Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4334/10.8T2AGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE ADESÃO
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ÁGUEDA - JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 286 E 287º Nº2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Num contrato de crédito ao consumo, pré-formatado pelo mutuante como contrato de adesão, não é susceptível de ser invocado abuso do direito do mutuário quando este lance mão da nulidade de tal contrato por violação de normas de interesse público atinentes à protecção do aderente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Na execução comum para pagamento de quantia que no Juízo de Execução de Águeda lhe move o BANCO A... SA veio o executado B... deduzir oposição, alegando, em síntese:

Sendo emigrante nos Estados Unidos, deslocou-se a Portugal pela Páscoa de 2008, altura em que foi contactado por uma funcionária da empresa C... , SA,; a dita funcionária pediu-lhe para se dirigir a um estabelecimento hoteleiro de Mira, onde, segundo ela, poderia levantar um prémio; neste local, a mesma pessoa revelou-lhe que comercializava cartões de desconto em hotéis, viagens, despesas de saúde e diversas lojas comerciais; uma vez que fazia frequentes viagens de avião, acabou por assinar um conjunto de documentos que nessa altura lhe foram presentes, sem que lhe fosse dada qualquer explicação sobre o seu conteúdo, nem entregue qualquer cópia; veio depois a constatar que lhe estavam a descontar um valor mensal fixo, não em benefício da dita C..., mas antes do aqui exequente; como nunca quis celebrar qualquer contrato com o exequente mandou cancelar a autorização de débito que neste existia. Termina requerendo que, na procedência da oposição, se declare a nulidade do contrato de crédito invocado pelo exequente, devendo ser restituídas todas as verbas por este recebidas, ou, assim não podendo ser, que, ao menos, seja abatida à quantia exequenda a importância por si paga (€ 1.558,44).

Notificado, contestou o Exequente BANCO A...impugnando a matéria da oposição, aduzindo, nomeadamente, que o executado celebrou com ele conscientemente o contrato de financiamento em execução, do qual lhe foi entregue a respectiva cópia; e que só por o executado ter deixado de liquidar as prestações convencionadas a partir de € 1.428,57 é que lançou mão do procedimento de injunção.

Prolatado o saneador, e dispensada a elaboração da base instrutória, exarou-se a final sentença a julgar a oposição parcialmente procedente quanto à quantia de € 129.87, determinando-se o prosseguimento da execução para pagamento do valor remanescente.

Inconformado, desta decisão interpôs o executado-oponente oportuno recurso, admitido como apelação, com subida nos autos de oposição e efeito meramente devolutivo,

Dispensados os vistos, cumpre apreciar.

                                                                                  *

São os seguintes os factos dados como provados sem qualquer impugnação:

A-) Foi dado à execução o requerimento de injunção ao qual foi aposto força executiva, constante de fls. 8 PP dos autos principais, cujo teor se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.

B-) Em 05 de Março de 2008, entre o exequente e o ora oponente, foi celebrado contrato de crédito com o n.°80003003609.

C -) Contrato mediante o qual, a exequente concedeu ao oponente um empréstimo no montante

de € 4.726,59.

D-) Ficando o oponente obrigado a efectuar o reembolso do empréstimo em 48 prestações mensais e sucessivas, no valor de €129,87 cada, perfazendo um montante total de €6.233,92.

E-) O crédito concedido ao abrigo do contrato de financiamento acima identificado destinava-se à aquisição de um Cartão de Desconto / Viagens ( ...), sendo a entidade vendedora a sociedade – C...SA.

F-) Acordou ainda o Oponente autorizar expressamente a Exequente a utilizar o crédito que lhe fora concedido, para entrega, por pagamento, directamente à entidade vendedora do bem/serviço cuja aquisição foi financiada naquele contrato, devendo tal pagamento ser realizado em conta depósito indicada pelo vendedor do bem/ serviço, cuja aquisição se destinou ao financiamento que ora se discute.

G-) Aquando da outorga do contrato, ficou ainda contratualmente estabelecida faculdade do oponente poder revogar o mesmo, durante o período deflexão de 7 dias úteis posteriores a sua outorga, a qual o oponente não usou.

O oponente assinou todos os documentos que lhe foram exibidos para a aquisição do cartão ... e facultando todos os seus elementos de identificação pessoal que lhe iam sendo solicitados.

H –) Desde a assinatura dos documentos acima referidos, ou seja, desde Março de 2008, que passou a ser debitada, mensalmente, da conta n° 40069721417, da (...), de que o executado é titular, a quantia de €129,87, referente às mensalidades devidas pela aquisição dos cartões ....

I-) Em Março de 2009, o executado deu instruções ao seu banco no sentido de cancelar a autorização do referido débito mensal.

J-) Sendo que até àquela data – Março de 2009 – para pagamento do contrato de crédito n°80003003609, que serve de base à injunção que representa o título executivo nos presentes autos foi sacada da conta bancária do executado, a quantia global de €1.558,44.

     

                                                                                  *

A apelação.

A única questão a dirimir no vertente recurso é a que se prende com o saber se o executado ora apelante incorreu ou não em abuso do direito ao invocar a nulidade do mútuo que serve de título à execução, após ter consentido que lhe fossem debitadas em conta 12 prestações mensais no montante global de € 1.558,44.

Não houve contra-alegações.

Apreciando.

Mostra-se indiscutido ou incontroverso – cfr. os factos provados de B a F – que o executado e apelante subscreveu em 5 de Março de 2008 o contrato de mútuo com o nº 80003003609, nos termos do qual o exequente declarou conceder-lhe um empréstimo de € 4.726,59, a reembolsar em 48 prestações mensais e sucessivas de € 129,87 cada, perfazendo € 6.233, 92; que o crédito concedido se destinava a aquisição de um cartão de desconto/viagens ... vendido por C..., S.A.; que de acordo como o clausulado ali inserto o executado declarou autorizar aquela C...a utilizar directamente o valor creditado mediante os depósitos do executado a efectuar conta do exequente.

Por outro lado, ficou por provar que ao tempo da celebração do contrato tenham sido comunicadas ao oponente todas as cláusulas gerais e particulares do contrato e ainda que lhe tenha sido dada cópia dos documentos assinados (nºs 40 a 42 de fls. 106-107).

 

Diante deste acervo fáctico, a sentença recorrida não teve rebuço em admitir que ao contrato subscrito pelo oponente se aplica o regime proteccionista das Cláusulas Contratuais Gerais instituído pelo DL 446/85 de 25/10, e, bem assim, o regime especial dos contratos de crédito ao consumo do DL 359/91 de 21/09 (diploma revogado pelo art.º 34 do DL 113/2009, mas sem incidência no caso, dada a repercussão no tempo do anterior regime).

Nenhum reparo merece, também a esta Relação, o enquadramento assim operado, uma vez que o clausulado em jogo prefigura o de um típico contrato de adesão, na modalidade de crédito ao consumo.

    

Considerou-se no aresto ora sob censura que, em face da factualidade apurada e não apurada, o exequente e pré-disponente BANCO A...celebrou com o executado B... um contrato nulo, uma vez que aquele pré-disponente não só não demonstrou ter entregue ao consumidor o exemplar a que alude o art.º 6º, nº 1, do já aludido DL 359/91 de 21/09, como não provou a comunicação e explicação do pertinente clausulado, comunicação e explicação a que estava adstrito, agora por força do disposto nos art.ºs 5º e 6º do DL 446/85 de 25/10.   

Aqui, no entanto, importa fazer uma distinção.

É que se o art.º 7º, nº 1, do DL 359/91 previa expressamente a nulidade do contrato de crédito em que o consumidor não recebia o exemplar respectivo, já o art.º 8º, al.ªs a) e b), do mencionado DL 446/85 comina a exclusão das cláusulas não comunicadas ou sobre as quais pendesse o dever de informação do pré-disponente.

De todo o modo, o que prevalece é a nulidade do contrato in totum, como consequência mais grave, sendo essa nulidade naturalmente prejudicial da exclusão de clausulado.

Afastou, porém, a sentença a declaração da nulidade do contrato por entender que, atento o demais circunstancialismo apurado, a invocação dos aludidos vícios, nomeadamente, a não entrega do exemplar imposto por lei, constituiria uma manifestação de abuso do direito por parte do oponente na variante venire contra factum proprium, por violação da boa fé no exercício do competente direito (art.º 334 do CC).

Justificando esta visão, observou-se na decisão recorrida que este último (o executado/oponente) actuou abusivamente ao “pretender exercer determinado direito, depois de ter tido um comportamento apto a convencer a outra parte de que jamais o exerceria”.

Desenvolvendo este raciocínio, viria o Sr. Juiz a tecer a seguinte ponderação: “As 12 prestações pagas tratam-se de um número de pagamentos, de um montante global e de um lapso temporal, um ano, de molde a convencer qualquer pessoa de mediano entendimento que jamais iriam pôr em crise tal contrato.

Assim, terá que se concluir que o comportamento do opoente configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, não lhe sendo já lícito invocar a nulidade contrato de financiamento, pela aparência de conformação com o contrato que criou na outra parte, criando na entidade financiadora a convicção de jamais viria a discutir a questão da validade do contrato.

Apesar de o instituto do abuso de direito constituir um último recurso, algo a que só se pode lançar mão, à falta de outro meio, com vista a evitar a produção de «situações clamorosamente injustas», o seu comportamento posterior à celebração do contrato justifica que se faça apelo a esse instituto. Não merecendo o banco qualquer especial protecção, a verdade é que a lei não deve ser aplicada por forma que possa conduzir à postergação dos seus direitos, quando foi o opoente que, pela sua inacção, impediu a declaração de nulidade do contrato, num prazo razoável.”

É aqui que divergimos frontalmente do Sr. Juiz.

Se não, vejamos.

A declaração de nulidade de um determinado negócio jurídico tem como característica fundamental a independência de prazo – pode ser conhecida ex officio e invocada a todo o tempo, como se diz no art. 286 do CC, diversamente da anulabilidade que deve ser arguida dentro de certo prazo, afora a situação do nº 2 do art.º 287 do CC (negócio ainda não cumprido).

O mero decurso do tempo – a simples inacção do interessado na nulidade – não pode ser interpretado por qualquer destinatário dos efeitos do negócio como uma intenção do prejudicado com a validade de não exercer o direito à arguição do vício. Não só porque há a regra da oficiosidade do conhecimento, oficiosidade que torna ilegítima a expectativa que não venha a ocorrer tal arguição, como porque é a própria lei a querer que tal invocação possa afirmar-se em qualquer momento, em homenagem ao relevante interesse que lhe subjaz. Como ensina Manuel de Andrade (Teoria Geral, 1972, vol II., p. 417), “A todo o tempo a nulidade absoluta pode ser invocada, quer por via de acção, quer por via de excepção (defesa). Não está sujeita a qualquer prazo. O poder ser invocada a todo o tempo por via de excepção, também se verifica, aliás, nas próprias nulidades relativas. Ainda esta característica, como logo se deixa perceber, corresponde à ideia de que a nulidade absoluta é determinada por motivos de ordem pública”.

Se é um interesse de ordem pública que está na base da instituição do regime da nulidade não é compreensível que esse interesse seja postergado ou apagado por uma conduta do titular do direito à anulação que possa indiciar a vontade de não o vir a invocar. Deste modo, o cumprimento parcial das obrigações resultantes do negócio, ainda que reiterado, sob a forma de prestações periódicas ao longo de um ano, não exclui a possibilidade de a todo o tempo a nulidade poder ser conhecida e declarada, mesmo oficiosamente.  

Deste modo, a parte que retira vantagem de um negócio ferido de nulidade não tem que contar com a boa de outro ou outros intervenientes no negócio.

Sem embargo, sempre se dirá que a passividade ou inacção de uma parte no negócio em arguir a sua invalidade nem sempre é um comportamento concludente.

E nunca o é, mais evidentemente, a do aderente/consumidor em contratos de adesão como o do crédito ao consumo, porquanto no universo desta tipologia negocial, o aderente aparece como a parte mais débil, a quem a lei concede uma especial tutela no campo da comunicação e explicação do conteúdo do negócio. Ao invés, a boa fé do pré-disponente não é compaginável com a correlação de forças que antecede a celebração de tais contratos massificados e pré-elaborados.

Não podendo, certamente, ignorar as condições de facto em que outorgou, bem pode suceder que só longo tempo após a sua vinculação o aderente se consciencialize da invalidade do negócio (eventualmente alertado por terceiros).

Concorda-se em que seria de qualificar como contrária à boa a invocação da nulidade de contrato em que o aderente tenha ele próprio contribuído para a inobservância dos requisitos impostos pela lei.

Mas, por virtude do interesse público subjacente, nem o pré-disponente está dispensado do cumprimento dos deveres que lhe estão prescritos.

Em suma: a nulidade do mútuo outorgado pelo executado/oponente não é susceptível de ser impedida ou afastada com fundamento em ofensa da boa fé e, em função disso, em abuso do direito, pela mera circunstância de se ter verificado o cumprimento do mútuo ao longo de um lapso de tempo apreciável. A invocação da nulidade pelo oponente não estava, pois, sujeita a uma prazo que se pudesse considerar “razoável”.

E assim tendo de se entender, nunca a prolatada sentença poderá ser mantida.

Com assento na nulidade do negócio causal da execução, o executado peticiona ainda a condenação do exequente a restituir-lhe valores pagos antes da instauração da execução.

Porém, a oposição à execução não tem a fisionomia de uma reconvenção. Serve apenas para paralisar os efeitos da execução. A restauração do status das partes anterior aos efeitos executivos não pode ser aqui curada. Daí que o exequente não possa aqui ser condenado a restituir o que quer que seja.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a decisão recorrida, julgando a oposição procedente com base na nulidade do mútuo a que se reportam os factos provados, o que nos presentes autos tem como consequência a extinção da execução.

Custas pelo exequente/apelado.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins