Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4851/20.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
ATENUAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1093.º; 1097 E SEG.S; 1104.º; 1106.º; 1109.º; 1110.º; 1120.º; 1125.º; 1126.º E 1127.º, DO CPC
Sumário: I - Apesar de o processo de inventário assumir fases nas quais os atos e decisões nelas previstos devem ser praticados/proferidas, tal não impede que, em abono de uma partilha justa, tais atos e decisões possam emergir noutras fases.
II - Por via de regra, as vicissitudes que possam ocorrer no processo de inventário não impedem a continuação da sua tramitação, podendo, se necessário, e em função de factos relevantes supervenientes, a partilha ser retificada ou efetuada uma nova partilha.

III - Dada a conveniência de no processo de inventário serem resolvidas todas as questões, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns, nos termos do artº 1093º do CPC, reunidos que estejam dois requisitos: i) a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha; ii) a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

IV - Não estão presentes tais pressupostos se se trata apenas de apreciar a (in)existência de créditos sobre o património comum do ex casal, rectius provar se os valores reclamados foram suportados pelos reclamantes, e não se antolha que outros meios probatórios relevantes para além dos já apresentados possam ser carreados para o processo comum.

Decisão Texto Integral: Relator:
Carlos Moreira
Adjuntos:
Vítor Amaral
Fonte Ramos

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

No processo em epígrafe, inventário para separação de meações em que são interessados AA (cabeça de casal) e BB, foi proferido o seguinte

despacho:

«De acordo com o disposto no art. 1111°, n° 3 do Cód. Proc. Civil, é finalidade da conferência de interessados, também, a deliberação sobre o passivo.

Ora na conferência de interessados realizada a 10.01.2023 o interessado BB apenas reconheceu a dívida da credora Banco 1... no montante de € 40.440,81, juntamente com a cabeça-de-casal.

No seu requerimento apresentado a 15.11.2016 a cabeça-de-casal AA relacionou o seguinte passivo:

“VERBA n.o 1

Dívida ao à Banco 1..., actualmente no montante de € 37.918,12 (trinta e sete mil novecentos e dezoito euros e doze cêntimos), resultante de um empréstimo concedido ao casal, referente ao contrato com a conta n.o ...65.

VERBA n.o 2

Dívida ao à Banco 1..., actualmente no montante de € 53.138,42 (cinquenta e três mil cento e trinta oito euros e quarenta e dois cêntimos), resultante de um empréstimo concedido ao casal, referente ao contrato com a conta n.o ...89.

VERBA n.o 3

Dívida a CC no valor global de € 9.806,99 (nove mil oitocentos e seis euros e noventa e nove cêntimos), correspondente ao somatório dos montantes por aquele emprestados à cabeça de casal para serem liquidadas as prestações bancárias vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de credito referidos nas verbas n.o 1 e n.o 2 do passivo (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal) e, assim evitar o incumprimento contratual.

VERBA Nº4

Deve o património comum à cabeça de casal a importância de € 1075,00 (mil e setenta e cinco euros) referente ao pagamento de prestações vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito referidos nas verbas n,o 1 e n.o 2 do passivo (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal, mas liquidado exclusivamente pela cabeça de casal com dinheiro doado a esta pelos pais, em virtude de, desde a separação de facto, o cônjuge marido ter deixado de contribuir para o pagamento das mesmas).”

Com a relação de bens a cabeça-de-casal juntou extrato da conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos contratos de crédito n.º ...65 e ...89, concedidos pela Banco 1..., bem como diversos depósitos realizados em tal conta.

No seu articulado de reclamação contra a relação de bens, apresentado a 15.12.2016, não rejeitando a dívida à Banco 1..., o interessado BB afirmou desconhecer se os valores em causa seriam os atuais, impugnando o passivo sob as verbas n.º 3 e 4.

A cabeça-de-casal manteve o passivo antes relacionado na sua resposta à reclamação contra a relação de bens.

Por requerimento datado de 27.01.2020 a cabeça-de-casal veio afirmar que a Banco 1... intentou ação executiva contra os interessados por incumprimento contratual no pagamento das prestações devidas no âmbito dos contratos de mútuo por ambos contraídos, …logrando alcançar um acordo de regularização de dívidas sem novação, nos seguintes termos:

- a cabeça-de-casal procedeu à entrega do montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) de molde a que a Banco 1... distratasse as suas iniciativas de resolução contratual, e, por conseguinte se procedesse:

• À liquidação integral do empréstimo n.º ...65, no montante de € 41.107,67;

• À reposição do plano financeiro do empréstimo n.º ...89, com regularização de todas as prestações vencidas, que à data, ascendem ao montante de € 3.080,10;

• À regularização de todas as despesas suportadas até ao momento, com a execução judicial;

Foi fixada à data de 19/03/2018, o valor remanescente de capital em dívida no montante de € 50.504,38, acrescido dos respetivos juros, impostos e comissões, proveniente da reposição do plano financeiro do empréstimo n.º ...89.

O montante de € 50.000,00 foi pago pelo pai da cabeça de casal, tendo aquele no dia 12/03/2018 entregue à ora requerente um cheque no valor de € 10.000,00, que a mesma depositou na sua conta e, posteriormente, transferiu para a conta titulada pelo ex-casal e a 19/03/2018 transferiu para a conta do ex-casal a quantia de € 40.000,00.

Mais referiu a cabeça-de-casal que desde a data da apresentação da Relação de Bens até à celebração do acordo com a Banco 1... a cabeça de casal procedeu ao pagamento de prestações bancárias no valor global de € 2.040,49, bem como a título de imposto de selo e juros devedores, a quantia de € 2,82 e a título de seguros associados aos empréstimos concedidos pela Banco 1..., o montante de € 945,18, e depois da celebração do acordo até 31/12/2019, liquidou a título de prestações bancárias o valor de € 3808,88, a título de imposto de selo e comissões a quantia de € 54,98 e a título de seguros associados aos empréstimos concedidos pela Banco 1..., o montante de € 81,90, o que perfaz um total de € 6.934,25 (o qual era da responsabilidade comum e foi pago apenas pela cabeça de casal).

Assim, declara a cabeça-de-casal que foi eliminada a verba um do passivo constante na relação de bens anteriormente apresentada, devido ao pagamento efetuado pelo pai da cabeça de casal no valor de € 50.000,00 e, por conseguinte, a dívida a este, actualmente é superior, como igualmente é superior a dívida do património comum relativamente à cabeça de casal por esta ter efectuado em exclusivo o pagamento dos valores precedentemente indicados, pelo que se apresenta a descrição atualizada das verbas do passivo, reportadas à data de 31/12/2019:

“RELAÇÃO DE BENS COMUNS

II - PASSIVO

VERBA n.º 1

Dívida ao à Banco 1..., à data de 10/12/2019 no montante de € 46.955,24 (quarenta e seis mil novecentos e cinquenta e cinco euros e vinte quatro cêntimos), resultante de um empréstimo concedido ao casal, referente ao contrato com a conta n.º ...89.

VERBA n.º 2

Dívida a CC no valor global de € 59.806,99 (cinquenta e nove mil oitocentos e seis euros e noventa e nove cêntimos), correspondente ao somatório dos montantes por aquele emprestados à cabeça de casal para serem liquidadas as prestações bancárias vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito celebrados pelos ex-cônjuges com a Banco 1... n.º ...65 e n.º ...89 (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal) e, assim, evitar a resolução dos contratos pela Banco 1....

VERBA n.º 3

Deve o património comum à cabeça de casal a importância de € 8009,25 (oito mil e nove euros e vinte cinco cêntimos) referente ao pagamento de prestações vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito celebrados pelos ex-cônjuges com a Banco 1... n.º ...65 e n.º ...89 (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal, mas liquidado exclusivamente pela cabeça de casal com dinheiro doado a esta pelos pais, em virtude de, desde a separação de facto, o cônjuge marido ter deixado de contribuir para o pagamento das mesmas e, após o divorcio, com os rendimentos auferidos a título de contrapartida da prestação da sua actividade laboral).”

Juntou acordo de regularização de dívidas celebrado entre a Banco 1... e a cabeça-de-casal, bem como extratos da conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos contratos de crédito.

Notificado, o interessado veio impugnar o requerimento bem como os documentos apresentados.

Notificado para o efeito, veio o credor CC por requerimento datado de  20.04.2021 reclamar junto do património comum o montante de € 61.532,63, referentes a importâncias mutuadas ao ex-casal:

 € 500,00, por cheque datado de 04.12.2014;

 € 1225,64, por cheque datado de 07.10.2015;

 € 10.000,00, por cheque datado de 12/03/2018, cujo valor veio a ser creditado na conta do ex-casal a 19/03/2018;

 € 40.000,00, por transferência bancária efectuada para a conta do ex-casal, no dia 19/03/2018.

Os valores indicados nas precedentes alíneas c) e d) foram pagos pelo reclamante já na pendência dos presentes autos de inventário, após ter sido instaurada ação executiva pela Banco 1... contra os interessados, por incumprimento contratual no pagamento das prestações devidas no âmbito dos contratos de mútuo por ambos contraídos, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ... - Juiz ..., ... 6477/17...., tendo a cabeça de casal logrado alcançar acordo de regularização de dívidas.

Juntou cópias de cheques, depósitos e transferências.

Notificado, o interessado BB impugnou o requerimento e os documentos apresentados.

Os interessados casaram um com o outro a 22.12.2001, sem convenção antenupcial.

A 15.07.2015 a cabeça-de-casal deu entrada da petição inicial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

Para a ata da tentativa de conciliação datada de 11.11.2015 o interessado BB declarou que desconhecia se as despesas da casa (empréstimo bancário e seguros inerentes) estavam a ser pagas porque ele próprio não as pagava desde maio de 2015.

A 23.02.2016, por sentença transitada em julgado, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre os interessados.

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Afirma o artigo 1106.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Verificação do passivo”:

1 - As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.

2 - Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados.

3 - Se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.

4 - Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior.

5 - As dívidas vencidas, que hajam sido reconhecidas por todos os interessados ou se mostrem judicialmente reconhecidas nos termos do n.º 3, devem ser pagas imediatamente, se o credor exigir o pagamento.

6 - Se não houver na herança dinheiro suficiente e se os interessados não acordarem noutra forma de pagamento imediato, procede-se à venda de bens para esse efeito, designando o juiz os que hão de ser vendidos, quando não haja acordo entre os interessados.

7 - Se o credor quiser receber em pagamento os bens indicados para a venda, são-lhe os mesmos adjudicados pelo preço que se ajustar.

*

Citando PEREIRA DE CARVALHO, LOPES CARDOSO menciona que “em caso de dúvida deve o juiz recusar-se sem hesitação a dar pagamento às dívidas, porque disto se não segue prejuízo algum dos credores, a quem ficam salvas as acções ordinárias, e de contrário se segue infinito prejuízo aos herdeiros, que ficam sujeitos ao procedimento executivo e muitas vezes por dívidas fantásticas” – João António Lopes Cardoso in obra cit., vol. II, 4ª ed., reimpressão, Almedina 2001, 150.

*

No caso concreto, cumpre apreciar as verbas do passivo cujos credores são a cabeça-de-casal e CC, já que a dívida à Banco 1... foi reconhecida por ambos os interessados na conferência datada de 10.01.2023.

Começando pelo credor CC, verifica-se que o mesmo se arroga credor do património comum no montante de € 61.532,63, constituindo este montante a soma das quantias referidas na relação de bens inicialmente apresentada a 15.11.2016 e no requerimento datado de 20.04.2020.

No que respeita ao montante de € 9.806,99 referido na relação de bens apresentada a 15.11.2016, referente a vários empréstimos à cabeça de casal “para serem liquidadas as prestações bancárias vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito referidos nas verbas n.o 1 e n.o 2 do passivo (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal) e, assim evitar o incumprimento contratual”, importa desde logo atentar na prova documental junta.

Com a relação de bens foram juntos diversos depósitos realizados na conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos contratos de crédito n.º ...65 e ...89, concedidos pela Banco 1.... Analisando tais depósitos, atenta a sua disparidade de valores, designadamente desde € 2,00, € 10,00, € 16,00, € 50,00, € 60,00, € 70,00, € 80,00, € 250,00, € 260,00, € 280,00, € 570,00 a € 1.225,64 (que a 20.04.2021 virá a reclamar pela segunda vez), surge efetivamente a dúvida sobre o motivo do depósito, uma vez que a prestação bancária a pagar não tem este tipo de flutuação.

Depois, dos depósitos não consta nenhuma indicação do nome do depositante mas sim, ao que se calcula, duas assinatura diferentes que deverão corresponder à cabeça-de-casal e ao credor CC mas nem sempre se assemelham mesmo entre si.

No que toca ao montante de € 9.806,99 fica o Tribunal sem saber com segurança, quem depositou e a que título para declarar a existência do crédito reclamado sobre o património comum do casal.

Passando agora ao requerimento datado de 20.04.2021, verifica-se pela análise dos documentos juntos, em especial os cheques e comprovativos de transferências, o seguinte:

 Existiu um cheque no montante de € 500,00, datado de 04.12.2014, emitido por CC a favor da cabeça-de-casal em data anterior à produção dos efeitos do divórcio, desconhecendo-se a que título tal cheque foi emitido, podendo constituir uma doação e não um empréstimo;

 Existiu um cheque no montante de € 1225,64, datado de 07.10.2015, emitido por CC a favor da cabeça-de-casal, desconhecendo-se a que título tal cheque foi emitido, podendo constituir uma doação e não um empréstimo;

 Existiu um cheque no montante de € 10.000,00, datado de 12.03.2018, emitido por CC a favor da cabeça-de-casal, depositado na mesma data na conta n.º ...93, da titularidade da cabeça-de-casal, sendo que no dia 19.03.2018 saiu desta conta para a conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos contratos de crédito n.º ...65 e ...89, o mesmo montante de € 10.000,00, desconhecendo-se a que título tal cheque foi emitido, podendo constituir uma doação à cabeça-de-casal e não um empréstimo;

 Existiu uma transferência no montante de € 40.000,00, datada de 19.03.2018, realizada por ordem de CC a favor da conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos contratos de crédito n.º ...65 e ...89, desconhecendo-se a que título tal transferência foi feita, podendo constituir uma doação à cabeça-de-casal e não um empréstimo.

Ao que se calcula, atenta a proximidade das datas, o montante de € 50.000,00 cedido pelo credor CC terá servido para o acordo de regularização de dívidas entre a cabeça-de-casal e a Banco 1..., subscrito a 05.04.2018.

Todavia, tal não emerge sem dúvidas dos documentos. Para além disso, o interessado BB não foi parte no acordo de regularização de dívidas e não obstante a cómoda posição de tudo ignorar e deixar a cabeça-de-casal com o encargo de realizar os pagamentos, não se demonstrou em que medida o valor em dívida alcançou o montante de € 94.692,15, necessitando dos pagamentos referidos no mencionado acordo.

Analisados os documentos concernentes à alegada dívida do património comum, constata-se que os documentos juntos são insuficientes para declarar a existência do crédito reclamado sobre o património comum do casal nos termos em que é reclamado.

Passa-se agora ao invocado crédito da cabeça-de-casal na relação de bens apresentada a 15.11.2016 sobre o património comum, em especial “a importância de € 1075,00 (mil e setenta e cinco euros) referente ao pagamento de prestações vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito referidos nas verbas n,o 1 e n.o 2 do passivo (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal, mas liquidado exclusivamente pela cabeça de casal com dinheiro doado a esta pelos pais, em virtude de, desde a separação de facto, o cônjuge marido ter deixado de contribuir para o pagamento das mesmas).”

Valendo aqui as mesmas considerações supra, atentos os diversos depósitos realizados na conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos contratos de crédito n.º ...65 e ...89, concedidos pela Banco 1..., verifica-se, atenta a sua disparidade de valores, desde € 2,00, € 10,00, € 16,00, € 50,00, € 60,00, € 70,00, € 80,00, € 250,00, € 260,00, € 280,00, € 570,00 a mais de € 1.000,00, surge efetivamente a dúvida sobre o motivo do depósito, uma vez que nem a prestação bancária nem os encargos a pagar têm este tipo de flutuação, desconhecendo-se a que título tais depósitos foram realizados.

Depois, dos depósitos não consta nenhuma indicação do nome do depositante mas sim, ao que se calcula, duas assinatura diferentes que deverão corresponder à cabeça-de-casal e ao credor CC mas nem sempre se assemelham mesmo entre si.

Adicionalmente, constata-se que alguns dos depósitos foram realizados em data anterior à produção dos efeitos do divórcio, apenas podendo a cabeça-de-casal chamar à colação depósitos após 15.07.2015, data a partir da qual passa a haver separação de patrimónios.

Segue-se agora para o crédito reclamado pela cabeça-de-casal no seu requerimento datado de 27.02.2020, onde afirma:

“Deve o património comum à cabeça de casal a importância de € 8009,25 (oito mil e nove euros e vinte cinco cêntimos) referente ao pagamento de prestações vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito celebrados pelos ex-cônjuges com a Banco 1... n.º ...65 e n.º ...89 (mútuos da responsabilidade do dissolvido casal, mas liquidado exclusivamente pela cabeça de casal com dinheiro doado a esta pelos pais, em virtude de, desde a separação de facto, o cônjuge marido ter deixado de contribuir para o pagamento das mesmas e, após o divorcio, com os rendimentos auferidos a título de contrapartida da prestação da sua actividade laboral).”

Para comprovar o pagamento e prestações vencidas e encargos decorrentes no âmbito dos contratos de crédito a cabeça-de-casal juntou extratos da conta n.º ...12 da Banco 1..., titulada pelo interessado BB e associada aos referidos contratos de crédito.

Examinados tais documentos, verifica-se que o provisionamento da conta mencionada para o pagamento da prestação bancária e encargos foi realizada na sua esmagadora maioria, excetuando três transferências da conta da cabeça-de-casal, por depósito de numerário, deixando o Tribunal sem certezas sobre a autoria dos depósitos apenas pela análise dos documentos que são insuficientes para declarar a existência do crédito nos termos reclamados sobre o património comum do casal.

*

Concluindo, em virtude da falta de segurança relativamente à aprovação das verbas do passivo acima referidas, tendo como credores do património comum CC e a cabeça- de-casal AA, nos termos do disposto no art. 1106.º n.º 3 do Cód. Proc. Civil, não se conhece da existência de tal passivo, relegando-se as partes para o recurso aos meios comuns, onde poderão produzir melhor e maior prova, designadamente testemunhal.»

2.

Inconformada recorreu a cabeça de casal.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Com o presente recurso a recorrente pretende a revogação do despacho recorrido do qual resulta o entendimento do Tribunal a quo que é na conferência de interessados que é efetuado o saneamento do processo e verificado/reconhecido o passivo e que não conheceu da existência do passivo, remetendo as partes para o recurso aos meios comuns;

II. Salvo o devido respeito, que é muito, a recorrente não pode concordar com o teor da decisão, por ser contrária às regras legais aplicáveis;

III. Com efeito, o que está em causa no momento processual da conferencia de interessados não é já uma decisão acerca do reconhecimento da existência e do montante do débito – questão a ser consolidada nas fases dos articulados e do saneamento -, mas tão somente uma deliberação acerca da forma prática de satisfação das dívidas.

IV. Por outro lado, o Tribunal a quo absteve-se de decidir, remetendo os interessados para os meios comuns relativamente a tal questão controvertida do passivo, quando se trata de uma questão central do presente processo de inventário, pois,

V. Nos presentes autos está em causa, a partilha dos bens comuns do ex- casal AA e BB, subsequente ao seu divórcio, decretado por sentença proferida a 23.02.2016, transitada em julgado em 08.04.2016, cuja acção havia sido instaurada em 15.07.2015, em que é requerente e cabeça de casal a ora recorrente e requerido, o recorrido, ao qual se aplica o que estiver regulado nas suas disposições especificas e, em tudo o que nestas não estiver regulado, o regime definido nos artigos 1097.º a 1130.º do CPC para o processo de inventário destinado à cessação da comunhão hereditária (cfr. artigo 1084.º, n.º 2);

VI. No âmbito daquele processo e no exercício do cargo de cabeça de casal, a ora recorrente, apresentou a relação de bens na qual descreveu os bens que integram o activo do património comum, bem como relacionou as dívidas, à qual o interessado BB apresentou reclamação;

VII. Com a reclamação à relação de bens, o interessado BB embora não tenha colocado em causa a responsabilidade pelas dívidas emergentes da celebração dos contratos de empréstimo que o casal contraiu com a Banco 1... (Banco 1...), invocou desconhecer se os valores indicados nas verbas 1 e 2 (€ 37.918,12 e € 53.138,42, respetivamente, num total de € 91.056,54) do passivo indicado na relação de bens inicial eram os actuais, e impugnou e rejeitou a existência das dívidas relacionadas sob as verbas 3 e 4 do passivo inicialmente relacionado pela cabeça de casal;

VIII. Sucede que, já na pendência do processo de inventário, por incumprimento do pagamento pontual das prestações devidas no âmbito dos contratos de mútuo contraídos pelo casal, a instituição bancária credora, Banco 1..., instaurou acção executiva contra os ex-cônjuges e a não ter sido a cabeça a casal a diligenciar pela regularização dos valores em dívida, mediante celebração de acordo, os bens do património comum teriam sido vendidos judicialmente;

IX. A referida acção executiva correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ... – Juiz ..., sob o n.º 6477/17...., no âmbito da qual a cabeça de casal logrou alcançar um acordo de regularização de dívidas sem novação, nos seguintes termos: - entrega do montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) de molde a que a Banco 1... distratasse as suas iniciativas de resolução contratual, e, por conseguinte se procedesse:

