Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5494/19.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PEAP
FINALIDADE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 12/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIMADA
Legislação Nacional: DL Nº 79/2017, DE 30/6; ARTº 27º, 222º-A, 222º-B E 222º-C DO CIRE.
Sumário: I - O Processo especial para acordo de pagamento (PEAP), introduzido no CIRE pelo DL nº 79/2017, de 30 de Junho, visa assegurar um processo aplicável à pré-insolvência das pessoas singulares não titulares de empresas.

II - O pedido é objeto de apreciação liminar (art. 27º, nº1, alínea a) do CIRE), devendo o juiz proferir despacho de indeferimento “quando seja manifestamente improcedente” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pag. 585).

III – O pedido deve ser indeferido liminarmente se dos factos alegados pelo requerente se concluir que o devedor já se encontra em situação de insolvência efetiva, definida como a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas.

Decisão Texto Integral:









Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

               J... e M... vieram requerer instauração de processo especial para acordo de pagamento.

               Alegaram no essencial que tendo dívidas no valor de €274.179,99, e estando já em incumprimento de um contrato consubstanciado em transação judicial, dispõem, no entanto, de bens imóveis que lhes permitem reestruturar a dívida, em ordem a conseguirem a sua revitalização.              

               Requerimento liminarmente indeferido por despacho de 18.10 p.p., do Sr. Juiz de Comércio de Coimbra, que considerou que a factualidade alegada pelos Autores revela que a sua situação não é apenas difícil, constituindo antes, verdadeiramente, uma situação de insolvência.

               Inconformados com o assim decidido, os Requerentes apresentaram recurso, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

          1ª. O PEAP deveria ter sido deferido liminarmente.

               2ª. Apenas os factos alegados pelos Recorrentes da existência de um passivo de cerca de €274.000,00 e de um ativo composto por património imobiliário e mobiliário não podiam ser suficientes, de molde a poder permitir ao Tribunal “a quo” a conclusão de “que os Requerentes se encontram impossibilitados de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas.”

               3ª. Não existem no articulado factos que permitem ao Tribunal concluir ainda que os Recorrentes “se encontram impossibilitados de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas” e que “a factualidade alegada demonstra que os mesmos encontram-se numa situação que já ultrapassou os limites da iminência (de insolvência), integrando uma verdadeira situação de insolvência, na definição contida no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE”, pois ao longo de toda a PI os Recorrentes afirmaram precisamente o contrário- padecendo assim, a sentença de falta de fundamentação.

               4ª. O despacho recorrido padece de erro de julgamento na apreciação e qualificação dos factos quando decide, errada e subjetivamente, que os recorrentes se encontram numa situação de insolvência atual.

               5ª. Os recorrentes não têm um número excessivo de credores, o montante da sua dívida não é exagerado e encontram-se apenas numa situação económica difícil.

               6ª.  Os recorrentes têm a pura convicção que, reestruturada que seja a sua dívida, se encontram em plenas condições de cumprir com as suas obrigações.

               7ª.  Num PEAP a análise da efetiva situação económico-financeira do devedor depende de uma multiplicidade de fatores e circunstâncias e bem assim da sua própria evolução; fatores e circunstâncias essas cuja apreciação, nesta fase tão precoce, o Tribunal não tem tempo nem elementos suficientes para fazer, devendo, assim e na dúvida, deferir o PEAP, permitindo aos Requerentes do mesmo a possibilidade de se recuperar

               Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser revogado o despacho recorrido que indeferiu liminarmente o Processo Especial Para Acordo de Pagamento e ser o mesmo substituído por outro que proceda à nomeação de Administrador Judicial Provisório e ordenado o prosseguimento dos autos.

               Não foram apresentadas contra alegações.

               Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

               A questão a decidir é apenas a de saber se o Sr. Juiz ajuizou bem ao indeferir in limine o presente processo especial para acordo de pagamento.

               Para a decisão do recurso relevam os seguintes factos (pelos Recorrentes alegada):

               a) Encontram-se reformados, auferindo mensalmente as pensões de reforma de 758,55€ e 320,64€, respetivamente;

               b) O requerente marido é sócio gerente da sociedade M. Unipessoal, Ld.ª, auferindo 600,00€ de salário base;

               c) Ambos assumiram, em processo judicial, pessoal e solidariamente, uma dívida da empresa do requerente marido perante a sociedade V. Ld.ª, no valor global de 200.000,00€, sendo que não lograram pagar a primeira prestação já vencida, de 10.000,00€, sendo que a segunda prestação estará perto de se vencer;

               d) «(…) Também não estão a conseguir fazer face pontualmente a um crédito que têm com a C..., S.A., que advém também de um aval pessoal» (artigo 13.º da petição inicial);

               e) Apresentam, a esta data, os seguintes débitos vencidos:

               ...

               totalizando 274.179,99€;

               f) Possuem o património imobiliário e os veículos que melhor identificam na relação que juntam.

               O Processo especial para acordo de pagamento (PEAP) foi introduzido no CIRE pelo DL nº 79/2017, de 30 de Junho, sendo seu objectivo assegurar um processo aplicável à pré-insolvência das pessoas singulares não titulares de empresas.

               Diz com efeito o nº 1 do art. 222º-A do CIRE que “o processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.”

               A noção de situação económica difícil é dada no artigo 222º-B:

               “Para efeitos de presente processo, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.”

               O processo inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e pelo menos de um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à elaboração de um acordo de pagamento – art. 222º-C, nº1.

          Trata-se de um processo urgente, ao qual se aplicam as disposições do CIRE, que não sejam incompatíveis com a sua natureza (art. 222º-A, nº 3).

          Como assim, o pedido é objecto de apreciação liminar (art. 27º, nº1, alínea a) do CIRE), devendo o juiz proferir despacho de indeferimento “quando seja manifestamente improcedente” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pag. 585).

               Refere esta Autora, nota 903, a fls. 585 da obra citada, que “o acesso ao PEAP faz-se, fundamentalmente, nos mesmos termos em que se fazia o acesso ao antigo PER (…) exigindo a lei que o devedor fosse recuperável e se encontrasse em situação de pré-insolvência, não se previam formas de comprovar/atestar estes pressupostos. Os pressupostos não podiam, apesar disso, deixar de ser respeitados, cabendo ao juiz recusar a abertura do processo sempre que fosse visível que eles não se verificavam. Este raciocínio vale agora, integralmente, para o PEA, no que toca ao seu (único) pressuposto.”

               No mesmo sentido, mas a propósito do PER, Menezes Leitão, Direito da insolvência, 7ª edição, pag. 328:  “(…) o devedor não poderá recorrer a este processo se já se encontrar em situação de insolvência efectiva, definida como a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (art. 3º/19, não podendo assim o processo de revitalização ser utilizado para elidir o dever de apresentação à insolvência.”

               Se o tribunal verificar, à luz dos factos alegados, que o devedor se encontra em situação de insolvência, deve indeferir liminarmente o pedido (Acórdãos desta Relação de 10.0.7.2013 e de 14.06.2016, e da Relação de Guimarães de 20.02.2014, citado na decisão recorrida).

               Posto isto.

               Os Recorrentes alegam ter um passivo superior a €274.000,00, que têm sete credores, sendo que em relação a dois dos créditos estão em incumprimento, por não estarem a conseguir efectuar o pagamento de obrigações vencidas.

               A conclusão a retirar desta factualidade é a de que situação dos Recorrentes não é a do devedor que “enfrenta sérias dificuldades para cumprir as suas obrigações”, mas mais que isso, que se encontram numa situação de impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, como sucede com as supra referidas em c) e d).

               Alegam os Recorrentes que não têm um número excessivo de credores, o montante dos créditos vencidos não é elevado, e dispõe de um activo composto de património mobiliário e imobiliário.

               Argumentos que, com o devido respeito, não procedem.

               Ter muitos ou poucos credores, ou não ser elevado o montante dos créditos vencidos, não pode ser visto em abstracto, mas caso a caso, perante a pessoa concreta do devedor.

               E parece-nos não oferecer grandes dúvidas que perante os factos alegados e a situação pessoal dos Recorrentes, o valor do passivo é elevado, não dispondo eles de disponibilidade financeira, ou capacidade de creditícia, para cumprir as obrigações vencidas.  

               Quanto ao património que dizem possuir, cujo valor em concreto se desconhece, importa referir que a situação de insolvência não é definida pela relação entre o activo e o passivo, mas “’pela impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas” (art. 3º do CIRE).

               Decidiu o Ac. da Relação de Lisboa de 30.0.2011, P.524/11, “a situação de insolvência corresponde a uma incapacidade de cumprimento, em que alguém, por carência de meios próprios e por falta de crédito, se encontra impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações. Se o devedor, por falta de capacidade creditícia, estiver impossibilitado de cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações, incorre em situação de insolvência, mesmo dispondo de um activo superior ao passivo.”

               Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2ª edição, pag. 85, “o que verdadeiramente caracteriza a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer as obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.”

               É esta a situação que os factos alegados pelos próprios devedores evidenciam, pelo que se concorda com a decisão recorrida quando entendeu que a situação daqueles “não é meramente uma situação económica difícil, constituindo antes, uma situação de insolvência actual.”

               Não se verificando os pressupostos do art. 222-A, nº1 do CIRE, o presente processo especial para pagamento não podia deixar de se indeferido in limine.

               Decisão:

               Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.

               Custas pelos Recorrentes.

                                                                                                         Coimbra, 10.12.2019       

                                                                                                         (Ferreira Lopes)

                                                                                                         (Freitas Neto)

                                                                                                         (Carlos Barreira)