Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
531/18.6T8FND-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO
LIMITES DO CASO JULGADO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 06/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JUÍZO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.580, 581, 619, 620 CPC
Sumário: I – O caso julgado material apenas se constitui e apenas incide sobre o teor da decisão de mérito – ou seja, a decisão que, em resposta a determinada pretensão formulada, define e regula uma concreta relação ou situação jurídica – e apenas opera dentro dos precisos limites e termos em que ela julgou a causa, não abarcando, portanto, qualquer questão ou pretensão que não possa ser incluída dentro desse termos e limites.

II – Assim sendo, se a decisão proferida não apreciou o mérito e não decidiu uma determinada pretensão que tenha sido formulada, o caso julgado material que com ela se constituiu não abrange essa pretensão (não apreciada e não julgada) e, como tal, não obsta a que essa mesma pretensão (idêntico pedido com idêntica causa de pedir) venha a ser formulada e julgada em acção posterior com os mesmos sujeitos.

III – A afirmação antecedente permanece válida ainda que a omissão de apreciação daquela pretensão configurasse uma nulidade da sentença/acórdão; não tendo sido, oportunamente, invocada e suprida a nulidade eventualmente existente, a decisão transitou nos termos em que foi proferida e é dentro desses termos e limites que se constitui o caso julgado, não incluindo, portanto, quaisquer questões/pretensões que não foram objecto de qualquer apreciação, julgamento ou definição e que, como tal, não se contêm minimamente nos termos e nos limites da decisão.

IV – Consequentemente, se a decisão proferida em determinada acção se limitou a declarar a resolução de um contrato promessa e a reconhecer a existência de um direito de crédito daí emergente para o autor sem que tivesse emitido pronúncia sobre a pretensão que o autor também havia formulado no sentido de ser reconhecida a existência de direito de retenção para garantia daquele crédito – e sem que se detecte, sequer, na respectiva fundamentação, qualquer apreciação acerca do mérito dessa pretensão –, nada obsta a que esse direito de retenção venha a ser apreciado e reconhecido no âmbito de acção instaurada pelo mesmo autor – por apenso ao processo de insolvência referente aos réus na acção anterior – com vista à verificação do crédito reconhecido na anterior acção e com visa à sua graduação em função daquele direito de retenção.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Por apenso ao processo de insolvência referente a J (…) e L (…), J (…) residente (…) e M (…) residente (…), vieram instaurar acção – ao abrigo do disposto no Artigo 146º, nrs. 1, 2 e 3 do CIRE – contra:

- A Massa Insolvente de J (…) e M (…);

- O Administrador Insolvência: Dr. (…)

- Os Credores da Insolvência e Massa Insolvente;

- Os Insolventes J (…) e L (…)

Alegaram em resumo: que, em 19/08/2003, celebraram com o Insolvente um contrato promessa por via do qual prometeram comprar e o Insolvente prometeu vender o imóvel que identificam pelo preço de 182.000,00€, ficando convencionado que o contrato definitivo seria celebrado no prazo de vinte a quatro meses; que pagaram a totalidade do preço acordado em várias parcelas e, entre Dezembro de 2004 e Janeiro de 2005, receberam as chaves do imóvel e passaram a habitá-lo e a actuar como verdadeiros proprietários, à vista de todos e sem oposição de ninguém, passando, designadamente a pagar o condomínio; que o Insolvente não procedeu à marcação da escritura no prazo acordado, apesar de o Autor o ter interpelado para o efeito; que, nessas circunstâncias, os Autores instauraram contra os Insolventes uma acção que  correu seus termos sob o n.º 316/13.6TBLLE no Tribunal Judicial de Loulé onde se decidiu – por Acórdão da Relação de Évora de 21/04/2016 – declarar resolvido o contrato-promessa e condenar o réu J... na restituição da totalidade do preço, ou seja, a restituir aos autores a quantia de €182.000,00 - na proporção de metade para cada um dos Autores - acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento e que, nessas circunstâncias e estando já resolvido o contrato quando foi declarada a insolvência, gozam de direito de retenção sobre o imóvel para garantia do crédito que lhes foi reconhecido.

Com esses fundamentos, concluem pedindo:

a) Que seja reconhecido e graduado a favor dos Autores o crédito privilegiado no valor de €182.000,00, acrescido dos respectivos juros legais, desde Janeiro de 2013, até integral pagamento, já vencidos na quantia de €89.756,29, a que acrescem os juros vincendos, até efectivo e integral pagamento;

b)- Que seja reconhecido o direito de retenção dos AA. sobre a fracção autónoma, objecto do contrato promessa de compra e venda;

c)- Que seja reconhecida ao 1º Autor a qualidade de depositário deste imóvel, que constituí a sua efectiva habitação desde Janeiro de 2005, diferindo-se a sua desocupação para momento posterior ao da respetiva venda, no processo de insolvência, sem prejuízo de eventual fixação de regime de visitas ao imóvel por interessados em tal transacção.

A Ré Massa Insolvente apresentou contestação, invocando a nulidade do processo por cumulação de causas de pedir e pedidos substancialmente incompatíveis e por erro na forma do processo no que toca à pretensão de diferimento da desocupação do imóvel. Impugnou ainda o valor dos juros e invocou a prescrição dos juros que à data da propositura da acção já se haviam vencido há mais de cinco anos. No que toca ao invocado direito de retenção, invocou o caso julgado decorrente do acórdão proferido no processo identificado pelos Autores e onde não foi reconhecido qualquer direito de retenção.

Mais alegou que os Autores litigam de má-fé por terem alterado a verdade dos factos.

Com estes fundamentos, pediu:

- Que fosse julgada procedente a excepção de nulidade do processo

- Que a acção fosse julgada improcedente ou que apenas fosse reconhecido a cada um dos Autores um crédito de 91.000,00€ a graduar como não garantido;

- Que os Autores fossem condenados, por litigância de má-fé, no pagamento de uma indemnização à aqui Ré, para reembolso das despesas a que obrigou esta, incluindo os honorários do ora signatário e para satisfação dos demais prejuízos sofridos por esta, a fixar em liquidação de sentença.

Os Autores responderam, sustentando a improcedência das excepções e a inexistência de litigância de má-fé.

Os Autores declararam ainda desistir do pedido formulado sob a alínea c), desistência que foi homologada por sentença proferida em 17/10/2019.

Foi realizada a audiência prévia no âmbito da qual foi proferido o despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu nos seguintes termos:

…julga-se parcialmente procedente o

presente incidente de verificação ulterior de créditos e, em consequência:

1. Declara-se reconhecido o crédito do autor J (…), no montante global de 182.000,00 Euros.

2. Gradua-se o crédito do autor J (…) como crédito garantido, por beneficiar de direito de retenção, e determina-se que o mesmo seja pago por conta do produto da venda da verba n.º 4, após a satisfação das dívidas da massa insolvente e em 1.º lugar, antes do crédito hipotecário reconhecido à credora I (…)..

3. Julga-se improcedente o incidente da litigância de má-fé e, em consequência, absolvem-se os autores do respectivo pedido.

4. Condenam-se os autores e a ré contestante no pagamento das custas processuais na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se em 30% a responsabilidade dos autores e em 70% a responsabilidade da ré”.

Inconformada com essa decisão, a credora I (…). veio interpor recurso formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o caso julgado formado pela decisão proferida em anterior acção – que correu termos sob o nº 316/13.6TBLLE – impedia (ou não) o reconhecimento, nos presentes autos, do direito de retenção que era invocado pelo Autor em garantia do seu crédito.


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III.

Em 1ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 19 de Agosto de 2003, os autores e o réu J (…) outorgaram um escrito particular, epigrafado de “contrato promessa de compra e venda”, através do qual acordaram, além do mais:


[…] SEGUNDA

(Promessa de Compra e Venda)


a) Pelo presente contrato a PROMITENTE VENDEDORA [o réu J (…)] promete vender aos PROMITENTES COMPRADORES [os autores] e este promete comprar, pelo global de €182.000,00 (cento e oitenta e dois mil euros), livre de ónus, encargos ou responsabilidades, e totalmente acabada, a fracção autónoma que vier a corresponder ao apartamento do tipo T 2 provisoriamente identificado por Fracção D no 3.º piso, com um parqueamento na 1.ª Cave de número 1 (um) […]