• À liquidação integral do empréstimo n.º ...65, no montante de € 41.107,67;

• À reposição do plano financeiro do empréstimo n.º ...89, com regularização de todas as prestações vencidas, que à data, ascendem ao montante de € 3.080,10;

• À regularização de todas as despesas suportadas até ao momento, com a execução judicial;

- Fixação, à data de 19/03/2018, do valor remanescente de capital em dívida no montante de € 50.504,38, acrescido dos respetivos juros, impostos e comissões, proveniente da reposição do plano financeiro do empréstimo n.º ...89;

X. O referido montante de € 50.000,00, de molde a alcançar acordo de regularização da dívida, foi pago pelo pai da cabeça de casal, tendo aquele no dia 12/03/2018 entregue a esta um cheque no valor de € 10.000,00, que a mesma depositou na sua conta e, posteriormente, transferiu para a conta titulada pelo ex-casal e a 19/03/2018 transferiu para a conta do ex-casal a quantia de € 40.000,00;

XI. Na sequência daquele acordo, a cabeça de casal veio a 27.01.2020 apresentar requerimento e documentos com vista a actualizar o valor das verbas do passivo à data de 31.12.2019 (requerimento e documentos registados com as referências 84166327, 84166326, 84166325), porquanto o valor indicado na verba um do passivo da relação de bens inicial foi integralmente liquidado e o valor da verba dois do passivo da mesma relação de bens, ter sido reduzido, em consequência do acordo e ainda em virtude das prestações bancárias referentes ao remanescente daquele crédito terem sido integral e exclusivamente pagas pela cabeça de casal;

XII. Nos mesmos autos o credor CC veio reclamar o crédito que se arroga relativamente ao património comum do casal no montante global de € 61.532,63, tendo o interessado BB deduzido oposição;

XIII. Na sequência de ter notificada para o efeito, a Banco 1... veio por requerimento com data de entrada de 14.07.2022, indicar o valor em dívida pelo ex-casal à data de 11.07.2022 - € 41.452,04;

XIV. A 10.01.2023 foi realizada tentativa de conciliação, no âmbito da qual a Banco 1... informou o valor em dívida àquela data - € 40.440,81;

XV. Posteriormente foram os interessados notificados para a realização de uma audiência prévia, embora o despacho tivesse designado data para a realização da conferência de interessados, julgando a recorrente que em acto prévio àquela fosse proferida decisão relativamente ao passivo controvertido;

XVI. O certo é que, aquando da realização daquela diligência – 20.06.2023 - pese embora a recorrente tenha suscitado a questão de ainda não ter sido proferida decisão acerca do reconhecimento da existência e da fixação dos montantes relacionados no passivo, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo, invocando não estar em condições para o fazer naquele momento, decidiu avançar para a conferência de interessados e face à ausência de acordo quanto à adjudicação do bem imóvel integrante do património comum, foi determinada a abertura de licitações;

XVII. Veio apenas após aquela diligência, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo a proferir Despacho, pelo qual decidiu que é na conferência de interessados que é deliberado o passivo (sendo que o entendimento plasmado é que é naquela conferência que se verifica ou conhece das questões controvertidas atinentes ao passivo) e não conhecer da existência dos créditos constantes nas verbas do passivo, relegando as partes para o recurso aos meios comuns;

XVIII. Decisões, com as quais a recorrente não pode concordar, por serem contrárias às regras legais aplicáveis, pelo que apresenta o presente recurso;

XIX. Sendo que este recurso é admissível e deverá ser atribuído efeito suspensivo ao processo nos termos conjugados da alínea b), n.º 2, e n.º 3 do artigo 1123º do CPC.

XX. Com efeito, o regime de recursos aplicável aos autos é o previsto no artigo 1123.º do CPC (cfr. n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 117/2019, de 13de Setembro), tendo o legislador garantido o direito ao recurso  autónomo das decisões interlocutórias e prevenido a uniformidade do regime de recursos.

XXI. O despacho recorrido, ao remeter os interessados para os meios comuns para dirimir, para além do mais, o crédito da Recorrente/cabeça de casal sobre o Interessado BB, correspondente ao que aquela satisfez para além do que lhe competia satisfazer (artigo 1697º, n.º 1, CC) no pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos, conforme infra se explicitará, constitui uma decisão de saneamento e de determinação dos bens a partilhar, pois exclui da partilha todo o passivo comum do casal, com evidente prejuízo para a Recorrente/cabeça de casal nos ulteriores termos do inventário, pois obsta a que aquela efectue, no próprio processo de inventário subsequente a divórcio, a compensação do seu crédito sobre o Interessado BB nas tornas que haveria de pagar a este em face do resultado das licitações.

XXII. É patente que a questão a apreciar e que constitui objecto do presente recurso é susceptível de afectar os ulteriores termos do processo de inventário, nomeadamente o mapa de partilha e a posição creditória ou debitória dos Interessados;

XXIII. Termos em que deverá ser admitido o presente recurso e ser atribuído efeito suspensivo ao processo nos termos conjugados da alínea b), n.º 2, e n.º 3 do art.º 1123º do CPC, conforme foi decidido no Acórdão da Relação de Guimarães de 09.03.2023, sob o Processo n.º 1509/20.5T8VFN-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/trg.

XXIV. Ora, ao contrário do que foi decidido no despacho recorrido (onde se lê logo no primeiro parágrafo “De acordo com o disposto no artigo 1111.º, n.º 3 do Cod. Proc. Civil, é finalidade da conferência de interessados, também a deliberação sobre o passivo”), é antes da conferência de interessados que deve ser efetuado o saneamento total do processo, com vista a deixar resolvidas, em momento prévio àquela conferência, todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, por forma a que não ocorra perturbação dos interessados na composição dos quinhões e nas eventuais licitações (cfr artigo 1110.º, n.º 1, al. a), do CPC);

XXV. Pois, só efetuado o saneamento de todas as questões ou matérias litigiosas suscetíveis de influir na partilha é que estarão reunidas todas as condições para definir o património a partilhar, incluindo o reconhecimento do passivo, sendo que, no caso especifico do processo de inventário que se destina a pôr fim à comunhão de bens conjugal, o regime processual tem de ser interpretado em conjugação com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos artigos 1689.º e 1697.º do Código Civil;

XXVI. E no que respeita, ao regime processual, a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, trouxe inovações, no modelo procedimental dos processos de inventário cuja tramitação corre nos tribunais judiciais, que parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, sendo a primeira a fase dos articulados, na qual se inclui a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo (a qual relativamente ao regime anterior é antecipada relativamente ao momento da conferência de interessados) e a segunda a do saneamento, destinada a serem tomadas todas as decisões relativas às questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e só após a resolução destas questões, se inicia a fase da partilha, que se reconduz às diligências e actos que integram a conferência de interessados.

XXVII. Em relação ao regime anterior, destaca-se, pois que no diz respeito à matéria atinente ao passivo, que a operação de aprovação/impugnação do passivo relacionado ou reclamado foi transferida e antecipada para a fase da oposição, e não no decurso da conferência de interessados, de modo a que não existam entraves ao andamento desta conferência, pois a marcação desta pressupõe que já tivessem sido dirimidas todas as questões que condicionam a partilha na fase do saneamento que a precede;

XXVIII. No regime actual, resulta que, ao realizar-se a conferência de interessados, a verificação e o reconhecimento do passivo constituem tarefas já concluídas no processo, ficando apenas relegado para o momento da conferência, já não a aprovação do passivo, mas somente a deliberação sobre a forma prática da satisfação das dívidas e o momento do cumprimento dos encargos anteriormente verificados (artigo 1111.º, n.º 3).

XXIX. O novo modelo procedimental antecipou o momento da controvérsia acerca da verificação do passivo, precisamente, para que a conferência de interessados se destinasse apenas às tarefas de realização e concretização da partilha;

XXX. Ou seja, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro quando a interpretou o n.º 3 do artigo 1111.º do CPC, no sentido que era na conferência de interessados que deveria decidir acerca do reconhecimento da existência e do montante das dívidas relacionadas, quando, na verdade, esta decisão a devia preceder (sendo certo que, conforme resulta do que ficou supra exposto, mesmo no regime anterior não deveria prosseguir com a conferência de interessados sem que tivesse tomado tal decisão);

XXXI. Atento o exposto, desconhece-se qual o fundamento jurídico em que Tribunal a quo se baseou para deixar para a conferência de interessados a decisão relativa à verificação/reconhecimento do passivo (uma vez que nesta fase tal questão já deveria ter sido decidida para que os interessados pudessem deliberar sobre o pagamento das dívidas), tendo decidido pela realização da mesma e aberta a licitação dos interessados sem que tivesse proferido aquela decisão;

XXXII. Pelo que, deverão ser anulados todos os atos praticados que, de acordo com o regime processual legalmente previsto, deveriam ser realizados apenas após o saneamento do processo, onde se inclui aquela decisão;

XXXIII. Mas para além disso, entende a Recorrente que na decisão (“extemporânea”) que veio a proferir no Despacho recorrido, mediante o qual remeteu os interessados para os meios comuns para discutir quem pagou o passivo da responsabilidade de ambos os cônjuges, não reconhecendo o direito de crédito da cabeça de casal, nem do credor CC relativamente ao pagamento das dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges emergentes dos contratos de empréstimo que haviam contraído com a Banco 1..., salvo o devido respeito, o Tribunal a quo olvidou dos documentos e da posição das partes assumida nos autos, dos quais resulta demonstrado que o valor das dívidas junto da Banco 1... (Banco 1...), decorrentes dos contratos de empréstimo contraídos pelo casal à data da produção do efeitos do divórcio quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges - data da entrada da Petição Inicial do Divórcio – 15.07.2015 – no montante global de € 95.612,00 (€ 39525,40 + € 55.960,57) e à data da apresentação de relação de bens, no montante global de € 91.056,54 (€37.918,12 + € 53.138,42) era muito superior, relativamente ao valor que a Banco 1... veio indicar em dívida à data de 11.07.2022 (€ 41.452,04) e à data de 10.01.2023 (€ 40.441,81), sendo que o interessado BB não colocou em causa a responsabilidade do seu pagamento, tendo apenas tomado a posição conveniente de não saber e nem de procurar saber os valores, não obstante a responsabilidade assumida, com a celebração daqueles contratos;

XXXIV. Com efeito, apresentada a relação de bens inicial, no que respeita às dividas emergentes dos contratos de crédito contraídos com a Banco 1..., o interessado BB não colocou em causa a sua existência, nem a sua responsabilidade, alegou apenas “não sabendo se os valores indicados nas verbas 1 e 2 são os actuais; e que “impugna-se e rejeita-se o pretens passivo sob a verba n.º 3 e n.º 4” (sendo que tinha assumido, de forma expressa, anteriormente no âmbito do processo de divórcio que não pagava as prestações bancárias relacionadas com os contratos de empréstimo desde Maio de 2015 – vide requerimento e documentos juntos aos autos registados com as referências 84166390, 84166389, 84166388, 84166387, 84166386 e 84166385);

XXXV. É pacifico que o ex-casal na pendência do casamento contraíram os créditos titulados pelos contratos de crédito identificados nas verbas 1 e 2 da relação de bens inicial, apresentada em 15.11.2016, e, portanto, constituem dívidas comuns;

XXXVI. E tendo sido o interessado BB interveniente nos contratos, assumindo a qualidade de mutuário e, portanto, a responsabilidade no seu pagamento, e mantendo-se titular da conta bancária que se encontrava associada àqueles empréstimos, impunha-se-lhe o ónus de verificar e liquidar o valor das prestações bancárias e/ou amortizar os empréstimos para deles ficar exonerado junto da instituição bancária e não apenas a cabeça de casal;

XXXVII. Ora, não se pode olvidar que se é o próprio interessado BB assume a posição que não sabe e não se preocupa em confirmar os valores, cuja responsabilidade de pagamento assumiu quando contraiu os créditos junto da Banco 1..., mas não alega que tenha efectuado o pagamento das prestações que se venceram após a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges (ao invés, afirma expressamente que desde Maio de 2015 não procedeu a qualquer pagamento) e se dos documentos (não impugnados) apresentados com a relação de bens, constam os valores em dívida à data da separação de € 39.523,20 e € 55960,57 (num total de € 95.612,00) e à data da apresentação da relação de bens de € 37.918,12 e € 53.138,42 (num total de € 91.056,54), e se a Banco 1... declara que à data de 11.07.2022 o valor em dívida era de € 41.452,04 e à data de 10.01.2023 se cifra em € 40.440,81, verifica-se que houve uma redução (sem prejuízo do aumento dos encargos e despesas que decorreram do processo de execução) significativa do passivo junto desta instituição bancária e que tal não ocorreu à custa do património comum.

XXXVIII. Acresce que, na pendência do processo de inventário, em consequência do incumprimento do pagamento pontual das prestações bancárias, foi instaurada acção executiva contra os interessados, na sequência da qual, a cabeça de casal (porque mais uma vez, o interessado adoptou a postura de nada querer saber) negociou com a instituição bancária os termos para uma resolução extrajudicial do litigio, celebrando o acordo que juntou aos autos com o requerimento datado de 27.01.2020 (cfr. requerimento e documentos registados com as referências n.os 84166327, 84166326 e 84166325), sendo que parte do valor utilizado para pagamento da dívida foi emprestado pelo pai da cabeça de casal, conforme também resulta dos documentos juntos aos autos;

XXXIX. Sendo certo que, mais uma vez, o interessado BB nunca veio alegar ter pago alguma quantia relativamente aos empréstimos contraídos junto da Banco 1..., cuja responsabilidade não declinou;

XL. Os documentos juntos pela recorrente e pelo credor CC quanto ao pagamento do passivo comum comprovam que foram aqueles e não o interessado BB que procedeu à liquidação dos empréstimos e despesas decorrentes do incumprimento contratual, sendo que, mantendo-se os bens descritos no activo comum, resulta evidente que o passivo comum não foi efectuado à custa dos bens comuns do casal;

XLI. Pelo que, contrariamente ao defendido no despacho recorrido, não podia o Tribunal a quo olvidar o teor dos documentos juntos e a posição das partes ao longo do processo, e determinar a remessa dos Interessados para os meios comuns só porque o Interessado BB alega desconhecer valores e de não saber quem pagou as dívidas comuns, sendo que assume não o ter feito e que de forma evidente se verifica que redução do passivo junto da Banco 1... não foi à custa dos bens comuns (que se mantiveram inalteráveis ao longo do processo);

XLII. Salvo o devido respeito, a questão em causa, de saber quem pagou o passivo comum, não justifica a remessa dos Interessados para os meios comuns, atenta a prova já junta aos autos quanto a essa matéria e subsistido dúvidas, seria suficiente que o Tribunal ordenasse instrução probatória suplementar, designadamente oficiando a instituição bancária indicada como credora para informar quem pagou tais dívidas e da origem dos fundos utilizados.

XLIII. Com efeito, o inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respectiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. artigos 1082.º, al. d) e 1133.º, n.º 1.º do Código de Processo Civil e artigos 1688.º e 1789.º Código Civil).

XLIV. Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as excepções previstas nos artigos 1719.º e 1790.º do Código Civil), tem-se como objectivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro.

XLV. O processo especial de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal.

XLVI. As compensações dão-se só nos regimes de comunhão e verificam-se quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges: quando um destes patrimónios (um património próprio ou o património comum) responde por dívidas de outro património (o comum, se o que respondeu foi um património próprio, ou um património próprio se o que respondeu foi o património comum).

Exemplo mais comum é o do caso em que um dos cônjuges responde por dívidas que a ambos responsabilizava: este tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente nameação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º nº 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil).

XLVII. É pacífico que nos termos do artigo 1691.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos os cônjuges. Se um dos cônjuges suporta essa dívida tem direito a ver reposto no seu património o que pagou em excesso em benefício do património comum; é uma típica dívida de compensação.

XLVIII. Nestes casos, em que se impõe uma compensação stricto sensu, mesmo que o pagamento ocorra depois da data em que a terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida tenha sidocontraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser atendida no inventário, sem necessidade de recorrer a acção autónoma.

(neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2017 no processo 5208/14.9T8ALM-B.L1);

XLIX. A partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro e regulou a forma como são satisfeitos: o nº 3 do artigo 1689º estabelece que são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; na ausência ou insuficiência de bens comuns respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

L. Releva ainda o artigo 1697º, nº 1, do CC, segundo o qual,quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo quehaja satisfeito além do que lhe competia cumprir. Portanto, um tal  crédito deve ser pago nos termos regulados no nº 3 do artigo 1689º do CC.

LI. Por conseguinte, na partilha, após a separação dos bens próprios, segue- se outra operação que se traduz na liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges;

LII. O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, é também o meio adequado e legalmente previsto para se proceder à liquidação efectiva e definitiva das responsabilidades entre os ex-cônjuges, sendo eles devedores entre si e deles para com com terceiros.

LIII. Pois, só com a conferência das dívidas à massa comum será possível apurar se há património comum e por ele dar pagamento aos credores, e é a tal que se destina e presta o processo de inventário.

LIV. No caso dos autos, tendo o casamento sido sujeito ao regime da comunhão de adquiridos, a partilha é feita em consonância com o aludido regime e as normas legais que o norteiam, sendo que, nos termos do artigo 1730º, nº 1, os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão.

LV. Os Interessados aceitaram, de forma pacífica, que o passivo inicialmente relacionado sob as verbas n.º 1 e 2 da relação de bens constituem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges (o interessado BB apenas alegou desconhecer os valores atuais em dívida, não tendo contudo impugnado os documentos emitidos pela instituição bancária com os valores em dívida em 2015 (€ 95.612,00) eem 2016 (€ 91.056,54) e tendo aceite os valores indicados pela instituição bancária relativamente ao remanescente em dívida em 2022  e em 2023, respectivamente € 41.452,04 e € 40.440,81;

LVI. Ora, tendo sido parte dessas dívidas pagas por um dos cônjuges - no caso a Recorrente (e também por um terceiro – no caso o pai da cabeça decasal, credor reclamante) - após a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre eles, o que as solveu parcialmente, tornou-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, sendo este crédito exigível no momento da partilha dos bens do casal e, consequentemente, pago pela meação do cônjuge devedor no património comum, nos termos do disposto no citado artigo 1689º, n.º 3, do CC.

LVII. Destarte, o pagamento de dívidas comuns do casal por um dos cônjuges, com recurso a bens próprios seus, posteriormente à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, dá origem a um crédito do cônjuge pagador sobre o outro cônjuge, que deve ser relacionado no processo de inventário instaurado em consequência do divórcio.

LVIII. A partilha de bens subsequente ao divórcio pressupõe a liquidação do património comum, com a contabilização de dívidas a terceiros e cálculo de compensações, partilhando-se depois apenas o activo comum líquido.

LIX. Por conseguinte, na parte que releva para o objecto deste recurso, no inventário competirá relacionar o passivo, desde logo, o que onera o património comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges (a apurar nos termos dos arts. 1691º, 1693º, nº 2, e 1694º,nºs 1 e 2, do CCiv.), mas também as dívidas do património comum a cada um dos cônjuges e, segundo a maioria da jurisprudência e da doutrina, os créditos de compensação, dos cônjuges entre si, emergentes do pagamento de dívidas comuns com bens próprios.

LX. O conteúdo do processo de inventário não deve ser determinado por um eventual arquétipo técnico desligado da realidade, mas sim, norteado pelas normas que sobre o mesmo, directa ou reflexamente, dispõem, conformado em ordem a satisfazer os direitos e interesses das pessoas que nele são parte.

LXI. O objectivo que preside a todas as operações de liquidação e partilha do património comum é conseguir um efectivo equilíbrio no rateio final, o que se consegue se o património individual de cada um dos cônjuges não ficar nem beneficiado nem prejudicado em relação ao do outro.

LXII. Por outro lado, há ainda um objectivo complementar, qual seja o de procurar resolver todas as questões atinentes ao património comum no inventário, para que os interessados não se vejam posteriormente na necessidade de recorrer a tribunal com a finalidade de sanar conflitos que nem sequer se suscitariam se o inventário tivesse sido exaustivo e completo.

LXIII. É que se verificará no caso concreto se se mantiver o despacho recorrido, pois em termos práticos, ao remeter os interessados para os meios comuns para dirimir o crédito emergente do pagamento com bens próprios de dívidas comuns, transverterá a Recorrente em devedora de tornas em montante muito superior ao que seria devido se fosse atendido o passivo peticionado e impondo-lhe o ónus de instaurar nova acção judicial para dirimir uma questão resolúvel neste inventário.

LXIV. Não é curial que, se um dos cônjuges pagou dívidas da responsabilidade ambos, a liquidação das dívidas origine um problema somente daquele que as satisfez e que este se veja na contingência de diligenciar pelo respectivo ressarcimento fora do âmbito do inventário, através de um outro processo judicial, penalizando quem cumpriu com as suas obrigações e deveres, e premiando quem não os cumpriu? É esta a situação que, tal e qual, se verifica nos autos por força da prolação do despacho recorrido.

LXV. No caso dos autos o activo relacionado só existe porque o casal, na pendência do casamento, contraiu passivo, que investiu na construção do imóvel e na aquisição da maioria do mobiliário relacionado (o qual teria sido certamente vendido no âmbito do processo de execução que foi instaurado em consequência do incumprimento do pagamento das prestações bancárias, contra ambos os cônjuges, o que a recorrente conseguiu evitar por ter encetado negociações e obtido acordo com a instituição bancária para resolução extrajudicial, pagando parcialmente a dívida vencida com meios próprios e com o dinheiro emprestado pelo pai);

LXVI. Ora, tendo a Recorrente liquidado grande parte do passivo comum (tendo apenas ficado em dívida junto da Banco 1... o montante de € 40.440,81 à data de 10.01.2023), o interessado BB, terá direito a metade do valor total do activo, o que é profundamente injusto, tendo de haver, no próprio processo de inventário, uma compensação entre o património comum e o património do que pagou a dívida.

LXVII. O crédito do cônjuge que pagou uma dívida comum não é uma questão estranha à matéria que se discute no inventário. É um assunto que releva para efeitos de partilha do património comum, pois, aquando desta o referido crédito deve ser considerado para ser satisfeito pela meação do cônjuge devedor.

LXVIII. E, como no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles, é adequado, com vista à oportuna dilucidação de tal questão, que o crédito seja relacionado, o que permite estabilizar o objecto da partilha, alcançar o mencionado objectivo e garantir uma partilha completa.

LXIX. A remessa das partes para os meios comuns deve ter natureza excepcional, supletiva ou subsidiária, pois no processo de inventário devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa (v.g. neste sentido o que é afirmado no citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.03.2023 (Processo n.º 1509/20.5T8VFN-A.G1), a propósito de uma situação idêntica à dos autos;

LXX. No entendimento da recorrente, encontram-se nos autos documentos que comprovam que foi a cabeça de casal (e ainda o credor reclamante CC) que pagou, após o divórcio, parte das dívidas comuns relacionadas com bens próprios, tendo por isso direito a obter o pagamento desse crédito sobre o outro cônjuge no momento da partilha através da meação deste no património comum, contudo,

LXXI. Caso se entenda que não resulta suficientemente comprovado nos autos que foi a Recorrente (para além do credor reclamante CC) quem pagou grande parte do passivo que responsabilizava ambos os Interessados, com recurso a bens próprios, tendo por isso direito a ser reembolsada, nos presentes autos de inventário, de metade do montante global de tais pagamentos, havendo um crédito de compensação a seu favor, e que é necessária produção de prova suplementar relativamente ao crédito da recorrente por ter pago para além do que lhe competia pagar no passivo comum, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a realização de diligências probatórias complementares e junção dos elementos que se revelem necessários à boa decisão da causa, com inerente anulação e repetição de todos os actos que sejam afectados pela procedência do recurso.

LXXII. Por erro de interpretação e/ou aplicação a douta decisão proferida, ora recorrida, não é a mais consentânea com o direito aplicável, mostrando- se, salvo o devido respeito e, melhor entendimento, violado o estatuído nos artigos 1688.º a 1697.º e 1730.º , todos do C.C., e nos artigos 1106.º, 1107.º, 1110.º, 1111.º, 1093.º todos do CPC.

Contra alegou o interessado pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1ª. Não se, verificam os erros de julgamento da matéria de facto apontados pela Recorrente no recurso interposto.

2ª. Os meios de prova concretamente indicados pela Recorrente foram sindicados e, sujeito a escrutínio pelo Tribunal recorrido e, são contrários à interpretação pretendida conferir pela Recorrente.

3ª Não existe fundamento para a pretendida revogação do despacho recorrido em virtude da complexidade das questões controvertidas e, da prova oferecida não permitir a decisão definitiva, certa e, segura nos presentes autos sobre tais questões. Assim,

4ª. O Tribunal recorrido fez, uma correta aplicação da mens legis e, dos critérios da distribuição do ónus da prova sobre os factos constitutivos dos direitos de crédito invocados e, do regime processual do processo de inventário quanto, ao passivo não aprovado por todos os Interessados previsto, na conjugação dos artigos 1106º e 1111º do Código de Processo Civil.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª – Extemporaneidade do despacho que se pronunciou sobre o passivo após a  conferência de interessados e anulação dos atos praticados  antes que a decisão sobre o passivo  tivesse sido proferida em sede de saneamento.

 2ª – Ilegalidade da decisão na parte em que remeteu as partes para os meios comuns no que tange à existência das verbas do passivo tendo como credores do património comum CC e a cabeça- de-casal.

4.

Apreciando.

4.1.

Primeira questão.

Alega a recorrente que a decisão  recorrida sobre a (in)existência do passivo foi proferida já após a conferência de interessados, mostrando-se extemporânea pois que deveria ter sido prolatada na fase dos articulados do inventário, ou, no máximo, em sede de saneamento, nos termos do artº 1110º nº1 al. a) do CPC.

E na verdade, em tese e tendencialmente, assim é (deve ser).

Efetivamente, e como invoca a insurgente, o modelo atual do processo de inventário define claramente fases autonomizadas no âmbito das quais se devem praticar certos atos processuais atinentes ao fito último do mesmo que é a consecução de uma partilha materialmente  equilibrada, equitativa e justa.

Tal decorre dos artºs 1097º e sgs do CPC, nos quais se epigrafam  as diversas fases processuais do inventário.

O artº 1097º reporta-se à fase inicial a qual engloba a apresentação da relação de bens pelo cabeça de casal e as citações dos interessados.

O artº 1104º refere-se à fase da oposição, impugnação e reclamação, designadamente quanto ao passivo – artº 1106º.

O artº 1109º estatui quanto à  fase da audiência prévia,  a convocar pelo juiz se assim o entender, e no pressuposto de que nela os interessados possam obter  acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão.

O artº 1110º prescreve quanto à fase do saneamento do processo, devendo liminarmente o juiz resolver, depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar e, depois, profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados. Sendo que, seguidamente, designa o dia para a realização da conferência de interessados.

E seguindo-se fases posteriores, das quais releva acrescidamente  a fase  de elaboração do mapa da partilha  com prolação da sentença homologatória da mesma (artº 1120º).

Certo é que, em abono da auto responsabilidade, da economia de meios, da celeridade e da preclusão, os atos processuais previstos para uma determinada fase, apenas no seu âmbito devem ser praticados.

Mas esta regra não é inelutável e absoluta, podendo, por motivo atendível, serem praticados atos antes ou depois da fase por via de regra a eles atinentes.

Depois, tal regra vale apenas, ou vale essencialmente, para as partes interessadas; que não para, ou não tanto para, o juiz.

Efetivamente, a finalidade aludida de obtenção de uma partilha justa concede ao julgador algum grau de atuação segundo critérios não estritamente legais, mas antes imbuídos de algum jaez de oportunidade e conveniência, o que, tudo sensata e razoavelmente ponderado, pode conceder-lhe o poder/dever de decidir antes ou para além da fase em que tal decisão normalmente deveria ter sido prolatada.

No caso vertente assim tem de ser entendido.

Na verdade, e como pugna a recorrente, a justa composição deste pleito passa necessáriamente  por perscrutar e decidir sobre os créditos reclamados por si própria e pelo seu pai.

Por conseguinte, esta decisão tem de emergir, sendo que vale aqui o provérbio de que «mais vale tarde do que nunca».

Depois, esta pretensão é contraditória nos seus próprios termos: se a recorrente não conseguiu que o julgador tenha emitido pronúncia sobre os créditos na fase devida do saneamento  -  sendo que, pelo menos até certo ponto era seu ónus diligenciar que, perante o silêncio do Sr. Juiz quanto a esta questão, ele impulsionasse/requeresse os/nos autos para que pronúncia fosse emitida -  precludido ficou o seu direito de em fase posterior exigir decisão nessa matéria.

Por aqui se alcança que, afinal, as coisas têm de ser sensata e razoavelmente perspetivadas, o que, muitas vezes, não se compadece com uma visão estanque, tabicada, estática e formalista do ritualismo processual.

Por outro lado, não é de atender a pretensão da recorrente de ver anulados atos que, no seu entendimento, apenas deveriam ter sido praticados após a decisão sobre os créditos.

Desde logo porque, em função do supra aludido relativamente à não prolação de  decisão na fase de saneamento sem que ela, em tal fase e atempadamente,  adrede e formalmente, se tenha insurgido, precludido ficou o seu direito de, agora, em fase posterior, vir invocar tal omissão, com as inerentes consequências de anulação de atos praticados subsequentemente.

Depois porque, mesmo que, sem decisão sobre os créditos, o processo prossiga com os atos processuais ulteriormente previstos, naturalmente que até à sentença homologatória da partilha - e até depois dela: cfr. incidentes de emenda e anulação dos artºs 1126º e 1127º do CPC – os elementos de facto que entretanto se venham a revelar no processo e que possam ter influência na mesma – vg.,  e in casu, quanto à (in)existência dos créditos alegados -, naturalmente que nela devem ser atendidos, procedendo-se à  sua alteração ou efetivando-se até uma nova partilha – cfr. artº 1125º do CPC.

Note-se que o princípio ou regra da não afetação da tramitação do processo de inventário em função das vicissitudes que nele possam ocorrer, dimana de outras normas, como seja a do artº 1093º do CPC, o qual estatui que, mesmo quando os interessados sejam remetidos para os meios comuns para apreciação de uma certa matéria, a instância não se suspende, a menos que o juiz entenda que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.

4.2.

Segunda questão.

Considerando os relevantes princípios da concentração dos atos processuais, da economia de meios e da celeridade, a regra basilar é que em qualquer processo,  todas as questões e pretensões relevantes que nele se coloquem, devem outrossim nele, e apenas nele, serem dilucidadas e decididas.

Esta regra naturalmente que se aplica no de inventário para separação de meações.

Assim:

«I - A prossecução da regra de que a partilha de bens comuns deve ser efetuada de forma justa e equitativa passa também pela observação da regra de que a resolução de todas as questões tenha lugar no processo de inventário devendo a partilha realizar-se de uma só vez.» -  Ac. RP de 08.09.2020, p. 3744/06.0TBVCD-D.P1 in dgsi.pt, como os infra citados.

Porém, no processo de inventário esta regra é afastada/atenuada, pelo disposto no artº 1903º do CPC, o qual estatui:

Artigo 1093.º

Outras questões prejudiciais

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

Temos assim que as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns, reunidos que estejam dois requisitos:

i) a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha;

ii) a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

Sendo este preceito de cariz excecional por reporte à aludida regra geral, ele tem de ser interpretado algo restritivamente, ou seja, apenas se inequivocamente presentes se encontrarem os seus pressupostos; isto sob pena de se generalizar/banalizar a sua aplicação, com prejuízo dos aludidos princípios.

De notar que o jaez incidental de apreciação da questão não invalida esta interpretação.

Na verdade, nos incidentes da instância a prova apenas é limitada quantitativamente, que não qualitativamente, podendo, nesta vertente, serem apreciados e valorados todos os meios de prova em direito admissíveis – cfr, neste sentido, o Ac. da  RP 27.10.2022, p. 432/21.0T8ETR-A.P1.

Destarte, a jurisprudência tem entendido que:

«…os interessados só devem ser remetidos para os meios comuns quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.

III - Estando reconhecido que a Requerida, desde que lhe foi entregue a casa de morada da família (em data determinada), tem vindo a pagar, sem a participação do Requerente, as prestações de cinco empréstimos que o casal contraiu na pendência do casamento, não se justifica remeter os ex-cônjuges (interessados no inventário) para os meios comuns para determinar o valor das atualizações daqueles pagamentos, por serem desde logo elementos que, em regra, são facilmente obtidos, com rigor e credibilidade, junto da entidade financeira.» - Ac. RP sup. cit.; Ac. RG  de 15.11.2012, p. 204-A/2001.G1

 e Ac. RG de 09.03.2023, p. 1509/20.5T8VNF-A.G1, cit. pela recorrente.

No caso vertente.

Desde logo, tratando-se de questão – (in)existência de créditos sobre o património comum -  que que respeita e contende com a definição de direitos de interessados diretos na partilha, falece o primeiro requisito do artº 1093º.

Depois outrossim não se entende estar presente o segundo requisito.

A complexidade da matéria de facto inexiste, pois que ela está perfeitamente definida/delimitada, qual seja apreciar e decidir se tais créditos existem ou não existem.

O que, nuclearmente, passa pela simples e singela prova se os valores dos créditos invocados foram efetivamente suportados pelos credores reclamantes em benefício de património comum do  ex casal.

A redução das garantias das partes também não se antolha.

Desde logo porque elas próprias não se queixaram de tal  redução.

Depois porque, como se disse, no inventário podem ser produzidos todos os meios de prova.

Aliás  em boa medida já foram produzidos, tendo sido carreados para os autos bastos elementos probatórios, máxime documentais.

Nada inculca que, em processo comum, outros acrescidos elementos probatórios relevantes pudessem ser supervenientemente juntos, até porque os factos probandos são pretéritos.

Destarte, apenas urge apreciar a prova apresentada, como aliás o Sr. Juiz já começou a apreciar.

De tal apreciação dimana que o Julgador, liminar e indiciariamente, está convencido que as verbas reclamadas foram suportadas pelos credores reclamantes, entendendo, porém, que inexistem nos autos elementos suficientes para de tal se convencer em definitivo, ao menos dentro da álea em direito probatório concedida.

Mas se assim é, então, e como expende a recorrente, terá de convidar os interessados a apresentarem prova complementar.

Tal pode ser feito nos presentes autos sem os protelar intoleravelmente e sem afetar a garantia de as partes poderem apresentar a prova que entenderem.

Sendo de notar que o interessado BB não nega, adrede e convictamente,  a existência dos créditos, apenas assumindo a cómoda posição de alegar o desconhecimento dos mesmos.

O que, em sede de apreciação probatória também deve ser considerado.

 E, na vertente que ora no ocupa, outrossim releva, pois que indicia que inexiste um verdadeiro e abrangente conflito quanto a tal matéria que se repercutiria numa postura acrescidamente litigante e complexizante dos presentes autos, e, assim, mais justificativa da remessa para os meios comuns.

E, destarte, inexistindo necessidade de as partes serem remetidas para processo autónomo, no qual, e perante os elementos de prova já produzidos, muito provavelmente apreciação probatória diferenciada não seria efetivada.

Em função do que a remessa para os meios comuns se revelaria infrutífera para a boa decisão da causa, qual seja a consecução da uma partilha justa e equitativa, e antes acarretaria mais trabalho, despesa e morosidade.

Procede, nesta vertente, o recurso.

(…)

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar  a sentença e ordenar a apreciação da questão decidenda nesta sede de inventário, com apreciação da prova produzida e de outra que as partes, por si ou a convite do Julgador, vierem a juntar aos autos.

Custas recursivas pelo recorrido.

Coimbra, 2024.02.06.