Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
239/08.0TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: USUCAPIÃO
LEGITIMIDADE
VENDA DE COISA ALHEIA
COISA IMÓVEL
NULIDADE
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 892º, 1257º E 1267º, Nº 1, AL. D), DO CC
Sumário: I – A circunstância de os AA já não serem possuidores do imóvel em litígio na data da propositura da acção não lhes retira legitimidade para invocarem a usucapião, se desde a perda da posse a favor de outrem não tiver decorrido um lapso de tempo suficiente para ter repercussões sobre o direito de propriedade.

II – Se os AA, juntando escritura pública da compra em que figuram como únicos compradores da totalidade de um prédio, alegam que o compraram e que, desde essa data, convictos de serem donos, de forma pacífica e pública, nele plantaram árvores, recolhem a madeira e apanham o mato, está implícita ou tacitamente alegada a exclusividade da posse, não lhes sendo exigível a sua alegação expressa.

III – É nula, por se tratar de venda de coisa alheia, mesmo que registada, a compra e venda de imóvel já anteriormente vendido pelo mesmo vendedor a outro comprador que não registou mas que, entretanto, adquirira por usucapião.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

A... e mulher B..., residentes na ..., Venezuela, intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum e forma sumária contra:

- C... , residente na ... Aveiro;

- D... e marido E... , residentes na ...., Lisboa;

- F... e marido G... , residentes na ....Aveiro;

- H... e marido I... , residentes na ..., Lisboa;

- J... S.A., com sede no lugar do.... Albergaria-a-Velha,

terminando com o seguinte pedido:

a) Declarar-se nula a compra e venda efectuada entre os réus referente ao artigo rústico inscrito na matriz predial da freguesia de Albergaria-a-Velha sob o art.º ..., por se tratar de venda de coisa alheia;

b) Reconhecer que o citado prédio é propriedade dos autores, com a consequente restituição do mesmo;

c) Ordenar-se o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a­-Velha do registo de aquisição a favor da R. compradora, J..., S. A.

Para tanto, alegaram, em síntese, que por escritura lavrada no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, em 18 de Novembro de 1978, a folhas 20 a 21-verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 70-B, compraram à ré C... e marido L... , o prédio rústico, sito na freguesia e concelho de Albergaria-a-Velha, inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, sob o n.º ..., a folhas ...; que desde a data da aquisição do prédio rústico sempre se comportaram como verdadeiros donos do mesmo, plantando árvores e recolhendo a madeira, pagando os respectivos impostos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém; que em 5 de Março de 2007 os réus pessoas singulares, viúva e filhas do entretanto falecido L ..., venderam à ré pessoa colectiva, J..., S.A., o referido prédio; e que os réus usaram de manifesta má fé, pois não desconheciam que o imóvel, porque anteriormente vendido aos autores, já não lhes pertencia e tinham consciência de que, voltando a vendê-lo, os prejudicavam.

Os réus C..., D... e marido E..., F... e marido G..., H... e marido I... apresentaram contestação em que, aceitando a factualidade alegada na petição inicial, negam, contudo, a existência de dolo da sua parte porquanto a Ré C..., dada a sua avançada idade, já não se recordava da primitiva venda, as demais Rés vendedoras desconheciam a mesma e o prédio permanecia inscrito na matriz e registado na Conservatória a favor do seu falecido pai.

A ré J... S.A. apresentou contestação e deduziu reconvenção.

Contestando, alegou, em resumo, que comprou o prédio em questão convicta de que os vendedores eram os seus verdadeiros donos e que, na sequência da compra, procedeu ao registo do mesmo a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial, pelo que beneficia da presunção decorrente desse registo.

Reconvindo, após alegar que sempre agiu de boa fé e desconhecendo a anterior escritura, formulou o seguinte pedido:

Deve ser declarado que a escritura pública de compra e venda celebrada em 5/03/2007, a fls. 114-A, do Livro 68-G, no Cartório Notarial do Notário ...., não padece de qualquer nulidade, anulabilidade, ineficácia ou vício que, por qualquer forma, a inquine;

Deve ser declarado que a ré aqui contestante é terceira, para efeitos de registo, nos termos previstos no n.º 4 do art.º 5.º do Cód. do Registo Predial;

Em consequência se condenando os autores, reconvindos, a reconhecerem que a ré contestante é dona e legitima possuidora do prédio acima identificado, e que consta da escritura de 5/03/2007, de fls. 114-A, do livro 68-G, assim os condenando a reconhecerem esse direito de propriedade;

Mais se condenando os autores a recolocarem o prédio nos seus precisos termos que se encontrava à data de 5/03/2007, nomeadamente com toda a madeira a essa data aí existente;

Mais se condenando os autores a pagarem à ré aqui reconvinte todos os prejuízos que possam vir a sofrer em consequência do acima alegado até à sua completa eliminação;

Por último condenando-se ainda os autores a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe, impeça, ou prejudique o pleno exercício, pela ré, aqui reconvinte da sua dominiabilidade sobre tal prédio.

Os autores responderam à contestação apresentada pelos réus, concluindo como na petição inicial.

Foi elaborado despacho saneador em que, além do mais, se admitiu o pedido reconvencional.

Procedeu-se à selecção dos factos assentes e à organização da base instrutória, peça processual que foi objecto de reclamações - uma por parte dos RR. vendedores e outra por parte da R. compradora – ambas oportunamente indeferidas.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo decurso foi proferido o despacho de fls. 305 e 306 decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois emitida a sentença de fls. 307 a 327, julgando procedente a acção e improcedente a reconvenção.

Irresignada, a R. J..., S. A. interpôs recurso, tendo encerrado a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

[…]

Os apelados não responderam.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

a) Rectificação de erro material da sentença;

b) Ampliação da matéria de facto;

c) Eliminação da al. e) dos factos assentes;

d) Alteração das respostas dadas aos quesitos 2º, 3º e 4º;

e) Exorbitância da resposta dada ao quesito 2º;

f) Inexistência, por parte dos AA., de posse do prédio na data em que propuseram a acção;

g) Falta de alegação da exclusividade da posse;

h) Nulidade.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         2.1.1. Factualidade considerada provada na 1ª instância:

[…]


***

         2.1.2. Questões a resolver com vista à fixação da matéria de facto

         2.1.2.1. Erro material

[…]

        


***

         2.1.2.2. Ampliação da matéria de facto

[…]  


***

         2.1.2.3. Eliminação da al. e) dos factos assentes

[…]

        


***

         2.1.2.4. Alteração da decisão sobre a matéria de facto

[…]

        


***

         2.1.2.5. Exorbitância da resposta dada ao quesito 2º

[…]

        


***

         2.2. De direito

         2.2.1. Inexistência, por parte dos AA., de posse do prédio na data em que propuseram a acção

         Encontra-se provado, por um lado, que os autores adquiriram, por contrato de compra e venda formalizado através de escritura pública outorgada em 18/11/1978 no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, o prédio rústico composto de terreno a mato e eucaliptal denominado " ..." sito nas ..., freguesia de...., inscrito na matriz sob o artigo ...e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e, por outro, que a partir da celebração daquela escritura pública e até Abril de 2007 os autores, através de M... , plantaram árvores, recolheram a madeira e apanharam o mato no referenciado prédio, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de serem seus proprietários.

         Pondo a acento tónico na circunstância de se terem situado temporalmente em Abril de 2007 os últimos actos de posse – plantação de árvores, recolha da madeira e apanha do mato – por parte dos AA., a recorrente sustenta que estes, quando propuseram a acção, em 13/03/2008, já não eram possuidores e que, por tal motivo, careciam de legitimidade para invocar a usucapião.

         A circunstância de entre Abril de 2007 e Março de 2008 os AA. não terem praticado os habituais actos de posse não implica necessariamente que tenham deixado de ser possuidores. Com efeito, como preceitua o artº 1257º do Cód. Civil, a posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (nº 1), presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (nº 2).

         Ora, apesar de se encontrar provado, por um lado, que a recorrente celebrou com as suas co-rés, em 05/03/2007, no Cartório Notarial de ...., uma escritura pública em que estas declararam vender-lhe e ela declarou comprar-lhes o prédio em discussão nos autos e, por outro, que a aquisição do mesmo se encontra inscrita a seu favor na competente Conservatória, não está assente que os autores tenham ficado impossibilitados de continuar a posse em que se encontravam investidos nem que a recorrente tenha entrado, nomeadamente logo após a escritura, na posse do dito prédio[1].

         Inexistem, pois, elementos que permitam concluir que, ao intentarem a acção, em 13/03/2008, os autores tivessem já perdido a posse jurídica do prédio [cfr. artº 1267º, nº 1, al. d) do Cód. Civil].

Mas ainda que, porventura, os autores tivessem perdido a posse a favor da recorrente, tal não os inibiria de invocarem a usucapião, já que o período de hipotéticos desapossamento daqueles e posse desta não durara tempo suficiente para ter reflexos no tocante à propriedade.

Ou seja, a legitimidade para invocar a usucapião não depende da titularidade da posse no momento da invocação. Bem pelo contrário, o interesse na invocação e na propositura da pertinente acção está quase sempre associado à contestação ou à perda da posse, já que, nela permanecendo e não havendo quem a conteste, não se vê com que finalidade e contra quem o possuidor a haveria de invocar judicialmente.

Também quanto a esta questão se nega razão à recorrente.


***

         2.2.2. Falta de alegação da exclusividade da posse

         Sustenta a recorrente que os AA., para beneficiarem da usucapião deveriam ter alegado e provado a exclusividade da posse. E que, faltando tal alegação e prova, não podiam os mesmos ter sido reconhecidos como donos do prédio em litígio, com base na aquisição originária decorrente da usucapião.

         Vejamos.

         Os AA. alegaram que adquiriram, por contrato de compra e venda formalizado por escritura pública de 18/11/1978, o prédio em discussão nos autos, tendo junto cópia da escritura pública da qual resulta indubitavelmente que só eles figuraram como compradores da totalidade do prédio. Alegaram ainda que a partir desse dia e até á presente data, se comportaram sempre como verdadeiros donos do imóvel, pagando os seus impostos, plantando árvores, recolhendo a madeira e apanhando o mato que nele existia, fazendo-o aos olhos de todos e sem oposição de quem quer que fosse, tendo mesmo recebido várias propostas para vender o terreno, o que sempre recusaram, quer quando se encontravam em Portugal de férias, quer através do seu procurador, Sr. M ... (artºs 1º a 10º da petição inicial).

         A exclusividade da posse está implicitamente alegada, não fazendo qualquer sentido que, sendo eles os únicos compradores da totalidade do prédio, partilhassem a posse com quem quer que fosse.

         Tal exclusividade decorre também implicitamente da matéria de facto provada, já que se encontra assente que a partir da celebração da escritura pública de 18//11/1978 e até Abril de 2007 os autores, através de M ..., plantaram árvores, recolheram a madeira e apanharam o mato no prédio em causa, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de serem seus proprietários.

         E a recorrente, que só agora lançou mão deste argumento de natureza formal, nunca se atreveu, nem mesmo no recurso, a indicar quem, além dos autores, pudesse ter possuído o prédio desde 1978 até 2007.

         Ainda quanto a esta questão carece a recorrente de razão.


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         2.2.3. Nulidade

         Entende a recorrente inexistirem fundamentos para ter sido declarada nula a compra e venda em que intervieram as RR. pessoas singulares como vendedoras e a R. pessoa colectiva como compradora, formalizada pela escritura de 05/03/2007, e que nula é, nessa parte, a sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão [artº 668º, nº 1, al. c)].

         Vejamos.

         Na presente acção os AA. não contrapõem apenas a sua anterior, mas não registada, aquisição derivada à posterior, mas registada, aquisição derivada da R. J..., S.A. Contrapõem a esta, também, a sua aquisição originária, por usucapião, fundada na posse titulada (com a correspondente presunção de boa fé – artº 1260º, nº 2 do Cód. Civil), pública e pacífica desde Novembro de 1978 até Abril de 2007, isto é, por mais de 25 (vinte e cinco) anos, do prédio em disputa (cfr. artºs 1287º e seguintes do Cód. Civil).

         Se o confronto fosse apenas entre a anterior aquisição derivada não registada dos AA. e a posterior aquisição derivada registada da R. J..., S. A., prevaleceria esta última, por força do disposto no artº 5º, nºs 1 e 4 do Cód. Reg. Predial. E a venda pelas RR. pessoas singulares à R. pessoa colectiva, apesar de originariamente ter por objecto coisa alheia, convalidar-se-ia por força da inoponibilidade da aquisição derivada dos AA. à R. J..., S.A., não havendo fundamento para a declaração da sua nulidade.

         Sendo inquestionável que, contrariamente à anterior aquisição derivada não registada, a anterior aquisição originária fundada na usucapião, mesmo que não registada, prevalece sobre a posterior aquisição derivada registada [artº 5º, nºs 1, 2, al. a) e 4 do Cód. Reg. Predial], a venda formalizada pela escritura de 05/03/2007 é nula, já que incidiu sobre coisa alheia e a correspondente nulidade (artº 892º do Cód. Civil) não é afastada pelo registo entretanto efectuado.

         É este, em síntese, o raciocínio feito na sentença recorrida, com o qual se concorda.

         Assim, a declaração de nulidade da compra e venda efectuada entre as RR. pessoas singulares e a R. pessoa colectiva formalizada pela escritura de 05/03/2007 não está em oposição com os fundamentos da sentença, antes com eles se harmonizando e deles decorrendo logicamente.

         A sentença não padece, pois, da nulidade apontada.

         Cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7, elabora-se o seguinte sumário:

         I – A circunstância de os AA. já não serem possuidores do imóvel em litígio na data da propositura da acção não lhes retira legitimidade para invocarem a usucapião, se desde a perda da posse a favor de outrem não tiver decorrido um lapso de tempo suficiente para ter repercussões sobre o direito de propriedade.

         II – Se os AA., juntando escritura pública da compra em que figuram como únicos compradores da totalidade de um prédio, alegam que o compraram e que, desde essa data, convictos de serem donos, de forma pacífica e pública, nele plantam árvores, recolhem a madeira e apanham o mato, está implícita ou tacitamente alegada a exclusividade da posse, não lhes sendo exigível a sua alegação expressa.

         III – É nula, por se tratar de venda de coisa alheia, mesmo que registada, a compra e venda de imóvel já anteriormente vendido pelo mesmo vendedor a outro comprador que não registou, mas que, entretanto, adquirira por usucapião.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo da recorrente.

Artur Dias (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo

[1] A presunção de posse estabelecida no nº 2 do artº 1252º não releva para o presente caso, já que a mesma visa apenas favorecer o detentor perante o alegado possuidor, na hipótese de dúvida sobre qual dos dois possui verdadeiramente.