Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
345/20.3T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INVENTÁRIO
DOAÇÕES
INCIDENTE DE INOFICIOSIDADE
Data do Acordão: 11/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, ALCOBAÇA, JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1092, 1093, 1118 CPC
Sumário: 1.-Como regra, o incidente de inoficiosidade deve ser suscitado no decurso da conferência de interessados, até à abertura das licitações, por, neste momento o processo já disponibilizar os elementos essenciais que possibilitem a cada interessado constatar se as doações ou legados afectam ou não a respectiva legítima.

2.- Contudo, este é apenas o limite temporal/processual máximo/último, para que tal questão seja suscitada, nada obstando a que o possa ser em momento/fase processual anterior, desde que, em momento anterior já se afigure como bastante plausível que tais doações ou legados afectam a legítima de um dos herdeiros legitimários.

Decisão Texto Integral:






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

O requerente L (…), também requerente do inventário instaurado na véspera, veio propor, por apenso ao processo de inventário, incidente de redução de doações inoficiosas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1118.º do Código do Processo Civil, na redacção conferida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, contra a sua irmã, P (…), ambos identificados nos autos, pedindo a condenação desta na redução das liberalidades inoficiosas, relativamente às doações que lhe fez a inventariada, mãe de ambos, por ofenderem a quota legitimária do requerente, devendo a requerida, repor, na parte que afectar a sua legítima, os bens doados – que descreve – que se encontram na posse desta.

Alega para tal, que requerente e requerida são filhos da inventariada M (…), sendo que o requerente, após a morte desta veio a descobrir que todos os bens da inventariada haviam sido alienados durante um período de internamento hospitalar que ocorreu antes do seu falecimento, com excepção de um prédio urbano, sito em (...) , que identifica no artigo 8.º do requerimento inicial e respectivo recheio, bem como um veículo automóvel, identificado no artigo 15.º de tal requerimento, todos doados à requerida, inexistindo outros, pelo que, alega, tais doações ofendem a sua legítima.

Junta cópia da escritura de doação do imóvel (fl.s 19 a 22) e certidão que comprova o registo da viatura automóvel em nome da requerida.

Conclusos os autos à M.ma Juiz, esta cf. despacho de fl.s 30 a 32 (aqui recorrido), indeferiu liminarmente o requerimento apresentado pelo requerente, por entender que o mesmo só deve ser apresentado na conferência de interessados, até à abertura das licitações, pelo que o mesmo deverá renovado, em tal fase processual e no processo principal e não por apenso, com a seguinte fundamentação:

“Os artigos 1118.º e 1119.º do Código do Processo Civil, na redacção conferida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, encontram-se inseridos na Secção V («Incidente de inoficiosidade») do Capítulo II («Inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária») do Título XVI («Do processo de inventário») do Livro V («Dos processos especiais») do Código do Processo Civil.

O Capítulo II («Inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária») prevê 8 Secções, assim ordenadas:

Secção I – Fase inicial;

Secção II – Oposições e verificação do passivo;

Secção III – Audiência prévia de interessados;

Secção IV – Saneamento do processo e conferência de interessados;

Secção V - Incidente de inoficiosidade;

Secção VI – Mapa da partilha e sentença homologatória;

Secção VII – Incidentes posteriores à sentença homologatória;

Secção VIII – Custas.

Na verdade, o processo é uma sequência lógica, cronológica e encadeada de actos, sendo desprovido de sentido e utilidade que, numa fase inicial, se suscitem questões cuja pertinência apenas poderá ser aferida em fase posterior, podendo até esvaziá-las de conteúdo, por a normal evolução do processo tornar insubsistentes os fundamentos em que se baseiam.

No caso, o requerente do presente incidente é também o requerente do processo de inventário.

O processo de inventário foi instaurado no dia 10/02/2020.

E o presente incidente foi proposto no dia seguinte, 11/02/2020.

A inserção sistemática das normas que regulam o incidente em apreço, aliada à sua teleologia e à compreensão do iter processual próprio do processo de inventário, evidencia a manifesta prematuridade da dedução da pretensão, que apenas após tramitação e decisão das fases precedentes pode revelar a sua eventual justificação.

Dito de outro modo, o momento próprio para deduzir o incidente é na fase da Conferência de Interessados, até à abertura das licitações (como refere o n.º 1 do artigo 1118.º do Código do Processo Civil), altura em que já se encontrarão definidos os bens que integram a herança a partilhar, o valor total do activo da herança, a forma da partilha e o quinhão hereditário de cada interessado - tudo elementos essenciais ao apuramento da eventual inoficiosidade da doação.

No processo principal, foi hoje proferido despacho liminar, convidando o requerente a aperfeiçoar o requerimento inicial, deficientemente instruído (artigo 1100.º, n.º 1, alínea a) do Código do Processo Civil).

Não foi sequer citada a outra interessada no inventário.

Pelo que, atento o estado do processo, a dedução do incidente em apreço, de redução de liberalidades inoficiosas, apresenta-se manifestamente prematura.

De resto, em momento algum do regime legal está prevista a possibilidade de ser deduzido por apenso – como o foi – correndo, sim, no processo principal.”.

Inconformado com esta decisão dela, interpôs recurso, o requerente L (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo – (cf. despacho de fl.s 75, no qual, se ordenou, ainda, a citação da requerida, tanto para os termos do recurso, como para os do incidente, cf. artigo 641.º, n.º 7, do CPC), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

42. Entende o recorrido que o tribunal a quo violou os artigos 193º, 1092º e 1093º todos do CPC.

43. Em 10.02.2020 o Recorrente requereu nos Juízos Cíveis de Alcobaça a abertura de inventário para partilha do acervo hereditário deixado pelo falecimento de sua mãe, M (…).

44. O requerente deu entrada do processo de inventário com o número 345/20.3T8ACB, indicando todos os bens doados pela sua mãe falecida à filha herdeira em detrimento do filho aqui requerente.

45. Inexistem á data da morte, bens em nome da inventariada a partilhar, à exceção dos já doados à herdeira filha.

46. As ditas verbas não integram o acervo hereditário, contudo a respectiva relacionação é necessária a fim de permitir verificar a eventual inoficiosidade da doação ou doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado - cf. artºs 2162º nº1 e 2168ºss. C.Civ. (em sentido idêntico, também o já citado Ac.R.P. 7/3/96 e Lopes-Cardoso, op. cit., I/4ª ed./pg. 429 e nota 1232 –

47. Atento á inexistência de bens que façam parte do acervo da herança da inventariada, o requerente entendeu por bem, e por uma questão de celeridade processual, propor, desde logo o processo no qual se analisará a fundo, os fatos atinentes á definição dos direitos à partilha, atento á sua natureza e á complexidade da causa levada a juízo.

48. A autora da sucessão doou à sua filha, por conta da quota disponível, a totalidade dos seus bens, desrespeitando a legítima do herdeiro legitimário, aqui recorrente, verificando-se a existência de liberalidades inoficiosas.

49. Quanto ao bem aparentemente vendido á beneficiária das restantes doações, requereu o recorrente a anulação do referido negócio por inexistência de autorização para a celebração do referido negócio pelo Requerente.

50. Nos termos do nº 1 do art. 1092º da nova Lei do processo de Inventário n.º 117/2019 de 13 de setembro, o juiz deve determinar a suspensão da instância se tiver pendente uma causa que se aprecie uma questão com relevância ou se forem suscitadas questões prejudiciais na definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, devendo o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens. (nº 2).

51. Que tendo o recorrido proposto incidente após a entrada do inventário sem antes aguardar pelo momento da Conferência de Interessados, até à abertura das licitações, ocasião do qual estaria apto, na ótica do tribunal a quo, a requerer a redução das doações nos termos do disposto do artigo 1118º da referida Lei;

52. Uma vez que entende o tribunal «ser altura em que já se encontrarão definidos os bens que integram a herança a partilhar, o valor total do activo da herança, a forma da partilha e o quinhão hereditário de cada interessado - tudo elementos essenciais ao apuramento da eventual inoficiosidade da doação.»

53. Debruçando ao caso concreto, inexiste qualquer bem passível de se poder integrar no acervo da herança, não obstante do dever de os indicar no inventário, os bens doados.

54. O incidente proposto é uma ação com pedido e causa de pedir, prova pericial, testemunhal e documental com valor da ação indicada.

55. A questão levada a juízo tem uma certa complexidade atendendo aos inúmeros de bens e de negócios celebrados, nomeadamente os termos em que foram efetuados, o momento, a eventual simulação alegada, no caso da venda do veículo automóvel, e ao destino de bens que à data não fazem parte do acervo da herança mas cujo destino se desconhece, presumindo-se, por falta de elementos, que tenham sido doados.

56. Neste ultimo fato, fala-se dos dinheiros que o recorrente desconhece por falta de colaboração da instituição bancária.

57. Existem vários fatos que em conjunto demonstram um acerta complexidade para serem incidentalmente decididas.

58. O designado «requerimento de redução das doações inoficiosas» contemplado no art. 1118º do CPC, é um efetivo requerimento que, leia-se, «qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade» sublinhado e negrito nosso.

59. É um incidente simples análise, requerido num requerimento autónomo, dirigido ao juiz do processo, com prova e apreciação sumária.

60. Ora o incidente em apreço é de causa complexa que poderá por si inviabilizar todo o processo de inventário.

61. Pelo que deveria ter a Mma Juíza do Tribunal a quo, determinado erro na forma do processo, praticando-se o estritamente necessário para que o processo se aproxime do processo comum, à luz do preceito contemplado no art 193º CPC e de acordo com o nº 2 e nº 1 alínea b) do art. 1092º do CPC e art. 6º do mesmo diploma legal.

62. Ainda assim e sem prejuízo do ali defendido, ainda que se entenda que o incidente do art. 1118º do CPC, erradamente indicado pelo recorrente na sua peça processual, que é o meio adequado á análise das questões prejudiciais e fundamentais ao processo de inventário, inexistindo a necessidade de remeter para os meios comuns, pode qualquer herdeiro legitimário requerer até à abertura das licitações, a redução das doações.

63. Entende o recorrido que não impede o herdeiro de requerer até à abertura das licitações a referida redução das doações inoficiosas.

64. Devendo a Juiza do tribunal a quo adaptar e aproveitar o requerido, nos termos do art. 6º e 193º ambos do CPC.

65. Atento à complexidade do processo proposto e á inexistência de qualquer bem no acervo da herança, é da opinião do recorrente que se encontrando totalmente vazio o acervo em análise inexiste qualquer conciliação entre os herdeiros.

66. Encontrando questões por decidir, incluindo possíveis simulações de vendas/doações que por si e em conjunto implicam uma certa complexidade da causa, deverá ser remetido para os meios comuns o “incidente”;

67. Cuja prova e analise deverá ser de fundo e não sumaria como no processo de inventário.

68. Apresentando a ação com total aproximação de forma, pedido e causa de pedir da ação comum deverá ser tramitada com a maior proximidade daquele tipo de processo.

Pelo que e, de acordo com o exposto, deverá ser revogado a sentença, que indeferiu liminarmente o requerimento, substituindo por outro que admita o requerimento e atenta às questões ali suscitadas seja tramitado conforme previsto no artigo 193º do CPC, adaptando á forma processual mais correta, aproveitando os atos já praticados.

Como de Direito e de Justiça!

Respondendo, a requerida, impugna alguma da factualidade alegada pelo requerente e que todas as alienações foram validamente efectuadas e sem ofender a legítima do requerente, por a inventariada ter suportado inúmeras despesas do requerente e que a inventariada residiu em casa da requerida, muitos anos, sem pagar  renda e suportou outras despesas da inventariada, para além de que existe por partilhar um terreno, sito em (...) , (...) , que a inventariada comprou há cerca de 20 anos, mas que não foi escriturado, em função do que pugna pela improcedência do pedido formulado.

Quanto aos termos do recurso, adere aos fundamentos expressos na decisão recorrida, defendendo, por isso, que só oportunamente poderá ser admitido o requerimento de inoficiosidade.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se no âmbito de um processo de inventário, o incidente de inoficiosidade de bens doados, só pode ser deduzido/apresentado na conferência de interessados, até à abertura das licitações e não antes da realização de tal conferência e;

B. Se pelo facto de tal incidente ter sido apresentado por apenso, nos termos do disposto no artigo 193.º do CPC, tal não obsta a que seja apreciado, devendo, para tal, proceder-se à correcção oficiosa do meio processual utilizado ou; assim não sendo, em face da sua complexidade, se deve ordenar-se a suspensão da instância dos autos de inventário ou à remessa para os meios comuns, em conformidade com o disposto nos artigos 1092.º e 1093.º, do CPC, respectivamente.

 A matéria de facto relevante é a que consta do relatório que antecede.

A. Se no âmbito de um processo de inventário, o incidente de inoficiosidade de bens doados, só pode ser deduzido/apresentado na conferência de interessados, até à abertura das licitações e não antes da realização de tal conferência.

Como resulta do relatório que antecede, ao passo que na decisão recorrida se defende que a dedução do incidente em apreço só pode ser deduzido na conferência de interessados, como corolário da lógica e sequência processuais do processo de inventário, por ser em tal fase que os autos já dispõem dos elementos pertinentes e necessários à solução a dar-lhe; o recorrente entende que por razões de economia processual, o mesmo pode ser deduzido em anterior fase processual.

É indesmentível, como resulta da sequência das fases previstas no CPC, para o processo de inventário que a Secção IV (artigos 1110.º e seg.s) é a do saneamento do processo e conferência de interessados, no decurso da qual, como decorre do artigo 1111.º, pode atingir-se uma solução amigável para a partilha ou na composição dos quinhões.

Ou, assim não sendo, abrindo-se a fase das licitações, cf. artigos 1113.º e 1114.º.

E é nesta sequência que surge a Secção V (artigos 1118.º e 1119.º), designada, como “Incidente de Inoficiosidade”.

Ora, dispõe-se no n.º 1 do artigo 1118.º:

“Qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade”.

Resulta, também, evidente, como se refere na decisão recorrida que só depois de estar definido o acervo hereditário, se poderá aquilatar da oficiosidade/inoficiosidade das doações ou legados.

Daí que, como regra, o incidente de inoficiosidade deva ser suscitado no decurso da conferência de interessados, até à abertura das licitações, por, neste momento o processo já disponibilizar os elementos essenciais que possibilitem a cada interessado constatar se as doações ou legados afectam ou não a respectiva legítima.

No entanto, em nossa opinião, este é apenas o limite temporal/processual máximo/último, para que tal questão seja suscitada, mas nada obstando a que o possa ser em momento/fase processual anterior, desde que, em momento anterior já se afigure como bastante plausível que tais doações ou legados afectam a legítima de um dos herdeiros legitimários.

Isto mesmo é defendido no Código GPS, Vol. II, Maio de 2020, Almedina, a pág. 601, onde se refere que não obstante este incidente só possa ser suscitado até à abertura das licitações (que têm lugar na conferência de interessados), pode sê-lo antes, desde que “nada obste a que tal iniciativa seja tomada logo que se mostre perceptível uma situação de inoficiosidade”.

O mesmo defende Augusto Lopes Cardoso, in Partilhas Litigiosas, Vol. II, Almedina, 2018, a pág.s 508/510 (por referência ao regime anterior, mas que pode ser transposto para o actual, dada a similitude daquele no seu artigo 52.º, que, igualmente dispunha que tal incidente podia ser requerido até ao fim do prazo para exame do processo para aforma da partilha – cf. seu n.º 6), com o actual 1118.º, n.º 1, do CPC,  que ali  refere que não obstante que “só as contas finais irão apurar de uma vez por todas se a legítima foi ou não ofendida” e que a redução das liberalidades não é de conhecimento oficioso, devendo ser suscitada pelo interessado, mas não se lhe exigindo, por reporte às características das deixas e da aceitação da herança, que tenha que o fazer em fase avançada do processo de inventário e que não admitir que o seja logo que perspectivada a alegada inoficiosidade, equivaleria a “deixar para fase tardiamente absurda a definição da existência da inoficiosidade, como se esta fosse mágica e não compatível com a realidade da vida”.

Apontando como exemplo (nota 1215, de pág. 510), o caso de o de cuius dispor da quase totalidade da sua herança em favor de terceiro preterindo objectiva e muito largamente a legítima do cônjuge sobrevivo e que este, ao requerer o inventário, apresenta logo o testamento com definidor das deixas feitas e respectivos beneficiários.

Acrescentando:

“A que propósito dilatar para a conferência de interessados (de então) a verificação de uma inoficiosidade óbvia, ou puro afastamento de quem violaria objectivamente a legítima e não exigir que o cônjuge desde logo, e no prazo dos dois anos, suscite de maneira formal a inoficiosidade? Para que serviria o “formalismo” senão para prolongar um ritualismo sem sentido? Tudo justifica que o beneficiário (inoficioso) do testamento, não sendo o prazo de caducidade da declaração de inoficiosidade de natureza oficiosa, requeira, por sua vez e mal lhe seja oportuno, que o testamento, a despeito das disposições matematicamente inoficiosas, seja rigorosamente cumprido, evitando-se discussões inúteis! Parece de enorme evidência”.

Ora, no caso em apreço, como acima referido, mostra-se junta certidão da escritura de doação a favor da requerida e registo do veículo em seu nome e alega-se que a mesma está na posse de todos os bens da herança, incluindo o recheio do imóvel, que, alegadamente, também lhe foram doados (o que a mesma justifica, mas não nega, cf. resposta que ofereceu).

Concluiu-se, pois, que todos os bens que constituem a herança foram objecto de doação (a requerida refere, para além destes, a existência de um terreno, mas sem que o mesmo tivesse sido “escriturado” pela inventariada, o que, pelo menos, por ora, não permite aferir do mesmo como fazendo parte dos bens a partilhar).

Assim sendo, tem de se concluir que todos os bens da herança foram doados à requerida, o que acarreta a existência de uma situação em que, desde já, é patente a concretização da invocada inoficiosidade, sendo, face ao exposto, desnecessário, esperar pela realização da conferência de interessados para que tal inoficiosidade seja suscitada; ou seja, a dedução de tal incidente é de considerar como tempestiva, em face do que não pode subsistir a decisão recorrida.

Consequentemente, quanto a esta questão procede o recurso.

B. Se pelo facto de tal incidente ter sido apresentado por apenso, nos termos do disposto no artigo 193.º do CPC, tal não obsta a que seja apreciado, devendo, para tal, proceder-se à correcção oficiosa do meio processual utilizado ou; assim não sendo, em face da sua complexidade, se deve ordenar-se a suspensão da instância dos autos de inventário ou à remessa para os meios comuns, em conformidade com o disposto nos artigos 1092.º e 1093.º, do CPC, respectivamente.

Na parte final do despacho recorrido, refere-se que o incidente em causa, deve correr no processo principal e não por apenso, em face do que o requerente pugna pela correcção oficiosa do meio processual utilizado.

Nos termos do disposto no artigo 193.º, n.º 6, do CPC, o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados, o que também resulta do disposto no seu artigo 6.º.

In casu, nem sequer se pode falar de erro no meio processual, uma vez que este é o adequado, apenas devendo correr nos autos principais e não por apenso, em função do que basta que o M.mo Juiz a quo, ordene que assim se passe a processar, o que está abrangido pelo disposto no citado artigo 193.º, n.º 3, que permite “correcções” mais amplas – cf. Código GPS, já citado, Vol. I, 2.ª Edição, pág.s 246/6 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol 1.º, 4.ª Edição, Almedina, a pág.s 397/8.

Pelo que, quanto a tal, é suficiente que se proceda à incorporação do apenso nos autos principais.

Não obstante isso seja irrelevante face ao decidido, apenas de referir que as suscitadas questões de suspensão da instância e/ou remessa para os meios comuns, não foram suscitadas perante a decisão recorrida, constituindo “matéria nova” que não nos cumpre decidir, pois que, como comummente aceite, os recursos apenas se destinam à reapreciação de questões já anteriormente suscitadas.

Consequentemente, também, quanto a esta questão procede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente a presente apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que admite liminarmente o requerimento de inoficiosidade dos bens doados, devendo os autos, nos termos expostos, prosseguir para apreciação do mesmo, com vista ao conhecimento de tal pedido.

Custas, a fixar a final.

Coimbra,17 de Novembro de 2020.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves