigor a simplificação introduzida pelo DL n.º 64-A/2000, de 22-04, após cuja entrada em vigor a escritura pública foi dispensada nos contratos de arrendamento urbano para comércio, indústria e exercício de profissão liberal, esta alteração não veio convalidar os contratos de arrendamento anteriormente celebrados sem observância da exigência legal de forma, os quais são nulos.
VI - Ao invés do que acontecia na vigência do n.º 3 do art.º 1029.º do CC, aditado pelo DL n.º 67/75, de 19-12, segundo o qual, no caso da al. b) do n.º 1, a falta de escritura pública era sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só era invocável pelo locatário que podia fazer a prova do contrato por qualquer meio, a nulidade em apreço passou a seguir o regime geral e, como tal, é de conhecimento oficioso e invocável por qualquer interessado (artigo 286.º do CC).
VII - Perante a nulidade, por vício de forma, do contrato de arrendamento celebrado pelo Recorrente na qualidade de arrendatário, a detenção e utilização do prédio e a recusa em proceder à sua entrega à Exequente que o adquiriu em venda judicial, “constitui mera ocupação intitulada de coisa alheia, sendo ilegítima e não merecedora de qualquer protecção jurídica – artigos 289.º e 291.º do CC”, mormente a que resultaria da existência de um contrato formalmente válido celebrado anteriormente à constituição da hipoteca sobre o imóvel.
VIII - Acresce que, apesar de o contrato de arrendamento para comércio poder ser celebrado por simples documento escrito desde 2000, mesmo que tal tivesse ocorrido, no caso em apreço continuava a ser um contrato nulo por via do preceituado no artigo 9.º, n.º 7, do RAU, uma vez que o local se destinava a fim habitacional.
IX - Atenta a respectiva nulidade, o contrato de arrendamento invocado pelo Recorrente como fundamento do seu direito de permanecer no imóvel no confronto com o adquirente em venda judicial do mesmo não pode prevalecer, porquanto, à nulidade contratual aplica-se o regime previsto no artigo 289.º do CC, com a consequente obrigação de entrega do imóvel.
X - Entre o direito ao trabalho e o direito de propriedade, não existe qualquer prevalência legalmente consagrada, não violando o despacho recorrido qualquer preceito constitucional.
XI - E, finalmente, também não se mostra que a Exequente esteja a actuar com abuso do direito ao pedir a entrega a quem ocupa sem título válido, o imóvel que adquiriu em venda judicial, livre e devoluto.
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III - Decisão
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando, ainda que por diferentes fundamentos, a notificação para entrega do imóvel pelo Recorrente constante do despacho recorrido.
Custas do recurso a cargo do apelante.
Notifique.
*****
            Coimbra, 1 de Outubro de 2013
                                                                                
Albertina Pedroso ( Relatora )
 Carvalho Martins
Carlos Moreira

[1] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[2] Resultantes dos documentos juntos aos autos que não foram impugnados, da confissão do recorrente e do acordo das partes.
[3] Doravante abreviadamente designado CC.
[4] Seguiremos de perto na fundamentação a posição que defendemos nas anotações aos artigos 1051.º e 1057.º in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª ed., Quid Juris, 2009, págs. 266 a 268, em co-autoria com Laurinda Gemas e João Caldeira Jorge.
[5] Esta posição foi defendida por OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Civil, Reais, 5.ª ed., Coimbra Editora, págs. 536 e ss., e MENEZES CORDEIRO, in Da Natureza do Direito do Locatário, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1980, pág. 363. Porém, este autor reviu esta sua posição, in A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3.ª ed. Almedina, págs. 72 e 73.
[6] Esta é a posição clássica, claramente maioritária, sendo sufragada por GALVÃO TELES, in Arrendamento, págs. 305 e ss., PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra Editora, pág. 365, PEDRO ROMANO MARTINEZ, in Obrigações, pág. 160 e ss., JANUÁRIO GOMES, in Constituição da relação de arrendamento urbano: sua projecção na pendência e extinção da relação contratual, Almedina, pág. 122 e ss. ANDRADE MESQUITA, in Direitos Pessoais de Gozo, Almedina, pág. 163, HENRIQUE MESQUITA, in Obrigações Reais e Ónus Reais, MENEZES LEITÃO, in Arrendamento Urbano, 2.ª ed., Almedina, pág. 16, e CLÁUDIA MADALENO, in A Vulnerabilidade das Garantias Reais, Coimbra Editora, pág. 284.
[7] E é este o regime aplicável ao caso em apreço em face da data da aquisição do imóvel e do que dispõe o referido artigo 59.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27-02.
[8] Sobre a qualificação do contrato de arrendamento como contrato obrigacional e o problema da natureza jurídica do direito do arrendatário, cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit. págs. 15 a 17.
[9] Cfr. CLÁUDIA MADALENO, ob. cit. pág. 276.
[10] Cfr. neste sentido, exemplificativamente, Acs. STJ de 20-11-2003, Revista n.º 3431/03-2.ª; de 11-10-2005, Revista n.º 2361/05; de 17-04-2007, Revista n.º 867/07, disponíveis em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[11] Na doutrina, no sentido que preconizamos, da caducidade do arrendamento de imóveis hipotecados, pode ver-se o estudo “Arrendamento de imóvel dado em garantia”, de JOSÉ ALBERTO VIEIRA in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV vol., Almedina, págs. 437 a 450; em sentido contrário, defendendo que o arrendamento não caduca no caso de venda executiva do prédio, pronuncia-se MENEZES LEITÃO, in Arrendamento Urbano, 2.ª ed., Almedina, págs. 104 e 105, modificando posição antes assumida em Obrigações, vol. III, pág. 335.
Na jurisprudência, embora não exista consenso nesta matéria, é dominante a posição no sentido da caducidade do arrendamento, podendo ver-se, a título exemplificativo e pelos argumentos defendidos que nos dispensaremos de escalpelizar, porquanto o caso dos autos não terá nesta sede o respectivo enquadramento, os Acs. do STJ de 29-10-1998, Revista n.º 862/98; de 03-12-1998, Revista n.º 863/98; de 06-07-2000, Agravo n.º 1881/00; de 14-01-2003, Revista n.º 4264/02; de 09-10-2003, Revista n.º 2762/03; de 20-11-2003, Agravo n.º 3540/03; de 07-04-2005, Revista n.º 2107/04; de 11-10-2005, Revista n.º 2361/05; de 06-04-2006, Revista n.º 444/06; de 18-05-2006, Revista n.º 1227/06; de 31-10-2006, Revista n.º 3241/06; de 15-11-2007, Revista n.º 3456/07; de 05-02-2009, Revista n.º 4087/08; de 05-02-2009, Revista n.º 3994/08, todos disponíveis em www.stj.pt, sumários de Acórdãos. Mais recentemente, podem ver-se, neste mesmo sentido, os Acs. STJ de 27-05-2010, processo n.º 5425/03.7TBSXL.S1, e de 12-06-2012, processo n.º nº 409/06.6TBCDR.P1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Em sentido contrário, Acs. STJ de 19-01-2004, Revista n.º 4098/03; 20-09-2005, Revista n.º 1489/05; e 27-03-2007, Revista n.º 404/07, no referido sítio do STJ.
[12] Cfr. neste sentido, ARAGÃO SEIA, in Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7.ª ed., Almedina, pág. 341.
[13] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 07-04-2005, Revista n.º 2107/04, disponível no indicado sítio do STJ.
[14] Cfr. Ac. STJ, de 13-05-2004, Revista n.º 1207/04 – 1.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[15] Cfr. por todos, Ac. STJ, de 08-06-2006, Revista n.º 1483/06 – 6.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[16] Cfr. a nota 2 ao artigo 1029.º a págs. 174 do livro referido na nota de rodapé 5, e abundante jurisprudência neste mesmo sentido aí sumariada.
[17] Cfr. Ac. STJ de 28-11-2002, Revista n.º 3559/02 – 2.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[18] Cfr., neste sentido, Ac. STJ, de 13-12-2007, Incidente n.º 971/07-1.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[19] Cfr. Ac. STJ, de 01-04-2008, Revista n.º 4530/07 – 1.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[20] Cfr. Ac. STJ, de 16-10-2008, Revista n.º 2646/08 – 1.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[21] Porém, tal "...não significa que ao conceito sejam alheios factores subjectivos, como por ex. a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa -fé ou dos bons costumes, quer para determinar se se exorbitou do fim social ou económico do direito" – Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed. pág. 298.
[22]  Cfr. Baptista Machado, in "Tutela de confiança", R.L.J. Anos 117 e 118, págs. 322 e 323 e 171 e 172, e, por todos, Ac. do STJ de 22-11-2001, Proc. 3293/01- 2ª secção.
[23] Cfr. por todos, Ac. STJ, de 30-10-2002, Revista n.º 2816/02 – 7.ª secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[24] Proferido em 31-03-2009, no processo n.º 09A0537, e disponível em www.dgsi.pt.