Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
158/10.0GAVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 35ºCP
Sumário: 1.- São pressupostos do estado de necessidade desculpante a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro
2.- O facto ilícito praticado tem de ser “adequado”, ou seja, idóneo a afastar o perigo que não seria remível por outro modo;

3.- Para além destes elementos objectivos relacionados com o perigo, o bem jurídico ameaçado e a adequação do facto é necessário que o juiz verifique que não era razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente;

4.- Torna-se ainda indispensável que o agente pratique a acção para determinar com ela a preservação do bem jurídico ameaçado, isto é, o animus salvandi, o que bem se compreende pois está em causa a prática de um facto ilícito e, por conseguinte, juridicamente desaprovado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 158/10.0GAVZL, a correr termos no Tribunal Judicial de Vouzela, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A...e B..., já melhor identificados nos autos, imputando-lhes a prática, ao primeiro, em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artigo 145.º, nºs 1, a) e 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, a), ambos do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal e, à segunda, de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.

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Ao abrigo do disposto nos artigos 71.º, 74.º e 77.º do Código de Processo Penal foi deduzido pedido de indemnização civil por B..., a qual pediu que o arguido A..., em virtude dos factos praticados, fosse condenado a pagar-lhe a importância de 1.500,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.

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Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos (transcrição):

«a) Condena-se o arguido A..., como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo o total de 1000 (mil) euros.

b) Condena-se o arguido A..., como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo o total de 500 (quinhentos) euros.

c) Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco) euros, o que perfaz a quantia total de €1250 (mil duzentos e cinquenta) euros.

d) Condena-se a arguida B..., como autora material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 8 (oito) euros, o que perfaz a quantia total de 400 (quatrocentos) euros.

e) Julga-se parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado a fls. 150 e ss, por B..., condenando o demandado A... a pagar àquela a quantia de €300 (trezentos euros) e absolvendo-se o mesmo quanto ao demais peticionado.

f) Condenam-se ambos os arguidos no pagamento das custas do processo (art.º 513.º, n.º1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 3 unidades de conta para o arguido e 2 unidades de conta para a arguida (art.º 8.º, n.º 5 do R.C.P. e tabela III)

g) Sem custas cíveis (art.º 4.º, n.º 1, al. m, do Regulamento das Custas Processuais).»

2. A arguida B... interpôs recurso da sentença, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«QUANTO Á MATÉRIA DE FACTO:

Atento os factos da acusação dados como provados e não objecto do recurso, da Fundamentação da Sentença, conjugados com os depoimentos das Testemunhas, é de concluir que não deve ser dado como provado o Ponto 8 dos factos dados por provados.

E neste sentido, deverá dar-se como não provado que a arguida/recorrente se tenha dado uma chapada ao arguido,

Sendo irrelevantes e arbitrarias as considerações da sentença na fundamentação da matéria de facto, que ora se concluem, porquanto não infirmadas pelos depoimentos das testemunhas de acusação.

De tudo resultando, pois, que não são de aceitar a apreciação e o julgamento da Prova feito pelo Douto Tribunal “a quo”, que assim devem ser corrigidos e reformulados nos termos atrás enunciados.

QUANTO Á MATÉRIA DE DIREITO:

Sem prescindir, e do que vai dito, terá forçosamente de se concluir que, ao dar-se como provada a matéria de facto constante dos pontos 7 e 8 dos factos provados, nos precisos termos seguintes:

“………….                                     

7. De seguida, o arguido puxou a arguida pelos cabelos, deitando-a ao chão e arrastou-a, pelo menos, cerca de dois metros.

8. B... deu ao arguido, no contexto referido em 7), pelo menos, uma chapada na cara.

………….”

Não poderia a arguida ser condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, nos precisos termos em que veio a ser

Pois que, contrariamente ao que foi entendido pelo Tribunal “a quo”, ao caso concreto poderia, e deveria ser ponderada a submissão à conduta da arguida de causa de exclusão da ilicitude da sua conduta.

Uma vez que, ao dar-se por provado que a arguida deu uma chapada ao arguido no contexto em que a mesma estava no chão a ser arrastada pelos cabelos, por uma distância de cerca de dois metros, pelo arguido, não poderia a mesma ser condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, pois que, demonstrado fica a verificação de um estado de necessidade objectivo ou direito de necessidade, previsto e determinado nos termos do n.º 1 do artigo 35º do Código Penal Português.

Com efeito, entendendo-se por provado tal facto, a arguida ao dar uma chapada ao arguido no preciso momento em que este a puxava pelos cabelos arrastando-a pelo chão, terá forçosamente de se considerar que tal chapada visou unicamente afastar um perigo, uma ameaça que se encontrava em curso contra a sua integridade física, honra e liberdade perpetrada pelo arguido A....

   9º

Tendo o Tribunal “a quo” desconsiderado tal previsão legal, pelo que omitiu a previsão legal que ao caso importaria aplicar.

10º

A exclusão da culpa no designado estado de necessidade desculpante, previsto no artº 35º, nº 1 do Código Penal Português, para se ter por preenchida, exige que o agente tenha a intenção de afastar um perigo actual, não removível de outro modo, e que este (perigo actual) ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, ou, em qualquer dos casos, quando não seja razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

11º

Sendo que, dado por provados tais factos, nenhum outro comportamento seria de exigir da arguida que não o uso dos comportamentos necessários e adequados que visassem afastar as agressões de que estava a ser vítima, exactamente no momento em que as mesmas decorriam contra a sua pessoa.  

12º

Tal circunstância, agressão actual de que estava a ser objecto por parte do arguido, porque provada e presente exclui a ilicitude do facto praticado, ou justifica o facto típico praticado pela arguida, a também dada por provada chapada que a arguida infligiu ao arguido.

13º

Perante tal circunstância provada, teria o Tribunal “a quo” de considerar e dar por assente que a arguida actuou no exercício do direito de necessidade, e até, em legitima defesa, adoptando, no caso em concreto, uma reacção a uma agressão actual e ilícita que ameaça interesses juridicamente protegidos dela própria, e que essa reacção – chapada - foi adequada e necessária a afastar ou repelir a agressão actual e ilícita de que estava a ser vítima por parte do arguido A....

14º

Não existindo no caso em concreto, qualquer situação de excesso de legitima defesa, porquanto, a reacção adoptada pela arguida em momento algum ultrapassou o necessário à repressão das agressões de que era vítima.

15º

Tal entendimento, de causa de exclusão da ilicitude por intermédio de estado de necessidade e/ou de legítima defesa, era o único admissível à ponderação, decisão e aplicação ao caso em apreço, e em benefício da arguida, pelo Tribunal “a quo”, o que não fez.

16º

Assim,

Entende a Recorrente que, de acordo com os factos dados como provados, resultará, necessariamente, que a arguida agiu a coberto de uma causa de justificação – legítima defesa – pelo que a sua conduta não podia ter sido considerada ilícita.

17º

A conduta do arguido A..., consistente no agarrar dos cabelos da recorrente, deita-la ao chão e arrasta-la pelo menos dois metros pelo chão, consubstancia agressão da integridade física da arguida.

18º

Agressão essa que deverá ser considerada actual, uma vez que a actualidade da agressão perdurará até que o bem jurídico susceptível de defesa seja efectivamente lesado ou até que o agressor desista da concreta agressão/lesão.

19º

A situação de legítima defesa implica que a acção de defesa se apresente como necessária para repelir a agressão, exigindo-se que o defendente só utilize o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.

20º

Esta apreciação deverá ser feita pelo julgador de acordo com critérios rigorosos, atendendo nomeadamente à capacidade físico-atlética do agressor, da agredida (capacidade de defesa), ao momento da agressão, à globalidade das circunstâncias concretas em que a agredida se encontra, bem como as capacidades e os meios de defesa de que a agredida se pode socorrer no preciso momento da agressão.

21º

Da sentença recorrida resulta, pois, que estes critérios foram obliterados pelo Tribunal a quo, ao não dar relevância:

a) Às diferenças de idade e de compleição física da recorrente e do arguido (a recorrente é mais baixa e fisicamente menos forte que o arguido);

b) À intenção do arguido em persistir e continuar com as agressões á recorrente;
c) Ao facto de a arguida, conforme provado, ter dado uma chapada ao arguido no contexto de estar a ser puxada pelos cabelos e arrastada pelo chão;

22º

Resulta pois que a conduta da arguida se apresenta como necessária para repelir a agressão, uma vez que utilizou o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.

23º

Pelo que preenchidos os pressupostos da legítima defesa, a conduta da arguida não deveria ter sido considerada ilícita, uma vez que se encontra coberta com o manto protector de uma causa de justificação – legitima defesa.

24º

Em consequência deveria o arguido ter sido absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.143º, do C. Penal.

25º

Ao não ter entendido assim, violou o Tribunal a quo o disposto nos arts.31º, 32º, 33º, 128º e 143º, do C. Penal, e ainda o disposto nos arts.70º, n.º1 e 337º, n.º1, ambos do Código Civil.

Por conseguinte, verifica-se que a douta sentença recorrida violou os preceitos legais enunciados nas antecedentes conclusões, pelo que a substituição da sentença recorrida por outra que faça bom uso daquelas normas e das demais, procedendo pela absolvição da arguida e recorrente, representará acto de

BOA E SÃ JUSTIÇA»

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, subscrevendo na globalidade, quanto ao mérito do recurso, a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.

6. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida.

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 19 de Junho de 2010, cerca das 11h00m, junto da residência de C...., sita no ..., Vouzela, o arguido A..., seu filho, referindo-se à mesma, proferiu à sua irmã D... “hei-de meter esta velha na cadeia”.

2. Após tal comentário C... riu-se e disse que se fosse presa também o arguido iria.

3. Em acto contínuo, o arguido A... pegou num paralelo que se encontrava na via pública, correu na direcção de C... e atingiu-a com aquele objecto na cabeça do lado esquerdo, que começou de imediato a sangrar.

4. C... disse ao arguido “arranjaste-a bonita”, tendo este negado que a tivesse agredido e empurrou-a, tendo aquela caído pelas escadas.

5. Gerou-se então uma discussão, pelo que E... , que entretanto compareceu no local por ter ouvido barulho, telefonou à arguida B..., que de imediato se deslocou ao local.

6. A arguida B... confrontou o arguido A... dizendo-lhe “malandro, há vinte anos agrediste o teu pai, agora agrides a tua mãe, não tens vergonha”.

7. De seguida, o arguido puxou a arguida pelos cabelos, deitando-a ao chão e arrastou-a, pelo menos, cerca de dois metros.

8. B... deu ao arguido, no contexto referido em 7), pelo menos, uma chapada na cara.

9. Após tais acontecimentos, o arguido deslocou-se à sua residência tendo regressado ao local com uma vara de madeira na mão, tentando com ela atingir B..., só não o tendo conseguido por ter sido impedido por E....

10. Do descrito em 1) a 4), resultou para C..., no membro superior esquerdo, crosta cicatricial com um centímetro de diâmetro no ombro; equimose amarelo arroxeada com seis centímetros de diâmetro na face externa terço médio do braço; no membro inferior esquerdo, equimose amarelada com um centímetro de diâmetro na anca, o que lhe determinou um período de onze dias para a cura, sem afectação da capacidade para o trabalho geral.

11. O arguido A... actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de, através dos comportamentos acima descritos, molestar C... e B... no seu corpo e saúde, o que conseguiu, provocando as lesões descritas em 10.), bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a esse fim.

12. A arguida B... actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de, através dos comportamentos acima descritos, molestar A... no seu corpo e saúde, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era adequada a esse fim.

13. Sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

14. O arguido encontra-se desempregado há quatro anos.

15. Vive com a mulher, que recebe rendimento social de inserção no valor de €220 mensais, em casa própria.

16. Tem três filhos, todos maiores, que o ajudam financeiramente.

17. Tem a 4.ª classe.

18. A arguida B... é empregada fabril, auferindo €497 mensais.

19. Vive com três filhos, de 8, 19 e 20 anos de idade, em casa do pai dos seus filhos.

20. A filha maior trabalha, auferindo €497 mensais.

21. Paga, mensalmente, a título de empréstimo contraído para aquisição de electrodomésticos, o valor de €60.

22. Tem o 6.º ano de escolaridade.

23. Nenhum dos arguidos sofreu qualquer condenação criminal.

24. Durante os dias e meses que se seguiram aos factos supra constantes, a arguida sentiu-se triste.»

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):

«Da discussão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:

A) Na ocasião referida em 1), o arguido disse “velha do caralho”.

B) Na sequência do descrito em 6), de imediato, o arguido desferiu um murro na cabeça da arguida B....

C) Depois de separados por E..., o arguido voltou a agarrar B... pelos cabelos, tendo esta desferido uma dentada no braço daquele.

D) Após, o arguido tentou novamente agarrar B... pela cabeça, tendo sido impedido por D....

E) A arguida, na sequência das condutas perpetradas pelo arguido, receia regressar ou passar no local onde ocorreram os factos, com medo que ali encontre o arguido, pois que este mora perto desse local.

F) Vive num sobressalto constante.

G) Sentiu humilhação e vergonha.

H) Durante os dias e meses que se seguiram aos factos supra expostos, a arguida nunca mais foi alegre, extrovertida e sociável.

I) Ficou fria.»

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«Motivação:

Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.

Para dar como provados os factos 1) a 9), o tribunal baseou-se no depoimento da queixosa, C..., conjugado com as declarações de D..., testemunha presencial do todos os acontecimentos, e E... e G..., que apenas viram parte do sucedido, que, apesar de alguns terem referido estar de relações cortadas com o arguido, descreveram com clareza, coerência, espontaneidade e isenção os factos (total ou parcialmente) ocorridos, tendo merecido credibilidade, e sendo o seu discurso compatível com as regras do normal acontecer, ao contrário das declarações de A..., arguido, cujo discurso se afigurou inverosímil. De facto, não se revela crível que, ao estar a ser agredido por várias pessoas, como aquele referiu, não tenha tocado em ninguém nem dirigido palavras mais impróprias. O arguido sempre se mostrou bastante peremptório ao afirmar aquilo que lhe aproveitava mas, no que o prejudicava, sempre se mostrou vago, genérico e invocando razões do passado para a família estar contra si. Por outro lado, o Tribunal também não acreditou na versão por este apresentada para justificar as lesões documentalmente provadas que sofreu a sua mãe, porquanto, à luz das regras da experiência, não se afigura verídico que alguém bata com a própria cabeça na escada, propositadamente, e fique a sangrar da mesma, bem como potencie, em si próprio, as lesões referidas em 10) (provadas com base no teor de fls. 6 a 8). Assim, as suas declarações não se afiguraram minimamente credíveis, atento o discurso assertivo, lógico e coerente das demais testemunhas, que contraria a sua versão. Ainda assim, o mesmo acabou por assumir que corresponde à verdade o dia, hora e local onde os factos se deram, o teor dos factos 1), 2) e 6), e que pegou no paralelo, tendo ido em direcção à mãe (embora tenha dito que não o usou).

Quanto aos factos 11) a 13), resulta das regras da experiência comum que, agindo como agiram, os arguidos revelaram ter intenção directa de praticar os factos, como efectivamente, o fizeram. Como se refere no Ac. da R.P. de 23/02/93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”. No mesmo sentido vide Ac. da R.P. 0140379, 03/10/2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.

No que concerne à situação pessoal de ambos os arguidos, teve-se em consideração as declarações dos próprios, nada tendo sido trazido ao Tribunal que ponha em causa a seriedade das mesmas quanto a tal aspecto.

Quanto aos antecedentes criminais, o tribunal atendeu aos C.R.Cs. juntos a fls. 183 e 184.

Finalmente, para prova do facto 24), o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas por D... e E....

No que toca aos factos não provados, atendeu-se à ausência de produção de qualquer prova, pois nenhuma das testemunhas mencionou os aspectos em apreciação.

As declarações de F..., mulher do arguido, por já ter chegado ao local após a ocorrência dos factos, em nada contribuíram para a descoberta da verdade.»

                                                        *

2. Apreciando.

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([i]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação([ii]), sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso([iii]).

Atenta a conformação das conclusões formuladas([iv]),importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- impugnação da matéria de facto;

- estado de necessidade desculpante;

- legítima defesa.

2.1.1. Da impugnação da matéria de facto.

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação da recorrente.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([v]).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([vi]).

Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.

Como se entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.

À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com o benefício da imediação e da oralidade - apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([vii]).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([viii]).

Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos à recorrente, passemos à análise do caso concreto.

A recorrente impugna a matéria constante dos pontos 8) e 12) dos factos provados que consubstancia a prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal pelo qual foi condenada.

Alega a recorrente que o tribunal recorrido não podia dar como provado que deu, pelo menos, uma chapada ao arguido A... porque a testemunha C... nada relatou neste particular, a testemunha D... apenas refere que se engadelharam um no outro e começaram a bater-se mas em momento algum confirma que a arguida B... tenha desferido uma chapada no arguido A..., a testemunha E... afirmou que ambos os arguidos começaram mutuamente ao murro e a testemunha G... refere que aquilo era um confusão.

Apesar de a recorrente não ter dado integral cumprimento às exigências legais contidas no n.º 4 do artigo 412.º, por uma questão de economia processual e devido à simplicidade da questão entende-se não se dever proceder ao convite a que alude o n.º 3 do artigo 417.º, na redacção conferida pela Lei n.º 48/2007, procedendo-se de imediato ao conhecimento desta questão([ix]).

O tribunal a quo fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos:

«Para dar como provados os factos 1) a 9), o tribunal baseou-se no depoimento da queixosa, C..., conjugado com as declarações de D..., testemunha presencial do todos os acontecimentos, e E... e G..., que apenas viram parte do sucedido, que, apesar de alguns terem referido estar de relações cortadas com o arguido, descreveram com clareza, coerência, espontaneidade e isenção os factos (total ou parcialmente) ocorridos, tendo merecido credibilidade, e sendo o seu discurso compatível com as regras do normal acontecer, ao contrário das declarações de A..., arguido, cujo discurso se afigurou inverosímil. De facto, não se revela crível que, ao estar a ser agredido por várias pessoas, como aquele referiu, não tenha tocado em ninguém nem dirigido palavras mais impróprias. O arguido sempre se mostrou bastante peremptório ao afirmar aquilo que lhe aproveitava mas, no que o prejudicava, sempre se mostrou vago, genérico e invocando razões do passado para a família estar contra si. Por outro lado, o Tribunal também não acreditou na versão por este apresentada para justificar as lesões documentalmente provadas que sofreu a sua mãe, porquanto, à luz das regras da experiência, não se afigura verídico que alguém bata com a própria cabeça na escada, propositadamente, e fique a sangrar da mesma, bem como potencie, em si próprio, as lesões referidas em 10) (provadas com base no teor de fls. 6 a 8). Assim, as suas declarações não se afiguraram minimamente credíveis, atento o discurso assertivo, lógico e coerente das demais testemunhas, que contraria a sua versão. Ainda assim, o mesmo acabou por assumir que corresponde à verdade o dia, hora e local onde os factos se deram, o teor dos factos 1), 2) e 6), e que pegou no paralelo, tendo ido em direcção à mãe (embora tenha dito que não o usou).

Quanto aos factos 11) a 13), resulta das regras da experiência comum que, agindo como agiram, os arguidos revelaram ter intenção directa de praticar os factos, como efectivamente, o fizeram. Como se refere no Ac. da R.P. de 23/02/93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”. No mesmo sentido vide Ac. da R.P. 0140379, 03/10/2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt

Ao contrário do que sustenta a recorrente, a testemunha D... afirmou, a instâncias do Mº Pº, que a arguida B... desferiu uma lambada ou duas no arguido A....

Na verdade, ouvido o registo da prova, concretamente o depoimento prestado pela testemunha D... – que igualmente se encontra parcialmente transcrito –, verifica-se que esta, a instâncias do Mº Pº, referindo-se aos arguidos, começou por referir que «começaram a bater um no outro» e «eu agora não vou dizer assim ela deu-lhe uma lambada ou duas, sei que eles se engadelharam outra vez um no outro, ele puxou-lhe os cabelos» (tempo de gravação: 10:50 a 11.24).

Ao ser directamente questionada acerca do que viu a arguida B... a fazer ao arguido A..., a testemunha D... afirmou claramente que viu «uma estalada ou duas e morderam-se, não sei ela apareceu mordida» (tempo de gravação: 11:30 a 11:42).

No contexto da motivação, o depoimento prestado por esta testemunha foi essencial para apurar a actuação concreta de ambos os arguidos, sendo certo que a mesma demonstrou conhecimento directo dos factos por se encontrar no local aquando da sua ocorrência e depôs de forma segura e convincente, o que, aliás, não foi sequer posto em causa.

Assim, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.

Improcede, portanto, a impugnação da matéria de facto.

2.1.2. Do estado de necessidade desculpante.

Em primeira via, a recorrente sustenta que os pontos 7) e 8) da factualidade provada permitem ter por verificada a existência de um estado de necessidade desculpante nos termos previstos no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal.

Nos termos do citado preceito legal “age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”.

A exclusão da culpa decorre de, nas circunstâncias concretas do facto, não ser razoável exigir do agente um comportamento diferente.

Como refere Figueiredo Dias o afastamento da punibilidade fica a dever-se “a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que in casu não seja razoável exigir dele outro comportamento”; apesar do ilicito-típico praticado demonstra-se “a persistência no agente de uma atitude de fidelidade do direito que aponta a fundamentação do facto numa atitude pessoal juridicamente desvaliosa ou em qualidades juridicamente desvaliosas da sua personalidade”([x]).

O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, ao princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma.

São pressupostos do estado de necessidade desculpante a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro.

O facto ilícito praticado tem de ser “adequado”, ou seja, idóneo a afastar o perigo que não seria remível por outro modo.

Para além destes elementos objectivos relacionados com o perigo, o bem jurídico ameaçado e a adequação do facto é necessário que o juiz verifique que não era razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

Torna-se ainda indispensável que o agente pratique a acção para determinar com ela a preservação do bem jurídico ameaçado, isto é, o animus salvandi, o que bem se compreende pois está em causa a prática de um facto ilícito e, por conseguinte, juridicamente desaprovado([xi]).

Como decorre dos factos provados, enquanto o arguido A... a puxava pelos cabelos, deitando-a ao chão e arrastando-a, a arguida B... desferiu-lhe, pelo menos, uma chapada na cara, agindo com o propósito de o molestar no seu corpo e saúde, o que significa, portanto, que a arguida B... praticou um facto ilícito-típico – ofensa à integridade física – sem qualquer animus salvandi, isto é, não agiu para adequadamente afastar um perigo actual para a sua própria integridade física mas antes com o propósito de atingir a integridade física do seu opositor.

Por conseguinte, os factos provados não permitem ter por verificada uma situação de estado de necessidade desculpante nos termos previstos no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal.

Improcede, portanto, esta questão.

2.1.3. Da legítima defesa.

Como segunda alternativa, a recorrente pretende que a sua conduta teve lugar com intenção defensiva mas esta tese também não logrou alcançar o necessário substrato ao nível da matéria de facto que ficou provada, como melhor se demonstrará depois de traçarmos as coordenadas fun­damentais do instituto da legítima defesa.

A verificação da legítima defesa pressupõe o preenchimento cumulativo das seguintes condições, de harmonia com o preceituado no artigo 32.º do Código Penal:

       1ª - actualidade e ilicitude da agressão;

       2ª - animus defendendi;

       3ª - necessidade do meio empregado .

No caso dos autos, a alegação da recorrente não procede, desde logo, pela singela razão de que não se descortina entre os factos provados que a agressão tenha sido motivada pela intenção – animus – de defesa.

Com efeito, o que resulta dos factos provados é que, enquanto o arguido A... a puxava pelos cabelos, deitando-a ao chão e arrastando-a, a arguida B... desferiu-lhe, pelo menos, uma chapada na cara com o propósito de o molestar no seu corpo e saúde.

Daqui resulta a inexistência de animus defen­dendi, ou seja, o intuito de defesa por parte da recorrente, pois esta atingiu o arguido A... sem que tal facto fosse praticado, como meio necessário, para repelir a agressão por parte daquele.

Assim, não ocorre, desde logo, um dos elementos integradores da legítima defesa, sem o concurso do qual não se pode falar na sua verificação, tornando-se desnecessária a análise dos demais pressupostos.

Improcede, portanto, também esta questão.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela arguida B... e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

                                          *

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC.

                                          *

Fernando Chaves (Relator)

Jorge Dias


[i] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[ii]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[iii] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[iv] - Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar – Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 335; Daí que se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões – Simas Santos e Leal Henriques, obra citada, pág. 107, nota 116.
[v] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[vi] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[vii] - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[viii] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[ix] - A referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de voltas do contador, se a gravação tiver sido feita em cassete, ou do momento, tempo, se gravadas em CD, em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão ou do tempo correspondente ao início e ao fim de cada depoimento – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 19/5/2010, Proc. 179/04.2IDAVR.P1.
Assim, cada parte seleccionada da gravação deve ser identificada com indicação da hora, minuto e segundo de início e da hora, minuto e segundo de termo.
[x] - Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime, 2ª parte, Sobre a construção do tipo-de-culpa e os restantes pressupostos da punibilidade, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 1º, pág. 28.
[xi] - Assim, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 618.