Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
169/10.6TBCSC-B.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: APOSTA
CONTRATO
JOGO
VALIDADE
OBRIGAÇÃO
OBRIGAÇÃO NATURAL
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1245º C. CIVIL; DEC. LEI Nº 422/1898, DE 2/12.
Sumário: I – A respeito dos contratos de jogo ou aposta, o art.º 1245º do Código Civil, depois de estabelecer que tais contratos não são válidos, acrescenta porém, que esses contratos, quando lícitos, constituem fonte de obrigações naturais, excepto se neles concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade, de acordo com os termos gerais de direito, ou se houver fraude na sua execução.

II - O Decreto-Lei n.º 422/1989, de 2 de Dezembro, impõe que a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6.º a 8.º (artigo 3.º), os quais respeitam a jogos a bordo de aeronaves ou navios registados em Portugal, quando fora do território nacional, ou jogos de não bancados ou de bingo, especialmente autorizados pelo membro do Governo da Tutela.

III - Resultando da matéria de facto provada que a aposta donde resul­tou a “dívida exequenda” não decorreu no âmbito duma dessas actividades permitidas, sendo a sua prática considerada ilícita e como tal punida por lei – art.º 108º e seguintes do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro – nunca dela poderia resultar uma qualquer obrigação civil ou mesmo natural.

IV - As “dívidas” resultantes de jogo ou aposta ilícita são insusceptíveis de criar qualquer tipo de obrigação para os participantes, atenta a contrariedade à lei do negócio donde elas emergem.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra


O executado, por apenso à execução comum que lhe foi movida no Tribu­nal Judicial de Cascais, visando o pagamento de € 14.985,62, veio à mesma deduzir oposição, alegando, em síntese, o seguinte:
- O Tribunal Judicial de Cascais é relativamente incompetente para a apre­ciação da causa;
- O título dado à execução é inexequível por prescrição do direito de cré­dito cambiário;
- O contrato de mútuo invocado pelo exequente conduz à inexequibilidade dos cheques face à nulidade da obrigação causal por preterição da forma legalmente exigida;
- Inexiste qualquer relação jurídica com o exequente subjacente à emissão dos cheques, tendo a emissão dos cheques a sua origem numa dívida resultante de uma aposta feita sobre o número do prémio da Lotaria Nacional;
Mais invocou o pagamento da quantia exequenda e, bem assim, a inexis­tência parcial de título executivo e, finalmente, a prescrição de juros.
O exequente contestou a oposição, remetendo para o requerimento execu­tivo, reiterando que a execução tem por base um contrato de mútuo celebrado com o executado.
Remetidos os autos à Comarca de Pombal, por procedência da excepção de incompetência territorial, foi proferido saneador-sentença que julgou procedente a oposição à execução, com a consequente extinção da execução, com fundamento na prescrição dos cheques apresentados como título executivo.
Desta decisão foi interposto recurso, o qual foi julgado procedente, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos, uma vez que os cheques, enquanto documentos particulares poderiam ser admitidos como títulos executivos da obriga­ção subjacente à sua emissão.
Foi proferido novo saneador-sentença que julgou procedente a oposição à execução.
O Exequente inconformado interpôs recurso, formulando as seguintes con­clusões:

Não foi apresentada resposta.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações do Recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
 a) Os factos n.º 6 e 7 da sentença devem ser julgados não provados?
b) Por necessário ao apuramento da verdade deve ser ordenada a inquiri­ção como testemunha de …?
c) Tendo o opoente procedido através da entrega dos cheques ao cumpri­mento de uma obrigação natural, encontra-se vedada a repetição do que já pagou?
2. Dos factos
2.1. Da impugnação da matéria de facto

Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
2.2. Da produção de um novo meio de prova
O Recorrente, para a hipótese de não ser modificada a decisão da matéria de facto pelo reexame da prova produzida, formula a pretensão da audição de mais uma testemunha, não indicada anteriormente.
A produção de novos meios de prova na 2ª instância está prevista no art.º 662º, n.º 2, do Novo C. P. Civil, o qual dispõe:
2 — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produ­ção de novos meios de prova.
A este respeito escreve Abrantes Geraldes [1]:
…não estamos perante um direito potestativo de natureza processual que seja conferido às partes e que à Relação apenas cumpra corresponder, antes deve ser encarado como um poder/dever conferido à Relação e que esta usará de acordo com critérios de objectividade, quando percepcione que determinadas dúvidas sobre a prova ou a falta de prova de factos essenciais poderão ser superadas mediante a realização de diligências probatórias suplementares.

Assim, a necessidade justificativa para que a Relação use este poder deve resultar da aplicação de um critério objectivo que, atentas as circunstâncias, revele a imprescindi­bilidade ou não de realização de uma tal diligência complementar destinada a superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada [2].
Da audição da prova testemunhal produzida na 1ª instância não se nos afi­gura essencial para o apuramento da matéria de facto relevante para a solução do presente litígio, o depoimento da testemunha indicada, porquanto da sua audição não resultaria a remoção de qualquer dúvida que pudesse verificar-se, dado que, perante a prova já produzida, existe um grau de certeza suficiente sobre a factualidade ocorrida.
Assim, não é de admitir a produção do depoimento requerido, o que se decide.
2.3. Dos factos provados

3. O direito aplicável
O Recorrente além de discordar da decisão da matéria de facto discorda também da solução jurídica dada à causa.
Defende que, mesmo aceitando estarmos perante uma dívida de jogo, ela constitui uma obrigação natural, pelo que o facto do Executado ter manifestado a sua intenção de a cumprir, intenção essa traduzida na entrega dos cheques que integram os títulos dados à execução, converte a obrigação natural numa obrigação civil, pelo que o Executado está vinculado ao seu cumprimento.
A factualidade apurada revela que os cheques que foram apresentados como título executivo, foram entregues ao Exequente para pagamento de uma “dívida” resultante de aposta.
Estando os cheques prescritos, releva a relação jurídica que subjaz à sua emissão.
A respeito dos contratos de jogo ou aposta, o art.º 1245º do Código Civil, depois de estabelecer que tais contratos não são válidos, acrescenta porém, que esses contratos, quando lícitos, constituem fonte de obrigações naturais, excepto se neles concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade, de acordo com os termos gerais de direito, ou se houver fraude na sua execução.
Daqui resulta que é condição da constituição de uma obrigação natural que esta resulte de jogo ou aposta lícita.
O Decreto-Lei n.º 422/1989, de 2 de Dezembro, impõe que a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6.º a 8.º (artigo 3.º), os quais respeitam a jogos a bordo de aeronaves ou navios registados em Portugal, quando fora do território nacional, ou jogos de não bancados ou de bingo, especialmente autorizados pelo membro do Governo da Tutela.
O mesmo diploma estabelece que os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte - art.º 1º.
Assim, como explica a decisão recorrida, temos que, quanto à aposta em causa nos presentes autos se apurou que “se o número indicado viesse a corresponder aos últimos algarismos do número sorteado como primeiro prémio da Lotaria Nacional, o ora oponente tinha de pagar ao apostador um prémio de 1.500.000$00 (7.481,97 €), (…)”, pelo que estando nós perante uma aposta cujo desfecho se funda na mera sorte, deve ser considerado de fortuna ou azar e portanto sujeito ao regime do referido diploma.
Resultando também da matéria de facto provada que a aposta [3] donde resul­tou a “dívida exequenda” não decorreu no âmbito duma dessas actividades permitidas, sendo a sua prática considerada ilícita e como tal punida por lei – art.º 108º e seguintes, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro – nunca dela poderia resultar uma qualquer obrigação civil ou mesmo natural [4].
As “dívidas” resultantes de jogo ou aposta ilícita são insusceptíveis de criar qualquer tipo de obrigação para os participantes, atenta a contrariedade à lei do negócio donde elas emergem, pelo que o Executado não é devedor da quantia cujo pagamento é reclamado na presente execução.
E, não estando nós sequer perante uma obrigação natural, fica prejudicada a apreciação da alegação do Recorrente, segundo a qual essa obrigação se teria convertido em obrigação civil com a emissão dos cheques para seu pagamento [5].
Por estas razões improcede o recurso, devendo ser confirmada a decisão recorrida.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Coimbra, 1 de Abril de 2014.

Sílvia Pires (Relatora)
Adjuntos: Henrique Antunes
                   José Avelino


[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 231, ed. 2013, Almedina.

[2] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 233.
[3] Sobre a distinção entre jogo e aposta, ver Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, vol. II, pág. 927, 4ª ed., Coimbra Editora, Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. IV, pág.341, ed. 1995, Rei dos Livros, e Menezes Leitão, in Direito das obrigações, III vol., pág. 579, 5ª ed., Almedina.

[4] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit, Rodrigues Bastos, ob. e loc. cit., Almeida Costa, Direito das obrigações, pág. 180, nota 1, 12ª ed., Almedina, e Menezes Leitão, ob. cit., pág. 580-581.

[5] Neste mesmo sentido, Almeida Costa, na ob. cit., pág. 185, nota 1.