Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/12.0GBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
USO DE DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO ALHEIO
CONCURSO REAL
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º Nº 1, 256.º, N.º 1, AL. C) E 261º CP
Sumário: 1.- Os crimes de falsificação de documento, p.p. no art.º 256.º, n.º 1, al. c) e o de uso de documento de identificação alheio, p.p. no art. º 261.º, ambos do CP, protegem bens jurídicos diferentes, sendo o primeiro, a segurança e a credibilidade na força probatória de documento e o segundo a segurança e a credibilidade do documento de identificação;

2.- Por isso, existe entre os dois crimes uma situação de concurso real ou efetivo.

Decisão Texto Integral: Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I. Relatório.

1.1. A..., arguido entretanto com os demais sinais nos autos, submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum colectivo, porquanto acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e concurso efectivo de infracções, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), por referência ao art.º 202.º, al. e), todos do Código Penal; de um outro crime de furto, mas este previsto e punido pelos art.ºs 203.º, n.º 1, e 204.º, n.ºs 2, al. e) e 4, por referência ao art.º 202.º, al. f), todos do Código Penal; de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo art.º 256.º, n.º 1, al. c), do Código Penal; e, por fim, de um crime de uso de documento de identificação alheio, previsto e punido pelo art.º 261.º, n.º 1, do Código Penal, realizado o contraditório, eximido da responsabilidade assacada quanto ao segundo dos ilícitos assacados (crime de furto simples), acabou condenado, além do que por ora irreleva, e quanto ao demais objecto processual, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 2, al. e) do Código Penal, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, em concurso real com a prática de um crime p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. c) do mesmo diploma, na pena de 3 meses de prisão, e, de um crime p. e p. pelo art.º 261.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico logo operado quanto a tais penas parcelares, viu-se o mesmo arguido condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão.

1.2. Inconformado com o veredicto emitido, veio ele interpor o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Mostram-se incorrectamente julgados, por uma errónea valoração do material probatório produzido em audiência, o primeiro ponto do ponto 2 e o ponto segundo do ponto 2 dos factos provados pelo acórdão recorrido, ou seja, não poderia ter ficado como assente que foram retirados “Uma pen drive, da TMN, com valor de € 30,00 e um telemóvel de marca HUWAI da VODAFONE com o valor de € 50,00”, nem que foi retirada “uma libra em ouro amarelo”.

2. Isto porquanto tal ilação não decorre dos depoimentos das testemunhas C... – em suporte multimédia, com início às 10.21.51 do dia 15 de Janeiro de 2013 –, e, D... – em suporte multimédia, com início às 10.33.37 do mesmo dia 15 de Janeiro de 2013 –, nos quais o Tribunal a quo fundou a sua convicção. Com efeito,

3. Deve questionar-se, desde logo, a credibilidade e isenção atribuídas à primeira que, quando questionada pela defensora acerca do porquê de o arguido ter levado a pen e não o computador já que se encontrava na mala deste responde: “T: Não. Porque já tinha desaparecido um computador da primeira vez também não ia levar o computador porque dava mais nas vistas.”

4. Denota-se assaz confusa ab initio quando a instâncias do Ministério Público afirma que apresentou queixa “para depois dar o dito pelo não dito” ao ponto de o M.mo Juiz Presidente ter tido necessidade de fazer um ponto de ordem conforme resulta da audição da audiência.

5. Os ofendidos não tiveram a percepção de terem sido assaltados, o que decorre da inquirição a instâncias da defensora: “T: Não, quer dizer, estava tudo conforme estava 07.58” – quanto à testemunha C...; “Eu não sabia que tinha sido assaltado (…) Entretanto fui trabalhar… a GNR apareceu no local de trabalho na parte da tarde” quanto à testemunha E....

6. Assim, só após contacto da GNR com os ofendidos por causa do furto do ouro é que associaram o desaparecimento da pen e telemóvel ao arguido tanto que como afirma o ofendido pensou que “eram outros”; “dei falta pelo tlm à noite disse à minha filha telefona para o meu n.º para ver se aparece o meu tlm atendeu uma voz do outro e eu desconfiei que eram outros por isso é que não apresentei queixa”.

7. Contudo, não hesita em afirmar que o furto de tal objeto só poderia ter ocorrido naquele dia.

8. No que diz respeito à libra de ouro resulta do depoimento de ambos os ofendidos, de forma clarividente que, há muito tempo, nem um nem outro olhavam para o guarda-jóias onde habitualmente guardavam o ouro: “Def.ª: Há quanto tempo não olhava para a cómoda e para as jóias de ouro? T: Lá está, eu não olhava porque eu não utilizava aquilo.” Palavras do ofendido: “Pronto era muito raro mexer naquilo.”

9. Nem tão pouco sabiam a localização da caixa de jóias, a ofendida mulher afirma que “Tinha numa caixinha de porcelana”; Def.ª: Em que sítio?”; T: “Em cima da cómoda”, ao passo que para o marido “Costumava estar debaixo da cama… sempre que saia escondia-o.”

10. Ora, não se pode concluir que por dizerem os ofendidos, apesar de não olharem para as jóias, há bastante tempo, conforme supra demonstrado, que havia uma libra agarrada a um cordão e que a mesma lá estivesse de facto e que tivesse sido furtada.

11. Que se conclua, como fez menção o acórdão sob censura: “a libra encontrava-se presa ao fio subtraído pelo que teria necessariamente de ser subtraída com aquele”.

12. Tais depoimentos não podem ser credibilizados como não foram os factos questionados a instâncias do Ministério Público em que o ofendido afirma peremptoriamente que o arguido teria de lá ter voltado uma segunda vez para lhe tirar o bilhete de identidade, certeza que o Ministério Público habilmente deitou por terra posição com a qual o Acórdão recorrido concordou ao não condenar o arguido por uma segunda deslocação à casa de habitação.

13. Também não se compreende a credibilidade conferida às declarações das testemunhas/ofendidos em matéria de bens furtados quando, em sentido inverso, não são credibilizados quanto ao eventual furto das chaves conforme narrado na acusação deduzida não obstante a certeza afirmada pela ofendida/mulher não ter dúvidas em que tinha sido roubada.

14. A pen é um objecto facilmente perdível sendo a ofendida a única que afirma que estava na pasta do computador; ora, não se percepciona que, atendendo à confissão do arguido, que admitiu o furto de outros objectos, bem mais valiosos, não tivesse admitido o furto da pen se efectivamente o tivesse cometido. Não se vislumbra a valorização do depoimento da testemunha em detrimento da confissão do arguido. Não descurando que não constam, dada a forma rápida como a GNR actuou, do auto de apreensão os objectos mencionados (fls. 11 a 17).

15. O Tribunal a quo atribuiu pois credibilidade manifestamente exagerada ao depoimento destas testemunhas. Sem conceder,

16. À conclusão vertida no acórdão recorrido obsta o princípio do in dúbio pro reo, plasmado no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, quando impõe que um non liquet em matéria probatória deve funcionar sempre em beneficio da posição processual do arguido.

17. No que concerne, a decisão recorrida padece também de manifesta insuficiência da matéria de facto provada, de acordo com o art.º 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.

18. Verifica-se concurso de crimes em todos os casos em que o comportamento global do agente preenche mais que um tipo legal – ou o mesmo tipo legal várias vezes – concretamente aplicáveis o que, não significa, que o tratamento em termos de punição deva ser igualitário ex vi art.º 77.º do Código Penal sobretudo, nos casos em que os conteúdos de ilícito – segundo o seu sentido no contexto do comportamento global – se interceptam parcialmente em maior ou menor medida. É a hipótese do concurso aparente, impróprio ou impuro, em que apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude e que a ele corresponde uma preponderante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados.

19. A significar, que esta ideia tem a capacidade de abranger aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente, em que o ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.

20. Esta problemática foi muito discutida a propósito da relação entre falsificar um escrito unicamente como meio de burlar alguém, tendo a este propósito Figueiredo Dias, in Lições de Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 1019, considerado que em principio não levanta qualquer óbice em “… convir na solução do concurso aparente.”

21. De igual modo a revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, introduziu no tipo do crime de uso de documento alheio como, aliás, também no de falsificação, a expressão “com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.”

22. Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal, a propósito do crime de falsificação para onde remete no comentário ao crime de uso de documento alheio, “o legislador deixou claro que a ação típica (…) pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do proprio ilícito subjetivo e não um fator de agravação (…). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto.”

23. In casu, com a punição do uso de documento de identificação alheio protege-se o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório.

24. Com a falsificação de documentos protege-se a especial segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, evitando a ocorrência de ameaça ou perigos de lesões a esses bens.

25. Da dinâmica do crime perpetrado provado ficou que desde o primeiro momento que o arguido pretendeu obter a troca do ouro pelo dinheiro só o conseguindo através do uso de documento de identificação alheio.

26. Sendo seu entendimento que pelo mesmo facto de – usar documento alheio para forjar documento – não se faça uso de uma dupla incriminação sob pena de violação do principio constitucionalmente consagrado ne bis in idem – art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República, de molde a ser respeitada a proibição da dupla valoração.

27. Assim o arguido serviu-se do bilhete de identidade do ofendido D... apenas para imitar a sua assinatura a fim de proceder à venda do ouro e, desta forma, obter um benefício.

28. Ou seja, o que sempre visou foi praticar o crime de falsificação sendo o uso de documento um mero meio para atingir aquele desiderato verdadeiramente dominante. Diga-se ainda que in casu a conexão temporal entre os factos é mínima ou inexistente parecendo ser de afirmar que existe apenas uma única resolução criminosa, a que acresce o facto de o perigo colocado pelo potencial de ameaça ao bem jurídico ser similar nos dois casos em análise.

29. Assim, refutando uma concepção doutrinal do concurso de crimes segundo a qual, havendo mais do que um bem jurídico violado, há necessariamente sempre um concurso efectivo de crimes,

30. No caso (uso de bilhete de identidade de terceira pessoa para falsificar um documento), os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global do arguido entram em plena conexão, intercepcionando-se entre si, razão pela qual se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas – que seria inadequado punir tais casos conforme a previsão ínsita no art.º 77.º, do Código Penal.

31. Na determinação da medida concreta da pena respeitante ao crime de furto qualificado, o Tribunal a quo não ponderou, como devido, e de forma criteriosa, os factores – o arguido tem o 8.º ano de escolaridade; vive com o seu pai, de 57 anos de idade, ao qual presta assistência – que são aptos a enfraquecer a culpa do agente e a sua capacidade de determinação.

32. Como ainda descurou a sua integração socioprofissional, pois o mesmo está a trabalhar auferindo um rendimento diário de € 40,00.

33. Nem ponderou favoravelmente as consequências do facto típico ilícito: total reparação (por devolução) dos objectos subtraídos.

34. Nem correctamente ponderou a ilicitude dos factos (não obstante o mencionar): os tipos de ilícito ocorreram num momento espácio-temporal curto, houve uma motivação única (os crimes de uso de documento alheio e falsificação estão intimamente conexionados com o de furto).

35. Violando o estatuído nos art.ºs 40.º e 71.º, todos do Código Penal.

36. Já quanto aos crimes de uso de documento e de falsificação (sem conceder o antes expendido pelo recorrente acerca do seu concurso aparente), o Tribunal a quo não valorou também a diminuta ilicitude dos factos, dada a inexistência de consequências gravosas para os ofendidos, preterindo aqui o art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal.

37. Bem como o antecedente art.º 70.º, pois a pena não detentiva de multa realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a protecção dos bens jurídicos e a sua reintegração na sociedade.

38. O Tribunal a quo atendeu apenas a um critério – o passado criminal do agente – considerando-o revelador de um total desrespeito por valores tidos como essenciais para a sociedade, e não relevou devidamente a confissão assumida pelo mesmo, a qual foi determinante para a qualificação do tipo de furto, denotando uma personalidade que consciente do passado que tem almeja porém mudar mostrando arrependimento.

39. O cúmulo jurídico não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão-só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas.

40. Neste segmento, igualmente atentou o Tribunal recorrido ao passado criminal do arguido, colocando a tónica nas elevadas exigências de prevenção especial.

41. Sendo questionável se se verifica a conexão/ relação entre os factos, pois que o encadeamento dos crimes, passado criminal do arguido por crimes distintos e a personalidade evidenciada pelo mesmo não são suficientes para a afirmação de mais do que simples pluriocasionalidade.

42. Não se podendo inferir que a personalidade do arguido seja manifestamente avessa e desconforme ao dever-ser jurídico-criminal, sendo ainda possível formular um juízo de prognose favorável à sua ressocialização já que a prisão nunca satisfará de forma adequada as finalidades da punição mormente quando se encontra familiar e profissionalmente integrado, uma vez que, uma pena de prisão demasiado longa pode tornar o condenado completamente inapto para a vida real.

43. Impondo-se, consequentemente, a fixação de uma pena unitária num ponto próximo do limar inferior da moldura abstracta do concurso de molde a não prejudicar de forma irremediável a sua reinserção social.

44. Consabido que a aplicação de uma pena de substituição é um poder-dever, ainda não é de descurar a aplicação ao caso da suspensão da pena de prisão na qual foi condenado.

45. Não obstante ter cometido um crime de igual natureza cerca de 2 meses após uma condenação que redundou numa suspensão, o arguido encontra-se profissionalmente inserido; confessou a prática dos crimes em análise tendo contribuído de forma inequívoca para a descoberta da verdade material.

46. Tudo suportando a conclusão de que as exigências de prevenção especial não são assim tão prementes e de que é possível a prognose favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Terminou pedindo que no provimento do recurso se decida em conformidade com o expendido.

1.3. O Ministério Público contra-alegou à motivação de recurso, pugnando pela sua improcedência. Aduziu, para tanto, em síntese e ao invés do propugnado pelo recorrente, que: a matéria de facto controvertida foi devidamente ajuizada; intercede concurso real de infracções entre os falados crimes de falsificação de documento e uso de documento de identificação alheio; se justifica a opção pela pena detentiva relativamente aos ilícitos em que era também admissível uma pena não detentiva; as penas parcelares foram fixadas de acordo com os critérios legais, assim como o foi também a pena única; por fim, não emergem dos autos os pressupostos conducentes à pretensa substituição desta última [fls. 285/290].

1.4. Admitido o recurso, e cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este tribunal ad quem.

1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a resposta à motivação de recurso da 1.ª instância [fls. 297].

1.6. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

1.7. Efectuado exame preliminar, ut n.º 6 deste inciso, consignou-se que nenhuma circunstância impunha a apreciação sumária do recurso, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir com a recolha de vistos – o que se verificou – e submissão à conferência.

Cabe, então, ponderar e decidir.


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II. Fundamentação de facto.

2.1. Discutida a causa, resultaram provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos:

Da Acusação Pública:

No dia 02 de Fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, mas entre as 15h00 e as 17h00, o arguido A..., introduziu-se na casa de habitação pertencente a C...e a D..., sita na Rua (...), área da comarca de Arganil, tendo para o efeito entrado pela janela da respectiva cozinha, no rés-do-chão do edifício, cujo fecho se encontrava estragado.

Em seguida, já no interior da referida habitação, o arguido percorreu as diversas divisões da casa, tendo daí retirado e levado consigo, os seguintes bens:

- uma pen drive, da TMN, com valor de € 30,00 (trinta euros) e um telemóvel de marca HUWAI, da Vodafone, com o valor de € 50,00 (cinquenta euros), que estavam na mesa de cabeceira, do quarto da filha dos donos da casa;

- um fio em ouro amarelo, um cordão em ouro amarelo, uma libra em ouro amarelo, uma aliança, com o valor total declarado de cerca de € 1500,00 (mil e quinhentos euros);

- o bilhete de identidade de D...;

- dois cartões de débito, multibanco.

Em poder destes bens, o arguido A..., dirigiu-se para um estabelecimento de compra e venda de ouro usado, denominado G..., sito no (...), em Arganil, onde procedeu à venda dos referidos bens em ouro, pelo montante global de € 825,00 (oitocentos e vinte e cinco euros), tendo exibido, para esse efeito o Bilhete de Identidade de D.... No documento que lhe foi entregue para assinar, no estabelecimento comercial, aquando da venda do ouro, o arguido escreveu, pelo seu próprio punho o nome de D... imitando a sua assinatura.

Cerca das 15h00 do dia 3 de Fevereiro de 2012, foi dado conhecimento à G.N.R. do Posto Territorial de Arganil, que o arguido se encontrava nos estabelecimentos comerciais de Arganil a exibir muitas notas, o que causou estranheza aos habitantes da localidade, por aquele ser conhecido como pessoa de escassos recursos económicos e ser referenciado como estando ligado à prática de crimes contra o património.

Abordado pelos militares da G.N.R., foram então encontrados em poder do arguido A... e apreendidos os seguintes bens:

- € 480,00 (trezentos e oitenta euros), em notas do B.C.E;

- um bilhete de identidade de D...;

- dois cartões de débito multibanco.

O arguido ao aceder ao interior da referida habitação, agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito concretizado de se apoderar dos aludidos bens, sabendo que não lhe pertenciam e que actuava sem a autorização e contra a vontade dos seus legítimos donos.

Ao usar o aludido Bilhete de Identidade e imitar a assinatura de D..., o arguido actuou com o propósito alcançado de obter um benefício a que sabia não ter direito, sabendo que se tratava de um documento de identificação alheio.

O arguido sabia que as suas descritas actuações o faziam incorrer em responsabilidade criminal.

Outros Factos Provados:

O arguido tem-se mantido a residir com o pai – B..., de 57 anos.

É madeireiro, auferindo um rendimento mensal de € 40,00 ao dia, trabalhando todos os dias da semana, obtendo mensalmente um rendimento mensal de € 540,00.

Tem o 8.º ano de escolaridade.


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Por sentença datada de 4.10.2011 transitada em julgado em 3.11.2011, foi o arguido condenado na pena de 2 anos de prisão suspensa por igual período pela prática em 15.10.2010 de um crime p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 2, al. e) do Código Penal (Processo n.º 316/10.8 GBAGN).

2.2. Já no que concerne a factos não provados, precisou a decisão recorrida:

O arguido retirou da referida habitação a chave da porta da cozinha.

No dia 03 de Fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, mas na parte da manhã, o arguido voltou à mesma casa, sita na Rua (...), e usando a chave da porta da cozinha, da qual se apropriou no dia anterior, logrou aceder ao interior da referida habitação. Já no seu interior, o arguido dirigiu-se à garagem e retirou do veículo automóvel que ai se encontrava uma carteira com documentos.

Acto contínuo, o arguido dirigiu-se ao interior de um quarto e retirou ainda de um bolso de um casaco, que ali se encontrava, dois cartões de débito, multibanco.

2.3. Por fim, é como segue o teor da motivação probatória do aludido acórdão recorrido:

A prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art.º 127.º do C. Processo Penal), liberdade que não pode nem deve significar o arbítrio ou a decisão irracional “puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” (Prof. Castanheira Neves, citado por Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 43).

Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada, é certo, nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objectivável e motivável, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

Ensina o Prof. Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.), que no processo de formação da convicção há que ter em conta os seguintes aspectos: - a recolha dos dados objectivos sobre a existência ou não dos factos com interesse para a decisão, ocorre com a produção de prova em audiência, – é sobre estes dados objectivos que recai a livre apreciação do tribunal, como se referiu, motivada e controlável, balizada pelo princípio da busca da verdade material, – a liberdade da convicção anda próxima da intimidade pois que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos conhecimentos não é absoluto, tendo como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, portanto, as regras da experiência humana, – assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.

Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dúbio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, n.º 129, de 02/06/2004, 8544 e ss.).

Deste modo, a formação da convicção deste Tribunal, quanto aos factos dados como provados, resultou, em primeira linha, das declarações do arguido que admitiu ter entrado na referida habitação no dia 2.2.2012 através da janela da cozinha cujo trinco estava danificado. Mais admitiu ter tirado o B.I., o ouro, à excepção da libra, e um cartão de débito da ofendida. Quanto ao demais referido na acusação como tendo sido subtraído não o admitiu, como não admitiu ter ido novamente à casa no dia 3.2.2012. Quanto aos demais factos admite-os.

Tendo presente estas declarações e apenas quanto à parte não admitida pelo arguido o tribunal atendeu ao depoimento dos dois ofendidos que de forma coerente e credível referiram que também nesse dia foi subtraída uma pen drive da TMN (utilizada pela filha) e um telemóvel que se encontravam na habitação. Por outro lado, pela ofendida foi dito que a libra se encontrava presa ao fio subtraído pelo que teria necessariamente de ser subtraída com aquele. Quanto à chave os seus depoimentos demonstraram que os mesmos não tinham a certeza se a mesma foi subtraída ou simplesmente se perdeu, sendo certo que ambos demonstraram não saber se o mesmo foi lá uma ou duas vezes.

Daqui resulta a convicção que quanto aos objectos subtraídos pelo arguido os mesmos são aqueles que constam da acusação, tanto mais que os ofendidos foram peremptórios ao se referirem aos mesmos (à excepção da chave da cozinha), tendo inclusive admitido que o trinco da janela da cozinha estava estragado. Por outro lado, foi apreendido ao arguido não um mas dois cartões de débito o que reforça o depoimento da ofendida.

Quanto à venda do ouro o tribunal atendeu também ao depoimento da testemunha I... que confirmou que foi o arguido que se dirigiu ao referido estabelecimento comercial para vender o ouro (sem a libra) tendo tal vindo a ocorrer pelo preço referido na acusação, tendo para o efeito o arguido assinado a declaração da venda com o nome do ofendido e usado o B.I. deste para confirmar a assinatura e dados pessoais.

Quanto às circunstâncias da detenção do arguido o tribunal atendeu também aos depoimentos dos agentes da GNR ouvidos que nesta parte confirmaram a acusação (sendo que tais factos já haviam sido admitidos pelo arguido).

Mais se atendeu ao teor de fls. 11 a 17 (auto de apreensão) donde resulta que na posse do arguido exista a quantia de 480,00 Euros – e não 380,00 Euros –, dois cartões de débito (da ofendida C...), e o B.I. do ofendido (cfr. ainda termo de entrega de fls. 25). Mais se atendeu ao teor da declaração de venda do ouro de fls. 27 donde resulta que foi apenas vendido o fio, o cordão e a aliança pelo valor de 850,00 Euros e donde consta a assinatura do nome do ofendido D... feita pelo arguido conforme este admitiu (cfr. ainda auto de apreensão de fls. 26)

Quanto às condições económicas do arguido, foram por si relatadas, atendendo-se ainda ao relatório social da DGRSP.

No que diz respeito aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao teor de fls. 172.


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III. Fundamentação de Direito.

3.1. Como se mostra por demais consabido, o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, pág. 335, bem como a jurisprudência uniforme do STJ - cfr. Ac. de 28 de Abril de 1999, in CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência aí citada -], mas isto sem prejuízo todavia das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [cfr. Ac. STJ para fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, publicado no DR, I.ª Série-A, de 28 de Dezembro seguinte].

Assim sendo, porque não intercede circunstância reclamando qualquer intervenção oficiosa, atentando às conclusões do recorrente, e salvo eventual prejudicialidade que a resolução de uma possa ter quanto à (s) restante (s), resulta integrar thema decidendum aquilatar se i) deve alterar-se a parte do acervo fáctico que especifica; ii) não intercede o propalado concurso efectivo de infracções entre os crimes de falsificação ou contrafacção de documento e o crime de uso de documento de identificação alheio; iii) concedendo inclusive a manutenção desta condenação plural sempre a pena aplicável devia ser a não detentiva; iv) devem reduzir-se as penas parcelares fixadas; v) bem como a única arbitrada; vi) por fim, ainda, decretando-se a respectiva suspensão de execução.

Vejamos:

3.2. O recorrente impugna a decisão de facto no ponto em que deu como provado haver procedido à subtracção da residência dos ofendidos de uma Pen drive da TMN; de um telemóvel da marca HUWAI e de uma libra em ouro amarelo. Para o efeito, realça o que entende ter sido uma insuficiente prova resultante dos depoimentos desses mesmos ofendidos – C... e D... –, aquela, aliás, em que o Tribunal a quo se arrimou; mais convoca que era mister aplicar-se ao caso o princípio do in dúbio pro reo.

Auditando-se, na íntegra, a totalidade das declarações e depoimentos prestados no decurso da audiência de julgamento realizada na 1.ª instância, conjugadamente com a demais prova junta aos autos (autos de apreensão e entrega de objectos), mostra-se assertiva a conclusão do Tribunal a quo.

Com efeito, além das declarações das testemunhas E...e F... [ambos elementos da GNR, mas, sobremaneira, do primeiro, que corroborou por seu intermédio o que fez constar no auto de notícia de fls. 2/4]; I... [trabalhadora do estabelecimento denominado G...no qual o arguido vendeu objectos subtraídos, e cujo procedimento ela explicitou], restaram para ponderação as declarações do próprio arguido e os depoimentos dos dois identificados ofendidos.

O primeiro, assumiu que se introduziu, apenas por uma vez, concretamente no dia 2 de Fevereiro de 2012, na casa dos últimos, entrando por uma janela da cozinha, cujo fecho estaria já danificado. Do respectivo interior subtraiu os objectos elencados, com excepção dos que ora controverte, isto é, da pen, do telemóvel e da libra em ouro [aditou também então que apenas terá retirado um cartão de débito do bolso de um casaco, e não dois como se consignou provado, a final].

A ofendida, começou por referir que já em 2010 havia feito uma denúncia contra o arguido por eventual furto que ele cometera, mas o processo foi, entretanto, arquivado; no dia 2 de Fevereiro, à noite, suspeitou que a sua casa fora assaltada pois apercebeu-se, então, da falta de uma pen que tinha a certeza ter deixado ficar na mala do computador, bem como do telemóvel, pertença de seu marido, tanto que ligaram para o mesmo e atendeu um terceiro indivíduo, que desconheciam. No dia seguinte, encontrando-se em Arganil, foi abordada por uma patrulha da GNR que a indagou sobre uma pretensa falta de ouro; acto contínuo, dirigiram-se à loja em que trabalha a testemunha Ana e aí foi-lhe exibido um saco, contendo um cordão, um fio e uma aliança, que ela reconheceu pertencerem-lhe, bem como o B.I. de seu marido; instada, referiu que tais objectos estavam habitualmente em cima de uma cómoda de um quarto da sua habitação. Mais precisou não lhe restarem dúvidas que ao cordão faltava uma libra que lhe estava “agarrada”.

O ofendido, por seu turno, precisou igualmente que se apercebeu primeiramente da falta da pen e do telemóvel, nos mesmos e demais moldes que sua esposa; no dia seguinte foi abordado por elementos da GNR que o contactaram em virtude de ao arguido ter sido apreendido o seu (do ofendido) B.I. e que ele entregara na loja como meio de identificação para troca dos objectos; não tem dúvidas da existência da libra em ouro, inclusive o bem mais valioso de todos os subtraídos; embora reconhecendo que não ligava muito ao local exacto em que sua esposa normalmente os guardaria, referiu que por vezes eles ficavam num pote debaixo da cama do casal.

Tudo conjugado, não se descortinam as incongruências que o recorrente vislumbra nos depoimentos dos ofendidos; pelo contrário, se algo deles sobressai é antes a sua veracidade, porque manifestamente não concertada. O que se deve realçar é a sua percepção no dia 2 da falta da pen e do TM e não percepção do “arrombamento” da janela da cozinha que efectivamente não logrou provar-se ter ocorrido. No demais, ficou a sua abordagem no dia seguinte pelos elementos da GNR e a verificação efectiva então em sua casa da falta da totalidade dos objectos subtraídos, naturalmente sem que pudessem eles mesmos precisar se por uma, se por duas vezes, como vinha descrito na acusação.

Bens que eles concretamente descriminaram, de forma reiterada, e a que o arguido contrapôs a sua própria e contrária versão, sucedendo que o Tribunal a quo acolheu a primeira em detrimento desta, num funcionamento cabal, e sem reparo que deva fazer-se, do princípio da livre apreciação da prova.

Sintomaticamente, o arguido nega ter subtraído os bens que não lhe foram encontrados, e assume ter subtraído os que lhe foram apreendidos! Não mais do que isto. Tendo os ofendidos noção cabal dos bens que detinham em sua casa e constatado que parte significativa deles foi apreendida ao arguido, ditam as presunções naturais que ele os haja subtraído a todos. Conjecturas podem fazer-se, mas a solução sufragada assenta em regras normais da experiência comum, assumindo cabal verosimilhança.

Ante o exposto, vista a motivação da decisão recorrida, também se alcança não ter ocorrido qualquer violação ao princípio do in dúbio pro reo, cujo alcance é por demais consabido. Do texto do acórdão sindicado não resulta a dúvida do Tribunal a quo sobre a forma como o agente participou na materialidade descrita e que, nesse estado, tenha decido em seu desfavor; ao invés, o que antes dele emerge é uma definição clara sobre os termos em que os factos se verificaram.

A propósito, uma curta nota se impõe, ainda: na 17.ª conclusão, o recorrente comina a decisão recorrida com o vício de insuficiência da matéria de facto provada, de acordo com o art.º 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.

Ressalvado o devido respeito, incorre em manifesto equívoco. Na verdade, o vício aludido só se verifica quando os factos apurados são insuficientes para se decidir sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e os demais requisitos necessários à decisão de direito e é de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão [cfr. Ac. do STJ, de 12 de Maio de 1999, in processo n.º 154/99, citado por Simas santos e Leal Henriques, in Código de processo Penal, Anotado, II Volume, 2.ª edição, 2000, pág. 758].

Ora, o que invoca o arguido, no que concerne, é, pelo contrário e coisa assaz distinta, da insuficiência da prova produzida para ter concluído dar por provados os factos que controverteu [cfr. Simas santos e Leal Henriques, ibidem, pág. 759].

Tudo a suportar a conclusão de que nenhuma censura merece o acervo fáctico vertido na decisão impugnada.

3.3. Segundo tema colocado para ponderação pelo recorrente o da natureza do concurso [concurso real/concurso aparente] que intercede entre os apontados crimes de falsificação ou contrafacção de documento e o crime de uso de documento de identificação alheio.     

Por regra, a actuação do agente traduz-se na violação de uma só norma jurídica mediante a prática de um só acto, estando nós, então, perante um caso de unidade de infracção. Casos ocorrem, todavia, nos quais se depara a violação de diferentes normas legais, realizada mediante acções separadas, emergindo, então, um concurso real. Outros existem em que uma só acção é objecto de várias apreciações jurídico-criminais, por violar várias vezes o mesmo preceito, falando-se, então, em concurso ideal homogéneo; se não obstante a unidade da acção ocorre violação de uma pluralidade de normas, estamos perante um concurso ideal heterogéneo.

Ocorre concurso aparente se a acumulação de normas aplicáveis à mesma acção é tão-só «aparente», não se estando face a um concurso ideal mas a um mero concurso legal, de normas ou de leis.

Entre outras definições, e sempre dentro deste último conceito de pluralidade aparente de infracções, estamos perante uma relação de consunção [entre as normas em concurso aparente] se se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma determinada situação de facto, diversos tipos de crime, encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações que pode suceder que a reacção contra a violação concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos vasto se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos. A eficácia da consunção não só está dependente da circunstância de, efectivamente, concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação de mais para menos, mas também de que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada, consumida pelo outro.

Desta breve resenha, logo se vislumbra que a aplicação deste regime está dependente da apreciação concreta do âmbito de protecção da norma, sendo pois determinante a averiguação dos interesses protegidos pela incriminação [determinação do bem jurídico protegido], uma vez que só deste modo se aquilatará se os interesses protegidos pelo tipo de ilícito com previsão mais ampla contém em si, ou não, os protegidos pela norma de previsão mais singela. Isto sem esquecer que a norma legal definidora [art.º 30.º, n.º 1, do Código Penal] estabelece que o número de crimes se determina pelo número de tipos efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Foi partindo desta apreciação que a jurisprudência mais avisada tem vindo a estabelecer como critério diferenciador o referido critério: “o número de crimes vai determinar-se pelo número de valorações que correspondem a uma certa conduta no plano jurídico-penal; se só um bem jurídico é negado, só é cometido um crime, se há uma pluralidade de bens jurídicos negados há pluralidade de crimes” [cfr. Ac do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Fevereiro de 2003, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 218].

Estando em causa um crime de falsificação de documento, já foi alvo de acesa discussão a natureza do seu concurso quando cometido também um crime de burla. Perante a divergência de correntes jurisprudenciais que, no domínio do Código Penal de 1982, se foi formando, o Supremo Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar-se, fixou jurisprudência pelo Assento de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, I.ª Série-A, de 9 de Abril de 1992, nos termos seguintes:

No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, al. a), e do artigo 313.º, nº 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.”

Revisto o Código Penal pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, aquela questão foi retomada, sustentado-se que a versão do Código Penal que saíra da revisão importava o regresso à doutrina anterior, segundo a qual o crime de burla consumia o de falsificação.

E, nesta linha, produzida decisão judicial nesse sentido e que, por isso, contrariava a jurisprudência fixada naquele Assento, o Supremo Tribunal, chamado novamente a sanar a divergência, pelo Assento n.º 8/2000, de 4 de Maio de 2000, publicado no Diário da República, I.ª Série-A, de 23 de Maio de 2000, reafirmou o anterior entendimento, uniformizando a jurisprudência nos moldes seguintes:

No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.

Ancorados no expendido, vejamos do caso presente.

Mostra-se provado que no dia 2 de Fevereiro de 2012, o arguido, munido das peças em ouro subtraídas como dito, visando a sua venda no estabelecimento G..., escreveu na declaração de venda, inserta a fls. 27 dos autos, e pelo seu próprio punho, o nome de D..., imitando a assinatura deste, e, assim (porque também verificados os demais pressupostos exigíveis), incorreu na prática de um crime de falsificação de documento, p.p.p. art.º 256.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.

O bem jurídico protegido por esta norma é a segurança e a credibilidade na força probatória de documento (in casu, dita declaração de venda) destinado ao tráfico jurídico.

Por outro lado, nesse mesmo dia e circunstâncias, exibiu à funcionária do estabelecimento o apontado B.I. pertencente àquele D..., e, assim (porque também verificados os demais pressupostos exigíveis), incorreu na prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p.p.p. art.º 261.º, do mesmo Código Penal.

O bem jurídico protegido por esta norma é a segurança e a credibilidade do documento de identificação (in casu, mencionado B.I.) destinado ao tráfico jurídico.

Neste circunspecto, é fora de dúvida, desde logo, a existência de uma pluralidade de bens jurídicos negados e, consequentemente, a configuração de uma pluralidade de crimes. Acresce, e não despiciendo, que já após haver assumido uma falsa qualidade, pois assinou a declaração de venda pretextando tratar-se de D..., quando o não era, mais reiterou a sua falsa qualidade exibindo o B.I. deste e que, depreende-se, também não era o seu. Ou seja, perfeito já um primeiro ilícito, reiterou o arguido a sua conduta delitiva exibindo documento de identificação alheio, sempre ensaiando obter para si benefício ilegítimo [a propósito de concurso entre um crime de burla e um crime de uso de documento de identificação, ver, com interesse, o Ac. do STJ, de 28 de Janeiro de 1998, in Colectânea de Jurisprudência, Acs. do STJ, Ano VI, Tomo I, págs. 185/188].

Improcede, consequentemente, este segundo fundamento do recurso.

3.4. Alvo subsequente de apreciação, o apuramos se era caso de opção pelo pena não detentiva quanto aos crimes de falsificação de documento e de uso de documento de identificação alheio.

A estes crimes por cuja autoria vem o arguido sentenciado correspondem, respectivamente, as penas principais abstractas de prisão de 1 mês a 2 anos ou pena de multa de 10 a 240 dias.

De acordo com o art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal, A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

E segundo o disposto no art.º 70.º, do mesmo diploma Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Debruçando-se sobre tal normativo, escreveu-se no aresto deste Tribunal da Relação, de 17 de Janeiro de 1996, publicado na CJ, ano XXI, tomo 1, pág. 38, que a escolha da pena depende de critérios de prevenção geral e especial, pelo que o julgador, perante um caso concreto, tem que os valorar para depois optar por aplicar uma pena detentiva ou não detentiva.

Também o Supremo Tribunal de Justiça num seu acórdão datado de 25 de Janeiro de 2001, in processo n.º 3404/00-5.ª explica que “subjaz à norma constante no art.º 70.º, do CP, toda a filosofia informadora do sistema punitivo vertido no Código Penal vigente, ou seja, a de que embora se aceitando a existência da prisão (ou pena corporal) como pena principal para os casos em que a gravidade dos ilícitos, ou de certas formas de vida, a impõem ou justificam, a recorrência deverá ter lugar quando, face ao circunstancialismo que se perfile, se não apresentem adequadas, suficientes ou convenientes, as sanções não detentivas, às quais não é de recusar elevada capacidade (ou potencialidade) ressocializadora. Tudo isto se insere no desiderato de se evitarem as curtas penas de prisão (ou a eventualidade da efectivação dessas penas) donde que, por regra, a alternativa por pena de multa se autorize nos casos em que aos ilícitos caiba pena prisional não demasiado elevada.”

Acresce o sufragado pelo Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 497 e 498, para quem “o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição, o que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação. Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da medida da pena de prisão (necessária como pressuposto da substituição), quer da medida da pena alternativa ou de substituição; ela é eminentemente estranha, porém, às razões históricas e político-criminais que justificam as penas alternativas e de substituição, não tendo sido em nome de considerações de culpa, ou por força delas, que tais penas se constituíram e existem no ordenamento jurídico.”

Assim, continua o dito Mestre, “o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas” (§ 500) e que deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.”

Ora, a situação em apreço cai no âmbito desta última excepção apontada pelo Ilustre professor:

Com efeito, são manifestas as razões de prevenção geral face ao crescente desrespeito e indiferença que se verificam actualmente na sociedade em geral através da proliferação dos crimes cometidos após violação do património, sendo exemplo a situação presente na qual os dois ilícitos reportados são a “continuação” do iter delitual prévio da subtracção dos bens móveis dos ofendido e forma expedita de o agente se desapossar desses mesmos bens e realizar dinheiro.

Por outro lado, prementes se mostram igualmente as razões de prevenção especial, atendendo a que o arguido cometeu os factos delituosos volvidos cerca de dois meses após ter sido condenado numa pena detentiva pela prática de ilícito contra o património, cuja execução foi suspensa.

Tais circunstâncias conjugadas, é manifesto que a defesa dos bens jurídicos protegidos nas duas normas aludidas não se mostra acautelada com a aplicação de uma simples pena de multa a qual não é idónea a realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo ainda certo que a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras, os sentimentos de segurança e de confiança nas instituições jurídico-penais impõem igualmente a aplicação de uma pena de prisão.

Isto é, com o acórdão recorrido, mostra-se assertiva a opção nele assumida pelas penas detentivas relativamente a cada um dos dois ilícitos em causa.

3.5. Penas que, acto contínuo, e tal como a atinente ao crime de furto qualificado, controverte também o recorrente, dado que todas elas em medidas excessivas.

No iter para fixação da reacção penal devida ao agente, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar para, de seguida, escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida [Neste sentido, v.g. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Noticias, 1993, pág. 198].

Nos termos do art.º 71.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Figueiredo Dias [ob. cit. pág. 72], que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente [ob. cit. pág. 214], esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito.” Acrescenta, também, o mesmo Autor [In Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC, ano 1.º, fascículo 1.º (Janeiro/Março de 1991), pág. 29] que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário – o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, um pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial – nomeadamente de prevenção especial de socialização – os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos.”

A decisão recorrida discorreu, no que concerne, e contrariamente ao aduzido pelo recorrente, com critério.

Na verdade, atentou no grau médio da ilicitude dos factos (ante a recuperação de parte dos bens subtraídos); em igual grau de culpa do agente (pese embora a anterior e próxima condenação descrita), e, nas supra aludidas necessidades de prevenção geral e especial.

Por sua vez, as propaladas condições pessoais do recorrente – mormente residir com o pai e estar profissionalmente inserido – não assumem particular valor atenuativo, situando-se dentro do que é a normal inserção de um qualquer cidadão.

Tudo sopesado, as penas parcelares fixadas na 1.ª instância em pouco excederam os seus limiares mínimos admissíveis, e, como assim, mostram-se proporcionadas nenhuma censura se impondo fazer-lhes.

3.6. Crítica dirigida depois pelo condenado o de se mostrar desmesurada a pena única imposta.

No que tange à determinação desta pena deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso [cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1], cuja inobservância determinará, de acordo com a jurisprudência maioritária, a nulidade da decisão cumulatória, nos termos do art. 379.º, n.º 1, als. a) e/ou c), do Código de Processo Penal.

E no § 421, págs. 291/2, acentua o mesmo Autor que na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.” Acrescenta ainda: “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”

Como se extrai do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido.

Segundo refere Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166, o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

No caso vertente, a conduta do arguido cinge-se ao cometimento de um primeiro ilícito contra o património, e, acto contínuo, de dois crimes instrumentais, tendentes à dilapidação dos bens subtraídos, tudo num curto hiato temporal, e após um anterior sancionamento penal pelo cometimento de um antecedente criem contra o património.

Emerge assim, e ao menos relativamente a crimes contra o património, uma tendência criminosa a que a sanção antes aplicada não logrou pôr cobro e que a pena única não deve menosprezar.

Movendo-se num hiato entre 2 anos e 10 meses e 3 anos e 4 meses de prisão, porque se não antolham razões justificando o recurso à pena mínima, mostra-se por isso ajustada a sua fixação num limiar apenas superior de dois meses, tal como assumido no Tribunal a quo.

3.7. Última tarefa cometida, a de verificarmos se é caso de a substituir por uma pena não detentiva prevista na lei, isto é, se o arguido ainda está em condições de beneficiar de uma pena substitutiva de suspensão ou se, antes pelo contrário, se impõe o cumprimento efectivo da pena de três anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido.

Com efeito, as penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) … são penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição).” [cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 91].

Ante os elementos constantes da decisão recorrida, a resposta não pode deixar de ser outra, senão a de que não deve beneficiar da pena de substituição.

Tabelar, mas certeiramente, consignou a decisão recorrida, o seguinte:

«No caso concreto, considerando que o arguido cometeu os crimes em apreço após cerca de 2 meses de uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução por crime de igual natureza, não pode o tribunal deixar de concluir que a mera ameaça de vir a cumprir pena de prisão já não é suficiente para o afastar de comportamentos idênticos, pelo que não é susceptível de ver a sua pena de prisão suspensa na sua execução, antes tendo que cumprir pena de efectiva de prisão.»

Do exposto sobressai, fora de dúvida, que mesmo após ter sido condenado, o arguido não se inibiu de voltar a delinquir. Era de esperar que, pela anterior condenação, o arguido já tivera oportunidade de interiorizar que não pode (ao menos) atentar contra o património alheio. Tal expectativa mostrou-se, porém, totalmente frustrada.

Por isso, com a decisão sindicada, entendemos que não se encontram preenchidos, in casu, os pressupostos para uma suspensão de execução da pena, já que se tornou evidente que a simples censura do facto e ameaça da pena não são suficientes para satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial [vd. art.º 50.º, do Código Penal].

Com efeito, o art.º 50.º do Código Penal atribui ao tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido [cfr. Figueiredo Dias “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, RLJ, Ano 124.º, pág. 68 e “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, § 518, págs. 342/343].

Como se salientou no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 1997, in processo n.º 1293/96, “facto essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir.”

Ponto é que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas com a aplicação da pena de substituição. “O sentido destas é, aliás, nesta sede, o de se imporem como limite às exigências de prevenção especial, constituindo então o conteúdo mínimo de prevenção geral de integração de que se não pode prescindir para que não sejam, em último recurso, defraudadas as expectativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos.” [cfr. Ac. do STJ de 28 de Julho de 2007, in processo n.º 1488/07, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Rodrigues da Costa, louvando-se na lição de Figueiredo Dias, supra cit.].

A defesa de bens jurídicos é um propósito geral que informa todo o sistema penal, não privativo das penas, pelo que se tem que ligar tal propósito, em matéria de fins das penas, à prevenção geral dita positiva. Depois, e já em matéria de prevenção especial, só se deverá optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime. Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso [cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344].

No caso em apreciação, não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção social do arguido, tanto quanto se revela nos autos, uma vez que se mostra integrado.

No entanto, reafirmamos, são elevadas as imposições de prevenção especial, face ao expendido, devendo ser levadas na direcção da prevenção da reincidência, de modo a obter, na melhor medida possível, um reencontro do agente com os valores comunitários afectados, e a orientação da sua vida no futuro de acordo com tais valores.

Por outro lado, as necessidades de prevenção geral de integração impõem uma pena efectiva, só desse modo se evitando uma perda da confiança posta no sistema repressivo penal pela comunidade.

Com a imposição de uma pena substitutiva, as expectativas da comunidade sairiam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvair-se-ia e o elemento dissuasor não passaria de uma miragem. Nas expressivas palavras contidas no Ac. do STJ de 1 de Abril de 1998, in CJ Acs. STJ, Tomo II, pág. 175, “Se uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício.”

Por tudo quanto se disse, a suspensão da execução da pena não é de molde a satisfazer, o conteúdo mínimo de prevenção geral, que se impõe como limite das considerações de prevenção especial que estão na base do instituto.

Entende-se, por isso, que o arguido não pode beneficiar da pena de substituição prevista na lei e, consequentemente, claudica necessariamente a última pretensão colocada à nossa ponderação.


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IV. Dispositivo.

Face ao exposto, decidimos negar provimento ao recurso interposto.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCs – art.ºs 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na actual versão, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, e art.º 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo citado Decreto-Lei 34/2008, conjugado com a tabela III a que se refere este último preceito.

Notifique.


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Brizida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves