Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
601/19.3T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
ACUSAÇÃO
TIPO SUBJECTIVO
DEDUÇÃO DE NOVA ACUSAÇÃO
ASSISTENTE
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 15.º E 148.º, N.º 1, DO CP; ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), E 311.º, N.ºS 1 E 2, AL. A), E 3, ALS. B) E D), DO CPP
Sumário: I – A descrição, na acusação pública, do seguinte acervo factológico: «(i) O denunciado sabia que tinha o dever de cuidado de assegurar que o seu sistema de rega não impedia a normal circulação do trânsito (…); (ii) Da actuação imponderada, descuidada e omissiva do arguido resultou o embate (…), originando a ofensa à integridade física na ofendida, (iii) Sabia ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punível por lei» é insuficiente para caracterizar o elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do CP, por ausência da menção de que por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado, e de que era capaz, o arguido representou como possível a realização de um facto que preenche aquele tipo de crime, actuando sem se conformar com essa realização ou, pelo menos, que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

II – A rejeição da acusação do Ministério úblico por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto nos artigos 311.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 3, als. b) e d), do CPP, impede a dedução de nova acusação pelo assistente, impondo, sem mais, o arquivamento do processo.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum (tribunal singular) supra referenciados, que correram termos no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., foi proferido despacho rejeitando a acusação pública deduzida contra o arguido AA por manifestamente infundada.

Inconformado, recorre o assistente BB, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1.ª - Vem o presente recurso interposto do despacho datado de 11/07/2021, notificado ao aqui assistente em 15/07/2021 (Refª Citius ...), no qual foi determinada a rejeição da acusação pública deduzida nos presentes autos por manifestamente infundada, na medida em que estaria “votada ao insucesso”.

2.ª - O recorrente não se conforma com o douto despacho porque entende que o Tribunal a quo errou quer no juízo decisório que fez sobre o mérito da acusação, quando verificou ter existido “uma omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos do tipo de crime em causa, de ofensa à integridade física negligente, ao nível subjectivo.”

3.ª - Resulta do n.º 1 do artigo 282.º do CPP que basta a existência de indícios suficientes da prática do crime, seja a que título for, o MP deve proferir acusação. In casu, esses indícios foram cabal e suficientemente explanados na acusação proferida, cabendo depois ao juiz de julgamento, após a produção de prova verificar se a matéria factual se encontra preenchida ou não.

4.ª - O Tribunal a quo, fez uma apreciação factual da acusação pública sem ter produzido qualquer prova em sede de audiência de julgamento, isto é, não podia o Tribunal a quo ter feito um juízo sobre a atitude do arguido face à inobservância do dever de cuidado, sem o ter ouvido, e assim ter previsto que o mesmo não poderia prever que a sua conduta não poderia pôr em risco a segurança rodoviária dos utentes da estrada com a qual o seu terreno confina.

5.ª - A Acusação Pública proferida pelo MP, contém todos os requisitos previstos legalmente, bem como fundamentou bem tipo legal de crime quanto ao tipo objectivo e subjectivo de ilícito.

6.ª - O conceito de “acusação manifestamente infundada” faz-se por referência aos casos previstos nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, correspondentes a vícios extremamente graves da acusação, e que de forma irremediável a tornam inútil para os fins a que se destina.

7.ª - No caso vertente temos a imputação objectiva de um crime de ofensa à integridade física e a imputação subjectiva a título de negligência, tendo os factos resultado de uma “conduta imponderada, descuidada e omissiva do arguido”

8.ª - O Tribunal a quo peca quando retira a conclusão de que não era exigível ao arguido, segundo as circunstâncias a que estava obrigado, tomar providências para impedir que o seu sistema de rega ao projectar água para a via pública não viesse a causar qualquer tipo de acidentes como o que efectivamente sucedeu.

9.ª - No entanto era de facto exigível esse dever de cuidado por parte do arguido, pelo que claramente a matéria factual indiciada na acusação faz concluir, tal como bem concluiu o MP, que o crime resultou de uma conduta omissiva do arguido.

10.ª - Sendo mais que manifesto que o arguido não agiu de acordo “com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que era capaz”, não merecendo assim a Acusação Pública qualquer censura que a torne manifestamente infundada.

Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. superiormente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido, julgado totalmente procedente, por provado, e, em consequência, ser anulado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação e determine o prosseguimento dos autos até ao final.

O M.P., na sua resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso, concluindo que a redacção dada ao artigo 7º da acusação não descreve devidamente a negligência ou elemento subjectivo da negligência, tal como nos é imposto pelo artigo 15º do CP, isto é, nas suas dimensões de ilícito e de culpa, sendo aplicável ao caso a doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer acompanhando a posição do M.P. em 1ª instância, considerando, no entanto, não dever ser determinado o arquivamento dos autos, antes se concedendo a possibilidade de ser deduzida nova acusação pelo assistente, reportando-se ao decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017 [1].

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte:

- Deveria a acusação deduzida ter sido recebida, por dela constarem todos os elementos necessários?

- Sendo ajustada a sua rejeição, não se deveria ter determinado o arquivamento dos autos, antes se concedendo ao assistente a possibilidade de dedução de nova acusação?

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Da acusação rejeitada consta o seguinte:

1. No dia 24 de Julho de 2018, pelas 22h55m, o denunciante BB circulava na via pública conduzindo o veículo de matrícula (…), na Estrada ..., km (…), no sentido (…).

2. O tempo estava nublado embora sem precipitação, havia pouco trânsito, e a estrada encontrava-se molhada, com algumas poças de água, causadas pela chuva daquela tarde.

3. Quando o denunciante circulava ao lado da residência do arguido e sem que nada o fizesse prever, foi atingido, com violência, no capacete, por um jato de água pertencente ao sistema de rega do jardim do denunciado, que se encontrava virado para a estrada.

4. O jato de água atingiu o denunciante fazendo-o perder o equilíbrio do ciclomotor, tendo ido embater, com bastante violência, na barreira da berma da estrada.

5. Por força do embate o denunciante caiu de forma abrupta e violenta no chão, batendo com os punhos e joelhos num primeiro instante e posteriormente com a cabeça.

6. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido o ofendido sofreu dores, que determinaram um período de 5 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e com afectação da capacidade de trabalho académico e profissional de 3 dias.

7. O denunciado sabia que tinha o dever de cuidado de assegurar que o seu sistema de rega não impedia a normal circulação do trânsito na Estrada ....

8. Da actuação imponderada, descuidada e omissiva do arguido, resultou o embate descrito, originando a ofensa à integridade física no corpo de BB.

9. Sabia ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punível por lei.

Pela factualidade supra descrita, o arguido praticou, assim, um crime de ofensa à integridade física negligente, na forma consumada previsto e punido, pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.

Por seu turno, o despacho recorrido tem o seguinte teor:

O Tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.

Concluído o inquérito, deduziu o Ministério Público acusação contra AA, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, de crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido, pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.

Dispõe o artigo 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.

O nº 2, al a) do citado preceito legal estatui que “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido: de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, entendendo-se como tal a acusação que, além do mais, “não contenha a narração dos factos” e “se os factos não constituírem crime” (cfr. nº 3, als. b) e d) do citado preceito legal).

Dispõe por sua vez o art. 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (...)”.

Como é sabido, vigora no nosso sistema o princípio do acusatório, que, na sua essência, significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.

Tal princípio implica que a acusação seja uma peça auto-suficiente, ou seja, que contenha a totalidade dos elementos que revelam “a existência de um crime” e identificam “os seus agentes e a responsabilidade deles”, na formulação do n.º 1 do artigo 262.º do Código de Processo Penal. Só assim se fixará, de forma definitiva e inequívoca, o objecto do processo (na sua dimensão objectiva e subjectiva) a que a actividade cognitória do tribunal irá estar vinculada em sede de julgamento, e se protegerão, concomitantemente, os direitos de defesa dos arguidos (vide Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I., págs.144/145).

