Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3311/21.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ABUSO DO DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
QUESTÃO NOVA
OMISSÃO DA ALEGAÇÃO DE FACTOS
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º E 2088.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 660.º DO CPC
Sumário: O abuso do direito (cf. art. 334º do C.Civil) pode ser objeto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal ainda que a sua invocação constitua questão nova, mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso do direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº3311/21.8T8LRA.C1[1]

Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[2]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA, melhor identificado no processo demanda BB e CC também estes melhor identificados no processo.

Pede sejam os RR. condenados a restituir à herança aberta por óbito do pai do A. e da R. mulher, determinado imóvel que tais RR. vêm usando sem título legítimo para o efeito, ou sem que o cabeça de casal de tal herança e aqui A. o tenha autorizado, nada pagando por aquela utilização e prejudicando assim a herança ainda indivisa.

Mais peticiona a condenação dos RR. ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega de tal imóvel.

                                                           *

Citados, os RR. contestaram arguindo apenas e só a questão da litispendência.

                                                           *

No exercício do contraditório, o A. pugnou pela correspondente improcedência.

*

Na imediata sequência, foi proferido um despacho saneador através do qual, para além da afirmação tabelar dos demais pressupostos processuais, se tomou conhecimento da dita exceção da litispendência, relativamente ao que se declarou a sua improcedência, após o que se entendeu que o estado do processo permitia proceder à decisão de mérito, sem necessidade de demais diligências probatórias, o que se passou a fazer, deste modo sendo elaborado um Relatório da situação, seguido da enunciação dos Factos Provados e correspondente Motivação, sendo que em termos de Direito se perfilhou o entendimento de que era de dar procedência à ação, com exceção da parte relativa à sanção pecuniária compulsória, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«IV - DECISÃO

Pelo exposto, na procedência parcial desta acção decido:

a) condenar os RR. BB e CC, a restituírem ao A. AA - este na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de DD e EE - , após trânsito em julgado desta sentença, livre de pessoas e bens, o “andar ou divisão com utilização independente: ..., correspondente ao primeiro andar, lado esquerdo, do prédio sito em Rua ..., ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...32/urbano.

b) Absolver os RR. do pagamento de qualquer sanção pecuniária compulsória.

c) Custas a cargo dos RR em 90% e em 10% a cargo do A. (artigo 527º nº1 do CPC)

Registe e Notifique. »

                                                           *

               Inconformada com essa sentença, apresentou os RR. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1ª - O ónus da alegação dos factos cabe a Autor à luz do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil;

2ª - Os factos alegados na douta petição inicial e dados como provados no douto despacho 'sub judice' não são suficientes para fundamentar a condenação dos aqui Recorrentes, nos termos em que o foi;

3º - A douta petição inicial afigura-se-nos deficiente: sem que deixe de aludir ao pedido e à causa de pedir, contem insuficiências e imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto;

4ª – Com efeito, a douta p.i. é totalmente omissa relativamente à relevante questão do espaço temporal em que alega terem os Réus vindo a utilizar o “prédio urbano” em causa, onde “pernoitam, fazem as suas refeições e centram toda a sua vida familiar”, “desde data não concretizada”;

5ª – O que a fere do vício da nulidade, ainda invocável – art.º 199.º, n.º 3 do CPC;

6ª - A boa hermêneutica não permite concluir, com a proximidade que a lei exige, por quanto tempo a descrita “utilização do prédio urbano” por parte dos Réus perdurou – apenas parece apontar para a longevidade de tal situação, quiçá de décadas;

7ª – Questão está cuja relevância jurídica é impossível escamotear, tendo em vista, quer a figura da usucapião, quer o sacramental direito à habitação, constitucionalmente consagrado – art.º 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

8ª – O Autor, ora Recorrido não podia verosimilmente desconhecer, sequer por aproximação, o período temporal ao longo do qual os ora Recorrentes, ininterruptamente habitaram o 1º andar esquerdo do referido prédio, devidamente autorizados pelos seu progenitores, nem, menos ainda, que, a 'de cujus', EE, mãe dele, Autor/Recorrido e dela, Ré/Recorrente, falecida em .../.../2021, deixou testamento, outorgado no dia 30 de Outubro de 2014, no Cartório Notarial ..., de ..., através do qual estabelece que “institui herdeira da quota disponível a sua filha BB”;

9ª - Assim sendo, há de concluir-se, face número de herdeiros, todos filhos dos 'de cujus' e ao regido nos art.ºs 2.139.º, n.º 2 e 2.159.º, n.º 2, ambos do Código Civil, que o quinhão que cabe à aqui Recorrente aproximar-se-á de 1/3 (quota disponível) do acervo hereditário, acrescido de 1/5 dos restantes 2/3 (legítima de cada um dos 5 filhos);

10ª - Caberão, pois, na partilha, à aqui Recorrente, 7/15 (1/3 + 1/5 dos remanescentes 2/3), quase, quase metade da totalidade do acervo hereditário;

11ª - Se supusermos – como, pese a sua manifesta obscuridade, o deixa fortemente indiciado a própria petição inicial), que o valor da fracção habitada pelos Recorrentes há muito tempo, quiçá décadas, não se aproxima sequer, da dita quase metade do valor do todas dos bens a partilhar, donde avulta um prédio “dividido em andares susceptíveis de utilização independente” - art.º 6º da douta p.i., somos levados, ainda, a defrontar-nos com chocante e raro caso da figura do Abuso de Direito;

12ª - Abunda, verifica-se claramente, matéria fáctica que o Autor cabeça de casal, imbuído de manifesta má-fé, omitiu intencionalmente, relevante e decisiva para uma boa decisão da causa;

13ª - Como foram a omissão do período, sequer aproximado, durante o qual o 1º andar esquerdo foi ininterruptamente habitado pelos Réus; bem como a não alusão ao testamento, que bem sabia existir, e respectivo teor, que inclinava decisivamente os pratos da Justiça a favor dos Réus, aqui Recorrentes, por o Autor estar agindo em plena situação de Abuso de Direito;

14ª – Matéria essa necessária para uma boa decisão da causa, que, por isso, requeria, da parte do Tribunal recorrido, a prolacção do falado despacho de aperfeiçoamento;

15ª - O Tribunal 'a quo', porém, considerou que “o estado do processo permite desde já proceder à decisão de mérito”, dispensando a realização da audiência prévia, seguramente estribado, ousamos supô-lo, na dita circunstância dos termos limitados em que foi apresentada a contestação;

16ª - Nem antes o Tribunal procedeu de acordo com o que determina o n.º 4 do art.º 590.º do CPC – convite à parte, no caso, ao Autor, “ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”;

17ª - O Tribunal 'a quo' em momento algum se pronuncia acerca da questão da eventual ineptidão/deficiência da petição inicial;

18ª - A verificar-se que a petição inicial é deficiente, como de facto é, ao Tribunal cabia, não o direito, mas o dever vinculado de convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial;

19ª - Hoje não restam dúvidas acerca da natureza vinculada do despacho de aperfeiçoamento – cfr. Abrantes Geraldes e outros, Código Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 678 e seguintes;

20ª - Por outro lado têm entendido pacificamente a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores que, verificando-se os respectivos pressupostos, a omissão deste despacho, por influir na decisão da causa, constitui nulidade, nos termos dos art.ºs 195.º e 199.º do CPC – TRP, 5.07.2006, proc. 0632391; e TRP, 09.05.2010, proc. 81/07 – na doutrina, vide ob. cit. Pág. 681;

21ª - “I – O articulado é deficiente quando contenha insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto (cf. 552.º, n.º 1, d) e 590.º , n.º 4); é, todavia inepto (art.º 186º, n.º 2 do CPC, quando nele se não mostra alegado (por forma ao menos implícita, mas clara) um requisito legal e fundamental da causa de pedir.

II – Na distinção entre ausência e mera deficiência da alegação, deve constatar-se uma efectiva dificuldade prática, nos casos contados em que a diferença entre as anomalias verificadas é mais de teor “quantitativo” que “qualitativo”, ou em que a extrema deficiência da alegação acarreta a respectiva falta”.

III – O convite ao aperfeiçoamento da petição não determina uma decisão ou tomada de posição do julgador quanto à relação processual e aos pressupostos atinentes à relação jurídica, podendo o juiz no despacho saneador optar por julgar verificada a ineptidão da petição inicial” - Ac. Relação de Guimarães, de 22/02/2006, Proc. n.º 187/06-1;

22ª - Segundo ALBERTO DOS REIS, “podem dar-se dois casos distintos:

a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir. Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar ineptidão; é o caso de a petição ser omissa quanto ao pedido ou à causa de pedir; mas aparte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga” (Comentário II, pág. 371 e segs.);

23ª – A situação plasmada nos presentes autos configura, uma situação flagrante de Abuso de Direito;

24ª - Rege o art.º 334.º do Código Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito” (no caso, o de administrar o património hereditário pelo cabeça de casal) “quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”;

25ª - O Autor/Recorrido, ao pretender retirar aos Réus/Recorrentes a posse da fracção habitacional que habitam, onde “pernoitam, fazem as suas refeições e centram toda a sua vida familiar”, tendo como pano de fundo a circunstância de à Ré mulher caber um quinhão do acervo hereditário correspondente a 7/15 do acervo hereditário;

26ª - Tal atuação, configura e preenche, pois, os requisitos de que a lei – faz depender a ilicitude do exercício dos direitos, à luz do instituto jurídico do Abuso do Direito;

27ª - O Autor/Recorrido, através do pedido formulado na presente acção, excede manifestamente os limites da boa fé, dos bons costumes e do fim social ou económico do direito que se arroga;

28ª - Sendo aliás certo que a nossa lei adopta a concepção objectiva do instituto do Abuso do Direito;

29ª - "Qualquer direito subjetivo pode ser exercido de um modo ilícito: por implicar a violação direta, necessária, eventual ou negligente de outras normas" – cf. ANTÓNIO MENESES CORDEIRO, in "Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa 'In Agendo", pág. 191;

30ª - Assim, se outra razão não assistisse aos aqui Réus no sentido de legitimar a sua pretensão, certo é também que a conduta protagonizada pelo Autor, vinda de descrever, nas circunstâncias em que o foi, configuraria uma situação manifesta de Abuso do Direito;

31ª - Está-se, sem sombra de dúvida, na presença do chamado "exercício danoso inútil" - actuação contrária à boa fé;

32ª - Abuso de direito é, nas preclaras palavras de referido Mestre, pág. 89, op. cit., "uma atuação humana estritamente conforme com as normas imediatamente aplicáveis, mas que, tudo visto, se apresenta ilícita por contrariedade a sistema, na sua globalidade";

33ª – Por outras palavras, o Abuso do Direito "reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluirem no sistema em que estas se integrem";

34ª - Verifica-se, pois, no Direito português, a condenação da figura da "aemulatio", vigente no Direito romano, que correspondia à prática de actos emulativos, ou seja, ao exercício, sem utilidade para o seu titular, de um direito: com a intenção de prejudicar outrem;

35ª - "A ilegitimidade do abuso do direito tem as consequências de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar; à nulidade, nos termos gerais do artigo 294.º; à legitimidade de oposição (...)" – PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, pág. 299, 6;

36ª - Esta via, que é, repete-se - a do Abuso do Direito - funda e legitima, pois, o pedido de absolvição dos Réus do pedido – art.º 576.º, n.º 3 do CPC – pedido que hic et nunc deduzem, para todos os efeitos legais;

37ª - Julgamos ser entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, designadamente do STJ, que o Abuso de Direito constitui uma excepção peremptória inominada de conhecimento oficioso;

38ª – Conhecimento esse, de resto, expressamente previsto no art.º 579.º do CPC.;

39ª – Foram violados o direito à habitação, consagrado no art.º 65º da Constituição da República Portuguesa; os art.s 334º e 342.º, n.º 1, do Código Civil; e os art.ºs 552.º, n.º 1, d) e art.º 590.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

Requerem os Recorrentes, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 423.º do CPC – só agora se torna necessária a sua apresentação, em virtude do teor do douto despacho saneador, sendo esta a primeira ocasião em que os Réus intervêm no processo após a prolacção a junção de certidão do testamento a que aludem supra, em 12º – Doc. n.º 1.

*

COLENDOS SENHORES JUÍZES-DESEMBARGADORES:

convictos da justeza das posições assumidas, mas, mais ainda, cientes do superior critério que sempre imbui esse instância, clamamos pela revogação do Douto despacho/sentença ora em crise, se sequente absolvição dos Réus/Recorrentes do pedido pelo facto de, o Autor haver agido em situação de Abuso do Direito, logo, ilicitamente; caso assim Vossas Excelências não entendam, logo, como tese subsidiária, mostrando-se a douta petição inicial insuficiente, não tendo o Tribunal 'a quo' convidado o Autor/Recorrido ao aperfeiçoamento da mesma, deverá esse Tribunal de recurso, declarar a nulidade do despacho saneador/sentença em crise, o determinar que sejam o Autor, convidado a apresentar nova petição inicial, aperfeiçoada.

JUSTIÇA!»

                                                                       *

            Por sua vez, apresentou o A. contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«I - A sentença proferida pelo Tribunal a quo e colocada em crise pelo presente recurso não padece de qualquer vício no que diz respeito ao julgamento da matéria de facto.

II - A sentença proferida pelo Tribunal a quo e colocada em crise pelo presente recurso não padece de qualquer vício no que diz respeito ao julgamento da matéria de Direito.

III - A sentença proferida pelo Tribunal a quo e colocada em crise pelo presente recurso não padece de qualquer nulidade.

IV - Os recursos ordinários são mecanismos processuais destinados a permitir às partes o acesso a uma reapreciação, a realizar por um Tribunal hierarquicamente superior, das decisões tomadas por um Tribunal hieraquicamente inferior.

V - Daí decorrendo que não podem ser conhecidas em sede de recurso questões novas, ou seja, matérias que em momento algum anterior foram alegadas, discutidas ou apreciadas.

VI - Nas alegações apresentadas, os Recorrentes mais não fazem do que apresentar à apreciação deste Tribunal questões novas, que nem por via recursória nem ex officio podem agora ser apreciadas.

VII - A junção de documentos operada pelos Recorrentes nesta sede excede manifestamente os limites impostos pelo artigo 651º do CPC, motivo pelo qual devem os mesmos ser desentranhados dos autos.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, requerem os Autores

que seja julgado totalmente improcedente o recurso de apelação apresentado e que seja mantida a sentença em crise, assim se fazendo a habitual justiça.»

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - incorreto julgamento de direito, ao ter sido dada procedência à ação [nomeadamente porque a p.i. era inepta e/ou deficiente, sendo que não foi formulado convite pelo juiz no sentido da sua correção, e porque o A. atuou em abuso de direito].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Cumpre começar por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, sendo certo que o recurso não impugna a correspondente decisão, nem tem em vista a alteração da mesma.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de «MATÉRIA DE FACTO PROVADA»:

«Factos provados (com interessa para a decisão).

1- Em .../.../2007 e .../.../2021 faleceram respectivamente DD e EE.

2- Em 01 de Fevereiro de 2021 o A. compareceu perante notário e aí disse o seguinte:

- Terem falecido os indicados em 1 nas datas aí referidas;

- Não terem deixado testamento nem qualquer outra declaração de vontade;

- Sucederam àqueles de cujus, os seus filhos; AA, FF, BB, GG, HH.

- Que segundo a lei e nos termos do artigo 2080º do Código Civil, é a ele que pertence a qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seus falecidos pais.

3- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...32 proveniente do artigo ..., entre outros, o “andar ou divisão com utilização independente 1º Esq.” sito em Rua ..., ..., com afectação a habitação, com tipologia/divisões 5, permilagem 300,0000 nº de pisos da fracção 1, área bruta privativa 141,1000m2, área bruta dependente 7.500m2, inscrito na matriz desde 2008 com o valor patrimonial de € 62.869,10, sendo titular inscrito “DD – Cabeça de Casal da Herança de”.

4- O prédio urbano onde se insere o andar ou divisão com utilização independente 1º Esq. melhor identificado em 3, está descrito na Conservatória ... sob o nº ...01 aí se referindo ser composto por “casa de cave, para estacionamento, r/c para comércio, 1º andar, com esquerdo e direito, para habitação e logradouro”.

5- O único registo pendente sobre o prédio aludido em 4 é o seguinte:

“AP. ...62 de 2009/06/01 15:15:07 UTC - Penhora

Registado no Sistema em: 2009/06/01 15:15:07 UTC

ABRANGE 6 PRÉDIOS

DATA DA PENHORA: 2009/06/01

QUANTIA EXEQUENDA: 60.289,70 Euros

SUJEITO(S) ATIVO(S):

** FAZENDA NACIONAL

NIPC ...

SUJEITO(S) PASSIVO(S):

** HH

NIF ...

Solteiro(a), Maior

Morada: Rua ...,...

** AA

NIF ...

Casado/a com II no regime de Comunhão de adquiridos

Morada: Rua ...

Localidade: ...

** BB

Casado/a com CC no regime de Comunhão de adquiridos

Morada: Rua ...

Localidade: ... ** EE

NIF ...

Viúvo(a)

Morada: Rua ..., ...

Localidade: ...

** FF

NIF ...

Casado/a com JJ no regime de Comunhão de adquiridos

Morada: Quinta de ...

Localidade: ...

** GG

NIF ...

Casado/a com KK no regime de Comunhão de adquiridos

Morada: Rua ...

Localidade: ...

Penhora do direito e acção na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, casado com EE, comunhão geral, Rua ..., .... Processo de Execução Fiscal nº ...86 - Serviço de Finanças ....”

6- Em 10 de Dezembro de 2021 a aqui R. propôs inventário por morte dos aludidos em 1, processo que corre os seus termos no Juízo Local Cível ... sob o nº 1780/21.....

7- Em 15 de Dezembro de 2021 por despacho proferido naquele processo, o aqui A. foi nomeado cabeça de casal.

8- Desde data não concretizada os RR. vem habitando o “andar ou divisão com utilização independente 1º Esq.” melhor identificado em 3, o qual é propriedade da herança aberta por óbito dos indicados em 1.

9- Aí pernoitam, fazem as suas refeições e centram toda a sua vida familiar.

10- Os RR. nada pagam pela utilização acima aludida.

11- E tal utilização não resulta de acordo com os demais herdeiros nem de autorização do cabeça de casal.

12- Os RR. não dispõem de qualquer título válido para a ocupação que tem vindo a fazer.

13- A utilização feita pelos RR. prejudica financeiramente a herança, já que se não habitassem aquele local, o mesmo poderia ser arrendado. »

¨¨

E o seguinte em termos de «Factos não provados»

«Inexistem»

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Incorreto julgamento de direito, ao ter sido dada procedência à ação :

Será assim?

Na ação foi formulado o pedido de condenação dos RR. a restituir à herança aberta por óbito do pai do A. e da R. mulher, determinado imóvel que tais RR. vêm alegadamente usando sem título legítimo para o efeito, ou sem que o cabeça de casal de tal herança e aqui A. o tenha autorizado, nada pagando os RR. por aquela utilização e prejudicando assim a herança ainda indivisa.

Começando pela primeira vertente da argumentação, a saber, a atinente às alegadas deficiências da p.i., se bem captamos o sentido do alegado pelos RR./Recorrentes, este seu fundamento tinha como pressuposto um quadro factual/ contexto situacional que só agora aparece enunciado e/ou é suscitado nos autos – traduzido na alegação recursiva de que a p.i. enferma de «(…) omissão do período, sequer aproximado, durante o qual o 1º andar esquerdo foi ininterruptamente habitado pelos Réus; bem como a não alusão a qualquer testamento, que bem sabia existir e que inclinava decisivamente os pratos da Justiça a favor dos Réus, aqui Recorrentes, (…)».

Recorde-se que os RR. ora recorrentes se limitaram a alegar na contestação que oportunamente apresentaram nos autos, a verificação da exceção de litispendência [a qual veio a ser julgada improcedente no despacho saneador-sentença ora sob recurso!], sendo que foi face à total ausência de impugnação dos factos alegados pelo Autor (e dos documentos instrutórios pelo mesmo carreados para o processo) que o Tribunal a quo proferiu despacho saneador através do qual julgou provados todos os factos alegados pelo Autor e que entendeu serem os necessários a decidir a causa.

Sucede que, in casu, a única e verdadeira deficiência da p.i. que os RR. conseguem enunciar é a de o A. não ter concretizado o período de tempo em que perdura a ocupação dos RR., mas, salvo o devido respeito, a concretização do período temporal da ocupação ou a dimensão/grau do prejuízo decorrente da ocupação sem título, não constituía um pressuposto ou requisito necessário para que pudesse proceder o formulado pedido de restituição à herança. 

Ora se assim é, o invocado pelos RR. não configura uma qualquer deficiência da p.i., isto tendo presente que uma tal situação se pode considerar como verificada quando ocorre uma insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a p.i., caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial).

Ademais, os recursos ordinários mais não visam do que permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem direto reflexo na delimitação das questões que lhe podem ser dirigidas.

Na verdade, o ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinadas questões, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela, razão pela qual, enquanto meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso «(…) apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas», isto porque «(…) a diversidade de graus de jurisdição determina, em regra, que os tribunais superiores sejam apenas confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios.» [3]

Por outro lado, não tem qualquer sentido, sendo, no mínimo, capcioso (para se ser benigno!), invocar um quadro factual e uma situação até então desconhecida nos autos, para, face a ela e seus contornos, sustentar que o anteriormente constante dos autos estava incompleto ou era insuficiente.

Donde, por maioria de razão, isto é, porque circunscrita a situações de maior gravidade [a ineptidão supõe que o A. não haja definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da pretensão que formula, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível], nunca se poderia considerar verificada a também invocada eventual ineptidão da p.i.!  

Acresce até que a ineptidão da p.i. é uma nulidade principal que não pode ser oficiosamente suscitada e conhecida na fase de recurso.[4]

Paradigmaticamente quanto a tal já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«I. A nulidade por ineptidão da petição inicial é susceptível de ser conhecida no despacho saneador ou, o mais tardar, na sentença, ficando o seu conhecimento precludido depois desta data (cfr. artigo 200.º, n.º 2, do CPC).

II. Quando a questão da ineptidão da petição inicial não seja suscitada pelo réu na contestação nem conhecida ex officio até à sentença final, deve entender-se que a eventual ineptidão da petição inicial fica, em princípio, suprida ou ultrapassada, concluindo-se que o réu, que não a arguiu, e o tribunal, que dela oficiosamente não conheceu, compreenderam o sentido da petição inicial.»[5]

Donde, e apenas se admitindo para efeitos de raciocínio, que a p.i. era inepta, tal constituía uma exceção cujo conhecimento estava inapelavelmente ultrapassado nesta fase recursiva.

O que se traduz na incontornável improcedência das alegações recursivas que se estribaram no pressuposto de sinal contrário.

                                                           ¨¨

E que dizer relativamente à argumentação de que o A. atuou em abuso do direito com a interposição da presente ação e pedido no mesmo formulado?

Consabidamente, o instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.

Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que, ao exercê-lo se excede, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que a pretensão viola sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.

Temos também presente que o art. 334º do C.Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a atuação do abusante, objetivamente, contrarie aqueles valores.

Como já nos foi doutamente ensinado, «Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.»[6]

Sucede que, compulsando a factualidade “provada” supra enunciada – que como tal é a única que pode ser considerada para aquilatar da bondade da argumentação dos RR./recorrentes! – não se vislumbra como, porque e em que medida é que o A. extravasou os poderes que legitimamente lhe assistiam enquanto cabeça de casal duma herança, mormente o de ao abrigo do disposto no art. 2088º, nº1, do C.Civil, «(…) pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega de bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder», quando é certo que foi alegado na p.i.  – e resultou suficientemente comprovado [cf. factos “provados” sob “10-” a “13-”! – que ocorria uma ocupação gratuita do imóvel ajuizado, ocupação esta que não era legitimada por qualquer título e que também não era legitimada por qualquer acordo de vontades entre os herdeiros.

Temos presente que o abuso de direito é um instituto jurídico de conhecimento oficioso, mas não pode tal instituto ser apreciado à luz de factos não provados e de factos novos ou até de documentos novos [como seria o testamento junto com as alegações recursivas, mas cuja admissão não foi deferida por despacho liminar do aqui Relator].

Este é um entendimento que cremos ser inteiramente pacífico quer na doutrina, quer na jurisprudência.

Nesse sentido já foi doutamente sublinhado que «a aplicação do abuso de direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos, salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso de direito devem estar compreendidas no pedido feito ao tribunal, em virtude do princípio dispositivo».[7]

Assim como que «O abuso do direito (art. 334.º do CC) pode ser objeto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal ainda que a sua invocação constitua questão nova (art. 660.º do CPC) mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso do direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos.»[8]

Assim, sem necessidade de maiores considerações e brevitatis causa, improcede o suscitado nesta via de enquadramento pelos RR./recorrentes.

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(…)

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6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo o despacho saneador-sentença recorrido nos seus precisos termos.  

            Custas nesta instância pelos RR./recorrentes.

Coimbra, 7 de Fevereiro de 2023

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira



[1] Tribunal de origem: Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 1 – do T.J. da Comarca de Leiria
[2] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[3] Assim ABRANTES GERALDES in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Livª Almedina, a págs. 87.
[4] Neste sentido, inter alia, o acórdão do STJ de 26.03.2015, proferido no proc. nº 6500/07.4TBBRG.G2.S2), acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Trata-se do acórdão do STJ de 13.05.2021, proferido no proc. nº 1934/17.9T8PNF.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[6] Assim por ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, a págs. 536.
[7] Citámos agora MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, a págs. 373.
[8] Cf. acórdão do STJ de 28.11.2013, proferido no proc. nº 161/09.3TBGDM.P2.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.