Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/17.3T8LRA-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
CIRE
VENDA DE BENS DA MASSA INSOLVENTE
AUTORIZAÇÃO DA COMISSÃO DE CREDORES
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 56º, Nº 1, 161º, Nº 1 E 164º, Nº 2 DO CIRE.
Sumário: 1. A falta de solicitação de autorização da comissão de credores e/ou da comunicação ao credor com garantia real para a venda de bens da massa insolvente por negociação particular, a que aludem os artºs 161º, nº 1, e 164º, nº 2, do CIRE, constituem justa causa para a destituição do administrador judiciário nos termos do artº 56º, nº 1, também do CIRE.

2. Tanto o pedido de autorização para a venda, como a comunicação ao credor com garantia real, para que se possam considerar devidamente realizadas, devem conter as condições do negócio, o preço e a identidade do adquirente.

Decisão Texto Integral:







Acordam os Juízes, em audiência, na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Após o encerramento da liquidação da sociedade “P..., Ldª”, as sociedades L..., UCRL”, “D..., SA” e “C... – CRL, membros efetivos e presidente da comissão de credores, vieram requerer conjuntamente a destituição do Sr. Administrador de Insolvência, AI, por o mesmo não ter consultado e obtido consentimento prévio da comissão de credores para venda dos nove prédios que levou a cabo (fls 169 e 120 da certidão).

As sociedades “F..., Lda” e T..., Lda”, dando como reproduzido o requerimento anterior, pediram também a destituição do mesmo AI.

A “C..., SA” aderiu também em 15.04.2019 ao requerimento acima mencionado, sem prejuízo daquele outro que havia apresentado em 03.04.2019.

Notificado, o Sr. Administrador veio alegar que prestou todas as informações necessárias ao bom andamento do processo. Nenhum bem foi alienado sem o conhecimento e autorização da comissão de credores. Alienou todos os bens à melhor proposta obtida. A comissão de credores, apesar do pouco interesse demonstrado pelo acompanhamento da liquidação, foi de tudo informada em conformidade com o CIRE.

Foi proferida então a decisão que consta de fls 4 a 15 que, invocando o disposto no artº 56º, nº 1, do CIRE, destituiu o Sr. Administrador da Insolvência do cargo para que foi nomeado e nomeou um outro em substituição.

Inconformado, o AI interpôs o presente recurso de apelação, no qual, pedindo a revogação da decisão recorrida que o destituiu, apresentou as seguintes conclusões:

...

Não houve contra-alegações.

Nesta Relação, foi, oportunamente, admitido o recurso e mantida a espécie, efeito e regime de subida fixados pela 1ª Instância, nada obstando ao seu conhecimento, sendo válidos os pressupostos de validade e regularidade da instância.

Corridos os vistos legais, cumpre pois apreciar e decidir.

                II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

É pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o seu objeto – cfr., designadamente, as disposições conjugadas dos art.ºs 5.º, 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do C. P. Civil – sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Face às conclusões da motivação do recurso, há uma única questão a decidir e que é a seguinte:

1 -  Se os factos apurados relativos ao comportamento do Sr. Administrador da Insolvência, AI, durante as diligências para a venda por negociação particular configuram, ou não, justa causa que fundamentem a destituição de funções decidida na 1ª instância.

Essa questão passará pela análise dos fundamentos da decisão sinalizados pelo apelante, se credora hipotecária, C..., SA, não terá sido ouvida, nos termos do despacho no Art. 164º, nº 2 e 3 do CIRE na venda de nove bens imóveis apreendidos para a Massa Insolvente, e se o recorrente não obteve o consentimento da Comissão de Credores para a realização da venda, nem lhe foi indicada a identidade do adquirente dos bens.

Antes de nos debruçarmos na análise dessa questão, a única e a substantiva questão colocada perante este tribunal da Relação, há todavia algumas outras preliminares e que iremos abordar em jeito de introdução, e que têm a ver com uma eventual contradição entre a primeira decisão que indeferiu a nulidade e a ineficácia da venda realizada pelo AI e aquela agora em recurso, que destituiu o AI de funções; uma outra referente à circunstância de não ter sido decretada tal destituição pelo juiz por iniciativa própria mas após pedido dos credores e, a última, quanto ao número dos credores que solicitaram a destituição em comparação com o universo de todos os credores da insolvente.

2. Os Factos.

Segue-se a indicação dos factos provados, chamando-se a atenção que, com uma única exceção, o constante da alínea S), são os mesmos considerados na decisão ao “incidente de nulidade de venda” proferida  23.06.2019 e sobre o qual recaiu o acórdão mencionado nessa última alínea

A) - Por sentença de 11.01.2017 foi decretada a insolvência da sociedade P..., Lda.

B) - A assembleia de apreciação do relatório realizou-se em 2 de Março de 2017.

C) - Foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes imóveis:

1) - Prédio misto inscrito na matriz sob o ... e descrito na CRP de

2) - Prédio rústico inscrito na matriz sob o nº ... e descrito na CRP ...

3) - Prédio rústico inscrito na matriz sob o nº ... e descrito na CRP...

4) - Prédio rústico inscrito na matriz sob o nº ... e descrito na CRP ...

D) - À C..., SA foi reconhecido um crédito, com a natureza de garantido, no valor de €125.027,32;

E) - À A..., SA foi reconhecido um crédito, com a natureza de garantido, no valor de €367.421,47.

F) - O crédito da C..., SA e da A…, por beneficiarem de hipoteca, encontram-se garantidos pelo produto da venda dos prédios referidos em C) 1) a 4) e foram graduados ambos em 3º lugar, para serem pagos depois das dívidas da massa e do crédito da Autoridade Tributária.

G) - Em 27 de Novembro de 2017 foi publicitada a venda dos imóveis da massa insolvente referidos em C) com data designada para o recebimento de propostas até ao dia 18 de Dezembro de 2017, mas não foi recebida qualquer proposta.

H) - Em 7 de Novembro de 2017, o Sr. Administrador enviou à credora A..., SA uma comunicação com o seguinte conteúdo:

“Vem o Administrador de Insolvência, nomeado no processo à margem referenciado, e em conformidade com o CIRE, informar V. Exas que

1- foram apreendidos prédios para a Massa com hipotecas,

2- vai proceder à sua alienação por negociação particular,

3- a fim de anunciar os bens em dois jornais, agradeço e se assim o entenderem que no prazo de dez dias, informem do valor base que propõem para a sua alienação”.

I) - Em 7 de Novembro de 2017 o Sr. Administrador enviou à credora Segurança Social uma comunicação com o seguinte conteúdo:

“Vem o Administrador de Insolvência, nomeado no processo à margem referenciado, e em conformidade com o CIRE, informar V. Exas que

1- foram apreendidos prédios para a Massa com hipotecas,

2- vai proceder à sua alienação por negociação particular,

3- a fim de anunciar os bens em dois jornais, agradeço e se assim o entenderem que no prazo de dez dias, informem do valor base que propõem para a sua alienação”.

J) - O Srº Administrador, em 18 de Janeiro de 2019, enviou ao Instituto de Segurança Social uma comunicação com o seguinte conteúdo:

“Vem o Administrador de Insolvência do processo à margem referenciado, informar V. Exas, na qualidade de credores hipotecários que foi obtida uma proposta para a aquisição dos prédios apreendidos pelo auto de arrolamento, pelo valor de 100.000,00€.

Dado ser considerado um valor razoável, procederá à sua alineação até ao final do corrente mês de Janeiro por este valor mínimo e dado que o prazo para a liquidação do activo já terminou”.

L) - O Srº Administrador, em 18 de Janeiro de 2019, enviou à A..., SA uma comunicação com o seguinte conteúdo:

 “Vem o Administrador de Insolvência do processo à margem referenciado, informar V. Exas, na qualidade de credores hipotecários que foi obtida uma proposta para a aquisição dos prédios apreendidos pelo auto de arrolamento, pelo valor de 100.000,00€.

Dado ser considerado um valor razoável, procederá à sua alineação até ao final do corrente mês de Janeiro por este valor mínimo e dado que o prazo para a liquidação do activo já terminou”.

M) - O Srº Administrador, em 18 de Janeiro de 2019, enviou à comissão de credores uma comunicação com o seguinte conteúdo:

“Vem o Administrador de Insolvência do processo à margem referenciado, informar V. Exas. sobre a situação da liquidação do activo.

1-(…)

2-Continuando as diligências para a venda dos prédios apreendidos, foi recebida uma proposta verbal de 100.000,00 para a sua aquisição;

3-considerando uma proposta razoável para os citados bens, vai informar os autos e os credores hipotecários,

4- vai continuar as diligências para encontrar melhores propostas,

5-dado que os prazos para a liquidação do activo já foram ultrapassados, procederá à alienação dos bens pela melhor oferta obtida até ao final o corrente mês de Janeiro.”

N) - Em 28 de Março de 2019 o Srº Administrador veio ao processo dar conta que:

“1- as verbas 1 a 9 foram alineadas à melhor proposta, que foi de 130.000,00€,

2- as verbas 10 a 12 também foram alienadas;

2- a verba 13 foi alienada por 70,00,

3- pela verba 14 nenhum valor foi recebido,

5- desconhece outros bens a apreender”.

O) – Os imóveis referidos em C) foram vendidos pelo valor global de €130.000,00 à sociedade E..., LDA, discriminado da seguinte forma:

- €85,200, 00 para o indicado em C1)

- €12.000,00 para o indicado em C2)

- €2.500,00 para o indicado em C3)

- €19.500,00 para o indicado em C4)

- €1.700,00 para o indicado em C5)

P)- O Dr. R..., advogado, deu entrada nos autos, em 1.04.2019 a um requerimento cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

R)- A Drª J..., advogada, deu entrada nos autos, em 2.04.2019 a um requerimento cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

S) – Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 13.11.2019 foi declarada a nulidade da venda levada a cabo pelo Srº Administrador por este não ter dado cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 164º no que concerne à C..., SA.

                          3. O Direito

Começando então pela primeira das questões introdutórias acima mencionadas, a eventual contradição entre a primeira decisão que indeferiu a nulidade e a ineficácia da venda realizada pelo AI, e aquela que agora em recurso que o destituiu de funções, há que dizer desde logo que aquela decisão foi revogada e substituída por uma outra proferida através do acórdão desta Relação de 13.11.2029 (fls 33-52 da certidão), entretanto já transitado em julgado.

Vale portanto a última decisão indicada, nos termos dos artºs 619º, 621º, 627º e 628º do CPC, seria portanto com relação a essa última decisão que haveria de aferir-se a existência de eventual contradição e daí retirar as devidas consequências de acordo com os artºs 580º e 581º também do CPC.

O que vale para a decisão, vale por maioria de razão para o voto vencido, independentemente do apreço ou o respeito intelectual e científico que nos merecem quanto ao valor dos argumentos que sustentam uma e outro, não é isto que está em causa, apenas o efeito e a força das decisões e dos fundamentos que as sustentam.

Ainda que compreendendo e reconhecendo a coerência e a inteligência do discurso argumentativo do apelante nas suas alegações e conclusões, não poderíamos todavia valorar aquela decisão da 1ª instância e o voto de vencido em detrimento do acórdão final que fez vencimento e ao qual se deve agora observância e obediência.

Em todo o caso, mesmo atentando e relevando os argumentos desenvolvidos da primeira sentença, não vislumbramos de todo qualquer contradição entre essa decisão, relativa à apreciação da nulidade e da ineficácia da venda e esta última agora em recurso, relativa à destituição de funções do apelante como administrador da insolvência. 

Essa contradição, que o apelante sinalizou nas conclusões BB e CC, decorreria do entendimento inicial que a preterição da apontada formalidade, a falta de comunicação da venda, não era relevante, posto não ter prejudicado os credores e a liquidação da massa insolvente, e aquele outro agora perfilhado quanto à destituição do recorrente por entender que se trata de um ato de especial gravidade mas sem concretizar qual ou quais as consequências desse eventual comportamento especialmente grave.

Ora, naquela primeira decisão, ao proceder-se à verificação da nulidade invocada, faz-se constar (fls 23 da certidão) o seguinte:

“Para que se verifique o referido vício – nulidade do acto de venda - era necessário que o credor hipotecário demonstrasse que a irregularidade era susceptível de influir na realização da venda, com alegação de factualidade que permitisse concluir que se tivesse sido notificada atempadamente teria procurado interessado na aquisição do bem, ou tinha já interessado na aquisição do bem ou que pretendia exercer o direito de aquisição por valor superior.

“No entanto, a C..., SA nada alega a esse respeito”, e ainda “a credora não demonstrou em termos plausíveis que a irregularidade cometida era susceptível de influir na realização da venda, pelo que é apodíctico que a nulidade invocada terá de improceder”.

Não se afirmou portanto que a preterição da formalidade em causa não era relevante, o que se afirmou foi que para além dessa circunstância era também necessário a verificação de um prejuízo daí decorrente para levar à procedência da nulidade, o que não foi sequer alegado e ditou então a improcedência da invocada nulidade, ao contrário do que veio a decidir esta Relação.

De resto, nessa mesma decisão (fls 22 da certidão), ainda que “à vol d’oiseau” – porque não era preciso mais e não constituía o thema decidendum - e a propósito de uma citação, não se deixou de referir as implicações da omissão, que existiu e se reconhecia, e que “constitui justa causa de destituição ou fundamento de responsabilidade civil”, dando portanto a devida nota das consequências que agora se discutem.   

Não há portanto, salvo sempre o devido respeito por opinião em contrário, qualquer contradição, ou pelo menos não a vislumbramos.

A segunda questão preliminar decorre da destituição do AI ter sido decida pelo juiz após pedido dos credores e não por iniciativa própria, o que significa, no entender do apelante, que o próprio magistrado, por si próprio, não atribuiria a importância que lhe conferem os requerentes e não teria portanto destituído o apelante das suas funções de administrador judiciário

Não nos parece que tenha raão o apelante, os factos e as circunstâncias não nos levam na mesma direcção e às mesmas conclusões.

Conforme resulta dos artºs 161º, nºs 1 a 4, e 164º, nº 2, do Dec-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE -, o AI deveria solicitar autorização prévia à comissão de credores e comunicar a venda projectada, com condições, preço e adquirente, à C..., algo que ocorre à margem da actuação do juiz que, não obstante as suas funções de fiscalizações no processo de insolvência, pronuncia-se relativamente às decisões daquela comissão no âmbito da assembleia de credores nos termos dos artºs 58º, 69º, 74º e 80º do mesmo diploma. 

A ausência de qualquer iniciativa de ofício desencadeada pelo juiz, designadamente a destituição do AI pelos fundamentos descritos pelos credores, poderia não ser do seu conhecimento, ou pelo menos não lhe chegar em tempo útil, posto que não tem assento na comissão de credores, não poderia saber de imediato se havia sido solicitada ou não a autorização para a venda ou se havia sido feita a comunicação à credora C..., cujos interesses caberia àquele órgão e à credora suscitar e defender desde logo, e foi o que fizeram.

Há que não esquecer, o que nos diz o legislador no ponto 10 do preâmbulo do DL nº 53/2004, o CIRE, “a afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.

E acrescenta,

Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais.

É assim que, por um lado, ao juiz cabe apenas declarar ou não a insolvência, sem que para tal tenha de se pronunciar quanto à recuperabilidade financeira da empresa (como actualmente sucede para efeitos do despacho de prosseguimento da acção). A desnecessidade de proceder a tal apreciação permite obter ganhos do ponto de vista da celeridade do processo, justificando a previsão de que a declaração de insolvência deva ter lugar, no caso de apresentação à insolvência ou de não oposição do devedor a pedido formulado por terceiro, no próprio dia da distribuição ou nos três dias úteis subsequentes, ou no dia seguinte ao termo do prazo para a oposição, respectivamente.

Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).

Parecem-nos pois inadequadas as ilações que o apelante retira do confronto da iniciativa dos credores pedindo a destituição do AI e a aparente inércia do juiz.

A terceira questão preliminar, a eventual desproporção entre o número dos credores que pediram a destituição, e que são 6 (seis) – a L..., UCRL”, “D..., SA”, “C... – CRL”, “F..., Lda”, T..., Lda” e a “C..., SA”, a  não 3 (três) ou 5 (cinco), não tem qualquer relevância quer em termos de legitimidade, que não afecta, retira ou diminui à que detêm aqueles, ou quanto eventual ponderação de interesses, ou constituir, possivelmente, um abuso de direito.

Bastaria a nosso ver um único credor, independentemente da expressão numérica desse mesmo crédito, para ter legitimidade bastante para pedir a destituição do AI, questionar a comissão ou a assembleia de credores e, finalmente pleitear pela intervenção do juiz de acordo com os artºs 70º, 72º, 73, 75º e 78 do CIRE.

Podemos passar agora à apreciação da conduta do administrador da insolvência no caso vertente e se constitui justa causa que sustente a sua destituição de funções.

Dispõe o artº 55º, nºs 1, b), e 2, do Dec-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, o CIRE, que além das demais tarefas que lhe são acometidas, cabe ao AI, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, prover à frutificação dos direitos do insolvente e, sem prejuízo dos casos de … necessidade de prévia a concordância da comissão de credores, exerce pessoalmente as competências desse seu cargo.

O artº 56º, nº 1, também do CIRE, permite que o juiz destitua o AI se, ouvida a comissão de credores, considerar justa causa, conceito cuja densificação ocupa as primeiras 3 páginas da fundamentação da sentença.

Seguimos e partilhamos as considerações feitas na sentença na busca de uma caracterização e de um conteúdo que defina e dê corpo à enunciação de “justa causa”, e que deverá ser encontrado caso a caso, em função da situação em concreto, com apelo aos deveres e incumbências cometidas ao AI no exercício das suas funções, bem como ao sentido e interesses do processo de insolvência.

A lei, com efeito, não define justa causa , nem tão pouco apresenta critérios norteadores para o seu preenchimento[1], trata-se de um conceito vago e indeterminado que abrange a violação grave dos deveres do administrador, mas também outras circunstâncias que tornem insustentável a manutenção em funções do AI[2].    

Não seria despropositado procurar algo semelhante, salvaguardas naturalmente as devidas especificidades, ao que enuncia o artº 1783º do Código Civil quanto à violação culposa dos deveres conjugais como fundamento do pedido de divórcio litigioso, um evento que, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum, ou seja, para o que aqui interessa, uma conduta de tal modo grave ou reiterada que comprometa a continuação do exercício das funções do administrador judiciário nomeado e obrigue à a sua destituição e substituição.

Procurando fazer esse itinerário, voltando ao CIRE, dispõe o já citado artº 161º, nºs 1 e 2) que “depende do consentimento da comissão de credores … a prática de actos que assumem especial relevo para o processo de insolvência”. Sendo que para a qualificação de um acto como de especial relevo deve atende-se às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência.

Acrescenta o nº 4 desse mesmo artº 161º, também já invocado, que “a intenção de efectuar alienações que constituem actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores … com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transação”.

Segundo referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[3], o que em primeira linha decorre daquele artº 161º, é o dever cometido ao AI de prover à prévia obtenção de autorização necessária e, por corolário, não agir sem ela, e, sem prejuízo de outras consequências que possam ocorrer, a violação desse dever jurídico, traduzida na prática dos actos abrangidos sem o apropriado consentimento constitui, sem dúvida, justa causa de destituição.

Por outro lado, dispõe o artº 164º, nºs 1 e 2, igualmente do CIRE, que o AI procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão electrónico, podendo, de forma justificada optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente, sendo ouvido sempre o credor com garantia real, quer sobre a modalidade da venda quer quanto ao valor base fixado, do preço da alienação projectada a entidade determinada.

Configura-se aqui um procedimento peculiar de tutela do credor assistido de garantia para, em primeira mão, melhor poder cuidar da satisfação do seu crédito, embora isso se possa traduzir na possibilidade de aquisição do bem onerado para si ou para terceiro, mas que pressupõe para a sua eficácia o cumprimento do dever de informação ao aludido credor garantido [4] e que passa pela indicação do valor base fixado e do preço da alienação projectada a entidade determinada.

Só assim, como é natural, poderá então o credor formar a sua decisão e exercer a possibilidade que lhe assiste de propor no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o AI não está obrigado a aceitar tal proposta, ficando apenas obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior

Tal proposta, prevista no nº 3 do citado artº 164º só será eficaz se, conforme estipula o nº 4, for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente no valor de 20/% do montante dessa mesma proposta, aplicando-se com as devidas adaptações os arºs 824º e 825 do CPC.

É claro que, para que se verifiquem todas essas circunstâncias é necessário, obviamente, que o AI cumpra aquilo que a lei lhe impõe, a informação da intenção de efectuar alienações por negociação particular, o que cumpriu e satisfez na situação vertente quanto aos credores, mas não já, como reconhece à C..., bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio, o que não aconteceu de todo[5].

O apelante, se por um lado alega o cumprimento dessa imposição com o anúncio e as comunicações enviadas e são mencionadas nas alíneas G), H), I), J), L) e M), por outro lado entende que a omissão da notificação à C... constitui um mero lapso, mas sem consequências, porquanto este banco teve conhecimento da venda projectada através da publicação do referido anúncio e das demais diligências desenvolveu e que veio efectivamente a realizar por 130.000,00€, valor superior ao indicado inicialmente, de 100.000,00€.

Porém, podemos adiantar já, não concordamos com um tal entendimento.

As comunicações anteriores à venda, valem quanto a nós no que tem a ver com a manifestação de uma opção da modalidade de venda, a negociação particular, sendo que a menção de um valor, 100.000,00 €, não supre a falta da comunicação da venda a realizar, mesmo que a preço superior, como também não podemos desvalorizar a ausência de indicação do adquirente, um elemento essencial.

Com efeito, é perante o valor final encontrado, depois de concluídas e encerradas as negociações, já determinada a concreta entidade a quem vai/vão ser alienado(s) o(s) bem/bens que deve ser então solicitada a autorização da comissão de credores – que deve ser expressa e através de uma deliberação por se tratar de um órgão colegiado – tal como deve acontecer igualmente com a comunicação ao credor com garantia real, pelo que nenhum desses deveres se pode assim considerar cumprido e satisfeitas as exigências da lei com o circunstancialismo descrito nas alíneas G), H), I), J), L) e M) .

O apelante valoriza o silêncio dos credores após as comunicações acima indicadas, e compreende-se que o faça, mas deveria também considerar que perante uma informação incompleta fornecida previamente, só com a indicação do valor final e do comprador seria expectável e devida uma tomada de posição da parte dos credores, poderiam estes expressar uma decisão. Não é certamente por um acaso, preciosismo ou excesso de rigor do legislador que se exige a indicação de cada uma dessas circunstâncias, porque são de factos elementos importantes para a formação da vontade, aliás uma exigência que perpassa, por exemplo, quanto ao direito de preferência nos artºs 416º e 1410º, nº 2, do CC. 

Ora esses deveres quanto à solicitação de autorização e comunicação são os mais conspícuos e elementares impostos ao administrador na liquidação do activo, não se revestem de qualquer complexidade ou particular dificuldade, deflui das próprias características do processo de da necessidade de contacto mais próximo com a comissão de credores e comunicação aos credores com garantia real.

Há, é verdade, alguma exigência de rigor e de transparência da lei quanto à conduta do administrador judiciário, o que se compreende, por um lado porque o processo de insolvência irá culminar com a insatisfação de alguns dos créditos, precisamente por se tratar de uma insolvência, pelo que importa dar a conhecer que tudo foi feito para que se lograsse o máximo de recursos para esse fim precípuo, a satisfação dos credores e, por outro lado, que sendo a negociação particular a modalidade de venda que envolve menos acompanhamento, deveriam ser ainda maiores as cautelas quanto à transparência na sua realização.

Não será por isso despiciendo dizer neste ponto em nos encontramos que o administrador da insolvência, a pessoa incumbida da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, deve ter uma sólida e adequada formação teórica e prática, com passagem por um estágio e exame final, para comprovar tais requisitos, artºs 3º, 7º, 8º e 9º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, o que seguramente é o caso do apelante, com certeza, mas que por isso mesmo não pode configurar como equivalente a uma autorização ou suprida.a falta de comunicação como refere, porque não houve nem uma nem outra.

A constatação dessas faltas de autorização e de comunicações, não são próprias de um gestor criterioso, põem em causa um núcleo muito importante de deveres funcionais do AI, também de interesses dos credores e da liquidação da massa insolvente, violação que assume gravidade e configura justa causa para a sua destituição[6].

Não faria qualquer sentido que o AI permanecesse em funções depois da anulação das vendas e da necessidade de repetir todo esse procedimento, para o qual não teria a confiança de um conjunto de credores.

III – DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso interposto pelo administrador judicial e mantêm-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 09/03/2021

Sumário (artº 663º, nº 7 do CPC)

1. A falta de solicitação de autorização da comissão de credores e/ou da comunicação ao credor com garantia real para a venda de bens da massa insolvente por negociação particular, a que aludem os artºs 161º, nº 1, e 164º, nº 2, do CIRE, constituem justa causa para a destituição do administrador judiciário nos termos do artº 56º, nº 1, também do CIRE.

2. Tanto o pedido de autorização para a venda, como a comunicação ao credor com garantia real, para que se possam considerar devidamente realizadas, devem conter as condições do negócio, o preço e a identidade do adquirente.


***


 [1] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência”, 7ª ed., pg 76.
 [2] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 2009, pg 118; “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., 2006, pg 97.
       [3] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., pg 637.
      [4] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pg 651.
      [5]  Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., pg 250.
       [6] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pg 347, ponto 14.