Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TELES PEREIRA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA INSUFICIÊNCIA DA MASSA INSOLVENTE LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE | ||
Data do Acordão: | 10/19/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL CÍVEL DE COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 39º, 232º E 234º, Nº4, DO CIRE | ||
Sumário: | I – A insuficiência da massa insolvente, no caso de insolvência de uma sociedade comercial, pode ser constatada na própria declaração de insolvência, nos termos do artigo 39º do CIRE, ou, após esta, na subsequente tramitação do processo concursal, neste último caso nos termos do artigo 232º do CIRE. II – Em ambas as situações ocorre o encerramento do processo, sem que se proceda à liquidação do património social. III – Nestes casos, nos termos do nº 4 do artigo 234º do CIRE, o encerramento do processo concursal não corresponde à extinção da sociedade insolvente, devendo a liquidação da mesma ter lugar (fora desse processo) através do procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, previsto no Anexo III ao Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março. IV – Nestas situações, não tendo o procedimento de dissolução e liquidação sido instaurado oficiosamente ou requerido pelos interessados, a simples deliberação em assembleia geral considerando a sociedade liquidada, não correspondendo a um acto de dissolução e liquidação legalmente conforme, não pode como tal ser objecto de registo na Conservatória do Registo Comercial. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – A Causa
1. Em 4 Maio de 2009[1], a Conservatória dos Registos Comercial e de Automóveis de Coimbra (Requerida na dinâmica do acto registal aqui discutido e entidade Recorrida no presente recurso) enviou à distribuição nos Juízos Cíveis de Coimbra a presente impugnação judicial [artigo 101º e seguintes do Código do Registo Comercial (doravante, CRCom)] da decisão de recusa do registo de acto apresentado como correspondendo à liquidação da sociedade C…, Lda. (Requerente e aqui Apelante), sociedade que fora declarada insolvente em 2008 pela Sentença certificada a fls. 74/83[2], sendo o processo respectivo encerrado – sem liquidação –, por insuficiência da massa insolvente, nos termos do artigo 39º, nº 7, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
1.1. Correspondeu a mencionada decisão de recusa impugnada pela Requerente [numa espécie de suscitação hierárquica a fls. 18/19[3] e, depois, judicialmente, a fls. 2/4 (cfr. artigo 101º-A do CRCom), emergindo a presente apelação do resultado desta impugnação judicial], correspondeu a decisão de recusa, dizíamos, ao seguinte despacho, datado de 18/03/2009, da Senhora Ajudante da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra: 1.1.1. Este despacho foi, como se referiu, judicialmente impugnado pela Requerente, nos termos resultantes de fls. 2/4 – as razões da Requerente serão adiante explicitadas com a transcrição das conclusões da motivação desta apelação –, tendo sido esse despacho sustentado a fls. 9/11, nos termos do artigo 101º-B, nº 1 do CRCom, pela Exma. Conservadora, aqui se transcrevendo o fundamental das razões da confirmação por esta do entendimento da Ajudante: 1.2. Devidamente instruída na Conservatória, foi a impugnação judicial remetida ao Tribunal a quo, decidindo-a este, no sentido da improcedência, através da Sentença de fls. 30/37 que constitui a decisão objecto do presente recurso de apelação.
Resumidamente, estribou-se tal improcedência (correspondeu ela, pois, à confirmação do despacho impugnado) nas seguintes razões: 1.3. Inconformada, apresentou-se a Requerida a interpor e a motivar o presente recurso de apelação[7] a fls. 42/47, formulando as seguintes conclusões (estas caracterizam a posição e os argumentos defendidos pela Requerente/Apelante, quanto à admissibilidade do registo, desde que o requereu e o mesmo foi recusado até à presente instância de recurso): II – Fundamentação
2. Neste recurso, como em qualquer outro, as conclusões formuladas pela Apelante, a cuja transcrição procedemos no item anterior, operaram a delimitação temática do respectivo objecto, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).
Trata-se aqui, pois – rectius, corresponde ao objecto do recurso –, de controlar a asserção, presente na decisão apelada, segundo a qual, um decretamento da insolvência com o conteúdo específico – com o objecto limitado, chamemos-lhe assim – resultante da conjugação dos nºs 1 e 7 do artigo 39º do CIRE, não conduz à extinção da sociedade insolvente, posteriormente ao trânsito dessa decisão, por simples deliberação dos sócios em assembleia geral, não se operando por essa via a liquidação da sociedade, com a consequente impossibilidade de levar ao registo comercial essa incidência (a liquidação). É a este último elemento em particular (o que se expressa na negação do registo) que o conteúdo decisório aqui impugnado se refere.
2.1. Os factos operantes para a decisão apelada, os como tal elencados nesta, são os que aqui transcreveremos a partir do texto da própria Sentença: Em complemento destes elementos de facto – e sublinhamos estarem todos eles documentados no processo –, remetemos para as diversas incidências processuais descritas ao longo do item 1., sendo através destas que ocorreu a formação da decisão judicial que aqui nos cumpre apreciar.
2.2. A instauração do processo concursal relativamente à sociedade ora Apelante e o decretamento da insolvência desta resultaram de apresentação (artigo 28º do CIRE), estando a Sentença respectiva certificada a fls. 75/83. Do pronunciamento final constante dessa decisão interessará reter como dado com particular relevo, enquanto ponto de partida da subsequente argumentação, para além da declaração de insolvência em si mesma (consta ela do ponto 1º da Decisão, cfr. aqui fls. 79), o elemento decisório (o respectivo ponto 5º) cujo referencial corresponde à previsão do artigo 39º, nº 1 do CIRE o qual se expressou, nessa Sentença, nos seguintes termos: Posteriormente, no desenvolvimento do referido processo de insolvência, viria a ser proferido o despacho certificado a fls. 6 destes autos, determinando o mesmo a finalização (o encerramento, para utilizarmos a terminologia do CIRE) desse processo concursal, despacho esse cujo teor importa aqui ter presente: Conjugando estes elementos retirados do processo de insolvência da Apelante, constatamos o preenchimento no caso da facti species do artigo 39º do CIRE, na dimensão que resulta da conjugação dos seguintes trechos deste:
Artigo 39º 1 – Concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência e dá nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artigo 36º, declarando aberto o incidente de qualificação de carácter limitado.Insuficiência da massa insolvente 2 – No caso referido no número anterior: a) Qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do artigo 36º; --------------------------------------------------------------------------------------- 7 – Não sendo requerido o complemento da sentença: a) O devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código; b) O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência; c) O administrador da insolvência limita a sua actividade à elaboração do parecer a que se refere o nº 2 do artigo 188º; d) Após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos nºs 4 e 5. --------------------------------------------------------------------------------------- [sublinhados aqui acrescentados, destacando os elementos relevantes no caso concreto] Estando em causa a valoração da vicissitude correspondente ao encerramento do processo de insolvência sobre a sociedade (foi esse encerramento do processo o que foi determinado no despacho certificado a fls. 6 acima transcrito), importa ter presente o tratamento dado na lei à ocorrência dessa incidência processual no que se refere ao futuro do ente social declarado insolvente, designadamente, quanto à existência deste ente. Ou seja, simplificando a questão – e porque para pôr fim a algo é necessário que esse algo exista –, haverá que determinar como se processará a dissolução e a liquidação da sociedade insolvente – efectivamente declarada insolvente – no caso do encerramento do processo concursal ter ocorrido sem que nele se tivesse processado efectivamente uma liquidação do património social. Isso (a ausência de liquidação) sucedeu neste caso e, como adiante veremos com mais detalhe, sempre sucede (para além da situação prevista no artigo 171º do CIRE que aqui se não aplica) quando o encerramento do processo concursal ocorre logo aquando da declaração de insolvência (artigo 39º do CIRE) ou, posteriormente, no decurso desse mesmo processo (artigo 232º do CIRE), por se constatar a insuficiência da massa para a satisfação das custas da insolvência e das dívidas da insolvente.
2.2.1. No quadro do CIRE, especificamente no respectivo Título XI referente ao “encerramento do processo” concursal (artigos 230º a 234º), dispõe o artigo 234º sobre os efeitos dessa incidência culminante do processo sobre a existência da insolvente, sendo esta uma sociedade comercial:
Artigo 234º 1 – Baseando-se o encerramento do processo na homologação de um plano de insolvência que preveja a continuidade da sociedade comercial, esta retoma a sua actividade independentemente de deliberação dos sócios.Efeitos sobre as sociedades comerciais 2 – Os sócios podem deliberar a retoma da actividade se o encerramento se fundar na alínea c) do nº 1 do artigo 230º[[8]]. 3 – Com o registo do encerramento do processo após o rateio final, a sociedade considera-se extinta. 4 – No caso de encerramento por insuficiência da massa insolvente, a liquidação da sociedade prossegue nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, devendo o juiz comunicar o encerramento e o património da sociedade ao serviço de registo competente.[[9]] Interessam argumentativamente à questão que nos ocupa as distintas situações contempladas nos nºs 3 e 4 acabados de transcrever, colocando-se aqui, obviamente, um especial ênfase nesta última (a prevista no nº 4), por corresponder ela, exactamente, às incidências relevantes no caso concreto.
Distingamos, portanto, no prosseguimento da apreciação do recurso, as duas situações referidas.
2.2.1.1. Prevê-se no nº 3 a extinção directa da sociedade – chamemos-lhe assim – por via do encerramento do processo de insolvência, quando neste tenha tido lugar (no sentido de iniciado e completado até ao rateio final[10]) a liquidação da massa insolvente. Trata-se de uma consequência lógica, sendo certo que a ocorrência da liquidação concursal, que é em si mesma – passe a redundância – uma liquidação de um determinado património, já preenche plenamente o objectivo instrumental prosseguido pela liquidação do património social prevista no Capítulo XIII da Parte Geral do Código das Sociedades Comerciais (CSC; v. os artigos 146º a 165º deste).
Com efeito, seguindo a caracterização desta última situação feita por António Menezes Cordeiro, dir-se-á corresponder a liquidação de uma sociedade:
Ora, no caso da liquidação concursal, permite ela, num sugestivo paralelismo com a liquidação do património social – e seguimos desta feita a caracterização de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão:
Este paralelismo de situações decorre, aliás, da própria finalidade do processo de insolvência. Este, na definição do artigo 1º do CIRE, considerando nesta o que aqui nos interessa (não nos interessam neste caso as situações de recuperação), “[…] é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores […]”.
2.2.1.2. Recorda-se que estamos a argumentar comparando o regime dos nºs 3 e 4 do artigo 234º do CIRE, cumprindo agora focar o nº 4 da disposição. Prevê este a hipótese de não ocorrerem operações de liquidação no quadro do processo de insolvência, em função do encerramento (antecipado) deste por insuficiência da massa, quer essa situação de insuficiência resulte da consolidação processual da prognose inicial estabelecida no nº 1 do artigo 39º do CIRE acima transcrito (precisamente a situação ocorrida no caso que aqui nos ocupa), quer esse elemento (a insuficiência da massa) venha a ser supervenientemente detectado no decurso do processo concursal, desta feita nos termos do artigo 232º do CIRE, ou seja, posteriormente à Sentença de declaração de insolvência cujo objecto não se apresentava inicialmente limitado nos termos do artigo 39º, nºs 1 e 7 do CIRE[13].
2.2.2. Vale esta última constatação para sublinhar a insubsistência do argumento da Apelante que se expressa nas conclusões VIII e IX supra transcritas, entendimento que assenta numa distinção, dentro das insolvências em que o encerramento do processo decorre da constatação da insuficiência da massa insolvente, entre os casos previstos no artigo 39º do CIRE, em que essa constatação ocorre logo no início do processo, e os casos de constatação dessa insuficiência a posteriori, regulados estes últimos no artigo 232º do CIRE.
Com efeito, assentando a distinção propugnada pela Apelante numa especial valorização do disposto na alínea a) do nº 7 do referido artigo 39º – “[o] devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código” – esquece esse argumento (o argumento da Apelante expresso nas ditas conclusões VIII e IX) que uma leitura compaginada dos artigos 232º e 233º do CIRE, comparando a situação (do artigo 232º) com a do artigo 39º do CIRE, nos faz concluir que o insolvente em todas as situações em que no processo concursal não é realizada a liquidação do património, ou esta aí não é completada (o que aqui equivale à sua não realização), acaba, o insolvente nesse caso, por se subtrair, no essencial, às indisponibilidades geradas pela declaração de insolvência[14].
De facto, (1) no caso da liquidação ser omitida por constatação ab initio da insuficiência do património, nos termos do artigo 39º do CIRE, tal consequência produz-se por força da alínea a) do nº 7 desta mesma disposição; (2) no caso do bloqueamento da liquidação in itinere do processo prevista no artigo 232º do CIRE, ou seja quando a insuficiência não foi detectada logo à partida e, por isso, não se gerou uma declaração de insolvência com um objecto limitado inicial (artigo 39º, nº 1 do CIRE), a referida consequência da cessação das indisponibilidades resulta, fundamentalmente, da ponderação conjugada dos diversos efeitos do encerramento previstos nas várias situações elencadas no artigo 233º do CIRE[15].
Isto mesmo é sublinhado por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando precisamente este artigo 233º: Vale isto por dizer que o encerramento do processo ao abrigo do disposto no artigo 232º do CIRE apresenta efeitos fundamentalmente semelhantes – ressalvadas as especificidades decorrentes de já terem ocorrido determinadas operações liquidatórias da massa cuja incidência importará considerar ulteriormente (especificidades estas previstas no nº 2 do artigo 233º do CIRE) –, o encerramento nos termos do indicado artigo 232º, dizíamos, acaba por corresponder, quanto à insolvente sociedade, fundamentalmente, às mesmas consequências representadas por um encerramento do processo que traduza, logo no seu início, a consolidação de uma declaração de insolvência nos termos do nº 1 do artigo 39º do CIRE (v. o nº 7, alínea a) da mesma disposição, comparando-o com o artigo 233º, nº 1, alínea a) do CIRE). Aliás, em ambos os casos (artigo 39º e artigo 232º do CIRE), o incidente de qualificação é sempre levado em conta no seu resultado (v. os artigos 39º, nº 7, alínea b) e 233º, nº 1, alínea a) do CIRE[17]).
Assim sendo – e é o elemento interpretativo que aqui importa reter –, não tem sentido a distinção pretendida introduzir pela Apelante, designadamente nas conclusões VIII e IX do recurso, entre as consequências relativamente à sociedade devedora de uma insolvência decretada com carácter limitado nos termos do artigo 39º do CIRE e uma insolvência sem esse carácter inicial, posteriormente encerrada nos termos do artigo 232º do CIRE. Também esta última vai ser uma insolvência de carácter limitado (nela não se completa a liquidação e, portanto, nela também não há liquidação[18]). A lei não realiza a distinção que a Apelante propugna, e, interpretando globalmente as disposições do CIRE acima mencionadas, constatamos não ter sentido interpretativo operante realizar essa distinção. Aliás, sobre quem siga o entendimento da Apelante sempre impenderá, pelo menos, o ónus argumentativo de demonstrar a razão lógica da diferenciação de regimes quando a situação base se prefigura como fundamentalmente idêntica na sua essência profunda: num e noutro caso (artigos 39º e 232º do CIRE) o processo é encerrado sem que se atinja ou se complete a liquidação do património social, apenas havendo que salvaguardar, no caso do encerramento determinado nos termos do artigo 232º do CIRE, as situações já desencadeadas com base num procedimento concursal que, ab initio (como sucede nos casos do artigo 39º do CIRE), não havia considerado o dado traduzido na insuficiência da massa insolvente – é à consideração destas situações que está essencialmente dirigido o nº 2 do artigo 233º do CIRE.
2.2.3. Interessa-nos, pois, considerar, tratando-se a Apelante de uma sociedade comercial, a especificidade do regime previsto no artigo 234º do CIRE, disposição já antes transcrita, quanto aos efeitos decorrentes do encerramento do processo, tenha esta vicissitude processual origem no artigo 39º, como aqui sucedeu, ou no artigo 232º do CIRE.
Com efeito, considerando agora nesse artigo 234º, por facilidade expositiva radicada no caso concreto, os trechos normativos constantes dos nºs 3 e 4 do mesmo, verificamos – e assim cremos estar a captar adequadamente a racionalidade dessas disposições – que (e trata-se da hipótese do nº 3 do artigo 234º) o encerramento do processo concursal que, através do preenchimento total das fases de liquidação do património social e de pagamento, preenche os mesmos objectivos que, fora do quadro desse processo, seriam preenchidos pela observância dos passos previstos para a liquidação de uma sociedade comercial, nos artigos 146º a 165º do CSC[19], origina – é o que diz o nº 3 do artigo 234º do CIRE – a extinção da sociedade[20].
Contrariamente (e trata-se agora da hipótese prevista no nº 4 e que se aplica ao caso da Apelante), nas situações em que o processo, por o encerramento não ter passado por uma fase – rectius, por um processamento – de liquidação ou não a ter completado, não implicou uma actividade relativamente ao património social que se possa considerar equivalente à que é pressuposta e concretizada nos artigos 146º a 165º do CSC (incluindo nesta a liquidação administrativa introduzida pelo DL 76-A/2006, de 29 de Março[21]), o encerramento do processo não pode ter esse efeito existencial sobre a sociedade: será necessário, para alcançar esse resultado, recorrer, fora do processo de insolvência, aos mecanismos gerais aptos à produção desse efeito (extinguir a sociedade liquidando o seu património), sendo estes procedimentos os previstos na lei geral.
Ou seja, como muito acertadamente se observa na Sentença apelada, será necessário, nos casos como o que aqui se configura, preencher todos os requisitos substanciais e procedimentais conducentes à extinção de uma sociedade comercial, sendo que isso não acontece (ou não acontece só) através de uma simples deliberação declarativa dos sócios, como a que se regista na acta da assembleia geral da Apelante junta a fls. 12/17, com base na qual – relembramo-lo – se pretendeu neste caso registar a liquidação da sociedade Apelante.
É neste sentido – e também isto é acertadamente observado na Sentença – que Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando o artigo 39º do CIRE, afirmam que:
2.2.4. Foi este o entendimento que a Sentença apelada, secundando a posição da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra justificadamente seguiu, sendo que esta Relação, com base no percurso argumentativo aqui seguido (que no essencial coincide com o da primeira instância), considera correcto esse entendimento. Com efeito, a simples declaração exarada em acta, pela sócia única, na assembleia geral da sociedade Apelante, mesmo acompanhada das explicitações (declarações) adicionais aí contidas, não tem a virtualidade de preencher os passos próprios de uma dissolução e liquidação legalmente conforme – neste caso, por expressa indicação do nº 4 do artigo 234º do CIRE, o procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais.
Tenha-se presente – e focamos agora directamente o acto de recusa do registo aqui em causa – o sentido do princípio da legalidade expresso no artigo 47º do CRCom, quanto à validade dos actos contidos nos títulos com base nos quais se pretende desencadear uma pretensão registal, sendo que o facto aqui pretendido registar (a liquidação da sociedade Apelante) não se expressou validamente, por não ser esse o processamento adequado, através da simples deliberação dos sócios em assembleia geral (não se comprova validamente, pois, através da acta dessa assembleia, por não comprovar esta o acto cujo registo é requerido: a liquidação).
Sendo certo que a Apelante foi declarada insolvente com as particularidades acima caracterizadas, particularidades que, como indicámos antes, não acarretaram a extinção da sociedade por via do processo concursal, não vemos outro caminho para a dissolução e liquidação que não seja o de desencadear regularmente essa liquidação. A este propósito, procurando indicar uma solução – e sublinha-se que se trata de uma solução a cotejar com todos os dados da situação concreta –, caso esteja em causa, como poderá ser o caso, a omissão pelo Tribunal que declarou a insolvência de providenciar pela comunicação do encerramento desse processo – trata-se esse encerramento de facto sujeito a registo (artigo 9º, alínea n) do CRCom)[24] –, nos termos do nº 4 do artigo 234º do CIRE, pode a Apelante obter, sendo esse o caso, junto do processo de insolvência, a supressão dessa possível omissão de comunicação, enquanto acto previsto na lei e que terá (aí) sido omitido. Esse elemento teria a virtualidade de propiciar o desencadear oficioso do procedimento de dissolução, nos termos da alínea i) do nº 5 do artigo 15º do Anexo III ao DL 76-A/2006. Tal como teria – terá – a virtualidade de originar esse procedimento o requerimento da Apelante ou da sua sócia (artigo 15º, nº 1 do mesmo Anexo).
2.3. Seja como for, interessando a esta apelação, apenas, o concreto acto de recusa do registo da liquidação da sociedade C…, Lda., consubstanciado no despacho certificado a fls. 24 e sustentado a fls. 9/11, confirmado que foi este pela Sentença de fls. 30/37 aqui apelada, o resultado decisório que aqui importa formular é, tão-só, o da improcedência do recurso dirigido a esse concreto acto de recusa, com a consequente confirmação, por ser absolutamente correcta, da decisão apelada. Tudo o resto já extravasa do objecto deste recurso. É – a decisão do presente recurso –, pois, o que nos resta formular, sumariando antes, cumprindo assim a imposição constante do artigo 713º, nº 7 do CPC, o percurso argumentativo deste Acórdão conducente à decisão: III – Decisão 3. Assim, face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a Sentença apelada. Custas em ambas as instâncias a cargo da Apelante.
Artigo 233º 1 – Encerrado o processo:Efeitos do encerramento a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência; c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos. 2 – O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina: a) A ineficácia das resoluções de actos em beneficio da massa insolvente, excepto se o plano de insolvência atribuir ao administrador da insolvência competência para a defesa nas acções dirigidas à respectiva impugnação, bem como nos casos em que as mesmas não possam já ser impugnadas em virtude do decurso do prazo previsto no artigo 125º, ou em que a impugnação deduzida haja já sido julgada improcedente por decisão com trânsito em julgado; b) A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias; c) A extinção da instância das acções pendentes contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente propostas pelo administrador da insolvência, excepto se o plano de insolvência atribuir ao administrador da insolvência competência para o seu prosseguimento. 3 – As custas das acções de impugnação da resolução de actos em benefício da massa insolvente julgadas procedentes em virtude do disposto da alínea a) do número anterior constituem encargo da massa insolvente se o processo for encerrado por insuficiência desta. 4 – Exceptuados os processos de verificação de créditos, qualquer acção que corra por dependência do processo de insolvência e cuja instância não se extinga, nos termos da alínea b) do nº 2, nem deva ser prosseguida pelo administrador da insolvência, nos termos do plano de insolvência, é desapensada do processo e remetida para o tribunal competente, passando o devedor a ter exclusiva legitimidade para a causa, independentemente de habilitação ou do acordo da contraparte. 5 – Nos 10 dias posteriores ao encerramento, o administrador da insolvência entrega no tribunal, para arquivo, toda a documentação relativa ao processo que se encontre em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor que não hajam de ser restituídos ao próprio. [16] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit. na nota 15, supra, p. 769. [17] Repetindo aqui, relativamente ao artigo 39º do CIRE, o lugar paralelo da anotação de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda acima transcrita no texto, visando a alínea a) do nº 1 do artigo 233º do CIRE (citação à qual se refere a nota 15), transcreveremos aqui a seguinte passagem da anotação destes Autores ao mencionado artigo 39º: “[…] Naturalmente se a insolvência vier a ser qualificada como culposa e, em consequência, decretada a inabilitação do devedor […], segue-se o respectivo regime” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 206). [18] Daí que Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, rematando a anotação ao artigo 171º do CIRE, referente à dispensa de liquidação (que só se aplica “[s]e o devedor for uma pessoa singular […]”), afirmem: “[…] Importa dizer que o caso aqui previsto não é o único em que, declarada a insolvência, todavia, não há lugar à liquidação. Isso acontece também quando seja aprovado um plano de insolvência que preveja a satisfação dos interesses dos credores por meios alternativos, nos casos de homologação de um plano de pagamentos em conformidade com os artigos 251º e seguintes, e ainda nas situações de insuficiência da massa insolvente, consideradas, respectivamente, nos artigos 39º e 232º. […]” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 572, sublinhado acrescentado). [19] “A «liquidação» tem dois sentidos: (a) a situação jurídica da sociedade, após a dissolução e antes da sua total extinção; (b) processo ou conjunto de actos concatenados a praticar durante esse processo. Como situação, a liquidação exprime um status da sociedade: esta funciona normalmente, mas os actos que pratica visam não já a normal prossecução do objecto social: antes se orientam para a cessação das diversas relações envolvidas. Enquanto processo, a liquidação implica – ou pode implicar – diversas operações dirigidas ao termo da sociedade […]. Grosso modo, os actos envolvidos visam, com um mínimo de danos, passar do modo colectivo de funcionamento do Direito ao modo singular. […]. A liquidação pauta-se pelos seguintes princípios: (a) manutenção da personalidade colectiva; (b) publicidade; (c) autonomia privada; (d) prestação de contas e responsabilidade; (e) satisfação dos credores; (f) partilha aos sócios. […]” (Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação: António Menezes Cordeiro, Coimbra, 2009, p. 477). [20] Embora mesmo nestes casos, que o CSC qualifica como “dissolução imediata” da sociedade, abrangendo no artigo 141º, nº 1, alínea e) a declaração de insolvência, exista uma corrente doutrinária, minoritária, criticando (de iure condendo, dado o teor expresso da norma) o estabelecimento automático da dissolução pela liquidação operada no processo concursal (v. Jorge Henrique Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 3ª ed., Coimbra, 2000, pp. 553/554). [21] V. nota 11, supra. [22] Corresponde à alínea i) na actual redacção do preceito, introduzida no DL 76-A/2006, pelo artigo 18º do Decreto-Lei nº 318/2007, de 26 de Setembro. [23] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., pp. 206/207. A Apelante argumenta (v. a conclusão IV da motivação acima transcrita), por referência ao entendimento destes dois Autores, utilizando uma citação da edição de 2006 da obra aqui mencionada (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, reimpressão, Lisboa, 2006, anotação 10 ao artigo 39º, p. 206). Esquece a Apelante, porém, que essa obra se refere ao regime vigente em Julho de 2005 (cfr. fls. 6; v. no vol. II da obra o texto do artigo 234º, nº 4 considerado, p. 180), portanto, ao regime de dissolução e liquidação de entidades comerciais anterior à edição (e consequente alteração do CIRE) do DL 76-A/2006, de 29 de Março. Assim, aquilo que a Apelante diz (conclusão IV) configurar uma “nova tese” destes Autores (a citação do texto desta nota) mais não é do que a mesma tese (a liquidação quando não ocorre na insolvência tem de se fazer fora dela) actualizada pela (nova) lei. [24] A certidão de fls. 27 apenas regista a declaração de insolvência (v. a alínea i) do artigo 9º do CRCom) e não o encerramento do processo, sugerindo que o subsequente registo do encerramento da insolvência não tenha sido comunicado ao registo. |