Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1649/09.1TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSUFICIÊNCIA DA MASSA INSOLVENTE
LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
Data do Acordão: 10/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL CÍVEL DE COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 39º, 232º E 234º, Nº4, DO CIRE
Sumário: I – A insuficiência da massa insolvente, no caso de insolvência de uma sociedade comercial, pode ser constatada na própria declaração de insolvência, nos termos do artigo 39º do CIRE, ou, após esta, na subsequente tramitação do processo concursal, neste último caso nos termos do artigo 232º do CIRE.

II – Em ambas as situações ocorre o encerramento do processo, sem que se proceda à liquidação do património social.

III – Nestes casos, nos termos do nº 4 do artigo 234º do CIRE, o encerramento do processo concursal não corresponde à extinção da sociedade insolvente, devendo a liquidação da mesma ter lugar (fora desse processo) através do procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, previsto no Anexo III ao Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março.

IV – Nestas situações, não tendo o procedimento de dissolução e liquidação sido instaurado oficiosamente ou requerido pelos interessados, a simples deliberação em assembleia geral considerando a sociedade liquidada, não correspondendo a um acto de dissolução e liquidação legalmente conforme, não pode como tal ser objecto de registo na Conservatória do Registo Comercial.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 4 Maio de 2009[1], a Conservatória dos Registos Comercial e de Automóveis de Coimbra (Requerida na dinâmica do acto registal aqui discutido e entidade Recorrida no presente recurso) enviou à distribuição nos Juízos Cíveis de Coimbra a presente impugnação judicial [artigo 101º e seguintes do Código do Registo Comercial (doravante, CRCom)] da decisão de recusa do registo de acto apresentado como correspondendo à liquidação da sociedade C…, Lda. (Requerente e aqui Apelante), sociedade que fora declarada insolvente em 2008 pela Sentença certificada a fls. 74/83[2], sendo o processo respectivo encerrado – sem liquidação –, por insuficiência da massa insolvente, nos termos do artigo 39º, nº 7, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

1.1. Correspondeu a mencionada decisão de recusa impugnada pela Requerente [numa espécie de suscitação hierárquica a fls. 18/19[3] e, depois, judicialmente, a fls. 2/4 (cfr. artigo 101º-A do CRCom), emergindo a presente apelação do resultado desta impugnação judicial], correspondeu a decisão de recusa, dizíamos, ao seguinte despacho, datado de 18/03/2009, da Senhora Ajudante da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra:


“[...]
Ap.08/20090309[[4]] – Recusada em virtude do facto não estar titulado nos documentos apresentados. Os documentos juntos em sede de suprimento de deficiências titulam um novo facto que deverá ser requerido pelos interessados ou oficiosamente pelo Tribunal. Este acto, o encerramento do processo de insolvência, não consta do elenco dos actos que podem ser requeridos on-line pelo que, a ser requerido pelo interessado, deve sê-lo ao balcão.
Uma vez efectuado o registo do encerramento do processo e sendo a causa desse encerramento a insuficiência da massa insolvente (artigo 39º do CIRE) o processo segue para o encerramento da liquidação através do Procedimento Administrativo de Liquidação a instaurar oficiosamente pela Conservatória nos termos do artigo 15º, nº 5, alínea i) do RJPADLEC[[5]].
Artigos 32º, 47º e 48º, nº 1, alínea b) [do CRCom].
[…]
            [transcrição de fls. 24]

            1.1.1. Este despacho foi, como se referiu, judicialmente impugnado pela Requerente, nos termos resultantes de fls. 2/4 – as razões da Requerente serão adiante explicitadas com a transcrição das conclusões da motivação desta apelação –, tendo sido esse despacho sustentado a fls. 9/11, nos termos do artigo 101º-B, nº 1 do CRCom, pela Exma. Conservadora, aqui se transcrevendo o fundamental das razões da confirmação por esta do entendimento da Ajudante:


“[…]
[C]om o pedido de registo foi junta a acta nº 17 de 30/01/2009 da assembleia geral da sociedade [refere-se à Requerente] para titular o facto «encerramento da liquidação», não constando daquele documento qualquer referência à data de aprovação das contas, elemento fundamental para o registo definitivo do facto.
A sociedade […] foi declarada insolvente no dia 01/04/2008 tendo o registo da sentença de declaração de insolvência e nomeação de administrador judicial em processo de insolvência sido efectuado […].
A sócia única reuniu, no dia 30/01/2009, em assembleia geral, para proceder à liquidação da sociedade com vista à extinção da mesma.
[…]
Tendo havido declaração, como é referido na acta[[6]], de encerramento do processo de insolvência por o património da sociedade não ser suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, esse registo deveria ter sido efectuado nos termos da alínea n) do artigo 9º do [CRCom]. O mesmo não foi requerido pelo Tribunal
Esse registo permitiria desencadear o procedimento previsto no artigo 15º, nº 5, alínea i) do diploma anexo ao DL nº 76-A/2006, de 29 de Março, «Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais» [RJPADLEC].
O registo foi portanto recusado por se entender que o facto apresentado a registo – encerramento da liquidação – não se encontra titulado nos documentos apresentados com o pedido […].
Em concreto não pode a sócia deliberar sem mais o encerramento da liquidação e se o fizesse devia ter aprovado as respectivas contas.
[…]
Para os sócios poderem deliberar o encerramento da liquidação é necessário que se verifiquem os requisitos substantivos previstos na lei: inexistência de activo e passivo e aprovação das contas.
Ora, não podendo lançar-se mão do artigo 15º, nº 5, alínea i) do RJPADLEC apenas seria possível proceder ao encerramento da liquidação depois de verificados aqueles dois requisitos cumulativos para a extinção da sociedade, o que em concreto não ocorreu e daí o registo ter sido recusado de acordo com o despacho de recusa […].
[...]”
            [transcrição de fls. 9/10]

            1.2. Devidamente instruída na Conservatória, foi a impugnação judicial remetida ao Tribunal a quo, decidindo-a este, no sentido da improcedência, através da Sentença de fls. 30/37 que constitui a decisão objecto do presente recurso de apelação.

            Resumidamente, estribou-se tal improcedência (correspondeu ela, pois, à confirmação do despacho impugnado) nas seguintes razões:


“[…]
[T]endo a dissolução sido determinada pela insolvência da sociedade, e não tendo a liquidação sido concluída no processo de insolvência, em virtude de este ter sido encerrado por insuficiência da massa, sempre tal registo estaria vedado em virtude de a liquidação da sociedade competir ao serviço de registo comercial, e seguir o Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais - independentemente da insuficiência da massa ser verificada pelo juiz, na sentença que declara a insolvência, ou posteriormente, pelo administrador da insolvência.
[…]”
            [transcrição de fls. 36/37]

            1.3. Inconformada, apresentou-se a Requerida a interpor e a motivar o presente recurso de apelação[7] a fls. 42/47, formulando as seguintes conclusões (estas caracterizam a posição e os argumentos defendidos pela Requerente/Apelante, quanto à admissibilidade do registo, desde que o requereu e o mesmo foi recusado até à presente instância de recurso):


“[…]
I. Perante o despacho que declara findo o processo de Insolvência, o Recorrente, em 09/03/2009, requereu junto da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra que fosse efectuado o registo de liquidação da sociedade insolvente […], tendo tal registo [sido] recusado com base em pressupostos que não se aplicam ao caso em apreço.
II. Entendem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, p. 206, anotação 10, ao artigo 39º, que «A simples declaração de insolvência (limitada) determina a dissolução. Porém, a liquidação que conduzirá à extinção definitiva corre por meios extrajudiciais, competindo aos titulares do órgão de gestão promover o que for necessário, de acordo com o direito substantivo, para que a extinção se concretize e, se for o caso, ao colectivo social deliberar correspondentemente».
III. A sociedade insolvente diligenciou no sentido de ser liquidada conforme lhe compete,
IV. O registo de liquidação de sociedade declarada insolvente com carácter limitado, não compete oficiosamente ao tribunal, não se podendo, pois, concordar com a nova tese que os Autores supra citados têm, pois a sua anterior posição sobre a matéria, do ponto de vista do Recorrente, era a mais acertada, daí a sua invocação.
V. O CIRE é omisso relativamente a quem incumbe proceder ao registo de liquidação da sociedade quando o processo de insolvência é declarado findo, pelo que teremos, necessariamente de concluir que terão de ser os sócios da sociedade a fazê-lo.
VI. De acordo com o disposto no artigo 39º, nº 7, alínea a) do CIRE, tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência com carácter limitado, o devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas do CIRE, sendo inequívoca a conclusão que quem deve proceder ao registo do encerramento das sociedades comerciais com carácter limitado, não pode ser oficiosamente o Tribunal, mas sim o devedor, atenta a sua total disposição e administração do seu património.
VII. Até poderia o Recorrente estar de acordo com o decidido na Sentença, não fosse o disposto no artigo 39º, nº 7, a) nos termos já supra expostos.
VIII. Outra situação radicalmente distinta decorre quando o Juiz, no início de um processo de insolvência declara que tal processo tem carácter pleno, contendo todas as menções previstas no artigo 36º do CIRE e, no decorrer da sua tramitação, o Administrador da Insolvência vem a verificar que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas respectivas e das restantes dívidas da massa insolvente conforme decorre expressamente do artigo 232º do CIRE, discordando-se neste ponto uma vez mais da Sentença recorrida, que equipara ambas as situações dando-lhes igual tratamento.
IX. Na situação específica de estarmos perante Sentença de declaração de insolvência com carácter pleno, seguida de verificação de insuficiência da massa insolvente, o nº 4 do artigo 234º do CIRE, com a redacção que lhe foi dada pelo DL nº 76-A/2008, de 29 de Março, dispõe que incumbe ao juiz comunicar o encerramento e o património da sociedade ao serviço de registo competente, ou seja oficiosamente o tribunal comunica à competente Conservatória, não incumbindo assim aos sócios da sociedade insolvente a realização de qualquer diligência adicional.
X. O registo do encerramento do processo de insolvência, não consta do elenco dos actos que podem ser requeridos on line, porquanto claro está que este acto é efectuado oficiosamente pelo Tribunal, quando está em causa uma insolvência com carácter pleno.
XI. Estando-se perante uma insolvência com carácter limitado, é entendimento do Recorrente, na esteira, aliás, do disposto no nº 7 do artigo 39º, a), que a publicidade do acto de registo de liquidação da sociedade incumbe aos sócios da própria sociedade insolvente e não oficiosamente ao Tribunal.
XII. Foi efectuada, pela Meritíssima Juiz a quo, uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 39º, nº 7, a) e nº 4 do artigo 234º, ambos do CIRE.
[…]”
            [transcrição de fls. 45/47]


II – Fundamentação


           

2. Neste recurso, como em qualquer outro, as conclusões formuladas pela Apelante, a cuja transcrição procedemos no item anterior, operaram a delimitação temática do respectivo objecto, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            Trata-se aqui, pois – rectius, corresponde ao objecto do recurso –, de controlar a asserção, presente na decisão apelada, segundo a qual, um decretamento da insolvência com o conteúdo específico – com o objecto limitado, chamemos-lhe assim – resultante da conjugação dos nºs 1 e 7 do artigo 39º do CIRE, não conduz à extinção da sociedade insolvente, posteriormente ao trânsito dessa decisão, por simples deliberação dos sócios em assembleia geral, não se operando por essa via a liquidação da sociedade, com a consequente impossibilidade de levar ao registo comercial essa incidência (a liquidação). É a este último elemento em particular (o que se expressa na negação do registo) que o conteúdo decisório aqui impugnado se refere.

            2.1. Os factos operantes para a decisão apelada, os como tal elencados nesta, são os que aqui transcreveremos a partir do texto da própria Sentença:


“[…]
1. A sociedade C..., Lda. apresentou-se à insolvência em processo que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia sob o n.º 204/08.8TYVNG.
2. Na sentença que declarou a respectiva insolvência, consignou-se que o património da insolvente não era presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter limitado, nos termos do art. 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa.
3. Porque nenhum credor usou da prerrogativa legal de complementar a sentença com as restantes menções daquele preceito, foi o processo declarado findo, nos termos do art. 39.º, n.º 7, al. b), do referido diploma, por despacho de 30 de Junho de 2008.
4. Perante este despacho, a sociedade, através do impugnante, requereu junto da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra que fosse efectuado o registo da liquidação da sociedade insolvente.
5. Este pedido foi acompanhado pela acta da assembleia geral da sociedade, com o n.º 17, realizada no dia 30 de Janeiro de 2009, na qual a única sócia deliberou ter-se a sociedade por liquidada a partir daquela data.
6. Sobre o pedido, a que correspondeu a apresentação 8 de 9 de Março de 2009, incidiu despacho de recusa, com o seguinte teor:
[transcreve a Sentença apelada aqui o despacho já constante, no texto deste Acórdão, do item 1.1., supra].
[…]”
            [transcrição de fls. 32]

            Em complemento destes elementos de facto – e sublinhamos estarem todos eles documentados no processo –, remetemos para as diversas incidências processuais descritas ao longo do item 1., sendo através destas que ocorreu a formação da decisão judicial que aqui nos cumpre apreciar.

            2.2. A instauração do processo concursal relativamente à sociedade ora Apelante e o decretamento da insolvência desta resultaram de apresentação (artigo 28º do CIRE), estando a Sentença respectiva certificada a fls. 75/83. Do pronunciamento final constante dessa decisão interessará reter como dado com particular relevo, enquanto ponto de partida da subsequente argumentação, para além da declaração de insolvência em si mesma (consta ela do ponto 1º da Decisão, cfr. aqui fls. 79), o elemento decisório (o respectivo ponto 5º) cujo referencial corresponde à previsão do artigo 39º, nº 1 do CIRE o qual se expressou, nessa Sentença, nos seguintes termos:


“[…]
5º – Declaro aberto o incidente de qualificação da presente insolvência (como culposa ou fortuita), com carácter limitado – artigo 36º, alínea i) do CIRE –, uma vez que face aos factos assentes por confissão há que concluir (vd. os bens móveis que constam avulso a fls. 19 e ss., pequenas peças para chuveiros e banheiras, casquilhos, etc., todos de muito reduzido unitário valor, ao que me apercebo) que o património da devedora não é presumivelmente (como é óbvio, com base num juízo de prognose ex ante) suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente (sem prejuízo de ulteriores desenvolvimentos que militem em divergente sentido, vista a presunção ilidível na qual se estribou o raciocínio que supra consta – artigos 349º e ss. do Código Civil).
[…]”
[transcrição de fls. 79/80, sublinhado no original aqui omitido]

            Posteriormente, no desenvolvimento do referido processo de insolvência, viria a ser proferido o despacho certificado a fls. 6 destes autos, determinando o mesmo a finalização (o encerramento, para utilizarmos a terminologia do CIRE) desse processo concursal, despacho esse cujo teor importa aqui ter presente:


“[…]
Por relação aos transactos termos dos autos, nomeadamente por consideração do facto de não ter sido requerido complemento da Sentença (artigo 39º, nº 2 do CIRE) atrás proferida, transitou esta em julgado, destarte julgando como findo o presente processo de insolvência, sem prejuízo do estatuído no artigo 39º, nº 7, alínea b) do CIRE.
Notifique.
[…]”
            [transcrição de fls. 6]

            Conjugando estes elementos retirados do processo de insolvência da Apelante, constatamos o preenchimento no caso da facti species do artigo 39º do CIRE, na dimensão que resulta da conjugação dos seguintes trechos deste:

Artigo 39º
Insuficiência da massa insolvente
1 – Concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência e dá nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artigo 36º, declarando aberto o incidente de qualificação de carácter limitado.
2 – No caso referido no número anterior:
            a) Qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do artigo 36º;
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7 – Não sendo requerido o complemento da sentença:
            a) O devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código;
            b) O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência;
            c) O administrador da insolvência limita a sua actividade à elaboração do parecer a que se refere o nº 2 do artigo 188º;
            d) Após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos nºs 4 e 5.
---------------------------------------------------------------------------------------
[sublinhados aqui acrescentados, destacando os elementos relevantes no caso concreto]

            Estando em causa a valoração da vicissitude correspondente ao encerramento do processo de insolvência sobre a sociedade (foi esse encerramento do processo o que foi determinado no despacho certificado a fls. 6 acima transcrito), importa ter presente o tratamento dado na lei à ocorrência dessa incidência processual no que se refere ao futuro do ente social declarado insolvente, designadamente, quanto à existência deste ente. Ou seja, simplificando a questão – e porque para pôr fim a algo é necessário que esse algo exista –, haverá que determinar como se processará a dissolução e a liquidação da sociedade insolvente – efectivamente declarada insolvente – no caso do encerramento do processo concursal ter ocorrido sem que nele se tivesse processado efectivamente uma liquidação do património social. Isso (a ausência de liquidação) sucedeu neste caso e, como adiante veremos com mais detalhe, sempre sucede (para além da situação prevista no artigo 171º do CIRE que aqui se não aplica) quando o encerramento do processo concursal ocorre logo aquando da declaração de insolvência (artigo 39º do CIRE) ou, posteriormente, no decurso desse mesmo processo (artigo 232º do CIRE), por se constatar a insuficiência da massa para a satisfação das custas da insolvência e das dívidas da insolvente.

            2.2.1. No quadro do CIRE, especificamente no respectivo Título XI referente ao “encerramento do processo” concursal (artigos 230º a 234º), dispõe o artigo 234º sobre os efeitos dessa incidência culminante do processo sobre a existência da insolvente, sendo esta uma sociedade comercial:

Artigo 234º
Efeitos sobre as sociedades comerciais
1 – Baseando-se o encerramento do processo na homologação de um plano de insolvência que preveja a continuidade da sociedade comercial, esta retoma a sua actividade independentemente de deliberação dos sócios.
2 – Os sócios podem deliberar a retoma da actividade se o encerramento se fundar na alínea c) do nº 1 do artigo 230º[[8]].
3 – Com o registo do encerramento do processo após o rateio final, a sociedade considera-se extinta.
4 – No caso de encerramento por insuficiência da massa insolvente, a liquidação da sociedade prossegue nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, devendo o juiz comunicar o encerramento e o património da sociedade ao serviço de registo competente.[[9]]

            Interessam argumentativamente à questão que nos ocupa as distintas situações contempladas nos nºs 3 e 4 acabados de transcrever, colocando-se aqui, obviamente, um especial ênfase nesta última (a prevista no nº 4), por corresponder ela, exactamente, às incidências relevantes no caso concreto.

            Distingamos, portanto, no prosseguimento da apreciação do recurso, as duas situações referidas.

2.2.1.1. Prevê-se no nº 3 a extinção directa da sociedade – chamemos-lhe assim – por via do encerramento do processo de insolvência, quando neste tenha tido lugar (no sentido de iniciado e completado até ao rateio final[10]) a liquidação da massa insolvente. Trata-se de uma consequência lógica, sendo certo que a ocorrência da liquidação concursal, que é em si mesma – passe a redundância – uma liquidação de um determinado património, já preenche plenamente o objectivo instrumental prosseguido pela liquidação do património social prevista no Capítulo XIII da Parte Geral do Código das Sociedades Comerciais (CSC; v. os artigos 146º a 165º deste).

Com efeito, seguindo a caracterização desta última situação feita por António Menezes Cordeiro, dir-se-á corresponder a liquidação de uma sociedade:


“[Ao] conjunto de actos que visam pôr termo ao modo colectivo de funcionamento do Direito, perante uma pessoa colectiva” [, sendo que,] “[e]m termos práticos, a liquidação implica o levantamento de todas as situações jurídicas relativas à sociedade em liquidação, a resolução de todos os problemas pendentes que a possam envolver, a realização pecuniária (se for o caso) dos seus bens, o pagamento de todas as dívidas e o apuramento do saldo final, a distribuir pelos sócios”[11].

Ora, no caso da liquidação concursal, permite ela, num sugestivo paralelismo com a liquidação do património social – e seguimos desta feita a caracterização de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão:


“[…] a satisfação, ao menos parcial, dos credores do insolvente, para o que é necessário que o seu património seja convertido numa quantia pecuniária que possa ser repartida por esses credores. Para esse efeito, haverá que proceder à cobrança dos créditos e à alienação dos bens e direitos compreendidos na massa insolvente, em ordem a obter os valores necessários a esse pagamento”[12]

            Este paralelismo de situações decorre, aliás, da própria finalidade do processo de insolvência. Este, na definição do artigo 1º do CIRE, considerando nesta o que aqui nos interessa (não nos interessam neste caso as situações de recuperação), “[…] é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores […]”.

2.2.1.2. Recorda-se que estamos a argumentar comparando o regime dos nºs 3 e 4 do artigo 234º do CIRE, cumprindo agora focar o nº 4 da disposição. Prevê este a hipótese de não ocorrerem operações de liquidação no quadro do processo de insolvência, em função do encerramento (antecipado) deste por insuficiência da massa, quer essa situação de insuficiência resulte da consolidação processual da prognose inicial estabelecida no nº 1 do artigo 39º do CIRE acima transcrito (precisamente a situação ocorrida no caso que aqui nos ocupa), quer esse elemento (a insuficiência da massa) venha a ser supervenientemente detectado no decurso do processo concursal, desta feita nos termos do artigo 232º do CIRE, ou seja, posteriormente à Sentença de declaração de insolvência cujo objecto não se apresentava inicialmente limitado nos termos do artigo 39º, nºs 1 e 7 do CIRE[13].

            2.2.2. Vale esta última constatação para sublinhar a insubsistência do argumento da Apelante que se expressa nas conclusões VIII e IX supra transcritas, entendimento que assenta numa distinção, dentro das insolvências em que o encerramento do processo decorre da constatação da insuficiência da massa insolvente, entre os casos previstos no artigo 39º do CIRE, em que essa constatação ocorre logo no início do processo, e os casos de constatação dessa insuficiência a posteriori, regulados estes últimos no artigo 232º do CIRE.

Com efeito, assentando a distinção propugnada pela Apelante numa especial valorização do disposto na alínea a) do nº 7 do referido artigo 39º – “[o] devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código” – esquece esse argumento (o argumento da Apelante expresso nas ditas conclusões VIII e IX) que uma leitura compaginada dos artigos 232º e 233º do CIRE, comparando a situação (do artigo 232º) com a do artigo 39º do CIRE, nos faz concluir que o insolvente em todas as situações em que no processo concursal não é realizada a liquidação do património, ou esta aí não é completada (o que aqui equivale à sua não realização), acaba, o insolvente nesse caso, por se subtrair, no essencial, às indisponibilidades geradas pela declaração de insolvência[14].

De facto, (1) no caso da liquidação ser omitida por constatação ab initio da insuficiência do património, nos termos do artigo 39º do CIRE, tal consequência produz-se por força da alínea a) do nº 7 desta mesma disposição; (2) no caso do bloqueamento da liquidação in itinere do processo prevista no artigo 232º do CIRE, ou seja quando a insuficiência não foi detectada logo à partida e, por isso, não se gerou uma declaração de insolvência com um objecto limitado inicial (artigo 39º, nº 1 do CIRE), a referida consequência da cessação das indisponibilidades resulta, fundamentalmente, da ponderação conjugada dos diversos efeitos do encerramento previstos nas várias situações elencadas no artigo 233º do CIRE[15].

Isto mesmo é sublinhado por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando precisamente este artigo 233º:


“[…]
A alínea a) do nº 1 [do artigo 233º do CIRE] ocupa-se dos efeitos do encerramento do processo de insolvência quanto à pessoa do insolvente.
Vista a norma no seu conjunto, cumpre começar por estabelecer uma distinção que assenta na qualificação da insolvência. Para além disso, a sua parte final ressalva o artigo 234º, que rege quanto ao devedor que seja sociedade comercial […].
Se a insolvência for considerada como fortuita, pode dizer-se que o encerramento do processo determina a cessação de todos os efeitos emergentes da declaração de insolvência. Nomeadamente, o devedor recupera os poderes de administração e disposição de bens.
[…]”[16]

            Vale isto por dizer que o encerramento do processo ao abrigo do disposto no artigo 232º do CIRE apresenta efeitos fundamentalmente semelhantes – ressalvadas as especificidades decorrentes de já terem ocorrido determinadas operações liquidatórias da massa cuja incidência importará considerar ulteriormente (especificidades estas previstas no nº 2 do artigo 233º do CIRE) –, o encerramento nos termos do indicado artigo 232º, dizíamos, acaba por corresponder, quanto à insolvente sociedade, fundamentalmente, às mesmas consequências representadas por um encerramento do processo que traduza, logo no seu início, a consolidação de uma declaração de insolvência nos termos do nº 1 do artigo 39º do CIRE (v. o nº 7, alínea a) da mesma disposição, comparando-o com o artigo 233º, nº 1, alínea a) do CIRE). Aliás, em ambos os casos (artigo 39º e artigo 232º do CIRE), o incidente de qualificação é sempre levado em conta no seu resultado (v. os artigos 39º, nº 7, alínea b) e 233º, nº 1, alínea a) do CIRE[17]).

            Assim sendo – e é o elemento interpretativo que aqui importa reter –, não tem sentido a distinção pretendida introduzir pela Apelante, designadamente nas conclusões VIII e IX do recurso, entre as consequências relativamente à sociedade devedora de uma insolvência decretada com carácter limitado nos termos do artigo 39º do CIRE e uma insolvência sem esse carácter inicial, posteriormente encerrada nos termos do artigo 232º do CIRE. Também esta última vai ser uma insolvência de carácter limitado (nela não se completa a liquidação e, portanto, nela também não há liquidação[18]). A lei não realiza a distinção que a Apelante propugna, e, interpretando globalmente as disposições do CIRE acima mencionadas, constatamos não ter sentido interpretativo operante realizar essa distinção. Aliás, sobre quem siga o entendimento da Apelante sempre impenderá, pelo menos, o ónus argumentativo de demonstrar a razão lógica da diferenciação de regimes quando a situação base se prefigura como fundamentalmente idêntica na sua essência profunda: num e noutro caso (artigos 39º e 232º do CIRE) o processo é encerrado sem que se atinja ou se complete a liquidação do património social, apenas havendo que salvaguardar, no caso do encerramento determinado nos termos do artigo 232º do CIRE, as situações já desencadeadas com base num procedimento concursal que, ab initio (como sucede nos casos do artigo 39º do CIRE), não havia considerado o dado traduzido na insuficiência da massa insolvente – é à consideração destas situações que está essencialmente dirigido o nº 2 do artigo 233º do CIRE.       

2.2.3. Interessa-nos, pois, considerar, tratando-se a Apelante de uma sociedade comercial, a especificidade do regime previsto no artigo 234º do CIRE, disposição já antes transcrita, quanto aos efeitos decorrentes do encerramento do processo, tenha esta vicissitude processual origem no artigo 39º, como aqui sucedeu, ou no artigo 232º do CIRE.

Com efeito, considerando agora nesse artigo 234º, por facilidade expositiva radicada no caso concreto, os trechos normativos constantes dos nºs 3 e 4 do mesmo, verificamos – e assim cremos estar a captar adequadamente a racionalidade dessas disposições – que (e trata-se da hipótese do nº 3 do artigo 234º) o encerramento do processo concursal que, através do preenchimento total das fases de liquidação do património social e de pagamento, preenche os mesmos objectivos que, fora do quadro desse processo, seriam preenchidos pela observância dos passos previstos para a liquidação de uma sociedade comercial, nos artigos 146º a 165º do CSC[19], origina – é o que diz o nº 3 do artigo 234º do CIRE – a extinção da sociedade[20].

Contrariamente (e trata-se agora da hipótese prevista no nº 4 e que se aplica ao caso da Apelante), nas situações em que o processo, por o encerramento não ter passado por uma fase – rectius, por um processamento – de liquidação ou não a ter completado, não implicou uma actividade relativamente ao património social que se possa considerar equivalente à que é pressuposta e concretizada nos artigos 146º a 165º do CSC (incluindo nesta a liquidação administrativa introduzida pelo DL 76-A/2006, de 29 de Março[21]), o encerramento do processo não pode ter esse efeito existencial sobre a sociedade: será necessário, para alcançar esse resultado, recorrer, fora do processo de insolvência, aos mecanismos gerais aptos à produção desse efeito (extinguir a sociedade liquidando o seu património), sendo estes procedimentos os previstos na lei geral.

Ou seja, como muito acertadamente se observa na Sentença apelada, será necessário, nos casos como o que aqui se configura, preencher todos os requisitos substanciais e procedimentais conducentes à extinção de uma sociedade comercial, sendo que isso não acontece (ou não acontece só) através de uma simples deliberação declarativa dos sócios, como a que se regista na acta da assembleia geral da Apelante junta a fls. 12/17, com base na qual – relembramo-lo – se pretendeu neste caso registar a liquidação da sociedade Apelante.

É neste sentido – e também isto é acertadamente observado na Sentença – que Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando o artigo 39º do CIRE, afirmam que:


“[…]
[Q]uando é declarada a insolvência de uma pessoa colectiva e o processo segue o que pode considerar-se o curso típico normal, não resta dúvida de que a respectiva dissolução e extinção é uma decorrência necessária deste processo.
Em face, porém, do que determina o nº 7 do artigo 39º, quando a sentença declaratória de insolvência segue a forma simplificada aqui prevista e assim transita em julgado, o processo não deixa de ser, por si só, insuficiente, para concretizar a liquidação da pessoa colectiva atingida, a qual é promovida oficiosamente pelo conservador do registo comercial competente, de acordo com as disposições combinadas do nº 4 do artigo 234º [do CIRE] do artigo 15º, nº 5, alínea g)[[22]], do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, que constitui o Anexo III do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março.
[…]”[23]
      

2.2.4. Foi este o entendimento que a Sentença apelada, secundando a posição da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra justificadamente seguiu, sendo que esta Relação, com base no percurso argumentativo aqui seguido (que no essencial coincide com o da primeira instância), considera correcto esse entendimento. Com efeito, a simples declaração exarada em acta, pela sócia única, na assembleia geral da sociedade Apelante, mesmo acompanhada das explicitações (declarações) adicionais aí contidas, não tem a virtualidade de preencher os passos próprios de uma dissolução e liquidação legalmente conforme – neste caso, por expressa indicação do nº 4 do artigo 234º do CIRE, o procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais.

Tenha-se presente – e focamos agora directamente o acto de recusa do registo aqui em causa – o sentido do princípio da legalidade expresso no artigo 47º do CRCom, quanto à validade dos actos contidos nos títulos com base nos quais se pretende desencadear uma pretensão registal, sendo que o facto aqui pretendido registar (a liquidação da sociedade Apelante) não se expressou validamente, por não ser esse o processamento adequado, através da simples deliberação dos sócios em assembleia geral (não se comprova validamente, pois, através da acta dessa assembleia, por não comprovar esta o acto cujo registo é requerido: a liquidação).

Sendo certo que a Apelante foi declarada insolvente com as particularidades acima caracterizadas, particularidades que, como indicámos antes, não acarretaram a extinção da sociedade por via do processo concursal, não vemos outro caminho para a dissolução e liquidação que não seja o de desencadear regularmente essa liquidação. A este propósito, procurando indicar uma solução – e sublinha-se que se trata de uma solução a cotejar com todos os dados da situação concreta –, caso esteja em causa, como poderá ser o caso, a omissão pelo Tribunal que declarou a insolvência de providenciar pela comunicação do encerramento desse processo – trata-se esse encerramento de facto sujeito a registo (artigo 9º, alínea n) do CRCom)[24] –, nos termos  do nº 4 do artigo 234º do CIRE, pode a Apelante obter, sendo esse o caso, junto do processo de insolvência, a supressão dessa possível omissão de comunicação, enquanto acto previsto na lei e que terá (aí) sido omitido. Esse elemento teria a virtualidade de propiciar o desencadear oficioso do procedimento de dissolução, nos termos da alínea i) do nº 5 do artigo 15º do Anexo III ao DL 76-A/2006. Tal como teria – terá – a virtualidade de originar esse procedimento o requerimento da Apelante ou da sua sócia (artigo 15º, nº 1 do mesmo Anexo).

2.3. Seja como for, interessando a esta apelação, apenas, o concreto acto de recusa do registo da liquidação da sociedade C…, Lda., consubstanciado no despacho certificado a fls. 24 e sustentado a fls. 9/11, confirmado que foi este pela Sentença de fls. 30/37 aqui apelada, o resultado decisório que aqui importa formular é, tão-só, o da improcedência do recurso dirigido a esse concreto acto de recusa, com a consequente confirmação, por ser absolutamente correcta, da decisão apelada. Tudo o resto já extravasa do objecto deste recurso.

É – a decisão do presente recurso –, pois, o que nos resta formular, sumariando antes, cumprindo assim a imposição constante do artigo 713º, nº 7 do CPC, o percurso argumentativo deste Acórdão conducente à decisão:
I – A insuficiência da massa insolvente, no caso de insolvência de uma sociedade comercial, pode ser constatada na própria declaração de insolvência, nos termos do artigo 39º do CIRE, ou, após esta, na subsequente tramitação do processo concursal, neste último caso nos termos do artigo 232º do CIRE;
II – Em ambas as situações ocorre o encerramento do processo, sem que se proceda à liquidação do património social;
III – Nestes casos, nos termos do nº 4 do artigo 234º do CIRE, o encerramento do processo concursal não corresponde à extinção da sociedade insolvente, devendo a liquidação da mesma ter lugar (fora desse processo) através do procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, previsto no Anexo III ao Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março;
IV – Nestas situações, não tendo o procedimento de dissolução e liquidação sido instaurado oficiosamente ou requerido pelos interessados, a simples deliberação em assembleia geral considerando a sociedade liquidada, não correspondendo a um acto de dissolução e liquidação legalmente conforme, não pode como tal ser objecto de registo na Conservatória do Registo Comercial.


III – Decisão


3. Assim, face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a Sentença apelada.

            Custas em ambas as instâncias a cargo da Apelante.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Data esta que marca a aplicação ao presente recurso do regime processual geral (reforma dos recursos) introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, sempre que seja necessário convocar na subsequente exposição alguma norma do Código de Processo Civil cujo texto tenha sido alterado pelo referido DL 303/2007, sê-lo-á na redacção introduzida por este último Diploma.
[2] Sentença proferida em 01/04/2008 pelo 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia (processo nº 204/08.8TYVNG) e transitada em julgado em 19/05/2008 (v. o teor narrativo da respectiva certidão a fls. 74). Foi a própria Insolvente que se apresentou à insolvência.
Das particularidades dessa declaração de insolvência daremos conta na subsequente exposição, frisando-se, entretanto, que nele se aplicou, enquanto lei reguladora da insolvência, dado tratar-se de processo iniciado em 2008, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março (v. artigos 12º, nº 1, a contrario e 13º deste Diploma).
[3] Não existiu aqui um recurso hierárquico prévio (dirigido ao Director-Geral dos registos e notariado, v. artigo 101º, nº 1 do CRCom) do despacho impugnado, que é o certificado a fls. 24 (data de 18/03/2009). Existiu, isso sim, antes da prolação deste despacho (em 16/03/2009), através do requerimento de fls. 18/19, uma suscitação dentro da própria Conservatória da questão da admissibilidade do registo perante a Conservadora (o acto era da Ajudante). Lendo o despacho recorrido, que de seguida será transcrito no texto, percebemos ter existido, previamente a esse despacho, uma solicitação à Requerente para suprimento de deficiências da qual resultou o referido requerimento de fls. 18/19.
[4] Identifica a apresentação (o pedido de registo) efectuada(o) em 09/03/2009 pelo Exmo. Mandatário da Requerente e que originou a recusa de registo em causa no presente recurso [v. a inscrição 5 (fls. 28) na certidão do “Teor da Matrícula e Todas as Inscrições em Vigor”, respeitante à sociedade Requerente, a fls. 25/29].
[5] Trata-se o RJPADLEC do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de Março, alterado pelo artigo 18º do Decreto-Lei nº 318/2007, de 26 de Setembro.
[6] Está em causa a acta certificada a fls. 12/17 deste recurso.
[7] A referência ao processamento deste recurso como “[…] agravo em matéria cível”, subsistente no artigo 106º, nº 3 do CRCom, deve entender-se, seguindo o disposto no artigo 4º, nº 1 do DL 303/2007, como feita ao regime da apelação.
[8] Encerramento do processo após a declaração de insolvência quando, com consentimento de todos os credores, o devedor o solicite por ter cessado a situação de insolvência.
[9] A redacção do nº 4 foi introduzida pelo artigo 35º do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março. A redacção anterior deste número era a seguinte: “[n]o caso de encerramento por insuficiência da massa a liquidação da sociedade prossegue nos termos gerais”.
Note-se que foi o Diploma que introduziu a nova redacção deste nº 4 (o indicado DL 76-A/2006) que criou o chamado “regime jurídico dos procedimentos administrativos de liquidação de entidades comerciais”. Este é caracterizado por António Menezes Cordeiro nos seguintes termos: “[…] tal como o Decreto-Lei nº 111/2005, de 8 de Julho, decidiu instituir o esquema de «constituição de empresa na hora», assim o Decreto-Lei nº 76-A/2006 […] procurou fixar uma «dissolução na hora»” (Manual de Direito das Sociedades, vol I, 2ª ed., Coimbra, 2007, p. 975).
[10] O rateio final (v. artigo 182º do CIRE) do qual fala o nº 3 do artigo 234º corresponde à operação culminante do pagamento e satisfação das despesas do próprio processo propiciada pela liquidação da massa insolvente.
[11] Manual de Direito das Sociedades, vol I, cit., p. 983.
[12] Direito da Insolvência, Coimbra, 2009. p. 245.
[13] É neste sentido que Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando precisamente este artigo 232º, afirmam que “[…] o artigo 232º só se aplica quando a insuficiência do activo é verificada no curso do processo de insolvência, ou seja, em circunstâncias diferentes das previstas no nº 1 do artigo 39º” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, Lisboa, 2009, p. 765, ênfase no original).
[14] É esta – indisponibilidade – a qualificação jurídica mais adequada à situação gerada no devedor pela declaração de insolvência. Com efeito, fala-se a este respeito, sublinhando sempre a inadequação do termo incapacidade, desde logo por não visar a defesa dos interesses do próprio devedor, em “indisponibilidade relativa dos bens que constituem a massa falida” (Manuel A. Domingos de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, reimpressão, Coimbra, 2003, pp. 115/116), de “ilegitimação” para a prática de determinados actos (António Mota Salgado, Falência e Insolvência, Guia Prático, 2ª ed., Lisboa, 1987, p. 94) ou de “inibição” (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2ª ed. Coimbra, 2007, p. 433).
[15] Bastará ter presente o respectivo texto:

Artigo 233º
Efeitos do encerramento
1 – Encerrado o processo:
a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte;
b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência;
c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência;
d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.
2 – O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina:
a) A ineficácia das resoluções de actos em beneficio da massa insolvente, excepto se o plano de insolvência atribuir ao administrador da insolvência competência para a defesa nas acções dirigidas à respectiva impugnação, bem como nos casos em que as mesmas não possam já ser impugnadas em virtude do decurso do prazo previsto no artigo 125º, ou em que a impugnação deduzida haja já sido julgada improcedente por decisão com trânsito em julgado;
b) A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias;
c) A extinção da instância das acções pendentes contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente propostas pelo administrador da insolvência, excepto se o plano de insolvência atribuir ao administrador da insolvência competência para o seu prosseguimento.
3 – As custas das acções de impugnação da resolução de actos em benefício da massa insolvente julgadas procedentes em virtude do disposto da alínea a) do número anterior constituem encargo da massa insolvente se o processo for encerrado por insuficiência desta.
4 – Exceptuados os processos de verificação de créditos, qualquer acção que corra por dependência do processo de insolvência e cuja instância não se extinga, nos termos da alínea b) do nº 2, nem deva ser prosseguida pelo administrador da insolvência, nos termos do plano de insolvência, é desapensada do processo e remetida para o tribunal competente, passando o devedor a ter exclusiva legitimidade para a causa, independentemente de habilitação ou do acordo da contraparte.
5 – Nos 10 dias posteriores ao encerramento, o administrador da insolvência entrega no tribunal, para arquivo, toda a documentação relativa ao processo que se encontre em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor que não hajam de ser restituídos ao próprio.
[16] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit. na nota 15, supra, p. 769.
[17] Repetindo aqui, relativamente ao artigo 39º do CIRE, o lugar paralelo da anotação de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda acima transcrita no texto, visando a alínea a) do nº 1 do artigo 233º do CIRE (citação à qual se refere a nota 15), transcreveremos aqui a seguinte passagem da anotação destes Autores ao mencionado artigo 39º:
“[…]
Naturalmente se a insolvência vier a ser qualificada como culposa e, em consequência, decretada a inabilitação do devedor […], segue-se o respectivo regime” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 206).
[18] Daí que Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, rematando a anotação ao artigo 171º do CIRE, referente à dispensa de liquidação (que só se aplica “[s]e o devedor for uma pessoa singular […]”), afirmem:
“[…]
Importa dizer que o caso aqui previsto não é o único em que, declarada a insolvência, todavia, não há lugar à liquidação. Isso acontece também quando seja aprovado um plano de insolvência que preveja a satisfação dos interesses dos credores por meios alternativos, nos casos de homologação de um plano de pagamentos em conformidade com os artigos 251º e seguintes, e ainda nas situações de insuficiência da massa insolvente, consideradas, respectivamente, nos artigos 39º e 232º.
[…]” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 572, sublinhado acrescentado).
[19] “A «liquidação» tem dois sentidos: (a) a situação jurídica da sociedade, após a dissolução e antes da sua total extinção; (b) processo ou conjunto de actos concatenados a praticar durante esse processo.
Como situação, a liquidação exprime um status da sociedade: esta funciona normalmente, mas os actos que pratica visam não já a normal prossecução do objecto social: antes se orientam para a cessação das diversas relações envolvidas.
Enquanto processo, a liquidação implica – ou pode implicar – diversas operações dirigidas ao termo da sociedade […]. Grosso modo, os actos envolvidos visam, com um mínimo de danos, passar do modo colectivo de funcionamento do Direito ao modo singular.
[…]. A liquidação pauta-se pelos seguintes princípios: (a) manutenção da personalidade colectiva; (b) publicidade; (c) autonomia privada; (d) prestação de contas e responsabilidade; (e) satisfação dos credores; (f) partilha aos sócios.
[…]” (Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação: António Menezes Cordeiro, Coimbra, 2009, p. 477).
[20] Embora mesmo nestes casos, que o CSC qualifica como “dissolução imediata” da sociedade, abrangendo no artigo 141º, nº 1, alínea e) a declaração de insolvência, exista uma corrente doutrinária, minoritária, criticando (de iure condendo, dado o teor expresso da norma) o estabelecimento automático da dissolução pela liquidação operada no processo concursal (v. Jorge Henrique Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 3ª ed., Coimbra, 2000, pp. 553/554).
[21] V. nota 11, supra.
[22] Corresponde à alínea i) na actual redacção do preceito, introduzida no DL 76-A/2006, pelo artigo 18º do Decreto-Lei nº 318/2007, de 26 de Setembro.
[23] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., pp. 206/207.
A Apelante argumenta (v. a conclusão IV da motivação acima transcrita), por referência ao entendimento destes dois Autores, utilizando uma citação da edição de 2006 da obra aqui mencionada (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, reimpressão, Lisboa, 2006, anotação 10 ao artigo 39º, p. 206). Esquece a Apelante, porém, que essa obra se refere ao regime vigente em Julho de 2005 (cfr. fls. 6; v. no vol. II da obra o texto do artigo 234º, nº 4 considerado, p. 180), portanto, ao regime de dissolução e liquidação de entidades comerciais anterior à edição (e consequente alteração do CIRE) do DL 76-A/2006, de 29 de Março.
Assim, aquilo que a Apelante diz (conclusão IV) configurar uma “nova tese” destes Autores (a citação do texto desta nota) mais não é do que a mesma tese (a liquidação quando não ocorre na insolvência tem de se fazer fora dela) actualizada pela (nova) lei.
[24] A certidão de fls. 27 apenas regista a declaração de insolvência (v. a alínea i) do artigo 9º do CRCom) e não o encerramento do processo, sugerindo que o subsequente registo do encerramento da insolvência não tenha sido comunicado ao registo.