Por força de tal princípio, os elementos constitutivos do crime imputado têm de constar expressamente da acusação; caso contrário, tal peça não poderá deixar de ser rejeitada, à luz do preceituado nos artigos 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), e d), 285.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, acusou o Ministério Público o arguido AA, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, de crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido, pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.

É o seguinte teor a acusação pública:

(…).

Preceitua o artigo 148º do Código Penal que:

“1 - Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

De harmonia com o disposto no art. 15º do Código Penal:

“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz:

a) Não representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.

Na alínea a) prevê-se a negligência consciente, visto que o agente chegou a prever a realização do facto considerado crime; e no caso da alínea b), a negligência é inconsciente, pois o agente nem chegou a prever aquela realização (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, i, Reimpressão de 1971, pág. 430, nota 2).

É, pois, possível censurar a realização de um tipo legal de crime a um agente, na medida em que este omitiu aqueles deveres de diligência, a que segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos pessoais, era obrigado, e que em consequência disso não previu - como podia - aquela realização do crime (negligência inconsciente), ou, tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar (negligência consciente).

Seguindo de perto os ensinamentos do Prof. Eduardo Correia, na obra citada, a negligência vem a traduzir-se na omissão de um dever objectivo de cuidado adequado à produção do evento. A objectiva possibilidade de negligência existe sempre que uma conduta em si, sem os necessários cuidados e cautelas seja adequada a produzir um evento. É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência. Cuidados e cautelas que não têm necessariamente a sua fonte num preceito legal, mas simplesmente na sua adequação a evitarem um resultado.

A adequação de uma certa conduta, para produzir um certo resultado, limita, pois, objectivamente, o dever de diligência. Para além dos deveres de previsão resultantes da adequação de uma conduta a produzir um resultado, não pode haver negligência. E esta adequação, e portanto, a normalidade do resultado, fixa-se segundo as regras gerais da experiência comum dos homens, ou de certo grupo de profissionais.

Contudo, a omissão do dever objectivo de cuidado, não justifica, só por si, a punição a título de negligência. O elemento constitutivo do tipo-de-culpa negligente é traduzido pelo artigo 15º do Código Penal, na parte em que considera que age com negligência, apenas aquele que não proceda “com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que era capaz”. E esta capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado, é o mais autêntico elemento configurador da censurabilidade da negligência e, assim, do seu conteúdo de culpa, ou seja, o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever-ser jurídico-penal.

A este propósito, refere expressamente Eduardo Correia (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Reimpressão de 1968, p. 421) que a negligência é, antes de mais, “a omissão de um dever jurídico de cuidado ou diligência”. Mais referindo que “a omissão do dever objectivo de cuidado, adequado a evitar a realização do tipo legal de crime, não justifica só por si, efectivamente, a censura a título de negligência. É ainda necessário que o agente possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever correctamente a realizações do tipo legal de crime”.

Mas, em que se traduz concretamente esta capacidade?

Segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias, in Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, pág. 71, “Há hoje uma grande unanimidade de pontos de vista em que não está aqui em causa o indiscernível poder de agir de outra maneira na situação, e portanto uma tentativa de resposta à questão do concreto livre arbítrio; mas também em que não será lícito ficar-se por uma resposta meramente objectiva, que fosse buscar para padrão a capacidade normal ou do homem médio. Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se fosse esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição”.

E, como salienta Eduardo Correia, ob. e loc. cit. pág. 426 “A previsibilidade e o dever de prever que assim objectivamente limitam a negligência não são todavia uma previsibilidade absoluta – mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem.

Mas, sendo assim, parece que deve haver um dever de prever, e, portanto, a objectiva possibilidade de negligência, sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento. Quer dizer, é um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência de uma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo”.

Para que haja censura a título de negligência é, pois, necessário que o agente possa ou seja capaz segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever correctamente a realização do tipo legal de crime e só a omissão desse dever impeça a sua previsão ou a sua justa previsão.

A doutrina dominante entende que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa, ou seja, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito; como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa.

O que aliás é consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no artigo 15.° do Código Penal: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado...” isto é violação do cuidado objectivamente devido, que corresponde ao tipo de ilícito e “... e de que é capaz”, ou seja capacidade instrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa - neste sentido Figueiredo Dias in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora - 2001, pág. 352.).

            Revertendo ao caso, e vista a acusação pública, verifica-se que na mesma falta a narração de factualidade reconduzível ao tipo subjetivo do ilícito imputado ao arguido.

Com efeito, a nível subjectivo, plasmou-se na acusação que:

“O denunciado sabia que tinha o dever de cuidado de assegurar que o seu sistema de rega não impedia a normal circulação do trânsito na Estrada ....

Da actuação imponderada, descuidada e omissiva do arguido, resultou o embate descrito, originando a ofensa à integridade física no corpo de BB.

Sabia ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punível por lei”.

Tal alegação é manifestamente conclusiva e insuficiente, não se plasmando tampouco na acusação, que por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado, e de que era capaz, o arguido representou como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuou sem se conformar com essa realização, ou que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Na acusação não se descreve factualmente a negligência ou elemento subjectivo da negligência, tal como é imposto pelo artigo 15º do CP, isto é, nas suas dimensões de ilícito e de culpa.

É a acusação pública omissa factualmente quanto à previsibilidade e evitabilidade do evento danoso e capacidade do agente para actuar de acordo com essa previsibilidade (tipo de culpa).   Verifica-se, pois, uma omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos do tipo de crime em causa, de ofensa à integridade física negligente, ao nível subjectivo.

Não constam, pois da acusação pública os elementos consubstanciadores do tipo de culpa do agente.

Ora, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 fixou a seguinte jurisprudência:

“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, na representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal”.

Como consta no voto de vencido do Exmo. Conselheiro Santos Cabral, ao acórdão em referência, «(…) a presente fixação de jurisprudência conduz a que a deficiente, ou incompleta caracterização, do tipo subjectivo importa, necessariamente, em sede de julgamento, uma absolvição da prática do crime.».

Temos, pois, que inexistindo na acusação pública factualidade quanto ao preenchimento, por parte do arguido, do elemento subjectivo do tipo legal de crime cuja prática lhe é imputada, e sendo a verificação desse elemento indispensável para que se afirme o cometimento desse crime, então, não pode deixar de concluir-se que os factos constantes dessa acusação, tal como aí se mostram descritos, e imputados ao arguido, são insusceptíveis de constituir a prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do Código Penal.

Não podendo tal omissão da caracterização do tipo subjectivo ser integrada em julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal, ante o disposto no art. 311º, n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal, a acusação pública, assim votada ao insucesso, tem de ser considerada manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime.

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 311º, nºs 1 e 2, als. a) e 3, als. b) e d) do Código de Processo Penal, rejeito a acusação pública por manifestamente infundada.

Notifique, e após trânsito, arquive.

À luz das peças processuais cujo teor se transcreveu haverá agora que apreciar as questões suscitadas no recurso.

Como se viu, a acusação pública imputou ao arguido a autoria de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido, pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.

Dispõe esta norma que «quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».

A referência à negligência remete para o conceito de negligência punível, posto que nos termos do art. 13º do Código Penal a punição a título de negligência apenas tem lugar nos casos especialmente previstos na lei.

Age, com negligência, segundo o art. 15º, «(…) quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».

A articulação do tipo legal com o conceito de negligência permite extrair as seguintes conclusões:

- Desde logo, estamos perante um crime de resultado, posto que a sua verificação exige a produção de uma ofensa à integridade física;

- Pode ter lugar tanto por acção como por omissão, suposto, neste último caso, e por aplicação do art. 10º, nº 2, a existência de um dever jurídico que pessoalmente obrigue o agente a evitar o resultado;

- O resultado (lesão da integridade física) terá que ser objectivamente imputável à acção ou omissão do agente, supondo assim um dever objectivo de cuidado, a avaliar em função das circunstâncias do caso concreto de acordo com um princípio de previsibilidade objectiva que permita imputar ao agente a lesão do bem jurídico. Exige-se, pois, uma relação causal entre a violação do dever e o resultado produzido, através da qual se afirma o nexo de imputação (do resultado à acção ou omissão).

Do ponto de vista subjectivo, exige-se:

- Uma actuação desconforme com o cuidado exigível segundo as circunstâncias do caso;

- A capacidade para agir do modo espectável, que a não existir poderá, ainda assim, conduzir à responsabilidade do agente sempre que este tivesse ou devesse ter a capacidade de reconhecer que não estava à altura das exigências de cuidado colocadas pela concreta situação;

- A possibilidade de agir de outro modo, ou seja, a exigibilidade de um comportamento conforme à ordem jurídico-penal;

- A imputabilidade do agente [2].

O tribunal a quo considerou verificar-se uma omissão na alegação factual decisiva para o preenchimento dos elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física negligente, ao nível do elemento subjectivo, tendo sido essa a razão determinante da rejeição da acusação. 

Analisando a acusação pública verifica-se que relativamente aos elementos subjectivos foi consignado apenas o seguinte:

7. O denunciado sabia que tinha o dever de cuidado de assegurar que o seu sistema de rega não impedia a normal circulação do trânsito na Estrada ....

8. Da actuação imponderada, descuidada e omissiva do arguido, resultou o embate descrito, originando a ofensa à integridade física no corpo de BB.

9. Sabia ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punível por lei.

O despacho recorrido consignou acertadamente que a doutrina dominante vem apontando como conteúdo da negligência um tipo de ilícito (a violação de um dever objectivo de cuidado) e um tipo de culpa (o juízo de censura de que o agente é passível pela falta do cuidado de que é capaz), ambos acolhidos na estrutura da norma vertida no art. 15º do Código Penal. Vale isto por dizer que o que veio a ser mencionado nos pontos 7, 8 e 9 da acusação é insuficiente para caracterizar o elemento subjectivo do tipo, por ausência da menção de que por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado, e de que era capaz, o arguido representou como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, actuando sem se conformar com essa realização ou, pelo menos, que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Devendo a acusação conter «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, (…)», conforme dispõe o art. 283º, nº 3, al b), do Código de Processo Penal, e sabido que a responsabilidade penal depende da verificação de uma conduta dolosa ou, nos casos especialmente previstos na lei, de um comportamento negligente, os traços caracterizadores do modo de imputação do facto ao agente (dolo ou mera culpa), enquanto elementos subjectivos do tipo, deverão necessariamente constar da acusação. Quando a lei processual se reporta à narração dos factos tem em vista tanto os factos objectivos ou materiais como os factos subjectivos. Os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta naturalística, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. Os elementos subjectivos, por seu turno, traduzem a atitude interior do agente na sua relação com a acção (aí incluída a omissão, também denominada pelos tratadistas como acção omissiva). A essencialidade destes últimos resulta da sua indispensabilidade para a determinação do nexo de imputação do resultado à acção ou omissão típica. É o elemento subjectivo que permite estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e, dentro destas categorias, nas vertentes de dolo directo, necessário ou eventual e de negligência simples ou grosseira. Na verdade, “(…) também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado” [3].

Aliás, é precisamente aqui que falha o raciocínio do recorrente quando afirma que a rejeição da acusação apenas é de admitir nos casos de acusação manifestamente infundada elencados nas alíneas a) a d) do nº 3 do art. 311º do CPP. Não estando perfectibilizada a descrição do elemento subjectivo, os factos descritos não constituirão crime, impondo-se a rejeição da acusação ao abrigo do disposto nos nºs 2, al. a) e 3, alínea d), daquele normativo processual penal.

Trata-se de solução pacífica, incluída no alcance da jurisprudência fixada pelo STJ no Acórdão nº 1/2015 [4].

Assim, o despacho que rejeitou a acusação não é passível de censura, posto que os factos nela descritos, só por si, não poderiam conduzir a uma condenação por crime negligente.

Vejamos agora se o despacho recorrido se deveria ter abstido de determinar o arquivamento dos autos, concedendo ao assistente a possibilidade de deduzir uma nova acusação, o que pressupõe três condições, a saber, que daí não resulte afronta ao princípio ne bis in idem, que não envolva alteração substancial relativamente à acusação deduzida pelo M.P. e que o assistente esteja em prazo para deduzir acusação.

A primeira destas condições tem como referência o disposto no nº 5 do art. 29º da Constituição da República, em cujos termos ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

Hipótese similar à questão que agora se coloca foi tratada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 246/2017 [5], citado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, tratando-se aí de averiguar da constitucionalidade de situação em que, deduzida acusação contra o arguido pela prática de um crime e sendo esta rejeitada liminarmente por insuficiente descrição de um elemento típico, é deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão verificada.

Acompanhando a metodologia expositiva seguida naquele aresto e transcrevendo (texto em itálico) alguns segmentos, apontar-se-á, num primeiro momento, que o núcleo essencial da protecção conferida pelo princípio ne bis in idem se reporta à apreciação do mérito da causa penal, sendo o seu alcance (…) o da proibição de um duplo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição da dupla punição pela prática do mesmo crime [6]. O tribunal constitucional vem acentuando, por referência ao art. 29º, nº 5, da CRP, a diferença entre a dimensão material e a dimensão processual do ne bis in idem que, entre outros reflexos, impõe ao legislador a conformação com o caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto e, simultaneamente, confere ao visado o direito de se defender da violação desse direito fundamental.

No desenvolvimento daquele aresto afirma-se a dado passo que (…) não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro  (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor.

Afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (adiante assinalados) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.

Pouco mais adiante, por apelo ao caso concreto submetido à apreciação do TC, vem referido que (…) perante as circunstâncias do caso concreto, entende-se que a tutela da posição do arguido, ora recorrente, através da dimensão processual do princípio ne bis in idem, não reclama – de forma alguma (e independentemente da melhor interpretação da lei infraconstitucional, que não cumpre apreciar no presente recurso) – que a pretensão punitiva do Estado se deva considerar consumida com o primeiro despacho de rejeição da acusação, considerando que os respetivos fundamentos se dirigiram a uma insuficiência (em última análise formal) da acusação, sendo que a rejeição desta ocorreu logo no primeiro ato da fase de julgamento, não chegando o arguido a sujeitar-se à pendência do processo na referida fase. Tudo se passou, pois, em termos sequencialmente muito aproximados do que ocorreria com a normal dedução de uma acusação em processo comum.

Em suma, o recorrente não viu afastado, de forma alguma, o seu fair trial, nem a sua fair chance at trial pela possibilidade, reconhecida na decisão recorrida, de apresentação de uma segunda acusação válida, suprindo a insuficiência da descrição dos factos da primeira.

Não se prefiguram, pois, motivos para afastar a construção normativa sob apreciação por violação do princípio ne bis in idem ou afronta a qualquer outro princípio ou norma constitucional (que, de resto, não veio concretizada).

No contexto em que este acórdão de fiscalização concreta de constitucionalidade foi proferido a solução alcançada permitiu suplantar um erro de procedimento (acusação incompleta), abrindo portas à submissão do arguido a julgamento e à sua subsequente condenação. Ora, se por um lado as especificidades da situação descrita naquele aresto, que consentiram a decisão que ali veio a ser assumida, não se renovam integralmente no caso que agora cuidamos de apreciar, também não descortinamos no texto daquele acórdão argumento a favor da devolução dos autos ao M.P., questão que não foi tratada pelo TC (ainda que essa devolução se tivesse verificado), por não constituir objecto do recurso de constitucionalidade, se bem que se intua pelo procedimento seguido naquele processo que deveria ser outro o procedimento a adoptar. A situação a que nos reportamos e que veio a ser objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional reconduz-se à acusação deduzida no processo nº 341/12.4GTABF, que veio a ser rejeitada com fundamento no disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP, por se ter entendido que os factos imputados ao arguido não consubstanciavam a prática do crime indiciado por falta de um dos elementos objetivos. O processo foi devolvido aos serviços do Ministério Público, que considerou que este havia retornado à fase de inquérito e aí correu termos sob o nº 132/13.5TAABF (portanto, um novo processo), vindo a ser proferida nova acusação que levou ao julgamento do arguido por crime público (condução de veículo em estado de embriaguez). O acórdão do tribunal constitucional recaiu, aliás, sobre o recurso interposto da sentença pelo próprio arguido no segundo processo.

Diversa é a situação do recurso ora em análise, em que o ofendido, com a posição processual de assistente e, portanto, como mero colaborador do Ministério Público, conforme resulta do art. 69º, nº 1, do CPP, está impedido de ir mais além do que o próprio Ministério Público, não podendo deduzir acusação por factos que importem alteração substancial dos descritos na acusação pública, o que sempre sucederia quando por força da adição de novos factos a acusação que não permite a condenação do arguido por não conter os elementos justificadores da imposição de uma pena ao arguido, passasse a permiti-lo.

De todo o modo, ainda que não resultasse da ampliação fáctica uma alteração substancial, nem por isso poderia admitir-se a dedução de acusação pelo assistente. Estando em causa crime semipúblico, até 10 dias após a notificação da acusação pública poderia o assistente ter deduzido acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importassem alteração substancial daqueles, conforme resulta do n.º 1 do art. 284.º do CPP. Como a interposição de recurso não pode ter como consequência a repristinação de prazo para a prática de acto já precludido, não faria sentido obstar à decisão de arquivamento do processo para permitir a dedução de acusação pelo assistente. O processo só não seria arquivado se houvesse que devolvê-lo ao Ministério Público. No entanto, no que especificamente concerne à essa situação, tomámos recentemente posição, no acórdão de 10/03/2021, desta mesma Relação, proferido no proc. nº 80/18.2PZLSB.C1. Aí sustentámos (e mantemos) que encerrando o Ministério Público o inquérito deduzindo acusação, conforme prevê o art. 276º, nº 1, do CPP, se após a remessa dos autos para julgamento a acusação vier a ser rejeitada, a única possibilidade de reacção do Ministério Público contra o correspondente despacho é através de recurso, em que procurará convencer do bem fundado da acusação deduzida, porquanto sendo o processo penal constituído por uma sucessão de actos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, e não prevendo a lei a possibilidade da reabertura do inquérito senão nos casos em que tenha havido arquivamento (art. 279º, nº 1, do CPP), não pode o M.P. sanar os vícios de que a acusação padeça, praticar novos actos de inquérito ou alterar a acusação. Assim, não ocorrendo razão que justifique a remessa dos autos a título devolutivo ao Ministério Público, a consequência necessária será o seu arquivamento.

Não significa isto que, aceitando o M.P. o entendimento do Tribunal Constitucional relativo à relevância e limites do ne bis in idem, esteja impedido de renovar a acusação em idênticas situações de rejeição. Simplesmente, não o poderá fazer no mesmo processo, pelas razões apontadas, ficando salva a possibilidade de o fazer com base em certidão que para o efeito deverá requerer. Aliás, coerentemente, no processo a que nos reportámos, a nova acusação veio a ser deduzida em inquérito tramitado com número diverso, daí decorrendo que o próprio M.P. entendeu que o processo inicial não comportava a dedução de nova acusação por impedimento legal.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente na taxa de justiça de 3 UC.


*

Coimbra, 17 de Março de 2022

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

 Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)


[1] - Publicado no DR, Série II, de 25/07/2017. O dispositivo tem o seguinte teor: Em face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.
[2] - Na caracterização do tipo assumiram-se como linhas mestras as que são apontadas por Paula Ribeiro de Faria no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, anot. ao art. 148º.
[3] - Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, tomo I, 2ª Ed., pag. 379.
[4] - Publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I, de 2015/01/27. Fixou jurisprudência nos seguintes termos:
 A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
[5] - Local e data de publicação referidos supra, nota 1.
[6] - O texto em itálico é referência à Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), tomo I, 2ª Ed., pág. 676