Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4366/11.9TBLRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DA QUALIFICAÇÃO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÕES
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
Data do Acordão: 09/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, LEIRIA, JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 5 CPC, 186 CIRE
Sumário: 1.- Em face da redacção do art.5 nº2 b) CPC não se exige actualmente que para que os factos complementares ou concretizadores possam ser tidos em conta pelo juiz, tenha de haver uma manifestação de vontade da parte em que os mesmos sejam introduzidos no processo, bastando-se a lei em que tal consideração para efeitos processuais seja precedida do exercício do contraditório, que às partes seja dada a faculdade de se pronunciarem sobre essa nova factualidade.

2.- Às partes cabe alegar os factos essenciais, cuja omissão não pode ser suprida oficiosamente.

3.- O art.186 CIRE, além da cláusula geral contida no nº1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus nºs 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa.

4. As alíneas do nº2 do art.186 do CIRE correspondem a presunções absolutas de insolvência culposa.

5.- As presunções estabelecidas no nº3 do art.186 CIRE não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência ou seja, presunções relativas de insolvência culposa).

Decisão Texto Integral:




            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A requerimento do actualmente denominado Centro (…), E.P.E., apresentado em Juízo a 01/08/2011, foi declarada a insolvência da sociedade comercial A (…), Unipessoal, Lda., com o NIPC (…) e com sede (…), por sentença de 27 de Fevereiro de 2013, decisão essa que transitou em julgado.

Na referida sentença de declaração de insolvência proferida nos autos principais, para além do mais, foi nomeado Administrador da Insolvência o Exmº Sr. Dr. (…) o qual veio a ser substituído, através do despacho proferido a 05/02/2015 (constante a fls. 1660 a 1665 do proc. principal), pelo Exmº Sr. Dr. (…)

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Na referida sentença foi declarado aberto o presente incidente de qualificação de insolvência (com carácter pleno).

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O credor Centro (…). (doravante, CHL) juntou alegações quanto à qualificação de insolvência da devedora, alegando vários factos praticados pela insolvente através dos seus administradores que, na sua perspectiva, preenchem nomeadamente as situações previstas no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e g), e nº 3, al. a), do CIRE, concluindo, portanto, pelo carácter culposo da insolvência em apreço.

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O Exmº Sr. Administrador de Insolvência emitiu parecer a respeito da qualificação de insolvência, alegando vários factos praticados pela insolvente através dos seus administradores que, na sua perspectiva, preenchem as situações previstas no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), f) e g), e nº 3, al. a), do CIRE, concluindo, portanto, pelo carácter culposo da insolvência em apreço– cfr. fls. 137 a 142.

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Após a prestação de vários esclarecimentos e junção de elementos, requeridas pelo Digno Magistrado do Ministério Público, foi emitido parecer pelo mesmo, no qual não acompanhou as alegações do credor requerente CHL, nem o parecer do Exmº Sr. Administrador de Insolvência, no que concerne às invocadas situações previstas no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), f) e g), do CIRE.

Todavia, considerando o período compreendido entre 01/08/2008 e 01/08/2011, alegou factos praticados pela insolvente através dos seus administradores, concluindo que a insolvência deve ser qualificada como culposa, nos termos das disposições do art. 186º, nºs 1 e 3, al. a), aqui com referência aos artigos 3º, nº 1, 18º e 20º, nº 1, als. b) e g) iv), todos do CIRE - cfr. fls. 302 a 320.

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Foi cumprido o disposto no art. 188º, nº 6, do CIRE, mediante citações pessoais efectuadas aos Administradores da Insolvente (aqui Requeridos) A (…), M (…) e M (…)  , e mediante notificação à sociedade insolvente, sendo que:

- os Requeridos (…), deduziram oposições com teor similar, nas quais, em suma e para além do mais, refutaram as imputações efectuadas nas alegações do CHL e nos pareceres do Exmº Sr. Administrador de Insolvência e do Digno Magistrado do Ministério Público, e pugnaram pelo carácter fortuito da insolvência – cfr. fls. 326 a 375;

- a sociedade Insolvente não apresentou oposição.

Não se tendo logrado a citação pessoal do Administrador da Insolvente (aqui Requerido) P (…) foi este citado editalmente para os termos do presente incidente, e como não deduziu oposição nem interveio por qualquer forma, foi-lhe nomeado Ilustre Patrono Oficioso, o qual foi citado pessoalmente, tendo exposto que não logrou contactar o Requerido e que por isso, e por dever de ofício, contesta todo o teor do requerimento do incidente de qualificação de insolvência – cfr. fls. 411-412.

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Foi cumprido o disposto no art. 188º, nº 7, do CIRE, tendo o credor CHL apresentado resposta às referidas oposições, concluindo pela improcedência das mesmas e reiterando o seu entendimento quanto à qualificação da insolvência como culposa.

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Proferiu-se despacho saneador, no qual, para além do mais, se fixou o valor da causa em € 30.000,01; identificou-se o objecto do litígio; enunciaram-se os temas da prova; apreciaram-se os requerimentos probatórios; e foi determinada a junção de documentos e prestação de informação – cfr. fls. 413-414.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, com recurso à gravação dos depoimentos prestados, após o que foi proferida a sentença de fl.s 1030 a 1051, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu julgar o incidente de qualificação como não provado e improcedente, com a consequente absolvição dos requeridos no pedido e qualificando-se a insolvência como fortuita, ficando as custas a cargo da massa insolvente.

 

Inconformada com a sentença proferida, dela interpôs recurso o requerente, C (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 1204), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegando, o MP, em 1.ª instância, defende a improcedência do recurso, com o fundamento em que a prova produzida foi bem apreciada e a situação que conduziu à falência da requerida ainda não se encontra completamente esclarecida, dado que a acção que pende na jurisdição administrativa, a fim de apreciar se o contrato de concessão deve ser alterado por modificação das circunstâncias, ainda não se mostra decidida e a ser procedente, permitiria a viabilidade económica da requerida, sem o que, alega, será “precipitado” qualificar como culposa a falência em causa.

Contra-alegando, os requeridos (…)desconsideram o documento junto com as alegações do recorrente, por se tratar apenas de requerimento de acusação deduzida pelo MP, que nada prova relativamente ao que dele consta;  peticionam a rejeição do recurso de facto, relativamente à matéria que o recorrente pretende seja eliminada, com o fundamento em o recorrente não ter indicado, por referência aos assinalados pontos incorrectamente julgados, quais os meios de prova em que se fundamenta, limitando-se a tecer considerações de carácter genérico e relativamente à “nova matéria” que pretende ver aditada, o recorrente não faz qualquer correspondência com a considerada como provada e que a indicação das provas a ter em conta, têm que ver, apenas, com os factos que pretende sejam aditados; e assim não sendo, se considere que a prova foi bem apreciada e devendo manter-se a decisão recorrida, com o fundamento em que não sendo alterada a matéria de facto a considerar, inexiste fundamento para que a falência em apreço seja considerada culposa.

Como resulta do relatório que antecede, o requerente pretende que seja eliminada da matéria de facto dada como provada, o que consta dos respectivos itens 11, 26, 37, 39, 41, 42, 48, 54, 55, 58, 60, 69 a 78, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 106, 107, 108 e 110.

Contudo, fá-lo em termos que acarretam a que se conclua que, o recurso, no que a tal matéria de facto respeita, não está conforme aos ditames legais aplicáveis, pelo que desde logo, em sede de questão prévia, importa apreciar a questão da rejeição do recurso de facto, com o fundamento em o recorrente não ter cumprido o disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do CPC (no que seguiremos de perto o por nós já decidido, em anteriores Apelações).

De acordo com este preceito, em caso de impugnação da matéria de facto e se trate da reapreciação de provas gravadas, sob pena de rejeição, deve o recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com exactidão as passagens da gravação em que se funda e, disposição inovadora, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Ora, como resulta da acta da audiência de julgamento, procedeu-se à gravação dos depoimentos prestados, no sistema de gravação digital em aplicação informática, em uso no Tribunal recorrido.

Assim, nos termos do disposto no supra citado artigo 640.º, o recorrente, em caso de recurso sobre a matéria de facto, para além da indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, tem de indicar, com exactidão, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, as passagens da gravação em que se funda o mesmo, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O recorrente, cf. alegações e conclusões apresentadas (sendo que estas, como consabido e adiante se referirá, é que delimitam os termos do recurso), cf. fl.s 1060 v.º e 1094 e v.º (conclusões 1.ª a 3.ª), respectivamente, limita-se a referir o seguinte:

“Tem, portanto, três vetores o presente recurso.

Em primeiro lugar, a da impugnação da matéria de facto, por não poder deixar de entender que a d. Sentença enferma de erro grave na apreciação da prova, por omissão da extração de presunções judiciais a partir de um conjunto de factos índice evidentemente demonstrados, e por deficiente aplicação das regras da experiencia comum, que a conduziram a aceitar, sem dúvidas e plenamente, por um lado os estudos e projeções económicos juntos pelos requeridos, que no que respeita à matéria de relevo para o processo não passam de meras hipóteses, e por outro a versão dos gerentes com as suas inocentes declarações, que pensavam que até eram credores do Hospital, quando não cumpriam a obrigação de pagar as rendas, nem a de entregar a concessão, nem a de boa-fé no cumprimento dos contratos.

As regras da experiencia comum foram assim aplicadas de modo errado, numa base que tomamos a liberdade de denominar de Inspiração de Rousseau, e que não é a real.

Impugna-se, pois, a matéria de facto dada por assente nos pontos 11, 26, 37, 39, 41, 42, 48, 54, 55, 58, 60, 69 a 78, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 106, 107, 108, 110, por irrelevante para a discussão da causa, contrária à prova produzida e bem assim à materialidade que se deve ter por provada, e que adiante se identifica:”.

E;

“1ª – Tem por objeto o presente recurso, em primeiro lugar, a impugnação a matéria de facto com recurso, entre outras provas, aos depoimentos gravados em sede de audiência de julgamento, cujos depoimentos relevantes ao efeito se transcreveram supra.

2ª – Tal impugnação, resulta de o recorrente não poder deixar de entender que a d. Sentença enferma de erro grave na apreciação da prova, por errada apreciação da mesma devido a deficiente utilização das regras da experiencia comum, por contradição entre as fontes probatórias onde assenta as suas conclusões factuais e o que resulta de documentos que pacificamente evidenciam o contrário, e ainda por omissão da extração de presunções judiciais a partir de um conjunto de factos índice evidentemente demonstrados, contrariando o estabelecido no artigo 351º do Cód. Civil.

3ª – Assim, no entender do recorrente a matéria dada por provada na d. Sentença recorrida, nos pontos 11, 26, 37, 39, 41, 42, 48, 54, 55, 58, 60, 69 a 78, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 106, 107, 108 e 110 (Cap. II –Fundamentos da Matéria de Facto) enferma dos referidos vícios, devendo ser eliminada do probatório aditando-se antes, à matéria provada, um conjunto de factos resultantes da prova produzida e existente nos autos, analisada à luz das regras da experiencia comum e, pontualmente, com recurso a presunções judiciais extraídas da generalidade dos outros factos demonstrados evidentemente por prova direta. Tal materialidade, cujo aditamento se impõe, é o seguinte”.

Considerações genéricas que reitera, nas conclusões 17.ª, 18.ª e 24.ª, mas em que continua sem concretizar quais os meios de prova que acarretem a eliminação da matéria de facto ora em apreço.

Inexiste, pois, uma ligação de tal descrição/motivação com a matéria de facto anteriormente referida e fundamentada, específica e concretamente, com base nos elementos probatórios em que assenta a pretensão recursiva, em sede de matéria de facto, por reporte, reitera-se, a cada um dos itens da matéria de facto dada por provada e não provada, a qual não pode ser baseada em alegações genéricas de discordância ou por apelo a trechos de depoimentos ou de documentos constantes dos autos, sem se saber, em concreto, qual a matéria de facto em causa, que está delimitada e descrita em cada um dos seus vários itens, como, de resto, na referida “Introdução”, a requerente sinalizou, mas sem que, depois, tenha associado, a cada um deles, quais os elementos probatórios atinentes, com o exige o preceito acima referido.

Consequentemente, tem de concluir-se que o seu recurso, em sede de impugnação da matéria de facto, não obedece aos critérios expostos no referido artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do CPC, pelo que tem de ser, imediatamente rejeitado, sem que exista lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento – neste sentido, veja-se Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Reimpressão, Almedina, Fevereiro de 2008, pág.s 141 a 143 e F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos Em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Setembro de 2005, a pág. 171, último parágrafo e nota 354.

Também o STJ, se pronunciou no sentido de que o incumprimento do ónus de alegação em causa, conduz à imediata rejeição do recurso, entre outros, nos seus Acórdãos de 15/09/2011, Processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj e de 23/11/2011, in CJ, STJ, Ano XIX, Tomo III/2011, a pág. 126 e seg.s.

Como refere Abrantes Geraldes, ob. cit., a pág.s 142 e 143, as exigências contidas nos preceitos em referência devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor e visando impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação inconsequente de inconformismo.

E, como se salienta, nos Arestos do STJ ora citados, só exigindo-se o fundamento da discordância, se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os concretos depoimentos contrariam o julgamento da matéria de facto operado no Tribunal recorrido, se dará cabal cumprimento ao princípio do contraditório, só assim se permitindo à parte contrária a possibilidade de contrariar os argumentos invocados pelo recorrente.

Compulsando o teor das alegações e conclusões de recurso, tem de concluir-se que o recorrente, manifestamente, não cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, al. a), do CPC, o que acarreta a rejeição do recurso no segmento relativo à matéria de facto, nos termos ali constantes.

Também, para tal não basta alegar o que consta de certos documentos juntos aos autos (e sempre, reitera-se, com a pecha de que se desconhece a que item, em concreto, se refere o recorrente).

Os documentos são meios de prova constantes do processo, mas para se fundamentar o recurso de facto com base no seu teor não basta alegar o que deles consta.

Efectivamente, é preciso especificar o porquê de os mesmos levarem a um diferente juízo do efectuado em 1.ª instância, como resulta do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, com excepção, claro está, de se tratar de documento autêntico desconsiderado e que faça prova plena de um facto dado, não obstante isso, como não provado ou um documento superveniente que imponha diversa decisão – cf. artigo 662.º, n.º 1, do CPC (antigo 712.º, n.º 1, b) e c), o que não é o caso.

Ora, como resulta de fl.s 1040 v.º a 1043 v.º e das respostas dadas a cada facto (ao deante transcritas), o M.mo Juiz a quo apreciou cada um dos documentos ali referidos e explicou, justificando e conexionando-os com os depoimentos prestados, o porquê da análise em termos probatórios relevantes que deles fez, por reporte com a prova testemunhal produzida e decidiu em conformidade.

Alguns deles foram impugnados, mas os mesmos foram tidos em conta pelo julgador e incumbia à recorrente, justificadamente, “desmontar” o raciocínio exposto na fundamentação da matéria de facto tida como provada e não provada.

Como resulta do já exposto, é imposto aos recorrentes, em sede de matéria de facto, o ónus de indicar os fundamentos da sua discordância, até para a contra-parte poder exercer o contraditório.

O facto de o recurso de facto se fundamentar, também ou apenas, na prova documental, não afasta o ónus de a respectiva motivação ser fundamentada, sob pena se desvirtuar o intuito do legislador ao regulamentar o respectivo regime que teve em vista facultar às partes uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito, tendo o recorrente o ónus de os apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso, decorrendo este especial ónus de alegação do recorrente dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado – como resulta do Preâmbulo do DL 39/95, de 15/2 e o refere Abrantes Geraldes, ob. cit., a pág. 143, nota 195.

Do que se deixa dito, decorre, ainda, que na sentença recorrida se faz uma análise crítica das provas, em conformidade com o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, sendo que a recorrente discorda da forma como foi apreciada a prova produzida mas, tal não acarreta que a decisão recorrida padeça de tal vício.

Pelo que se rejeita o recurso interposto pela recorrente, no que se refere à matéria de facto em apreço, em função do que se mantém, relativamente à mesma, a factualidade dada como provada e não provada em 1.ª instância.

Conexionada com esta questão e, por isso, ainda, no âmbito do recurso interposto acerca da matéria de facto dada como provada e não provada, cf. conclusão 3.ª, 2.ª parte, pretende o recorrente que se passe a dar como provada a factualidade que ali descreve nas alíneas A) a Y), para o que (cf. conclusões 4.ª a 16.ª) aduz os elementos probatórios para tal a considerar e que, relativamente a cada uma de tais alíneas, ali especifica/concretiza.

Acontece que com excepção da referida na mencionada alínea T), 1.ª parte (alegada nos artigos 53.º e 54.º do requerimento inicial), toda a demais consiste em “matéria nova”, só agora, em sede de alegações, referida, pelo que, pelas razões ao deante expostas, não poderá ser tida em conta.

No que a esta questão respeita, passamos a seguir o por nós já decidido em outros casos, em que semelhante questão se nos colocou.

Dispõe-se no artigo 5.º, n.os 1 e 2, al. b), do CPC que:

“1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

(…)

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.”.

Preceito, este, que corresponde ao anterior 264.º, n.º 3, do CPC, embora, com algumas diferenças.

Efectivamente, dispunha-se neste que:

“3. Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.”.

Como resulta do cotejo entre estas duas normas, verifica-se que, no caso de ser o juiz que, por sua iniciativa, os pretende considerar, despareceu a exigência de que a parte manifeste vontade de deles se aproveitar (a que se seguia, no anterior regime, o exercício do contraditório), bastando-se, agora, a lei em que às partes seja dada a “possibilidade de se pronunciar”.

Não obstante, mesmo no âmbito da nova lei, Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum …, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, a pág.s 141 (nota 2) e 309, defende que continua a exigir-se que seja a parte interessada a declarar que se quer aproveitar dos factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados, assim se observando o ónus da alegação, decorrendo a necessidade desta declaração do princípio do dispositivo que, de acordo com este Autor, estava expressa no anterior 264.º, n.º 3 e que está implícita na actual formulação.

Segundo ele, a pronúncia das partes terá de ser positiva, no sentido de introduzir o facto no processo, sob pena da violação do princípio do dispositivo, visando no seu entender, a alteração legislativa, apenas realçar que a alegação pode provir de qualquer das partes mas sem que se extinga a obrigação de a parte que deles se quiser aproveitar “os introduza como matéria na causa, mediante a manifestação, equivalente a uma alegação, da vontade de deles se aproveitar.”.

Com todo o respeito que nos merece o Autor ora citado, em face da diferença de redacção de um para o outro preceito, não nos parece que, actualmente, se continue a exigir que para que os factos complementares ou concretizadores possam ser tidos em conta pelo juiz, tenha de haver uma manifestação de vontade da parte em que os mesmos sejam introduzidos no processo, bastando-se, como já referido, a lei em que tal consideração para efeitos processuais seja precedida do exercício do contraditório, que às partes seja dada a faculdade de se pronunciarem sobre essa nova factualidade.

Repare-se que a lei diz que tais factos podem ser considerados pelo juiz, desde que respeitado o contraditório, nada mais se exigindo, designadamente que a parte se manifeste nesse sentido.

O que importa é que se trate de factos “que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa” e não de factos essenciais (que às partes cabe alegar, cf. n.º 1 do artigo 5.º do NCPC e que, por isso, não pode o juiz suprir através de averiguação oficiosa).

Ora, no caso em apreço, parece-nos que se trata de factos essenciais, uma vez que todos eles visam a pretensão formulada pelo recorrente, no sentido de a insolvência em causa vir a ser declarada/qualificada como culposa.

Assim e desde logo, configurando os factos em apreço, aqueles em que fundamenta a referida qualificação da insolvência, trata-se de factos essenciais, cuja não alegação, não pode ser suprida pelo juiz, cf. citado artigo 5.º, n.º 1.

Todavia, ainda que se entenda estarmos perante a consideração de factos complementares do anteriormente alegado, também, ainda assim, não poderão os mesmos relevar.

Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao NCPC, Almedina, 2014 - 2.ª Edição, a pág.s 42 e 43, são complementares ou concretizadores os factos pertencentes à relação jurídica material já caracterizada pela descrição de outros factos essenciais, integrando a causa de pedir deficientemente narrada na petição inicial ou na reconvenção.

Ali defendendo, ainda, a desnecessidade de manifestação de vontade da parte em deles se aproveitar, desde que respeitado o princípio do contraditório.

Ora, no caso em apreço, como já referido, o recorrente descreveu os factos que no seu entende acarretam a qualificação da insolvência como culposa, ao que os requeridos contestantes, opõem um conjunto de factos e circunstâncias que, no seu entender, conduzem a que a insolvência seja de considerar como fortuita, mas sem que, como já assinalado, o requerente tenha alegado os concretos factos que agora pretende sejam relevantes e a considerar.

Ou seja, quando muito, estaríamos (o que, assim, não entendemos, face ao acima referido), precisamente, no domínio de deficiente/incompleta narração dos factos no requerimento inicial e os factos “considerados” se integram na relação jurídica atinente, completando-a/esclarecendo-a.

Tratar-se-ia, nesta ordem de raciocínio, de factos complementares do anteriormente alegado mas seria necessário que a parte interessada se manifestasse nesse sentido, porque o próprio julgador não se prevaleceu da faculdade que é estabelecida no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do NCPC, caso em que, ainda assim, seria necessário, como nele se exige, o exercício do contraditório, pelas ora partes processuais, o que não se vislumbra ter ocorrido.

Esta posição é, igualmente, defendida por M. Teixeira de Sousa, em anotação a Acórdão desta Relação (subscrito por este Colectivo) de 22/09/2015, no seu blogue do IPPC.

Concorda-se com a posição aí referida (apenas com a ressalva de que ali, na nossa opinião, por se tratar de causa de pedir complexa – acidente de viação – não se tratava de facto complementar ou concretizador, mas sim autónomo, o que impedia a sua consideração, para mais apenas em fase de recurso, como era o caso).

Assim, reitera-se, só considerando-se que se trata de factos que são mero complemento do já alegado, pode o julgador, nos termos assinalados, deles fazer-se prevalecer, com respeito pelo princípio do contraditório.

Acrescente-se, para melhor esclarecimento, que a não exigência de que a parte se manifeste no sentido de se aproveitar do facto complementar, nos molde explicitados, se verifica nos casos em que é o juiz a manifestar a intenção de os vir a considerar para a decisão do pleito, em que basta que se dê às partes a possibilidade de acerca disso se pronunciarem.

Como é óbvio, nos casos em que o juiz assim não procede, como ocorreu no caso em apreço, a única forma de os factos complementares serem introduzidos no processo, é através de manifestação de vontade da parte interessada, nesse sentido, como, em anteriores decisões temos afirmado (v. g. no Acórdão acima referido e anotado no blogue citado).

Efectivamente, se o juiz assim não proceder, só por iniciativa da parte (sujeita a contraditório) é que o facto poderá ser introduzido nos autos.

Daqui que, (por referência ao artigo 264.º do CPC) como se salienta no Acórdão do STJ, de 31/03/2011, Processo n.º 281/07.9TBSVV.C1.S1, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj, “não obstante a reforma do processo civil de 95/96 (…) que visou também garantir a prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, tendo nela saído revigorado o princípio do inquisitório ou da oficiosidade, imbuído de uma lógica de cooperação, a verdade é que o Juiz só pode, em princípio, fundamentar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo de poder sempre atender àqueles que não carecem de alegação ou de prova (art. 514.º do CPC) de obstar ao uso anormal do processo (art. 665 do mesmo diploma legal) e de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e da discussão da causa (art. 264.º, n.os 2 e 3, ainda do CPC)”.

Como refere Lopes do Rego, ob. cit., a pág. 253 “o tribunal tem um amplo poder inquisitório relativamente aos factos instrumentais, podendo investigá-los no decurso da audiência, quer por sugestão da parte interessada, quer mesmo por iniciativa própria”.

Mas o mesmo já não se passa relativamente aos factos essenciais, os que integram e constituem a causa de pedir, uma vez que quanto a estes se nega a inquisitoriedade que se admite relativamente aos instrumentais – neste sentido, veja-se M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Março/Julho de 1996, pág.s 70 a 72.

Posto isto e atento a que os factos em apreço nesta questão do presente recurso são essenciais para a decisão da pretensão jurídica solicitada e que não foram anteriormente alegados pelas partes, máxime, pelo ora recorrente, não podem agora ser tidos em conta, apenas em sede de recurso, – cf. artigo 5.º, n.º 1, do NCPC.

Sendo complementares ou concretizadores, mesmo assim, ficariam dependentes de manifestação de vontade da parte em dele se aproveitar e depois de cumprido o contraditório, (sendo que nada disto se verificou), nos termos do disposto no n.º 2 deste artigo.

Efectivamente, salvo o devido respeito (e seguindo, como supra referido, o por nós já decidido anteriormente), o que se acha previsto no art. 5.º/2 do NCPC não têm o significado que o ora recorrente parece lhe querer dar, isto é que, por derivar do depoimento de uma testemunha ou do teor de um documento, um certo facto, não obstante não ter sido alegado, tem, agora, de ser levado em consideração.

Como refere o Prof. Lebre de Freitas[1], “quanto à consideração dos factos complementares ou concretizadores que ressaltem da instrução da causa, o regime mantém-se, exigindo a lógica do esquema processual derivado do princípio do dispositivo que a parte a quem os factos aproveitem os introduza como matéria da causa, mediante a manifestação, equivalente a uma alegação, da vontade de deles se aproveitar.

Não é pois correcta, a nosso ver e com o devido respeito, a ideia, porventura retirada duma leitura apressada da recente Reforma do regime do processo civil, desta Reforma dispensar as partes de dizer/alegar, nos articulados, a sua versão factual, na medida em que – dir-se-á em tal ideia, a nosso ver, “errada” – no julgamento, se pode discutir tudo e mais alguma coisa, tendo, depois, o juiz que efectuar uma redacção dos factos que inclua o “tudo e mais alguma coisa” – aqui se incluindo o que foi meramente aflorado no julgamento (e que antes nunca se disse/alegou) e o que possa extrair-se de todo o tipo de documentos que foram sendo juntos (e que antes nunca se disse/alegou) – no elenco factual da sentença; mais, tendo depois a Relação, caso a 1.ª Instância o não tenha feito, que efectuar tal redacção do “tudo e mais alguma coisa” que nunca foi alegado e que, entretanto, a parte se lembrou que pode ter interesse e pode “dar jeito”.

Nada há na lei processual actual, salvo melhor opinião, que permita dizer ou pensar que o NCPC escancara a porta à desordem e surpresa processuais.

Permite (como já antes o art. 264.º/3) que factos que complementam ou concretizam os factos alegados pelas partes sejam tomados em conta, mas, evidentemente, após uma parte dizer que se quer aproveitar deles; o que, verdadeiramente e em bom rigor, só acontece após a exacta concretização dos factos de que se quer aproveitar.

Até tal momento – até a parte concretizar o facto, como entende que ele ocorreu, e manifestar a vontade de dele se aproveitar, o que naturalmente tem que acontecer na 1.ª Instância – nem sequer a outra parte está devidamente avisada da possibilidade de tal facto ser utilizado e, por isso, compreensivelmente, poderá não fazer incidir o seu labor probatório sobre ele (ou sobre a contraprova do mesmo).

Tudo isto para, encurtando razões, dizer e concluir que não assiste qualquer razão ao recorrente, aqui apelante, nas conclusões supra transcritas, no que a esta questão respeita, uma vez que, sem ter feito a respectiva e oportuna alegação e sem ter manifestado uma explícita vontade de se aproveitar de tais concretos factos, pede que os mesmos sejam dados como provados; ou seja, pede que seja dado como provado algo que não foi antes idoneamente introduzido/alegado no processo.

Sem embargo de se acrescentar que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, o campo por excelência para o apelo a presunções para dar determinado facto como apurado, é no julgamento a efectuar em 1.ª instância.

De igual modo, não basta para que se considerem alguns de tais factos como provados, que tenha sido deduzida a acusação proferida pelo MP contra os gerentes da insolvente.

Só a sentença penal transitada poderá ter efeitos relativamente à matéria nela dada como provada, no que respeita a outros processos em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção, nos moldes referidos no artigo 623.º, do CPC.

Como acima já referido, a única excepção vai para o referido na alínea T), 1.ª parte, uma vez que está comprovado – e nem os requeridos o negam – que a entrega da farmácia apenas se verificou em 12 de Setembro de 2013, cf. respectiva informação de fl.s 1242 dos autos principais.

Assim, não se podem ter em linha de conta os factos acima narrados, apreciando-se o recurso, na vertente de facto, apenas quanto aos factos a seguir, quanto a tal, assinalados, com excepção do vertido na alínea T), 1.ª parte; ou seja, que:

“A AET continuou a exploração da farmácia hospitalar até 12 de Setembro de 2013”.

Consequentemente, acrescenta-se aos factos provados um novo item, com o n.º 115, com a seguinte redacção:

“A AET continuou a exploração da farmácia hospitalar até 12 de Setembro de 2013”.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se constitui abuso do direito, o facto de a A(…) ser uma sociedade veículo, constituída com outras sociedades, designadamente a S (…) para servir o interesse de um grupo de pessoas, acarretando a desconsideração da personalidade da AET, respondendo os seus sócios e gerentes, pelas respectivas dívidas e;

B. Qualificação da insolvência: se a mesma é de qualificar como fortuita ou culposa e;

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1 - Os autos de insolvência de A (…), Unipessoal, Ldª (doravante AET) foram instaurados em 1-8-2008.

2 - Tendo sido pedida a declaração de insolvência pelo então C (…) ora denominado Centro C (…)

3 - No decurso do processo de insolvência, em 12-9-2012, a A(…) apresentou um requerimento para início de processo especial de revitalização, que originou a suspensão daquele.

4 - Não se logrou obter qualquer acordo visando a revitalização da A(…).

5 - Tendo, em 27-2-2013, sido decretada a insolvência da A(…), transitando em julgado a respectiva decisão em 19-3-2013.

6 - A A(…) é uma sociedade comercial unipessoal por quotas, com o capital social de € 5.000,00, cuja constituição foi registada a 26/11/2007.

7 - O objecto consiste na exploração da farmácia existente no Hospital de (...) , em (...) .

8 - O capital social da requerida é representado por uma quota única no valor nominal de € 5.000,00, titulada pelo sócio A (…).

9 - São gerentes da mesma: A (…), M (…) (estes desde a sua constituição até à respectiva cessação por renúncia, datada de 19-7-2012), P (…) e M (…)estes dois últimos desde 1-1-2011.

10 – Apesar do Requerido P (…)ter cessado as funções de gerente por renúncia datada de 17-8-2011, registada a 11-11-2011, continuou a exercer a gerência de facto da insolvente, nomeadamente a determinar quais os pagamentos a efectuar, as encomendas a realizar, a dar ordens aos trabalhadores, etc..

11 - Os requeridos M (…), M (…) e A (…) não participaram na gestão da sociedade insolvente por força do contrato de gestão infra referido no facto 37-, tendo apenas a requerida M (…), por si e em representação dos requeridos M (…) e A (…), intervindo como “controler” ou “supervisora” do desempenho da S(…) no âmbito do referido contrato de gestão, nomeadamente quanto aos rácios do negócio e quanto aos termos do litígio com o CHL.

12 - O C (…) e A (…) celebraram um contrato de concessão da exploração do serviço público criado no Hospital de (...) , para a dispensa de medicamentos ao público, em 7 de Janeiro de 2008.

13 - A A(…) passou a explorar a Farmácia do Hospital de (...) , em (...) , com a sua abertura ao público, o que ocorreu no dia 1 de Setembro de 2008.

14 - Tal contrato tinha uma duração prevista de cinco anos.

15 - Obrigou-se a concessionária A(…) a pagar ao concedente uma renda anual, constituída por uma parcela fixa de cem mil euros e uma parcela variável, correspondente a 30,25% sobre o valor da facturação anual da farmácia, com IVA a acrescer.

16 - A primeira renda anual, reportou-se ao período de 1 de Setembro de 2008 a 1 de Setembro de 2009, e foi paga.

17 - E a segunda renda, ao período de 1 de Setembro de 2009 a 1 de Setembro de 2010 e assim sucessivamente.

18 - A obrigação do pagamento da dita renda anual, na sua componente fixa e variável, ocorria até quinze dias após o termo do período anual a que se reportava.

19 - A parcela fixa da renda (€100 000,00) era actualizável anualmente em função do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística.

20 - Por aplicação desse factor, a parcela fixa da segunda renda anual, passou a ser de € 102.800,00.

21 - A parcela variável da renda anual devida por A(…), relativa ao segundo ano do contrato, era de € 584.020,87, correspondentes a 30,25% da facturação anual.

22 - A renda devida relativa ao segundo ano da concessão de exploração da Farmácia do Hospital de (...) , era de € 686.820,87, valor este a que acresceria IVA à taxa legal de 21%, no montante de € 144.232,38, o que perfaria a quantia de € 831.053,25.

23 - Da referida quantia, a A(…) apenas entregou ao C(…), até 15 de Dezembro de 2010, as seguintes quantias:

a) Em 11 de Novembro de 2010 - € 52.800,00,

b) Em 18 de Novembro de 2010 - € 50.000,00.

24 - O requerente C(…) considerou perdida a seu favor a caução prestada por A(…) no montante de € 25.000,00.

25 - O C(…) recebeu entretanto da A(…), em 12-1-2011, mais € 50.000,00.

26 - Em 15 de Dezembro de 2010 o C(…) instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria acção administrativa comum sob a forma de processo ordinário, contra a (.,..) para cobrança da referida renda em dívida, a qual ali corre termos com o nº 1.833/10.5BELRA.

27 - Por deliberação do respectivo Conselho de Administração de 25 de Fevereiro de 2011, o C(…) resolveu o referenciado contrato de concessão de exploração.

28 -Tal deliberação foi comunicada à A(…) e por esta recebida em 1 de Março de 2011.

29 - A A(…) nada mais pagou ao C(…), entrando em incumprimento a partir de 16-9-2010 (data em que até à qual deveria ter pago o valor das rendas relativas ao 2º ano de exploração da farmácia).

30 - A A(…) também não pagou ao C(…) a parte da 3ª renda anual devida pela concessão em apreço até à resolução do contrato (1-3-2011), correspondente ao período de 1-9-2010 a 28-2-2011.

31 - Dívida esta quantificada, incluindo a parte fixa e a parte variável, em € 429 092,83 (IVA incluído).

32 - No âmbito da insolvência foram reclamados, por 19 entidades, créditos que foram reconhecidos sem condição no valor de € 1 560 388,50, sendo o C(…) o maior credor com € 982 451,42, correspondente a 62,96% dos créditos reclamados e reconhecidos sem condição.

33 – Todavia, foi deduzida impugnação à lista de credores pelo credor C (…)sustentando que os créditos que detém sobre a insolvência são de montante superior ao reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência.

34 - Tal credor impugnante e o Sr. Administrador da Insolvência acordaram em considerar reconhecida a parte impugnada do crédito; no que diz respeito ao seu montante, acordaram que este fica reconhecido sob condição suspensiva, nos termos do artigo 50º do CIRE, da decisão que vier a ser proferida nos autos de Acção Administrativa Especial nº 329/11.2BELRA, a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, reduzindo-se o montante de tal crédito reconhecido, ou não, em função de tal decisão.

35 - Em termos de contas da insolvente, os resultados líquidos dos exercícios foram os seguintes:

2008 – negativo no montante de € 122 851,73, apresentando nas contas de “Dívidas de terceiros” a soma de € 134.842,60, e nas contas “Depósitos bancários” e “Caixa” a soma de € 105.071,22;

2009 – negativo no valor de € 434 992,58€, apresentando nas contas de “Dívidas de terceiros” a soma de € 259.505,60, e nas contas “Depósitos bancários” e “Caixa” a soma de € 219.751,15;

2010 – negativo no montante de € 463 357,27, apresentando nas contas de “Dívidas de terceiros” a soma de € 484.483,85, e na conta “Caixa e Depósitos bancários” a soma de € 147.912,40;

2011 – negativo no valor de € 342 237,88, apresentando nas contas de “Dívidas de terceiros” a soma de € 155.716,39, e na conta “Caixa e Depósitos bancários” a soma de € 45.526,25.

36 – A insolvente manteve o capital social em € 5 000,00 e registou nos exercícios de:

2008, capitais próprios negativos de € 117 851,73

2009, capitais negativos de € 552 844,31

2010, capitais próprios negativos de € 1 016 366,62

2011, capitais próprios negativos de € 1 358 604,50.

37 - A gestão da sociedade insolvente foi confiada à sociedade comercial anónima denominada “S (…), S.A.” (doravante apenas SS (…)), com o NIPC (…), por “contrato de consultoria e gestão” datado de 11 de Maio de 2008, mediante a remuneração de 1% da facturação bruta mensal da insolvente, sem IVA, sendo que em data não apurada foi liquidado pela A (…) à S(…) o montante de € 58.080,00.

38 - Esta sociedade – a S(…) – tem como objecto social a exploração e gestão de farmácias hospitalares e de sociedades concessionárias de farmácias hospitalares.

39 - A S(…) era uma sociedade anónima cuja administração efectiva estava confiada ao Presidente do Conselho de Administração, C (…), e a P (…), filho da vice-presidente M (…).

40 - Para além da gestão da sociedade insolvente e de outras sociedades concessionárias de farmácias hospitalares, a S(…) explorava desde 26-6-2010 – data da abertura -, a farmácia hospitalar do Hospital X (...) , EPE, sita no Porto, ao abrigo de um contrato de concessão administrativo celebrado em 17-9-2009.

41 – A gestão efectuada pela S(…) sempre teve como propósito economias de escala e vantagens para as farmácias geridas por si, nomeadamente por funcionar como uma “central de compras”, tendo logrado obter para a A(…), para além do mais, períodos de carência de vários meses e até de um ano relativamente aos pagamentos devidos aos principais fornecedores de medicamentos.

42 - O contrato administrativo de concessão da exploração do serviço público criado no C (…), para a dispensa de medicamentos ao público, nº 17/2009, foi celebrado pelo requerente CHL na prossecução de interesses do Estado, e no uso de competências públicas.

43 - A celebração desse contrato teve lugar ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 235/2006, de 6.12, posteriormente revogado pelo Decreto-Lei nº 241/2009, de 16.09, os quais instituíram o regime de instalação, abertura e funcionamento de farmácia de dispensa de medicamentos ao público nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e as condições da respectiva concessão.

44 - Diplomas esses que, em conjugação com as orientações políticas estratégicas do Estado para o sector da saúde, concretizaram um dos eixos do compromisso celebrado entre a A (…)e o Governo em 2006, intitulado “Compromisso com a Saúde”.

45 - No ponto 14º desse documento, subscrito pelo Governo, exarou-se que:

Serão instaladas farmácias de venda ao público nos estabelecimentos hospitalares para dispensarem receituário dos serviços oficiais de saúde, devendo funcionar 24 horas por dia e 365 dias por ano. Estes serviços serão concessionados, sendo dada preferência a proprietários de farmácias localizadas na mesma zona.”

46 - O ponto 15º desse mesmo documento prescrevia que: “Dar-se-á início à dispensa de medicamentos em unidose no ambulatório, em termos a regulamentar.”

47 - Em Agosto de 2007, é aberto o concurso público para a exploração da farmácia hospitalar do C (…).

48 - Em consequência, a A(…)solicitou, ao tempo, a elaboração de estudo externo para avaliar o potencial de vendas e condições de exploração da farmácia em causa.

49 - Isto é, um estudo de viabilidade económico-financeira da exploração.

50 - O estudo foi elaborado tendo em consideração o enquadramento legal do sector à data, nomeadamente em matéria de organização e funcionamento das farmácias – incluindo horário de funcionamento e número de técnicos legalmente exigido –, preço dos medicamentos de marca e preço dos medicamentos genéricos.

51 - Concretizando, o referido estudo assentou, entre outros, nos seguintes pressupostos – alguns deles saídos directamente do sobredito “Compromisso com a Saúde”, directamente subscrito pelo Governo:

a) Exclusividade, em relação às farmácias de oficina, da abertura das farmácias hospitalares 24h/dia, 365 dias por ano;

b) Exclusividade, em relação às farmácias de oficina, de comercialização de medicamentos retrovirais e oncológicos;

c) Comercialização de medicamentos por unidose;

d) Estabilidade do preço dos medicamentos genéricos e correspondente margem de comercialização;

e) Possibilidade das farmácias poderem lançar concursos para aquisição de medicamentos, permitindo a aquisição junto dos laboratórios, com uma margem maior;

f) Prescrição por DCI (Denominação Comum Internacional).

52 - O estudo teve ainda em consideração um conjunto de dados disponibilizados pelo requerente C(…) – dados plasmados, por exemplo, nos cadernos com base nos quais foram, ao tempo, elaboradas as dotações orçamentais do C (…) nomeadamente as previsões e estatísticas quanto a:

a) Número de utentes diários das consultas externas;

b) Número de urgências realizadas;

c) Número de cirurgias realizadas;

d) Áreas geográfica abrangida pela valência hospitalar.

53 - Todas as circunstâncias supra referidas foram tidas em conta pela A(…) na sua decisão de apresentar a sua proposta ao concurso público de adjudicação da concessão de gestão e exploração da farmácia de dispensa de medicamentos ao público do C (…).

54 - Com efeito, foi perante as conclusões do estudo supra referido que a AET decidiu apresentar proposta no âmbito do concurso público aberto, nos termos, ao tempo, do Decreto-Lei nº 235/2006, de 6.12.

55 - A proposta apresentada pela sociedade insolvente, posteriormente adjudicada, e a vontade de contratar com o Centro Hospitalar os termos da concessão, tinham como pressuposto irredutível a viabilidade económica e financeira da exploração da farmácia hospitalar.

56 - As vendas projectadas pela A(…)tinham por base os seguintes pressupostos:

a) Um volume de consultas externas e urgências realizadas na unidade hospitalar de 650 utentes / dia;

b) Um valor médio de comparticipação pelo SNS por receita de cerca de 23,00€, com base na informação de mercado disponível para o Distrito de (...) ;

c) Uma taxa de comparticipação média de 66%;

d) Uma taxa de captação de receituário prescrito pelo Hospital de cerca de 20%;

e) Um “mix” de vendas, entre os vários produtos a disponibilizar na farmácia, sendo que os genéricos teriam um peso de 35%, os medicamentos de marca 50% e os restantes 15% seriam respeitantes a outros produtos, conforme é habitual nas farmácias;

f) A prescrição generalizada por DCI;

g) A dispensa de medicamentos em unidose;

h) Dispensa de medicamentos retrovirais e oncológicos;

i) Colaboração do Hospital na divulgação dos serviços prestados pela Farmácia.

57 - Só a manutenção do cenário acima descrito justificaria o racional económico e financeiro da proposta apresentada.

58 - Exigindo-se, por isso, que o cenário jurídico resultante do “Compromisso com a Saúde” se mantivesse.

59 - Tanto por via activa (legislar e / ou regulamentar), como por via passiva (não legislar e / ou regulamentar em sentido diverso do então vigente).

60 - Após a adjudicação, foi investida quantia não concretamente apurada, mas entre € 100.000,00 (cem mil euros) e € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), com a realização de obras no estabelecimento explorado pela insolvente, foi comprado equipamento imobiliário, contratado pessoal para assegurar o funcionamento 24 horas por dia, feito investimento em stock de medicamentos e apresentado uma garantia bancária no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).

61 – Após a abertura ao público em 01.09.2008 da farmácia hospitalar explorada pela Insolvente verificou-se o seguinte:

62 - Através da Portaria nº 1016-A/2008, de 8/9, foi imposta a redução de 30% nos preços dos genéricos;

63 - Em Julho de 2009, é publicada a Portaria nº 697/2009, de 1.07, que estabelece a dispensa por unidose, mas só aplicável à região de Lisboa e Vale do Tejo;

64 - Em Julho de 2010, tem lugar a redução, por via administrativa, dos preços dos medicamentos de marca, em 7%;

65 - Em Agosto de 2010, tem lugar a redução, por via administrativa, dos preços dos medicamentos genéricos num número elevado de casos, redução essa entre os 20% e os 30%;

66 - Ainda em 2010, em Outubro, é publicado o Decreto-Lei no 106-A/2010, de 1.10, que impõe a redução, por via administrativa, de 6% no preço de todos medicamentos;

67 - Em Novembro de 2011, é publicado o Decreto-Lei nº 112/2011, de 29.11., que regula os preços dos medicamentos após 1/1/2012 com vista à poupança, ademais impondo margens regressivas;

68 - Em 2012, nova redução de margens e de preços (medicamentos de marca em menos 5,6% e genéricos em menos 15,3%).

69 - No caso particular da farmácia do Centro Hospitalar de (...) explorada pela insolvente, em que as vendas acumuladas ao longo dos anos que durou a concessão em apreço totalizam o valor estimado de 6.629.419€, as medidas implementadas pelo Governo tiveram os seguintes efeitos:

70 - A redução de 30% imposta nos preços dos genéricos, ocorrida em Setembro de 2008, representa uma perda acumulada na facturação de 825.666€;

71 - A redução de 7% imposta nos preços dos medicamentos de marca, em Julho de 2010, representa uma perda acumulada na facturação de 140.785€;

72 - A redução dos preços em grande quantidade de genéricos, em Agosto de 2010 (preço reduzido entre 20 a 35%), representa, pelo menos, e num cenário de redução em 20% do preço (cenário mais optimista), a perda acumulada na facturação de 251.789€;

73 - A redução de 6% no preço de todos os medicamentos imposta em Outubro de 2010 representa a perda acumulada de 156.384€;

74 - A ausência de venda de medicamentos retrovirais e oncológicos, conforme estava previsto, representa a perda acumulada de vendas de 5.947.200,00€;

75 - A ausência de vendas de medicamentos em unidose, conforme estava igualmente previsto, representa a perda acumulada de vendas de 905.000€;

76 - A alteração administrativa das margens e perda de posição negocial, estimada de forma conservadora em 10%, teve uma repercussão directa na margem líquida acumulada de 662.942€;

77 - A ausência de obrigatoriedade de prescrição por DCI teve um impacto directo na margem líquida acumulada, desde o início de actividade até final de 2012, de 314.599,00€.

78 – Na perspectiva dos ora Requeridos, para repor o equilíbrio económico-financeiro da concessão, importava que o C(…)aceitasse negociar as condições iniciais da concessão.

79 - A sociedade requerida, logo após doze meses de actividade, por carta registada datada de 04.08.2009, alertou a Administração do C(…) para a severa e profunda alteração das circunstâncias que estava a ocorrer,

80 - Bem como para a falta de implementação das medidas anunciadas pelo Governo subjacentes ao Concurso da Concessão da A (…) e que estavam a produzir alterações profundas entre as projecções feitas e a realidade vivenciada nesse primeiro ano.

81 - Antes dela e logo desde o 1º trimestre de exploração, muitos outros contactos pessoais houve com a Administração Hospitalar, alertando e reclamando a situação, nomeadamente solicitando um ajustamento de renda.

82 - Desde então, muitas outras comunicações se seguiram, alertando para a situação económica e financeira em que a farmácia vinha sendo colocada.

83 - Durante o ano 2010, muitos foram os contactos havido entre a A(…) e a Administração hospitalar em que aquela solicitou o ajustamento dos termos do contrato, em face da alteração anormal e imprevisível das circunstâncias negociais iniciais.

84 - Em 25.11.2010 é remetida nova carta ao C(…) a solicitar o pedido formal de alteração ao contrato.

85 - Em 17.05.2011, nova carta é remetida, mais uma vez a solicitar o pedido formal de alteração ao contrato.

86 - Em 25.01.2012, é dirigida nova carta ao C(…), desta feita a apelar ao bom senso e entendimento na resolução desta questão.

87 - O C(…) adiou e nunca aceitou renegociar as condições da concessão.

88 - Todo o circunstancialismo supra descrito provocou um impacto directo na facturação real, face às previsões e às expectativas criadas, e que pode ser estimado em menos € 11.069.937 facturados, referente ao acumulado dos cinco anos de contrato.

89 - Houve um impacto na margem líquida provocada pelas alterações legislativas e perda de poder negocial decorrente do pagamento das rendas exigido pelo C(…) (após renda variável), e que pode ser estimado em menos € 977.541 de resultados.

90 - Da facturação perdida, que pode ser estimada no valor de € 11.069.937, a farmácia teria de pagar a renda variável de 30.25% ao C(…), o que é aproximadamente a margem bruta obtida ao longo dos cinco anos.

91 - Se não se tivesse perdido o referido valor estimado de facturação, as condições de compra por parte da A(…) teriam sido provavelmente melhores, por via do efeito “quantidade” que permitiria obter maiores descontos dos laboratórios e grossistas, bem como pelo efeito da venda dos retrovirais e oncológicos, cuja margem é superior à da generalidade dos medicamentos.

92 - Face a este custo com a renda variável, que anula a margem obtida em termos líquidos, há ainda que considerar a margem (mínima) de 10% perdida pelas alterações de índole legislativa e administrativa com impacto no mercado do medicamento, bem como pela perda de posição negocial, o que faria obter uma margem líquida final, após revenda, que pode ser estimada em € 1.106.933.

93 - Somando estes efeitos (preço e margem), temos que o valor que a insolvente perdeu ao longo dos 5 anos de contrato de concessão pode ser estimado no total de € 2.084.474 (= € 977.541 + € 1.106.933).

94 - Neste quadro, a insolvente foi aconselhada a não pagar as rendas enquanto não fosse reposto o equilíbrio económico-financeiro da concessão.

95 - Assim, desde muito cedo, foi gerada uma situação de tensão entre o C (…)e a farmácia hospitalar.

96 - Esta situação levou a que o Centro Hospitalar fosse emitindo regularmente facturação cujo pagamento era recusado com a mesma regularidade.

97 - Por um lado, a sociedade requerida, com base em opiniões de reputados juristas e economistas, e numa Análise Económico-Financeira efectuada em Maio de 2011 pela consultora D (…)S.A., recusava pagar as rendas facturadas, e sempre entendeu que os montantes não eram devidos.

98 - Por outro lado, o C(…) não reconhecia os motivos invocados pela sociedade insolvente, mas também não resolvia o contrato de concessão, nem avançava com a sua cobrança coerciva, o que só veio a fazer através da referida Deliberação de 25 de Fevereiro de 2011, e com a propositura da referenciada acção nº 1.833/10.5BELRA.

99 - A empresa insolvente manteve a sua actividade e compromissos de forma regular, tendo assegurado uma relação normal, nomeadamente a nível dos pagamentos a que estava obrigada a efectuar, com os fornecedores, Estado, funcionários, banca e clientes.

100 – Na perspectiva dos aqui Requeridos, a partir de determinada fase, não obstante existirem capitais próprios negativos pela contabilização das faturas emitidas pelo C(…), não se justificava a apresentação da empresa à insolvência, dado que havia uma regular observância dos compromissos gerados pela exploração e entendiam que as faturas emitidas pelo C(…) não eram devidas.

101 – Tal perspectiva dos aqui Requeridos baseou-se em pareceres de reputados juristas que sustentavam e sustentam que «ao invés de ser o C(…) credor da farmácia hospitalar, era a farmácia hospitalar que detinha um avultado crédito sobre o C (…) atento os prejuízos que o incumprimento em que haviam incorrido havia gerado».

102 - Aliás, foi o cenário supra descrito que foi apresentado à requerida M (…) quando em 2011 foi proposta para gerente da insolvente, e só porque a administração da S(…)apresentou a situação como acima relatada é que iniciou funções e aceitou o cargo.

103 - A requerida M (…) aceitou tal cargo em 2011 na convicção de que a insolvente era credora do C(…) e que as facturas das rendas emitidas pelo hospital não eram devidas.

104 - Mais foi explicado à requerida M (…) que o litígio com o hospital não comprometia a viabilidade da empresa «tanto mais que o hospital seria condenado a pagar uma importância à A(…) decorrente dos prejuízos que esta havia sofrido por força do comportamento do hospital.».

105 - Tais explicações foram fornecidas e fundamentadas com base em documentos, nos quais foram sustentados os rácios da farmácia compatíveis com o sector e, ainda, explicado o litígio com o C(…) e o modo como estava a ser tratado.

106 - Com base em pareceres quer económico-financeiros, quer jurídicos, sempre a S (…) por intermédio dos referidos C (..) e P (…), sustentou que a exploração da farmácia explorada pela aqui insolvente tinha viabilidade, e se encontravam pagos a generalidade dos seus credores, nomeadamente funcionários, fornecedores, banca, AT e Segurança Social.

107 - Por outro lado, os referidos pareceres económico-financeiros e jurídicos sustentavam que «o valor das rendas reclamadas pelo hospital não era devido e que os crescentes prejuízos causados pelo hospital através da sua conduta, de recusa da reposição do equilíbrio, justificava o pagamento de uma indemnização bem superior aquilo que era o valor das rendas reclamadas pelo hospital».

108 – Também foi explicado e fundamentado com base nos referidos pareceres económico-financeiros e jurídicos pela S(…), por intermédio de C(…) e P (…), à requerida M (…) e ao requerido A (…) que a insolvente era credora do C(…) e que as facturas das rendas emitidas pelo C(…) não eram devidas, tendo também tais requeridos agido na convicção de que a empresa (ora insolvente) tinha viabilidade.

109 - Na Acção Administrativa Especial que corre termos com o nº 329/11.2BELRA, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, a insolvente, aí autora, formula contra o réu, aqui requerente C(…), os seguintes pedidos:

a) Determinação da modificação do contrato de concessão por alteração das circunstâncias, “…em particular no que respeita à renda anual referente ao segundo ano de funcionamento da farmácia, em conformidade com os critérios de equidade;”;

b) Determinação da modificação do contrato de concessão por alteração das circunstâncias, “… em particular no que respeita à redução da renda anual referente ao restante período da concessão, em conformidade com os critérios de equidade;

c) Anulação dos atos do contraente público, que fixaram multas contratuais, exigiram a prestação de nova garantia bancária e declararam a resolução do contrato de concessão;

d) De condenação do contraente público, em indemnização a seu favor, do montante de 800.000,00 €, “…por danos patrimoniais e por danos não patrimoniais, pela deterioração da imagem da A. para com o Banco emissor da garantia e por todo o desgaste pessoal de todas as pessoas envolvidas neste projeto, no valor de 800.000,00 €.”

110 – Todo o litígio entre a ora insolvente A (…) e o C (…), nomeadamente após a instauração, por este, do processo de insolvência contra aquela, teve também como efeito que a A(…) perdesse capacidade de crédito e de endividamento, mormente junto de fornecedores.

111 – As requeridas M (…) e M (…) são filhas do requerido A (…)..

112 – Foram apreendidos para a massa insolvente da A(…) valores pecuniários e bens móveis no valor global de € 3.772,01.

113 – A liquidação do activo aguarda o desfecho da acção referenciada no facto 109.

114 – A acção referenciada no facto 109 aguarda a designação de data para a realização de audiência de produção de prova verbal.

115 - A A(…)continuou a exploração da farmácia hospitalar até 12 de Setembro de 2013”.

*

2.2. Factos não provados

Com interesse para a apreciação do presente incidente não se provaram os seguintes factos:

a) Os requeridos (…), enquanto gerentes da insolvente, asseguravam, em conjunto com o requerido (…), a gestão da empresa.

b) A decisão de não pagamento das rendas e contrapartidas da exploração foi tomada, em conjunto, pelos sócio e gerentes da insolvente, nos períodos em que exerceram funções de gestão e direcção dos destinos daquela.

c) A inércia e o imobilismo dos responsáveis da insolvente gerou o aumento dos valores por ela devidos e a impossibilidade do seu pagamento por não serem geradas receitas suficientes para tal.

*

De referir que não se responde à restante matéria alegada pelos intervenientes processuais por constituir matéria conclusiva e/ou matéria de Direito, ou não ter interesse para a decisão desta causa, atento o específico e estrito objecto do litígio oportunamente fixado.

A. Se constitui abuso do direito, o facto de a A(…) ser uma sociedade veículo, constituída com outras sociedades, designadamente a S(…), para servir o interesse de um grupo de pessoas, acarretando a desconsideração da personalidade da A (…) respondendo os seus sócios e gerentes, pelas respectivas dívidas.

No que a esta questão respeita, alega o recorrente, no pressuposto do sucesso que teria no que respeita ao recurso de facto, designadamente, no referente à matéria de facto que pretendia ver aditada, que a criação das sociedades mencionadas na factualidade dada por assente, apenas serviu os interesses da S(…) e reflexamente, os respectivos sócios, sendo que, todos eles, directa ou indirectamente, estavam ligados a tal “grupo” de sociedades.

Em primeiro lugar, cumpre referir que, pelas razões acima expostas, não se demonstrou a factualidade em que o recorrente assenta esta sua pretensão, pelo que, não se pode extrair a conclusão almejada pelo recorrente.

Em segundo lugar, porque, como já referido na sentença recorrida, nada obstava a que as mesmas pessoas participassem nas ditas sociedades veículo e na S (…)

Efectivamente, importa ter em conta o disposto no DL n.º 235/2006, de 6/12 e anúncio do concurso público para celebração de contratos de concessão com vista à instalação das farmácias hospitalares, in DR-II.ª Série, de 14/08/2007.

No citado DL 235/06, cf. seu artigo 9.º, podiam candidatar-se à concessão “pessoas singulares ou colectivas que preencham os requisitos previstos no programa do concurso” e de acordo com o seu artigo 10.º era permitido o “agrupamento de farmácias da zona”, com vista à candidatura à concessão da farmácia hospitalar, a quem era dada a preferência, nos termos do seu artigo 16.º e dispondo-se no seu artigo 22.º a obrigatoriedade de  constituição de sociedade comercial para efeitos da candidatura à referida concessão.

Mas sem que se estabeleçam quaisquer entraves à forma como tal sociedade poderia ser constituída, designadamente obrigatoriedade de não integrar um grupo de empresas ou existindo este, que não fossem detidas (as empresas do grupo) pelas mesmas pessoas.

Aliás, o comum, em caso de existência de um grupo de empresas é as mesmas estarem ligadas entre si, por idênticos objectivos e, na maioria das vezes, serem detidas por empresas ou pessoas ligadas entre si, a nível das relações societárias de domínio, com sócios comuns.

De igual modo, no anúncio do concurso público para a concessão da farmácia hospitalar em apreço, apenas se remete para os termos do concurso, apelando-se à “proposta mais vantajosa”, mas sem que se refiram             quaisquer entraves ou condições para os admitidos ao mesmo, designadamente, a nível da constituição de sociedades, melhor dizendo, impondo quaisquer condições na respectiva constituição, como forma de as condicionar à participação no concurso, mormente, que não fizessem parte de nenhum grupo de empresas ou fossem detidas por outra empresa ou que tivessem (ou não) sócios comuns.

Assim, por este prisma, nada obsta a que a insolvente fizesse parte de um grupo de empresas, detidas por sócios comuns.

A questão de saber se do facto de tal assim suceder e se isso tinha em vista uma estratégia comum e disso resultaram benefícios injustificados ou vantagens desproporcionadas para os respectivos sócios, já tem que ver com a questão da qualificação da insolvência, do que nos ocuparemos a seguir; pelo que, com base nesta argumentação, não pode proceder o presente recurso.

Pelo que, quanto a esta questão, improcede o recurso.

 

B. Qualificação da insolvência: se a mesma é de qualificar como fortuita ou culposa.

Relativamente à qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, que constitui a questão central do presente recurso, defende o recorrente que a mesma se tem de qualificar como culposa, porque os administradores da insolvente, no de(…) e detidas por sócios comuns, visando o objectivo de conquistarem o maior número possível de concessões das farmácias hospitalares, oferecendo o melhor preço, já com o desígnio de não pagarem nenhuma das rendas acordadas e sob a capa de tais sociedades, visando a sua desresponsabilização, processando gratificações aos respectivos administradores e transferências entre as várias sociedades, visando não pagar aos respectivos credores, principalmente ao ora recorrente, como assim fizeram, não obstante terem explorado a dita farmácia até Setembro de 2013 e terem intentado acções na jurisdição administrativa apenas com o intuito de “legitimarem” a sua posição de não pagamento das rendas, a coberto de uma “pretensa” alteração das circunstâncias, decorrente da fixação administrativa do preço dos medicamentos e respectivas margens de lucro, através da publicação da legislação que “tabelou” os preços dos fármacos e medicamentos.

Ao invés, na sentença recorrida, qualificou-se como fortuita a insolvência em causa, por se considerar não estarem verificados os pressupostos/fundamentos previstos no artigo 186.º, n.º 2, alíneas e), f) e g) e n.º 3, alínea a), do CIRE.

E tal conclusão assenta no facto de, relativamente às referidas alíneas e) e f), do n.º 2, não se terem demonstrado quaisquer factos que as integrem, referindo-se que o recorrente se limita a alegar, genericamente, que mercê de os sócios serem comuns às várias sociedades se aproveitaram desse facto para obter benefícios em seu proveito pessoal e das empresas, sem o concretizar.

De igual modo, considerou-se não se verificar o circunstancialismo previsto na alínea g), por não se ter demonstrado que a manutenção da exploração deficitária acarretou quaisquer benefícios para os sócios.

Relativamente ao dever de apresentação à insolvência, foi o mesmo desconsiderado com o fundamento em que a insolvente manteve sempre a sua actividade normal, efectuando os pagamentos a que estava obrigada, com excepção das rendas e que a diminuição substancial da sua facturação se ficou a dever à legislação que fixou o preço dos medicamentos e consequente diminuição das margens de comercialização, o que motivou a propositura da acção administrativa, a qual, a proceder, permitiria a continuação da exploração da farmácia por parte da insolvente.

Vejamos, então, como deve qualificar-se, no que a esta perspectiva se refere, a insolvência em apreço, desde já, se adiantando, não nos merecer censura a decisão recorrida.

Notando-se, desde logo, que o objecto do recurso não sejam exactamente as alíneas do artigo 186.º, do CIRE, referidas pelo recorrente, mas sim a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) dos apelados; ou seja, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 5.º/3 do CPC), sem embargo, como é óbvio, de tal questão só se poder apreciar e decidir, por reporte à factualidade assente.

Segundo o art. 186.º/1 do CIRE – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores[2], de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

“Definição” esta que é complementada, nos n.º 2 e 3 do art. 186.º, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[3] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos.

Interpretando tal art. 186.º do CIRE, a jurisprudência vem entendendo[4] que as alíneas do n.º 2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa; e começou por entender que as alíneas do n.º 3 apenas consagram presunções relativas de culpa qualificada (nos comportamento omissivos aí referidos), ou seja, para a insolvência ser dada como culposa com base no art. 186.º/3, seria necessário que a presunção de culpa qualificada não fosse ilidida e, ainda, que fosse feita a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186.º/1 do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Posição esta sobre o art. 186.º/3 do CIRE – que a jurisprudência maioritariamente começou por adoptar – de que nos afastamos, por tal preceito, assim interpretado, ser vazio de sentido útil[5]; razão porque – procurando encontrar o seu sentido útil e interpretando-o em conjunto e em harmonia com todo o art. 186.º do CIRE – entendemos que as presunções do art. 186.º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência (o mesmo é dizer, presunções relativas de insolvência culposa)[6].

“Conjunto de presunções” que pela não homogeneidade dos comportamentos aí descritos (nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) nos deve fazer reflectir e concluir que não estão sempre em causa e enunciados em todas as alíneas do n.º 2 e 3 do art. 186.º comportamentos, directa e imediatamente ligados à criação ou agravamento da situação de insolvência.

Analisando as alíneas a) a g) do n.º 2 do art. 186.º vemos que estão em causa factos/actos[7] em que há um denominador comum de delapidação do património do devedor, em que existe (em abstracto) um nexo lógico entre os respectivos factos/actos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[8], em que, sendo assim, pode dizer-se que o legislador mais não fez do que mandar presumir a causalidade (que era latente) entre eles e a insolvência;

Ao invés, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas duas alíneas do n.º 3 já não se consegue ver onde é que possa estar o nexo lógico, a conexão substancial entre o facto/acto que dá origem à presunção e a criação ou o agravamento da situação de insolvência; do que se trata, em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3, é de enunciar factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, ou seja, por outras palavras, os factos enunciados – a não organização ou desorganização da contabilidade, a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas – fazem supor que, se assim se procedeu, é porque pode haver alguma coisa a esconder, é porque podem ter sido praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, sendo estes os factos (que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência[9]) que estão implicitamente presumidos (ou, se preferirmos, ficcionados) nos factos enunciados em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 e cuja verificação desencadeia a insolvência culposa.

Em síntese, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre eles e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[10]; estando em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE), sendo em função da violação de tais deveres legais que a lei a supõe que foram praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, o que determina a aplicação do regime da insolvência culposa a estas situações.

Temos pois que a lei (art. 186.º do CIRE), além da cláusula geral contida no n.º 1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus n.º 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa; factos enumerados em que, “em vez de se limitar a desenvolver, casuisticamente, o enunciado geral [contido no n.º 1], acrescenta alguns casos de insolvência (…) que não se subordinam aos requisitos da noção geral de insolvência culposa – a sua submissão ao mesmo regime resulta de um juízo diferente ou de uma distinta valoração. Em síntese, as alíneas a) e g) são factos/actos que se reconduzem ainda à cláusula geral; havendo nos factos/actos apurados indícios sérios de que a insolvência se deve a tais actos/factos, não surpreendendo ou repugnando que consubstanciem presunções. Mas, nas alíneas h) e i) o caso é diverso. Só muito remotamente algum dos factos/actos pode ser considerado causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento. Constituindo, por um lado, a violação de um dever específico do comerciante e, por outro lado, a violação de um dever elementar de todo o insolvente, é legítimo supor que houve culpa qualificada do sujeito – mas culpa qualificada no acto praticado ou omitido e não na insolvência, como é exigido pela norma geral do n.º 1. E, no entanto, desencadeiam os mesmos efeitos da insolvência culposa.

O legislador terá entendido submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um acto ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também. Na base desta opção legal está, portanto, como se disse, uma valoração diferente daquela que terá estado na origem da disciplina. Deve, por isso, considerar-se que a lei estabeleceu, nestes dois pontos, não presunções, mas – passe o paradoxo – verdadeiras ficções.[11]

Evidentemente, não o podemos ignorar, assim vistas as coisas, serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa; uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do n.º 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do n.º 2, em que a presunção é iuris et de iure.

Porém, a nosso ver, é mesmo este o sentido da lei.

Abarca os casos em que se verifica a culpa qualificada e o nexo de causalidade integrantes da noção de insolvência culposa, nos termos do art. 186.º/1; ou seja, os casos em que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto e de direito, que (a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência, que (b) se trate de actuação dolosa ou com culpa grave, e que (c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.

Além e fora disso, sujeita aos efeitos da insolvência culposa os casos em que se verifique alguma das situações/presunções constantes do n.º 2 e 3 do art 186.º do CIRE; presunções que também foram estabelecidas, para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais.

Solução, esta, porventura excessiva, especialmente quanto às alíneas h) e i) do n.º 2, em que não é detectável uma diferença sensível em relação às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º (em que a presunção pode ser ilidida)[12]; razão pela qual – tendo isto presente, procurando aproximar as alíneas h) e i) do art. 186.º do tratamento das alíneas do n.º 3.º – entendemos que pode/deve ser colocada alguma exigência na preenchimento de tais alíneas h) e i), entendemos que pode/deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º.

Embora, a própria doutrina não seja unânime, quanto à melhor interpretação dos preceitos em causa.

Por exemplo (para além do já acima referido), Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, a pág.s 362/3, defende ser de considerar culposa a insolvência, se a respectiva situação “foi criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, de devedor ou seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (art.186.º, 1). Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa”.

Incluindo-se na actuação dolosa, todas as modalidades de dolo ou com culpa grave.

Acrescentando que o CIRE contém um “duplo sistema de presunções legais”, contendo-se no n.º 2 do artigo 186.º “algumas presunções de culpa que não admitem prova em contrário («sempre culposa»). As presunções ali estabelecidas dizem respeito à culpa e não à situação de insolvência.”.

Ao passo que, no n.º 3 do artigo 186.º, se contém “hipótese de cuja verificação resulta uma presunção legal de culpa grave que admite prova em contrário”.

Reiterando, a pág.s 376/7 que o artigo 186.º, n.º 2 “não só presume a culpa, mas também o nexo de causalidade quanto à criação ou agravamento da situação de insolvência. Porém, a prova de algum dos factos ali enumerados não significa que se presuma a situação de insolvência”.

Reforçando a ideia, a pág. 380 que na previsão do artigo 186.º, n.º 3, as presunções ali previstas “apenas dizem respeito à actuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal actuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência”.

Aqui chegados, do que acaba de ser dito sobre o modo como interpretamos todo o art. 186.º do CIRE – consagrando as alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa[13] (e não meras presunções relativas de culpa grave, o que, como se referiu, esvaziaria a utilidade destas presunções) – irradia para o caso dos autos e do recurso o seguinte:

No que concerne às alíneas a), d), e), f) e h), a factualidade de que dependia a respectiva verificação, não se demonstrou.

Trata-se da matéria “nova” que o recorrente pretendia ver aditada à factualidade dada como provada, sendo, que, nessa parte, o recurso improcedeu.

Assim, no que se refere às alíneas em causa, não pode a insolvência em apreço ser qualificada como culposa, por não demonstrados os respectivos requisitos.

Relativamente à alínea g), estabelece o preceito em causa que a insolvência é culposa, no caso de os administradores da insolvente, prosseguirem “no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”.

É certo que, como resulta do item 35.º, a insolvente apresentou sempre saldo negativo, mas isso, por si só, não basta para que a insolvência seja qualificada como culposa.

Efectivamente, para que assim suceda, como se dispõe na alínea em apreço, para além da exploração deficitária, exige-se que a prossecução/manutenção de tal exploração o seja no interesse pessoal dos administradores ou de terceiro – neste sentido, o Acórdão desta Relação, de 16 de Setembro de 2014, Processo n.º 1146/12.8TBCVL-B.C1, disponível no respectivo sítio do itij, em que é Relatora a ora 2.ª Adjunta.

E o STJ, conforme seu Acórdão de 29/10/2019, Processo n.º 434/13.3T8VFX-C.L1.S1, disponível no mesmo sítio do anterior, decidiu que, para além da prossecução no interesse próprio ou de terceiro, se exige que os administradores soubessem ou tivessem obrigação de saber que agindo desse modo, estavam no caminho da insolvência, sem expectativa de voltar a uma actividade rentável.

Ora, do acervo fáctico dado como provado, nada resulta que assim tenha sido.

Só dos novos factos alegados apenas em sede de recurso – e não considerados – se poderia extrair essa conclusão.

Sendo, ainda, de referir que o facto de a insolvente ter prosseguido a sua actividade, honrando todos compromissos, excepto as rendas, aliado ao facto do litígio existente entre as partes, que culminou com a propositura da acção administrativa, ainda não decidida, que teve por base a redução drástica dos preços dos medicamentos e inerentes reduções das margens de comercialização/lucro, afasta os pressupostos exigidos na alínea em apreço.

Uma vez que se lhe fosse/for dada razão no Tribunal Administrativo, as rendas sofreriam alteração.

Não se nega, como o refere o recorrente, que as rendas continuam a ser devidas mas o facto de os contornos da relação comercial existente entre as partes terem sofrido drástica alteração, para efeitos da qualificação da insolvência, não podem ser desconsiderados.

Consequentemente, não se mostram verificados os pressupostos para que, à luz do disposto na alínea em causa, a insolvência em análise possa ser qualificada como culposa.

Relativamente ao n.º 3, alínea a) do artigo 186.º do CIRE, como acima já aflorado:

“Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;”.

A recorrente fundamenta este pressuposto no facto de os administradores da insolvente, bem sabendo da situação de insolvência, desde que deixaram de pagar as rendas acordadas, não a terem requerido, não obstante, já desde há muito tempo que a insolvente se encontrava em situação deficitária.

De acordo com o art. 18º/1 do CIRE, em conjugação com o art. 3º/1 do mesmo diploma, o devedor/comerciante deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la.

Exige pois a aplicação deste normativo legal a demonstração do início da situação de insolvência; só com a determinação deste facto é que se poderá delimitar o prazo de que o devedor dispunha para cumprir o dever referido.

Como se refere na sentença recorrida, não se apurou com exactidão a data em que se possa concluir que os administradores da insolvente, tiveram conhecimento da situação de insolvência da requerida.

Efectivamente, não obstante estar demonstrado que não foram pagas rendas a partir de Setembro de 2010 (item 29.º), o certo é que a mesma continuou a sua actividade com respeito pelos demais compromissos (item 99.º).

Relativamente à problemática do não pagamento de rendas, como acima já se referiu, não é o facto de ter sido intentada a acção administrativa, referida no item 109.º, que afasta a obrigação do respectivo pagamento.

Não obstante, reitera-se, a factualidade que lhe está inerente não pode ser desconsiderada nesta sede de qualificação da insolvência.

Atente-se em que a farmácia abriu ao público em 01 de Setembro de 2008 (item 61.º).

As rendas relativas ao ano de 2008 foram integralmente pagas, entrando a insolvente em incumprimento, relativamente às rendas de 2009, em Setembro de 2010 (item 29.º), nada mais tendo pago (itens 29.º e 30.º).

Por outro lado, como resulta dos itens 61.º a 77.º, desde 08 de Setembro de 2009 a 2012, por via legislativa, foram tabelados, sempre para preços inferiores, os preços dos medicamentos, que originaram para a requerida as perdas referidas nos itens 69.º a 77.º, que são vultosas e significativas.

Daqui pode concluir-se que enquanto se mantiveram as condições que presidiram aos termos iniciais do contrato de concessão (e não obstante logo após uma semana decorrida da abertura ter ocorrido a primeira redução do preço dos medicamentos genéricos, a que se seguiram os de marca, no ano seguinte) a requerida cumpriu com o pagamento das rendas, deixando de o fazer nos anos seguintes.

Tanto assim é que logo em 04 de Agosto de 2009, a requerida alertou a administração do Hospital, para a alteração dos termos do contrato (item 79.º), o que se repetiu nos anos seguintes (cf. itens 81.º a 86.º).

Sem esquecer que como resulta do item 88.º, as alterações supra referidas no preço dos medicamentos, tiveram um impacto directo na facturação real da requerida, durante os 5 anos de duração do contrato, não inferior a 11.069.937,00 €.

Reitera-se que todo este circunstancialismo não contende com a situação/declaração de insolvência da requerida. Mas, ao invés, também, não pode ser olvidado para efeitos da qualificação da insolvência como culposa.

Principalmente, antes de se conhecer o desfecho da citada acção intentada nos tribunais administrativos, dado que a ser dada razão à aqui requerida e em caso de alteração do contrato de concessão, com a renegociação da renda, os dados da questão sofrerão ou poderão sofrer alteração de monta.

Em suma, em face das sucessivas imposições de descidas dos preços dos medicamentos, por via legislativa, tendo-se o requerente sempre recusado a ter isso em conta e antes de decidida a referida acção administrativa, é temerário considerar como culposa a insolvência em apreço, tamanhos foram os efeitos de tais alterações no sinalagma do contrato de concessão celebrado entre as partes.

Pode, mesmo, concluir-se face ao constante do item 88.º, que a insolvência da requerida se ficou a dever (pelo menos, em parte) a tal circunstancialismo.

Assim, resulta da factualidade dada como provada, que não foi a conduta dos administradores da requerida que deu causa à insolvência, que foi originada por razões, externas ou independentes da sua vontade – imposição de vultosas descidas nos preços dos medicamentos – assim ilidindo a presunção inerente à alínea em apreço, pelo que a mesma não pode subsistir nem funcionar, o mesmo é dizer, que impõe que, também por referência ao artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, se mantenha a qualificação da insolvência como fortuita.

Pelo que, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 07 de Setembro de 2020.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves


[1] “A Acção Declarativa Comum à luz do CPC de 2013”, 3.º ed., pág. 307 a 309.
[2] Cfr. art. 6.º do CIRE.
[3] Sem prejuízo do 186.º/4 mandar aplicar, “com as necessárias adaptações”, os n.º 2 e 3 à actuação da pessoa singular.
[4] Cfr., v. g., Ac. Rel. de Guimarães de 12/03/2009, in CJ online, ref. 5220/2009; e Ac. Rel. de Coimbra de 20/04/2010, in CJ online, ref. 3246/2010, e de 08/02/2011, in CJ online, ref. 741/2011.

[5] Desde logo por entre os factos omitidos referidos nas alíneas a) e b) do art. 186.º/3 do CIRE (incumprimento do dever de apresentação à insolvência e incumprimento do dever de elaboração e depósito das contas) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência não ser vislumbrável, em abstracto, a possibilidade de vir a existir um nexo lógico ou uma qualquer conexão, o que, evidentemente, tornaria inatingível a prova, em concreto, do nexo de causalidade exigido e redundaria – exigindo-se a prova de tal nexo causal – na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE (enquanto enumeração de actos/factos susceptíveis de desencadear como consequência a qualificação da insolvência como culposa).
[6]Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura económica ou as condições de mercado” - Cfr. Catarina Serra, in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março de 2008, pág. 69
[7] Que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja pessoa singular, se configuram como infracções ao dever geral de fidelidade consagrado no art. 64.º/1/b) do CSC.
[8] Como é evidente, a delapidação de património causa ou pode causar, pela diminuição de recursos que gera, impossibilidades de cumprimento e/ou activos manifestamente inferiores ao passivo (cfr. art. 3.º/1 e 2 do CIRE).
[9] Como refere Catarina Serra, local citado, pág. 65, “entre o facto conhecido – não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos – e o facto desconhecido ou presumido – insolvência culposa – interpõe-se um outro que não chega a ser conhecido”.

[10] É também e justamente por isto que dissemos que a exigência da prova do nexo causal entre os factos do n.º 3 e a criação ou agravamento da situação de insolvência redundaria na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE.
[11] Catarina Serra, local citado, pág. 68/69.
[12] Efectivamente, não existindo nas alíneas h) e i) do art. 168.º/2 do CIRE um nexo lógico ou uma conexão substancial entre o acto/facto aí referido e o facto presumido (insolvência culposa), parece que, também aqui, devia ser concedida a possibilidade do devedor se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita e culposa não causou a insolvência.
[13] Neste sentido, Ac. Rel. do Porto de 05/02/2009, in CJ online, ref. 2737/2009, e Ac. Rel. de Coimbra de 26/01/2010; e, na doutrina, além de Catarina Serra, locais citados, Cassiano Santos, Direito Comercial, Vol. I, pág. 214/5, e Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, pág. 34.