Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1822/23.0T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO
PRIVAÇÃO DA POSSE
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 368.º, 1; 377.º; 378.º E 662.º, 1, DO CPC
ARTIGOS 255.º; 1261.º, 2; 1277.º; 1279.º E 1282.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (art.ºs 368º, n.º 1 e 378º, do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.
2. É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer.

3. Falta aquele primeiro requisito, se não indiciada a “posse” (concreta e efetiva) de veículo automóvel - a sua disponibilidade fática ou empírica por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º do CC) - e que não decorre simplesmente de anterior e coevo registo de propriedade.

Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Rui Moura
                  Moreira do Carmo

                                                                    *  
(…)

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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                    

           I. Em 21.12.2023, AA intentou o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra BB, relativamente ao veículo com a matrícula ..-..-AP.

            Alegou, em síntese: é dona do referido veículo automóvel, que se encontrava na sua posse exclusiva desde 01.6.2023; terminou a relação de namoro com o requerido no dia 27.10.2023; então, este tirou-lhe a chave do veículo com recurso a força física e recusou devolver-lha; desconhece a localização da viatura, agora, já registada em nome da mãe do requerido, sem que a requerente assinasse declaração de venda.

            Determinou-se a não audição prévia do requerido.

           Produzida a prova (documental e pessoal), a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, por sentença de 29.12.2023, julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente, decidindo não decretar a providência cautelar de restituição provisória da posse à requerente do veículo automóvel com a matrícula ..-..-AP.

           Dizendo-se inconformada, a requerente apelou formulando as seguintes conclusões:

           1ª - A Requerente/Recorrente, não concorda com a fundamentação e consequente Decisão no que concerne ao julgamento dos Pontos b) a e) e g) a n) dos factos indiciariamente não provados, impugnando, portanto, os mesmos.

           2ª - Quanto às alíneas b), e), g), i) e k) a n) além das declarações prestadas pela própria Requerente foi também ouvida a testemunha CC, sua tia, a qual depôs sobre esta matéria, a qual corroborou o depoimento da Requerente, sendo ambos os depoimentos prestados de forma isenta, coerente e credível.

            3ª - Resulta das transcrições realizadas que a decisão a proferir quanto aos factos indiciariamente não provados teria de ser diversa.

           4ª - E, assim, consequentemente, foram considerados erradamente como indiciariamente não provados os factos constantes das alíneas b), c), d), e), g), h), i), j), k), l), m) e n), devendo ser considerados como indiciariamente provados, face à prova produzida, nos seguintes moldes:

           b) Desde ../../2023, que a viatura mencionada em 1) era utilizada pela Requerente, que com a mesma circulava, nas deslocações do seu dia-a-dia, para se deslocar de casa para o trabalho (...) e do trabalho para casa (... – ...), e visitar o Requerido, na sua residência na ... (...), sendo que o Requerido conduziu algumas vezes a viatura com a Requerente ao lado.

            c) A Requerente e o Requerido mantiveram uma relação de namoro, durante cerca de 1 ano e que terminou no dia 27.10.2023.

            d) No dia 27.10.2023, cerca das 20 horas a Requerente e o Requerido tiveram uma discussão e quando a Requerente pretendia ausentar-se da residência do Requerido, após lhe ter comunicado o término da relação, este agarrou-lhe a mão e retirou-lhe a chave da viatura aludida em 1), segurando-lhe os braços com força.

           e) O Requerido retirou a chave da viatura à força à Requerente no dia 27.10.2023, não mais lha tendo devolvido”.

           g) Entre os dias 28.10.2023 e 01.11.2023, a Requerente deslocou-se à ..., junto ao local onde a viatura aludida em 1) se encontrava estacionada para poder acionar o reboque e trazê-la para ....

            h) A Requerente não possui a segunda chave da viatura.

           i) No período temporal referido em g), o veículo mencionado em 1) não se encontrava no local onde se encontrava anteriormente estacionado, nem nas imediações próximas, desconhecendo-se a localização do mesmo.

          j) no dia em que a Requerente se deslocou à GNR para efetuar o aditamento da queixa pelo furto da viatura teve conhecimento que a mesma já não se encontrava registada em seu nome.

           k) O mencionado em 1) foi efetuado com recurso a falsificação da assinatura da Requerente e de documentos (não concretamente determinados).

           l) A Requerente nunca assinou qualquer declaração de venda do veículo aludido em 1), nem efetuou qualquer acordo relativamente à alienação desse veículo.

           m) A Requerente não tem meios para se deslocar da sua residência, sita em ..., para o seu local de trabalho sito em ....

           n) O Requerido, anteriormente a 27.10.2023, conduziu a viatura algumas vezes, estando a Requerente ao seu lado.

            5ª - A Sentença padece, assim, de erro de julgamento e de erro na aplicação do Direito aos factos provados nos termos e para os efeitos do art.º 639º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC).

           6ª - Em relação ao Direito aplicável, a Mm.ª Juiz a quo, na fundamentação da Sentença, conclui que no caso concreto não se verificava a presença do elemento “animus possidendi” da posse naquilo que se materializa como sendo a intenção de o agente atuar como titular de um direito real de gozo.

            7ª - Não podemos discordar mais desta conclusão, visto que, a Requerente explicitou e está convicta, que a forma como lhe foi restringida a posse da viatura em causa afeta a sua esfera jurídica e, como tal, a mesma merece a tutela do Direito.

           8ª - E, face aos art.ºs 1252º, n.º 1 e 1257º, n.º 2, do Código Civil (CC), a mesma sempre beneficiaria da presunção da possuidora de facto, a qual não foi julgada a seu favor pelo Tribunal ainda que tivessem sido alegados e provados factos que concluem pela posse efetiva.

           9ª - Mais, o art.º 1268º do CC dispõe que “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.”.

           10ª - A Requerente beneficiou do registo de propriedade a seu favor até este ter sido alterado, no dia 06.11.2023, sem o seu consentimento.

           11ª - Já quanto aos requisitos do esbulho, os factos alegados consubstanciam atos que impediram a Requerente de ter acesso, continuar a usar e fruir da viatura, não sendo estes meros atos turbadores da posse, mas sim consubstanciadores de um verdadeiro esbulho violento.

            12ª - Os requisitos para a decretação do procedimento cautelar de restituição provisória da posse encontram-se preenchidos e como tal, a Sentença violou os art.ºs 377º do CPC e 1279º, 1252º, n.º 1, 1257º, n.º 2 e 1268º do CC, devendo ser alterada no sentido de julgar indiciariamente como provados os factos das alíneas b) a e) e g) a n), como referido atrás e, em consequência, decretar o procedimento cautelar de restituição provisória da posse da viatura à Requerente, ordenando a restituição da viatura, com auxílio das autoridades policiais, para localização e apreensão da mesma.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, há que apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, cuja modificação depende da eventual alteração da decisão de facto (pressupostos para o decretamento da providência).


*         

            II. 1. A 1ª instância considerou indiciariamente provado:

           1) A propriedade do veículo automóvel de marca ...”, com a matrícula ..-..-AP, encontra-se registada em nome de DD, pelo registo de propriedade n.º ...97, de 06.11.2023.

           2) Anteriormente a 06.11.2023, a propriedade do veículo aludido em 1) encontra-se registada em nome da requerente, pelo registo de propriedade n.º ...41, de 28.7.2023.

            3) No dia 28.10.2023, a requerente deslocou-se à GNR - Posto territorial de ... e apresentou queixa pelo “furto da chave do veículo” aludido em 1).

           4) Em 07.11.2023, foi elaborado “aditamento” ao auto de notícia referido em 3) – o qual se encontra junto aos autos como documento n.º 5 (requerimento inicial).

           5) O preço de aquisição do veículo aludido em 1) foi pago integralmente pelo requerido, sem prejuízo do mencionado em 2).

            6) Foi cobrada, pela via verde, uma portagem referente à viatura mencionada em 1), datada de 27.10.2023.

           7) O veículo aludido em 1) encontra-se seguro, nas seguintes companhias e apólices:

            “Z... PLC – Sucursal em Portugal”, de 21.11.2023 a 20.02.2024, com a apólice n.º ...22;

            “G... S. A.”, de 31.5.2023 a 19.6.2024, com a apólice n.º ...51.

            2. E deu como indiciariamente não provado:

            a) DD é mãe do requerido.

           b) Desde 01.6.2023, que a viatura mencionada em 1) era utilizada em exclusivo pela requerente, que com a mesma circulava.

           c) A requerente e o requerido mantiveram uma relação de namoro, durante cerca de 1 ano e que terminou no dia 27.10.2023.

           d) No dia 27.10.2023, cerca das 20 horas a requerente e o requerido tiveram uma discussão e quando a requerente pretendia ausentar-se da residência do requerido, após lhe ter comunicado o término da relação, este agarrou-lhe a mão e retirou-lhe a chave da viatura aludida em 1), segurando-lhe os braços com força.

           e) O requerido negou devolver a chave do veículo mencionado em 1).

           f) A requerente com receio do que o requerido pudesse fazer, visto que se encontrava exaltado e agressivo, acabou por abandonar a residência deste e, sem meios para regressar a casa, teve de recorrer ao auxílio de terceiros para a irem buscar à ... e trazê-la de regresso à sua residência em ....

           g) Entre os dias 28.10.2023 e 01.11.2023, a requerente deslocou-se à ..., junto ao local onde a viatura aludida em 1) se encontrava estacionada para poder acionar o reboque e trazê-la para ....

            h) A requerente não possui a segunda chave da viatura.

            i) No período temporal referido em g), o veículo mencionado em 1) não se encontrava no local onde se encontrava anteriormente estacionado, nem nas imediações próximas, desconhecendo-se a localização do mesmo.

            j) No dia 08.11.2023, a requerente verificou do aludido em 1).

           k) O mencionado em 1) foi efetuado com recurso a falsificação da assinatura da requerente e de documentos (não concretamente determinados).

           l) A requerente nunca assinou qualquer declaração de venda do veículo aludido em 1), nem efetuou qualquer acordo relativamente à alienação desse veículo.

           m) A requerente não tem meios para se deslocar da sua residência, sita em ..., para o seu local de trabalho sito em ....

           n) O requerido nunca utilizou, anteriormente a 27.10.2023, o veículo mencionado em 1) em exclusivo e como seu se tratasse.

            o) Não obstante o aludido em 5), o veículo referido em 1) toda[1] a declaração de venda no stand foi preenchida e assinada de acordo com a vontade do requerido, na presença e segundo instruções deste, a qual manifestou essa vontade livre e expressamente.

           p) A requerente não consegue, junto da Seguradora, cancelar o contrato de seguro, de que é titular e referente à viatura mencionada em 1).

           q) O seguro mencionado em 7)[2] com a apólice n.º ...22 foi “contratualizado” pelo requerido.

            3. Cumpre apreciar e decidir.

           a) A requerente/recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, cuidando que a sua eventual modificação poderá levar a diferente desfecho dos autos.

           Com esse desiderato, pugna para que seja dada como “indiciariamente provada” a matéria das alíneas b) a e) e g) a n) (ponto II. 2., supra), com a redação mencionada na “conclusão 4ª”, ponto I., supra, invocando para o efeito a prova pessoal produzida em audiência conjugada com a prova documental junta aos autos.

            Daí, importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto àquela factualidade.

           b) Esta Relação ouviu a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

           c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[3], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se  as declarações e o depoimento foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[4], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

            d) Consignou-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto [na parte que releva para a presente impugnação]:

            «(...) Não obstante a Requerente tenha prestado declarações e tenha relatado a factualidade em causa, certo é que não se pode olvidar o interesse da mesma no desfecho da presente lide e o qual foi de resto patente na forma como as declarações foram prestadas. De salientar ainda que, as suas declarações não foram corroboradas por outros elementos probatórios objetivos e exteriores que permitissem, ainda que parcialmente, dar sustentabilidade e, concomitantemente, credibilidade às suas declarações. Exemplificativamente[5], poderá mencionar-se que, pese embora na versão veiculada pela Requerente a mesma tenha sido auxiliada por outras pessoas para se fazer deslocar da ... a ... no dia 27.10.2023, nenhuma dessas pessoas foi arrolada como testemunha, de forma a que corroborasse, ainda que parcialmente a versão da Requerente, no que tange àquele episódio.

               Acresce que, pese embora a Requerente tenha frisado, em sede de declarações de parte que o Requerido utilizou força física para lhe retirar as chaves da viatura em dissídio, tendo ficado com os pulsos negros, certo é que no auto de notícia datado de 28.10.2023 – elaborado, naturalmente, de acordo com o descrito pela Requerente – e junto aos autos como documento n.º 4, com o requerimento inicial, é mencionado que não houve ameaças e/ou agressões. Ademais, é referido no mesmo auto de notícia, elaborado no dia 28.10.2023, que a Requerente mencionou existir a hipótese de o Requerido alterar o registo da viatura para seu nome, através da falsificação de assinaturas, antevendo assim, sem justificação e fundamento plausível para tal, o ora por si descrito e, em contradição com o por si declarado de que a viatura lhe pertencia e que lhe teria sido oferecida pelo Requerido.

                Por outra banda, a testemunha CC, tia da Requerida, prestou um depoimento pouco isento e credível. Ademais, o depoimento desta testemunha foi eivado de algumas incoerências e imprecisões (v. g. quando primeiramente refere que a Requerente não tinha outro veículo, para depois, quando confrontada admitir que teria mas não sabia de quem era a propriedade ou quando refere que o Requerido não lhe deu nenhuma justificação para “dar” o veículo à Requerente, para posteriormente referir que uma das razões que lhe deu foi que o “carro velho” não tinha condições para a Requerente o ir visitar). Acresce ainda que, na sua maioria os factos por si relatados lhe foram transmitidos pela Requerente, não denotando conhecimento direto dos mesmos.»

e) Perante a descrita análise crítica da prova, que se afigura correta, vejamos alguns excertos elucidativos da dita prova pessoal:

            - Declarações da requerente (fls. 18 verso):

            (...) Eu tinha uma relação com o Sr. (requerido), terminou em outubro (de 2023), no dia 27 e, antes disso, foi adquirida uma viatura; foi escolhida por mim e foi-me oferecida por ele...; foi ele (que pagou); (...) a viatura foi-me entregue no dia 1 de junho, pelo stand, eu assinei os documentos da viatura, o documento único, e andei a circular com a viatura durante todo o tempo, nós tínhamos a relação, e eu circulava, sempre, com a viatura. (...) sou eu (“dona da viatura”); (...) na altura, decidimos, ele disse que eu precisava de um carro melhor, para escolher um outro carro, eu escolhi o carro, (...) eu gostei do carro, ´então é este – eu compro-te o carro` (disse o requerido); (...) desde 01.6.2023 que utiliza o carro; (...) o carro foi comprado em maio de 2023; (...) começaram a namorar em junho de 2022; (não ficou no nome do Sr. BB) porque era uma oferta minha, ele fez questão de me oferecer o carro”. (...) o carro foi-me entregue, eu andei a circular com o carro, normalmente, com ele, ao lado, algumas vezes, outras vezes ele pegava no carro e eu ia no carro, muito poucas vezes, mas, sim, conduziu o carro; depois disso, a minha relação com ele terminou no dia 27 e eu fui a casa dele buscar algumas coisas, que tinha lá, e aí, só havia uma chave da viatura e aí ele, à força, retirou-me a chave. (...) (o carro) era usado. No dia 27 de outubro quando vou a casa buscar algumas coisas minhas ele impossibilitou-me de sair de casa, exerceu alguma força, física, com os braços dele a segurar os meus, e conseguiu retirar-me o telemóvel e a chave do carro. O telemóvel devolveu-me, no final, mesmo depois dessa violência que ele acabou por exercer, inclusivamente, fiquei com os pulsos negros da força que ele fez para me conseguir tirar a chave e o telemóvel, (...) e ficou com a chave e, desde aí, não sei mais do carro…; no dia a seguir, dirigi-me à GNR a apresentar queixa por furto da chave mencionando que só existia aquela chave e que eu estava sem meio de transporte para me deslocar; (...) entretanto, ainda me pediu os documentos do carro, que estava na minha posse, que estava em meu nome... (a requerente recusou entregar, dizendo-lhe que “o carro não era dele”), (...) o carro era meu, estava em meu nome...; depois disso, fui à GNR apresentar queixa por furto do veículo porque no dia 1 de novembro fui à ... para verificar se o carro ainda estava no mesmo sítio, onde eu o tinha deixado estacionado, e o carro já não se encontrava lá. O objetivo seria chamar o reboque porque uma vez que o carro se encontrava no meu nome, chamaria o reboque para levar o carro para um local seguro e que eu tivesse conhecimento. (...) no dia 1, (...) verifico, a GNR verifica, que o carro já não está em meu nome. Ou seja, ele assinou um documento por mim; (...) à posteriori, desloquei-me à Conservatória consultar o registo automóvel e pedi o documento dessa alteração, a assinatura não é minha, a senhora que está mencionada no registo é a mãe dele, que nem sequer tem carta de condução. E, neste momento, não tenho forma de me deslocar, estou sem carro, não sei do paradeiro dele”.

            - Testemunha CC (fls. 18 verso):

           “(...) O que eu sei em relação à viatura, o que a minha sobrinha (requerente) me disse, que lhe tinha sido oferecida pelo BB. (...) era o meio de transporte dela, que ela usava para trabalhar e para ir para casa. Era trabalho/casa e quando ia visitar o BB à ...”. A requerente fazia o trajeto ... para se deslocar para o trabalho todos os dias”, e “de ...”, para visitar o requerido; “a morada dela é em ..., ela morava em ...; (...) recordo-me que no início do Verão, não sei precisar a data, que ela foi visitar-me ao meu local de trabalho, toda contente, que o BB lhe tinha oferecido aquele carro, no qual eu estive a olhar e dei-lhe os parabéns, pela oferta; (...) quando estivemos nos anos da minha sobrinha (o requerido transmitiu-lhe que havia “oferecido o carro” à requerente); (...) ela pediu-me, no dia 1 de novembro, (...) para vir com ela à ... ver se o carro estava no mesmo sítio; o carro não estava no mesmo sítio e ela ainda se lembrou que podia estar na garagem, (...) mas não estava carro nenhum.”  

            A requerente disse-lhe que(...) tinham tido uma discussão e ele tinha-lhe tirado a chave do carro e ela (...) não tinha o carro e queria saber se o carro estava no mesmo sítio. E queria levá-lo, como é óbvio, se foi uma oferta...; (...) a minha sobrinha sempre me disse que o carro estava em nome dela, muito antes de acontecer o que aconteceu...”. Mais tarde, a requerente soube que o carro deixara de estar registado em seu nome, mas “ela não assinou nada, como é óbvio...; (...) a minha sobrinha diz que não assinou e eu acredito na minha sobrinha, e ela diz que não assinou e se o documento estava em nome dela, como é óbvio, não assinou. Alguém o assinou por ela, falsificou a assinatura. (...) só sei dizer que ele disse que lhe tinha oferecido; (...) ele passava a vida a comprar-lhe prendas, e só queria o melhor para ela, não achei nada estranho, até para ela vir visitá-lo à ..., ele achava que o carro (que a requerente conduzia)  já não tinha condições e queria que ela andasse bem e que fizesse boas viagens quando o viesse visitar - foi uma das razões que ele alegou que lhe queria oferecer o carro...” e que deixou de estar na posse da requerente “porque eles zangaram-se e ele tirou-lhe a chave” - o que lhe foi transmitido pela requerenteno dia a seguir”. O requerido tirou-lha a chave da viatura “porque eles discutiram; é aquilo que seu sei”.

           f) A prova documental foi devidamente analisada e ponderada pela Mm.ª Juíza.

            Não obstante, acrescenta-se:

           - No “auto de notícia” de 28.10.2023, apenas se refere o “estado de agressividade” após o “desentendimento”, mas não o uso de violência aquando da pretensa “subtração” da chave.

          - Temos por inusitado que a requerente haja então afirmado existir “a hipótese do Sr. BB alterar o registo da viatura para seu nome, através da falsificação de assinaturas, nomeadamente, falsificando a assinatura” da requerente.

           - Relativamente ao “aditamento” (àquele auto de notícia), de 08.11.2023, salienta-se o afirmado pela requerente: “Acrescenta que (...) do dia 29 de outubro de 2023, o suspeito lhe enviou o seguinte SMS, ´documento do meu carro (sublinhado nosso) para cá já`, exigência que disse não fazer sentido, uma vez que possui os documentos do veículo em seu nome.

           - Não é de afastar a existência de, pelo menos, alguma semelhança entre a assinatura que consta do documento reproduzido a fls. 12 como sendo aposta pela requerente (fls. 12 verso) e as demais assinaturas que não se questiona serem de sua autoria (fls. 9 verso, 13 e 15).

           4. A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto afigura-se correta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, apenas podemos dizer que a factualidade dada como indiciada respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[6], o Tribunal a quo não terá desconsiderado as regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[7]

            O Tribunal a quo analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Dir-se-á, ainda:

            a) A pretensa “oferta” / “doação” da viatura não a vemos clara e concretamente mencionada na petição inicial (p. i.) (cf., sobretudo, art.º 14º);

           b) Será de considerar indiciado que a partir de data não apurada, não anterior a 01.6.2023, a viatura mencionada em 1) passou a ser utilizada pela requerente e pelo requerido, que com a mesma circulavam, e, bem assim, que a requerente e o requerido mantiveram uma relação de namoro, que terminou em outubro de 2023.

            c) Relativamente a todo o objeto da impugnação de facto, a par da matéria não indiciada [nomeadamente, a das alíneas k), l) e m)], indicia-se, apenas, o descrito em II. 1., supra, e o que consta da alínea anterior.

            Feito o acrescento dito em b), improcede, no mais, a pretensão da apelante/requerente de ver modificada a factualidade impugnada.

            5. No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (art.º 377º do CPC).

O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336º, ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse (art.º 1277º do CC).

 O possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador (art.º 1279º do CC).

 6. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (cf. os art.ºs 368º, n.º 1 e 378º do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.

É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer (foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse; o possuidor ficou privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse), e, em regra, o Réu/requerido/esbulhador terá de restituir a coisa, fazendo cessar a posse iniciada com o esbulho.[8]

Para que o esbulho possa servir de fundamento ao pedido de restituição provisória de posse é ainda necessário que este seja violento e,
ao contrário do que sucede em relação à definição de esbulho, que não consta da lei, a doutrina e a jurisprudência entendem que o conceito de violência que para aqui releva se mostra definido no n.º 2 do art.º 1261º do CC, onde se estatui que se considera violenta a posse
quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do art.º 255º do mesmo diploma.

A coação moral, na hipótese de esbulho, ocorre quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação pelo receio de um mal de que foi ilicitamente ameaçado, mal esse que tanto pode respeitar à sua pessoa como à sua honra ou fazenda ou de terceiro (art.º 255º do CC), enquanto a coação física supõe a completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada.[9]

7. Não suscita qualquer dúvida que o uso de violência sobre as pessoas, quer seja pelo uso da força física, quer seja através da coação moral, pelas formas da intimação e da ameaça, é relevante para, caracterizando o esbulho como violento, fundamentar o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

Considerando-se que a violência a que se refere o art.º 1261º do CC tem de exercer-se sobre as pessoas, e não apenas sobre as coisas que constituem um obstáculo à privação da posse (e a ameaça pode respeitar às pessoas ou aos bens, mas há de exercer-se sobre a pessoa do coato), as dúvidas podem-se colocar no tocante à violência sobre as coisas.

Embora estejamos perante questão não isenta de dificuldades (algumas das quais, cremos, poderão ser ultrapassadas se tivermos uma real/adequada configuração da situação controvertida), afigura-se defensável, como regra, o entendimento de que a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, direta ou indiretamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros atos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor - a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para este fim quando o agente usou, pelo menos de dolo eventual, quando previu, como normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado.[10]

8. A referida perspetiva quanto à utilização do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, numa interpretação restritiva dos preceitos que o preveem, justifica-se pela diminuição das garantias de defesa do requerido, que não é chamado a defender-se e a contraditar os factos e as provas do requerente previamente à decisão e pela desnecessidade da existência de qualquer prejuízo do requerente - a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pela diminuição de garantias de defesa do requerido e pela desnecessidade de existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida em casos em que a violência atingiu pessoas, e não quando apenas se exerceu sobre coisas, pois só aquelas situações revestem uma gravidade que justifica a utilização daquele meio de intervenção draconiano.[11]

9. Ante o descrito enquadramento normativo e a factualidade indiciada em II. 1., supra, antolha-se evidente que a requerente não demonstrou os requisitos do presente procedimento cautelar, desde logo, que tinha a “posse” (concreta e efetiva) do veículo, a sua disponibilidade fática ou empírica, atuando “por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art.º 1251º do CC) sobre o mesmo.[12]

Por outro lado, também não vemos configurado um esbulho violento, uma vez que o desapossamento, a ter existido, foi obtido através de uma ação que não incidiu sobre a requerente, já que não se verificou diretamente qualquer ofensa física à pessoa desta, nem se verificou, direta ou reflexamente, qualquer ofensa psicológica à sua liberdade de determinação, colocando-a na impossibilidade material de agir, ou inibindo-lhe qualquer capacidade de reação, por receio de algum mal.

Tendo em conta a factualidade indiciada e a previsão dos art.ºs 1282º do CC e 377º do CPC, concluiu-se, assim, pela não verificação dos pressupostos/requisitos de que depende o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

           10. Sufragamos, pois, o entendimento e o decidido na 1ª instância, mormente quando se conclui pelo não preenchimento dos requisitos (cumulativos) para ser decretada a pretendida restituição provisória da posse: não ficou demonstrada a posse pela requerente do veículo automóvel em dissídio – que não decorre simplesmente do anterior registo de propriedade de que era titular; não ficou, outrossim, indiciariamente demonstrada a factualidade invocada relativa aos requisitos do esbulho e violência (não ficou indiciariamente demonstrado, inclusive, que o requerido esteja na posse no veículo, atualmente registado em nome de terceiro); não ficou demonstrada a violência do esbulho, mormente a utilização de “força física” pelo requerido.            

           11. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, e, com o que se acrescenta em II. 4., in fine, supra, confirma-se a decisão recorrida.

           Custas pela requerente/apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza (fls. 16).    


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20.02.2024



[1] Existirá lapso na redação, que terá subjacente a alegação contida no art.º 14º da petição.
[2] Retificou-se.
[3] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, cit., págs. 266 e seguinte.
[4] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a atividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[5] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[6] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[7] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[8] Vide, de entre vários, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra, 1982, pág. 669; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 49; Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumário das Lições ao Curso de 1966/1967, Coimbra, 1967, pág. 126 e J. Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 70.
[9] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, cit., pág. 23.

[10] Vide Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, RLJ, ano 122º, pág. 293.

   Nesta perspetiva, exigindo que a violência, mesmo quando exercida sobre coisas, tenha um efeito de constrangimento sobre pessoas, vide, ainda, nomeadamente, J. Dias Marques, Prescrição aquisitiva, 1º vol., edição de 1960, pág. 277 e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, vol. 2º, cit. págs. 72 e seguintes.

  Dando-nos uma perspetiva da evolução da jurisprudência e da dificuldade em concretizar o conceito de “esbulho violento”, cf., também, A. Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, vol. IV, 3ª edição, Almedina, 2006, págs. 45 e seguintes.
[11] Cf. acórdão da RP de 16.10.2006-processo 0655160, publicado no “site” da dgsi.
[12] Vide, nomeadamente, A. Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, cit., pág. 29.