TERCEIRA

(Condições de Pagamento)


O preço de venda acordado será pago pelos PROMITENTES COMPRADORES à PROMITENTE VENDEDORA da seguinte forma:

a) € 18.200,00 (quatorze mil, e duzentos euros), nesta data a título de sinal e princípio de pagamento, pelo qual o PROMITENTE VENDEDOR dá aos PROMITENTES COMPRADORES a respectiva quitação.

b) €18.200,00 (dezoito mil, e duzentos euros), a título de reforço de sinal no prazo de 120 dias a contar da assinatura do presente contrato promessa de compra e venda.

c) €18.200,00 (dezoito mil, e duzentos euros), a título de reforço de sinal, 240 dias após a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda.

d) €18.200,00 (dezoito mil, e duzentos euros), a título de reforço de sinal, 360 dias após a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda.

e) O remanescente do preço no montante de €109.200,00 (cento e nove mil, e duzentos euros), serão pagos pelos SEGUNDOS OUTORGANTES no acto da outorga da escritura pública de compra e venda, por recursos próprios ou financiamento bancário.

[…]


QUARTA

(Escritura Pública)


A escritura Pública de compra e venda será celebrada em dia, hora e cartório notarial a designar pela PROMITENTE VENDEDORA, até ao termo do prazo de 24 meses após a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, obrigando-se esta avisa os PROMITENTES COMPRADORES, por carta registada com aviso de recepção com a antecedência mínima de oito dias da data marcada.

[…]”.

2. A fracção referida no acordo celebrado entre autores e o réu J... encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 8261/20010123-R, tendo sido registada, através da Ap. 35, de 2003/07/31, a favor dos réus insolventes.

3. O valor acordado foi pago pelos autores ao réu J (…), da seguinte forma:

a. Na data da outorga do contrato, os autores entregaram ao réu J (…) a quantia de 18.200,00 Euros;

b. A 13 de Janeiro de 2004, os autores entregaram ao réu J (…) a quantia de 18.200,00 Euros;

c. A 17 de Março de 2004, os autores entregaram ao réu J (…) a quantia de 18.200,00 Euros;

d. A 8 de Novembro de 2004, os autores entregaram ao réu J (…)a quantia de 2.500,00 Euros;

e. A 11 de Novembro de 2004, os autores entregaram ao réu J (…) as quantias de 7.500,00 Euros e de 75.000,00 Euros.

4. Na sequência dos pagamentos realizados, o réu J (…)restituiu aos autores a quantia de 10.176,00 Euros.

5. Entre Dezembro de 2004 e Janeiro de 2005, o autor J (…) recebeu as chaves da fracção.

6. Após Janeiro de 2005, o autor mobilou e equipou a casa, aí passando fins-de-semana, recebendo familiares e amigos, à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja.

7. O autor passou a pagar os encargos da fracção com energia eléctrica, água, gás e condomínio, o que faz ininterruptamente até à data da propositura da acção.

8. Tendo sido o autor quem acordou o fornecimento de água, gás e energia eléctrica.

9. Os autores intentaram contra os réus J (…) e L (…) a acção declarativa sob a forma de processo comum que correu os seus termos sob o n.º de processo 316/13.6TBLLE, no Tribunal Judicial de Loulé, na qual peticionaram:

a. Que os réus fossem condenados a ver lavrada sentença que reconheça o direito à execução específica do contrato-promessa que outorgaram, com emissão de sentença a suprir a declaração negocial dos contraentes faltosos e declaração negocial dos contraentes faltosos e declaração de serem os autores legítimos adquirentes do direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito sob o artigo 8261-R da freguesia de x... , objecto do contrato-promessa, uma vez que foi liquidada a totalidade do preço;

b. Que a referida sentença expressamente autorizasse a realização do competente registo predial de aquisição a favor dos autores;

c. Subsidiariamente, que fosse declarado resolvido, por não definitivamente cumprido, o contrato promessa e que fossem os réus condenados na restituição aos autores da totalidade do preço, ou seja, a restituir aos autores a quantia de 182.000,00 Euros, na proporção de metade a cada um, acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento;

d. Que fosse reconhecido o direito de retenção sobre o prédio, como direito real de garantia e até efectiva restituição do preço e respectivos juros.

10. Nos referidos autos, por acórdão de 21 de Abril de 2016 do Tribunal da Relação de Évora foi decidido:

Acordam os Juízes desta Relação, em conceder nestes termos, provimento ao presente recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, decidindo julgar procedente a acção e consequentemente, declaram resolvido o contrato-promessa sub judice e condenam o réu J... na restituição da totalidade do preço, ou seja, a restituir aos autores a quantia de 182 000,00 € - na proporção de metade a cada um – acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento.”.

11. No dia 21 de Janeiro de 2019, foi proferida sentença que declarou a insolvência de J (…) e L (…)..

12. A 14 de Agosto de 2012, foi registada a alienação da fracção O que o autor J (…) tinha registado em seu nome, na Rua (…), na y...

13. A autora M (…) habita na fracção sita (…) na y... , a qual se encontra inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 2211.º, em nome do autor J... .

14. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 9001.º, a favor do autor J (…), a habitação sita na Rua (…) em z... .

15. O autor J (…) cedeu a ocupação da mencionada habitação sita em z... contra o pagamento de um valor não concretamente apurado como forma de aumentar os seus rendimentos.

16. No dia 15 de Março de 2019, o Sr. Administrador da Insolvência deslocou-se, acompanhado por J (…), à fracção objecto do acordo celebrado entre os autores e o réu J (…), onde foram recebidos pelos tios do autor J (…), não se encontrando o mesmo naquela habitação.

17. Tendo sido através de chamada telefónica efectuada nesse mesmo dia, através do telemóvel do tio do autor J (…), que o Sr. Administrador da Insolvência informou aquele autor do presente processo de insolvência e das diligências de apreensão do prédio que teria de efectivar e da necessidade do mesmo autor entregar a fracção.


*

E não se julgaram provados os seguintes factos:

1. Os autores começaram a receber, na fracção em causa, toda a sua correspondência.

2. O autor, por cartas de 24 de Janeiro de 2008, 18 de Janeiro de 2012 e 7 de Setembro de 2012, remetidas a J (…), solicitou a marcação da data para a realização da escritura pública prometida, não tendo as últimas duas cartas obtido resposta.


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IV.

O presente recurso incide apenas sobre o segmento da decisão que reconheceu a existência do direito de retenção e que, como tal, graduou o crédito do Autor como garantido em relação ao produto da venda da verba nº 4 – graduando esse crédito para ser pago antes do crédito hipotecário da Apelante –, sustentando a Apelante que tal direito de retenção não pode ser reconhecido e que, em consequência, o crédito deverá ser graduado como crédito comum.

Sem pôr em causa a sentença recorrida na parte em que considerou estarem verificados os pressupostos do direito de retenção que era invocado pelos Autores, sustenta a Apelante – sendo esse o único fundamento do recurso que veio interpor – que tal direito não podia ser reconhecido porque a tal obstava o caso julgado formado pela decisão proferida na acção que correu termos sob o nº 316/13.6TBLLE.

Analisemos, portanto, essa questão que, conforme referimos, é o único fundamento do recurso.

Dispõe o artigo 619º, nº 1, do CPC que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

A citada disposição legal reporta-se e delimita os contornos do caso julgado material, ou seja, o caso julgado que se forma relativamente à decisão (sentença ou saneador) que, decidindo do mérito da causa, define a relação ou situação jurídica deduzida em juízo (a relação material controvertida), determinando que tal decisão tem força obrigatória dentro e fora do processo (dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º) e impedindo, dessa forma, que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade. Conforme resulta do disposto na norma citada, o caso julgado material vigora dentro dos limites estabelecidos nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sendo, portanto, delimitado através dos elementos que identificam a relação jurídica definida na sentença (as partes, o pedido e a causa de pedir) e é a definição dessa concreta relação jurídica (delimitada pelos referidos elementos) que se impõe por força da autoridade do caso julgado; significa isso, portanto, que a concreta relação material controvertida que foi objecto da decisão não pode voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não pode vir a ser contrariada – antes deverá ser respeitada – por qualquer outra decisão. Conforme refere Manuel de Andrade[1], o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”.

Podendo impor-se por via da sua autoridade – vinculando o tribunal e as partes a acatar o que ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas –, o caso julgado também obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada; é esta precisamente a função da excepção de caso julgado que foi instituída como forma de assegurar o respeito pela decisão anterior já transitada e que, conforme previsto 576º, 577º, 580º e 581º do CPC, impede a apreciação do mérito da causa (dando lugar à absolvição da instância) quando esta é mera repetição – por serem idênticos os sujeitos, o pedido e a causa de pedir – de uma causa anterior que já foi decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e que, como tal, já transitou em julgado (cfr. art. 628º do CPC).

No caso dos autos, coloca-se a questão de saber se o caso julgado formado pela decisão proferida no processo nº 316/13.6TBLLE impedia o reconhecimento – nos presentes autos – do direito de retenção em favor (ou garantia) do crédito dos Autores.

Pensamos que não impedia e passamos a explicar porquê.

A citada acção foi instaurada pelos Autores contra J (…) e L (…) (ora Insolventes) e ali se pediu – a título subsidiário – que se declarasse resolvido o contrato promessa ali identificado e que os Réus fossem condenados a restituir aos Autores a totalidade do preço (a quantia de 182.000,00€), tendo sido ainda pedido que fosse reconhecido o direito de retenção sobre o prédio identificado. A acção foi julgada improcedente na 1ª instância, mas essa decisão veio a ser revogada por acórdão de 21 de Abril de 2016 do Tribunal da Relação de Évora onde se decidiu “…julgar procedente a acção e consequentemente, declaram resolvido o contrato-promessa sub judice e condenam o réu J (…) na restituição da totalidade do preço, ou seja, a restituir aos autores a quantia de 182 000,00 € - na proporção de metade a cada um – acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento.”.

É indiscutível que, por força do disposto no citado art. 619º, essa decisão – que incidiu sobre o mérito da causa e transitou em julgado – adquiriu força de caso julgado, ficando a ter força obrigatória dentro dos limites fixados nos arts. 580º e 581º e tal significa que a definição da concreta relação jurídica sobre a qual incidiu a sentença – delimitada pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir – passou a impor-se e a ser vinculativa para os respectivos sujeitos. Ficou, portanto, definida a resolução do contrato promessa ali em causa, tal como ficou definido que o Réu ficava obrigado a restituir a totalidade do preço que havia recebido, ou seja, a restituir aos Autores a quantia de 182 000,00 € - na proporção de metade a cada um – acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento.

Mas esgota-se aí o conteúdo e os limites do caso julgado formado pela referida decisão, uma vez que nada mais aí se decidiu.

É certo que, no âmbito dessa acção, os Autores haviam pedido o reconhecimento da existência de um direito de retenção para garantia daquele crédito emergente do incumprimento do referido contrato promessa e tal pretensão é idêntica à que foi formulada nos presentes autos, sendo idêntico o pedido e sendo idêntica a respectiva causa de pedir.

Sucede que o caso julgado apenas se forma sobre a decisão proferida e aquela decisão (proferida na acção anterior) não apreciou aquela pretensão referente ao direito de retenção e nada decidiu a esse propósito; tal pretensão não foi julgada procedente nem foi julgada improcedente; pura e simplesmente não foi apreciada.

Ora, conforme resulta do disposto nos arts. 619º, nº 1, do CPC, o caso julgado material pressupõe a existência de uma decisão que decida o mérito da causa e que, como tal, defina e regule a relação material controvertida. Isso mesmo resulta também do disposto no art. 580º, nº 1, do CPC, do qual se retira que a excepção de caso julgado pressupõe a existência de uma causa anterior que já tenha sido decidida e a expressão “causa decidida” pressupõe, naturalmente, a existência de decisão de mérito. E, conforme dispõe o art. 621º do CPC, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.

Significa isso, portanto, que é apenas o conteúdo da decisão (de mérito) que fica abrangido pelo caso julgado material, excluindo, portanto, quaisquer pretensões que, apesar de terem sido formuladas, não obtiveram qualquer decisão de mérito (seja porque a resposta dada pelo tribunal a essa pretensão se reconduziu a uma decisão formal e não de mérito, seja porque – ainda que erradamente ou por lapso – o tribunal não apreciou essa pretensão e sobre ela não proferiu qualquer decisão).

Conforme referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[2], “…a eficácia do caso julgado (…) apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (…), ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir”.

Segundo as palavras de Castro Mendes[3], “Aquilo que primàriamente recebe força de caso julgado é o conteúdo de pensamento, ou afirmação, contido na parte dispositiva material da sentença: é o thema decisum” e prossegue dizendo[4]Se o caso julgado tem como conteúdo primário a afirmação judicial que forma o conteúdo da sentença, thema decisum, daqui decorre que em rigor não tem como conteúdo primário o objecto da acção ou do pedido, ou o da defesa, ou do processo … não é a pretensão o objecto do caso julgado, mas sim a decisão que sobre a pretensão o tribunal proferiu”.

Sobre essa matéria refere também Manuel Domingues de Andrade[5]: “A extensão objectiva do caso julgado comede-se ainda – antes de mais nada – pelo próprio teor da decisão (…). Se ela não estatuir de modo exaustivo sobre a pretensão do Autor (o thema decidendum), não excluindo portanto toda a possibilidade de uma outra decisão útil, essa pretensão poderá ser novamente deduzida em juízo”.

No mesmo sentido, afirma Alberto dos Reis[6]: “Se a sentença transitada não esgotou o thema decidendum, se uma parte da pretensão ficou ainda em aberto, não há dúvida de que essa parte pode, de novo, ser submetida à apreciação do tribunal

Também José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[7] dizem o seguinte: “…se o autor tiver deduzido dois pedidos autónomos contra o réu e o juiz só se pronunciar sobre um deles, esquecendo o outro, ou se tiver sido pedido o pagamento duma quantia e o juiz condenar o réu, não revel, na entrega duma coisa, interpretando a petição inicial como se esta – e só esta – tivesse sido pedida, é sobre a definição do objecto do processo assim feita que se forma o caso julgado”.

É certo, portanto, que o caso julgado não se forma directamente sobre a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e pela causa de pedir); o caso julgado forma-se e incide apenas sobre o teor da decisão de mérito que seja proferida relativamente a tal pretensão e dentro dos termos e limites definidos pela decisão, ainda que o exacto apuramento desses limites e a exacta interpretação dos termos da decisão possa e deva ser efectuada com recurso aos respectivos fundamentos.

Nessas circunstâncias, impor-se-á concluir que, se a decisão proferida não conhece, não julga e não decide alguma das pretensões que tenha sido formulada na causa, o caso julgado material que se forma com tal decisão não abrange a pretensão não apreciada e, como tal, não obsta a que seja instaurada nova acção em que essa pretensão seja formulada. Com efeito, ainda que, nessa situação, a nova acção seja idêntica à anterior – porque os sujeitos são idênticos e porque o pedido formulado na nova acção já havia sido deduzido na anterior acção com invocação da mesma causa pedir –, a pretensão nela deduzida não foi apreciada na acção anterior e sobre ela não foi proferida qualquer decisão de mérito e, nessas circunstâncias, não se formou, no que toca a essa pretensão, qualquer caso julgado material, não podendo afirmar-se – como seria necessário para que se configurasse a excepção de caso julgado (cfr. art. 580º, nº 1, do CPC) – que a nova causa seja a repetição de uma outra que já tenha sido decidida.   

E tal conclusão é reforçada se olharmos aos fins e objectivos do caso julgado e especificamente da excepção de caso julgado que, conforme dispõe o art. 580º, nº 2, do CPC, visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Com efeito, se a decisão anterior não julgou, não apreciou e não decidiu uma das pretensões que haviam sido formuladas na acção, é evidente que qualquer outra decisão que venha, posteriormente, a apreciar essa pretensão nunca poderá contradizer ou reproduzir a decisão anterior.

Ora, olhando para a situação dos autos e para a decisão proferida na acção que correu termos sob o nº 316/13.6TBLLE (decisão que é invocada pela Apelante para sustentar que o caso julgado por ela formado impedia que a pretensão de reconhecimento do direito de retenção pudesse ser reconhecida – como foi – nos presentes autos), não poderemos deixar de constatar que tal decisão não formou caso julgado relativamente a essa pretensão.

Tal pretensão foi, efectivamente, formulada na referida acção. Conforme referimos, a citada acção foi instaurada pelos Autores contra J (…) e L (…) (ora Insolventes) e ali se pediu – a título subsidiário – que se declarasse resolvido o contrato promessa ali identificado e que os Réus fossem condenados a restituir aos Autores a totalidade do preço (a quantia de 182.000,00€), tendo sido ainda pedido que fosse reconhecido o direito de retenção sobre o prédio identificado. Na 1ª instância a acção foi julgada totalmente improcedente, importando notar, de qualquer modo, que o invocado direito de retenção não foi objecto de qualquer apreciação por se ter considerado que essa matéria estava prejudicada pela apreciação das questões anteriores. Tal decisão foi, no entanto, revogada por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora onde se decidiu julgar procedente a acção e consequentemente: declarar resolvido o contrato-promessa e condenar o Réu J (…) a restituir aos Autores a quantia de 182 000,00 €, acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento. Ora, olhando à decisão proferida no referido Acórdão – ainda que interpretada à luz da respectiva fundamentação – impõe-se concluir, por um lado, que a decisão proferida em 1ª instância foi totalmente revogada e impõe-se concluir, por outro lado, que a pretensão de reconhecimento do direito de retenção (cuja apreciação se havia considerado prejudicada em 1ª instância em face da improcedência da pretensão de reconhecimento do crédito) não foi apreciada e decidida; tal pretensão não foi julgada procedente nem improcedente; ela não foi objecto de qualquer apreciação e decisão.

Ao contrário do que parece sustentar a Apelante, não nos parece ser sustentável o entendimento de que a decisão de 1ª instância se tenha mantido na parte em que julgou improcedente a pretensão de reconhecimento do direito de retenção; conforme referimos, o Acórdão proferido revogou totalmente a sentença proferida em 1ª instância sem fazer qualquer ressalva e o seu teor (seja ao nível da decisão, seja ao nível da fundamentação) não contém qualquer indício que aponte para a confirmação da decisão de 1ª instância na parte em que julgou improcedente o reconhecimento do direito de retenção. Mas ainda que se entendesse que, nessa parte, se mantinha a decisão da 1ª instância, sempre se deveria considerar que não estava em causa uma decisão de mérito (como seria necessário para que formasse caso julgado material) uma vez que aquela pretensão não foi efectivamente apreciada e decidida por ter sido considerado que essa apreciação e decisão estavam prejudicadas.

É certo, por outro lado, que a decisão proferida no Acórdão citado – no sentido de declarar a resolução do contrato promessa e de reconhecer o crédito dos Autores daí emergente – não consente qualquer leitura ou interpretação no sentido de conter implicitamente qualquer decisão de improcedência do pedido de reconhecimento do direito de retenção relativamente àquele crédito.

Argumenta a Apelante que, a entender-se que aquela pretensão não foi apreciada, o referido Acórdão seria nulo por omissão de pronúncia e tal nulidade teria que ser arguida pelos Autores no prazo legal o que não sucedeu, daí retirando – ao que parece – a conclusão de que aquela pretensão teria ficado precludida e incluída no caso julgado formado com a decisão sem que pudesse voltar a ser formulada e apreciada.  

Não nos parece que assim seja.

Na verdade, para efeitos de caso julgado, pouco interessa saber se a falta de apreciação dessa pretensão configura ou não uma nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, uma vez que, não tendo sido, oportunamente, invocada e suprida a nulidade eventualmente existente, a sentença transitou nos termos em que foi proferida e é dentro desses termos e limites que se constitui o caso julgado. Com efeito e ao contrário do que pretende a Apelante, a circunstância de essa nulidade não ter sido invocada (e suprida) oportunamente não poderá ter a virtualidade de estender o efeito do caso julgado a questões/pretensões que não se contêm minimamente nos termos e nos limites da decisão; tal entendimento não tem qualquer apoio legal, sendo certo que, nos termos da lei, o caso julgado apenas se forma sobre a decisão e nos precisos limites e termos em que ela julgou a causa, não abarcando, portanto, qualquer questão ou pretensão que não possa ser incluída dentro desses termos e limites. A este propósito – e no sentido que aqui propugnamos – vejam-se as considerações efectuadas por Castro Mendes[8] a propósito da eficácia do caso julgado relativamente áquilo que designa por “sentença inadequada ao pedido, à defesa ou ao processo” e de onde se depreende – se bem entendemos – que a sentença que não julgou determinada pretensão que havia sido formulada (sem que tivesse sido suprida no momento oportuno a nulidade emergente dessa omissão) não obsta a que tal pretensão venha a ser novamente formulada por não estar abrangida pelo caso julgado formado com aquela decisão. No mesmo sentido se pronunciam José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto no excerto supracitado.

Concluímos, portanto, em face do exposto e à luz das considerações efectuadas, que o caso julgado formado pela decisão proferida na citada acção não inclui a pretensão de reconhecimento do direito de retenção (a decisão proferida não deu qualquer resposta – expressa ou tácita – a tal pretensão) e, como tal, não obstava a que tal pretensão fosse apreciada – como foi – nos presentes autos e que aqui fosse reconhecido o referido direito.

Nestas circunstâncias e porque – conforme se referiu – a Apelante não contesta o mérito da decisão no que toca à efectiva verificação dos pressupostos do direito de retenção (o recurso baseava-se apenas no caso julgado formado pela decisão proferida na acção que correu termos sob o nº 316/13.6TBLLE e que, na perspectiva da Apelante, obstava ao reconhecimento do direito de retenção nos presentes autos), impõe-se julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O caso julgado material apenas se constitui e apenas incide sobre o teor da decisão de mérito – ou seja, a decisão que, em resposta a determinada pretensão formulada, define e regula uma concreta relação ou situação jurídica – e apenas opera dentro dos precisos limites e termos em que ela julgou a causa, não abarcando, portanto, qualquer questão ou pretensão que não possa ser incluída dentro desse termos e limites.

II – Assim sendo, se a decisão proferida não apreciou o mérito e não decidiu uma determinada pretensão que tenha sido formulada, o caso julgado material que com ela se constituiu não abrange essa pretensão (não apreciada e não julgada) e, como tal, não obsta a que essa mesma pretensão (idêntico pedido com idêntica causa de pedir) venha a ser formulada e julgada em acção posterior com os mesmos sujeitos.

III – A afirmação antecedente permanece válida ainda que a omissão de apreciação daquela pretensão configurasse uma nulidade da sentença/acórdão; não tendo sido, oportunamente, invocada e suprida a nulidade eventualmente existente, a decisão transitou nos termos em que foi proferida e é dentro desses termos e limites que se constitui o caso julgado, não incluindo, portanto, quaisquer questões/pretensões que não foram objecto de qualquer apreciação, julgamento ou definição e que, como tal, não se contêm minimamente nos termos e nos limites da decisão.

IV – Consequentemente, se a decisão proferida em determinada acção se limitou a declarar a resolução de um contrato promessa e a reconhecer a existência de um direito de crédito daí emergente para o autor sem que tivesse emitido pronúncia sobre a pretensão que o autor também havia formulado no sentido de ser reconhecida a existência de direito de retenção para garantia daquele crédito – e sem que se detecte, sequer, na respectiva fundamentação, qualquer apreciação acerca do mérito dessa pretensão –, nada obsta a que esse direito de retenção venha a ser apreciado e reconhecido no âmbito de acção instaurada pelo mesmo autor – por apenso ao processo de insolvência referente aos réus na acção anterior – com vista à verificação do crédito reconhecido na anterior acção e com visa à sua graduação em função daquele direito de retenção.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Coimbra, 22 de Junho de 2020.

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 305.
[2] Manual de Processo Civil, 2ª edição, Revista e Actualizada, pág. 714.
[3] Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 254
[4] Ob. cit., pág. 255.
[5] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 325.
[6] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, pág. 174.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, pág. 718.
[8] Ob. cit., págs. 256 a 258.