Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/21.2T8OLR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: COMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLEIROS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 186.º, 1, D) E 4, DO CPC
ARTIGOS 1311.º, 1; 1353.º E 1354.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Os pedidos formulados na acção -  o primeiro correspondente a uma acção de demarcação e os demais a uma acção de reivindicação de propriedade - mostram-se entre si substancialmente compatíveis, não se verificando a excepção da ineptidão da petição inicial.

            II – A demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim ao estado de incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois prédios, incerteza essa, que, pelo menos subjectivamente, pode resultar do insucesso de antecedente acção de reivindicação. 

            III – Porque na presente acção o pedido de reivindicação surge na sequência da prévia definição da linha divisória, não se verifica a excepção de caso julgado entre a anterior acção de reivindicação e o pedido de demarcação nela efectuado.

            III – Com o pedido de demarcação o aqui autor sujeita-se a que a linha divisória seja a que defendeu na acção de reivindicação  ou outra, designadamente a defendida pelo réu.

            V – Também não se verifica a excepção de caso julgado entre a anterior acção de reivindicação e os pedidos que na presente acção se configuram como correspondentes a esse tipo de acção, por falta de identidade das causas de pedir: ali, a causa de pedir respeitava a uma parcela de terreno definida, aqui, essa parcela de terreno está por definir, podendo não corresponder àquela.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I - AA, intentou ação declarativa sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo:

            - Deverão ser demarcadas as estremas do prédio identificado em 1.º da Petição Inicial na parte em que confina o Réu;

            - Deverá o Réu ser condenado a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio identificado no art. 1.º da Petição Inicial até à linha delimitadora que vier a ser fixada, abstendo-se, consequentemente, de praticar qualquer ato que, de qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito da Autora sobre tal prédio até tal linha delimitadora;

            - Deverá o Réu ser condenado a demolir e retirar tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar o prédio da Autora, no prazo de 15 dias, entregando-o à Autora completamente livre e desimpedido;

            - Deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00 por cada dia além dos 15 dias acima referidos, que demorar a demolir, limpar e desimpedir o prédio desta.

             

            Alega, para tanto, e em suma, que é proprietária do prédio urbano que identifica no art 1.º da petição inicial, e que há mais de 30 anos tem fruído e disposto de todas as utilidades  e bens que o mesmo lhe proporcionava, enquanto proprietária, respeitando rigorosamente as suas estremas, demarcações e divisórias com total exclusividade e independência, como se de coisa sua se tratasse e se trata efectivamente, fazendo-o de forma pública,  pacifica e de boa fé, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja. Alega ainda – art 9º - que «as estremas destes prédios  estão definidas há anos, mantendo-se inalteradas quanto à área e confrontações», e que o prédio de que é dona confronta a nascente com o do R., que o adquiriu em 1994, sucedendo que em 2014 este mandou edificar um  muro para dividir as propriedades do lado nascente do prédio da A. e poente do R., sendo que esse muro que delimita  o prédio do R. «está construído em parcela de terreno pertencente à A., e deste modo o R. ocupa essa parcela, tendo  ampliando o seu prédio sobre uma área não determinada da estrema nascente do seu prédio». Mais alega que em 2018 intentou acção de reivindicação nos Julgados de Paz, que foi julgada improcedente. Conclui, em face do alegado, pretender que as estremas do prédio de que é proprietária sejam demarcadas, dado que existe discórdia acerca da estrema nascente, parte em que o referido prédio confina com o do R.  

            O réu apresentou contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação. Em sede de excepção, invocou a ineptidão da petição inicial, por existir contradição entre os pedidos e os fundamentos que os suportam, invocando também a excepção de caso julgado. Impugna toda a demais matéria alegada pela A. alegando ser proprietário do prédio em causa por via de doação, encontrando-se o muro em causa sobre esse mesmo terreno.

            Foi admitida a intervenção principal provocada, como associada do réu, de CC, tendo a mesma apresentado contestação, em que se defendeu nos mesmos termos do que o R.

             Notificada para o efeito, a A. respondeu às excepções, mantendo integralmente o alegado.

            No despacho saneador foi apreciada a referida excepção da ineptidão da petição inicial, bem como a de caso julgado, tendo-se julgado, uma e outra, improcedentes.

            II – Do assim decidido, apelou o R, que concluiu as suas alegações do seguinte modo:

            1. A Autora não pode dizer, por um lado, que “as estremas do seu prédio estão definidas há décadas mantendo-se inalteradas, como sucede quanto à área e confrontações”, ou seja, limites, para depois dizer que “existe controvérsia quanto aos limites desses prédios sem que diga em que consiste essa controvérsia e, em sede de pedido, requerer a demarcação de ambos os prédios.

             2. Do mesmo modo, a Autora não pode pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre o seu prédio, dizendo simultaneamente que daquele foi ocupada parcela de terreno, com a construção do muro a que se refere o artigo 12º da P.I., que o R. ocupou parte do prédio da A., como em 13º e depois alegar que há controvérsia quanto aos limites de ambos os prédios e por isso peticionar a respetiva demarcação, quando antes em 9º diz que aquele prédio se encontra delimitado e definido há dezenas de anos.

            3. Ao fazê-lo, como fez, daí decorre, claramente, que a petição inicial é inepta por manifesta contradição entre a causa de pedir e o pedido.

            4. Decidir da exceção dilatória de ineptidão da P.I. suscitada pelo Réu e Chamada só pode e deve ser feito pela análise da referida peça processual e pelos factos e matéria aí vertida, consubstanciando a causa de pedir e a adequação e coerência desta ao ou aos pedidos formulados a final e não pelo que tem vindo a ser decidido pelo Tribunais Superiores sobre a natureza e características da ação de reivindicação e demarcação, como fez o Tribunal “ a quo”.

            5. A P.I. é inepta pelo que se alega antes, porquanto, demarcar pressupõe indefinição, incerteza, ausência de limites concretos, o que aqui não é o caso, visto, todos aqueles elementos dos prédios pertença de A e R, segundo a própria Autora, e como esta confessa e reconhece, são certos, concisos, definidos e estabelecidos há décadas, pelo que ao ser pedida demarcação, há contradição entre os pedidos e os fundamentos que os suportam, daí ser inepta a P.I., o que sempre importaria a absolvição da Instância nos termos do disposto ao artº. 576 nºs 1 e 2 do C.P.C.

             6. É inepta, porquanto, resulta claramente da P.I. que o pedido assenta em causas de pedir inconciliáveis face aquela que é a natureza da ação de demarcação, para além do que, são formulados pedidos cujos efeitos jurídicos se repelem mutuamente.

            7. Os pedidos de reivindicação e de demarcação, assentando em pressupostos perfeitamente balizados e reconhecidos, são substancialmente incompatíveis uma vez que na ação de reivindicação se discutem os títulos de aquisição e, consequentemente, o direito de propriedade, designadamente, se existe e quem é o ou os titulares, enquanto que na ação de demarcação se discute a sua extensão, corpórea, no caso, os limites materiais, pressupondo o domínio sobre os mesmos.

            8. E, ou aqueles limites, são inconcretos e objeto de controvérsias entre proprietários, que os ignoram ou não sabem ou não têm elementos localizadores que os identifiquem, face à dúvida material estabelecida e apenas nesta hipótese, o que se compreende, o meio processual próprio para ultrapassar aquele estado de incerteza e indefinição é, obviamente, a ação de demarcação.

            9. Pressupostos e elementos aqueles, que de todo se ausentam nesta ação, tal como esta se encontra e é caracterizável, face aos respetivos fundamentos – CAUSA DE PEDIR -, alegados in casu pela A, como lhe cumpria, atento o ónus que sobre si lhe recai, face ao previsto no artº. 5º nº 1 do C.P.C..

            10. No caso em apreço, sem margem para dúvidas, a nosso ver, como se demonstrou, a causa de pedir, consubstanciada nos fundamentos alegados pela A., e apenas por esta, de novo se chamando à colação o disposto no citado preceito – artº. 5 nº 1 do C.P.C. – resolve-se e concretiza-se em ação de reivindicação.

             11. O que se controverte, diretamente não são os limites dos prédios e particularmente os do prédio urbano propriedade da Autora que esta reconhece, tem conhecimento e sabe onde especialmente se situam, como menciona em 9 da P.I., que se transcreve: “ As estremas dos prédios ali aludidos, estão definidas há décadas, mantendo-se inalteradas quanto à área e confrontações”, mas apenas a propriedade concreta de área de solo, com limites definidos.

            12. O que a nosso ver, basta para que não se suscitem duvidas, salvo melhor opinião, que o meio processual próprio a que importaria recorrer e se impunha, era e sempre seria a de reivindicação.

            13. A jurisprudência, citada em Douto Despacho pela Mma Juiz do Tribunal “a quo” – Acórdão do TRL de 12.02.2009 Proc. nº 288/2009.6 -, sequer dá conforto àquela decisão, ora objeto de Recurso, porquanto, estando Autora certa quanto aos limites, como afirma em 9º da P.I, não pode requerer providencia demarcatória, mas antes, por via de ação, reivindicar a parcela de terreno que diz ter sido ocupada pelo Réu, no que se não nos oferece dúvidas, salvo melhor opinião.

            14. Existindo contradição entre causa de pedir e pedidos formulados pela Autora na P.I., e sendo o processo próprio o de reivindicação, ocorre nulidade processual, atento o disposto ao artº. 576, 577 al. b) por referência ao disposto em artº. 186 nºs 1 e 2 al. b) todos do C.P.C.

            15. Nulidade que terá como consequência ser declarada, como se perspetiva, a anulação de douta decisão sob Recurso, sendo a mesma substituída por outra que reconheça os vícios, que se sumariam, com a absolvição do Réu e Chamada.

            16. Não é inocente a configuração de ação como de demarcação pela Autora, e não é, porquanto, a de reivindicação está-lhe e estava-lhe vedada, face a antecedente Aresto já proferido, tendo por fundamento a mesma causa.

            17. Estava-lhe e está-lhe vedada, por as questões relativas à composição e limites do prédio urbano de que a A. se diz dona e possuidora, haverem já sido discutidas e decididas em ação própria, como a mesma refere, e que correu termos no Julgado de Paz ... sob a forma de revindicação e com o n.º 57/18.

             18. Ação na qual, aquela, como fundamento alegou ser dona e proprietária, quer do Prédio Urbano, que também identifica na presente ação, como ainda da parcela de terreno – logradouro/superfície descoberta-, da exata parcela ali, reivindicada, aqui a demarcar.

            19. Tendo pois, naquela ação, que correu termos no Julgado de Paz ..., como partes exatamente as mesmas que intervêm no presente processo, a questão ora ajuizada, sido aí decidida, em desfavor da Autora, não pode esta, astuciosamente, pelos pedidos, configurar processo de demarcação, para assim se eximir ao caso julgado, que a vincula, atenta a decisão proferida naquele Julgado de Paz.

            20. Não pode e nem podia o Tribunal “a quo” ignorá-lo e menos acolher comportamento processual que subverte os princípios e regras processuais pertinentes, como sucede ao acolher a perspetiva da Autora., no que mal andou.

            21. Como se aludiu supra, pela natureza da ação, ou seja, pelos fundamentos da mesma – “prédio definido há décadas mantendo-se as estremas inalteradas quanto à área e confrontações e ocupação por parte do R de uma parcela de terreno pertença da A como esta refere em 9º e 12º da P.I.” – nunca a presente ação pode ser de demarcação, mas apenas e só de reivindicação, daí naturalmente o caso julgado, como supra se expende e demonstra.

             22. Não pode a Autora apresentar ação de reivindicação alegando que o R. ocupa uma parte do seu prédio - vide artigo 8 da P.I. da ação 57/2018 do JP de ... junta com a contestação do R - e agora vir dizer que existe controvérsia quanto aos limites dos prédios da A e do R., pese embora em 9º da P.I. refira que “as estremas destes prédios estão definidas há décadas, mantendo-se inalteradas quanto à área e confrontações”.

            23. Quanto à exceção de Caso Julgado, considerou a MM. Juiz do Tribunal “ a quo” serem diversos os pedidos e as causas de pedir entre a anterior ação de revindicação e a presente ação.

            24. Perante o que a Autora alega naquela e nesta ação e transcrito supra, a causa de pedir é precisamente a mesma em ambos os processos, ou seja, ocupação por parte do Réu de uma parcela de terreno que a Autora entende ser de sua propriedade.

            25. O mesmo se diga em relação ao pedido, porquanto, aquilo que o Tribunal “a quo” refere como sendo diversos, tal diferença resulta apenas do texto e por isso é aparente, pois o que se pretende em ambas as ações é a reivindicação de uma parcela de terreno com a consequente demarcação dos prédios em função daquilo que a Autora entende ser a extensão do seu prédio.

            26. Donde, também aqui, mal andou a MM. Juiz do Tribunal “ a quo” quando julgou improcedente a exceção de Caso Julgado.

            27.  Ao julgar improcedente as exceções invocadas a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 186º, 576º do CPC e fez errada interpretação do artigo 1353º, 1354º e 1311º do CC.

            28. É manifesta a contradição por parte do Tribunal “quo” entre aquilo que considera ser a causa de pedir na ação de demarcação e o decidido quanto à invocada exceção de ineptidão da petição inicial, sendo por isso nulo o despacho proferido, atento o disposto no artigo 615º n.º 1 alínea c) do CPC.

            29. Não pode o Tribunal ” a quo,” por um lado, dizer que a causa de pedir neste tipo de ação –demarcação - consiste em “não estar definida a linha divisória entre esses prédios, existindo dúvida ou incerteza sobre a localização das estremas entre os prédios confinantes de diferentes proprietários” e depois dizer que, o facto de a autora invocar conhecer a linha divisória do seu prédio, inclusivamente indicando expressamente a mesma e posteriormente peticionar a demarcação do prédio não constitui qualquer contradição ente a causa de pedir e o pedido.

            30. Com o devido e merecido respeito, o despacho alvo de recurso, pelas razões aduzidas supra, revela-se ambíguo e obscuro, sendo por isso nulo face ao disposto no artigo 615 n.º 1 alínea c) do CPC, nulidade esta que aqui se argui expressamente.

            Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, deverá ser anulada a decisão objeto de recurso e o Réu e Chamada absolvidos.

            Não foram oferecidas contra-alegações.

            III – Os factos necessários ao conhecimento do recurso decorrem do conteúdo da  petição inicial que, atrás, no seu essencial, se reproduziu.

            A que se acrescenta a propositura nos Julgados de Paz, pela aqui A. contra o aqui  R., de acção em que pediu: a) Ser o Demandado condenado a reconhecer à aqui Demandante o direito de propriedade sobre o imóvel em causa e parcialmente ocupado por aquele; b) Ser o Demandado condenado a demolir o muro que construiu no trato de terreno do imóvel que ilicitamente ocupa. c) Ser o Demandado condenado a restituir à Demandante esse trato de terreno, entregando-lhe livre de pessoas e coisas.

            Acção esta que foi julgada improcedente, tendo a improcedência sido mantida no recurso interposto para a 1ª instância – cfr documento junto a fls 10 e ss dos presentes autos.

            IV - Encontrando-se o objeto do recurso delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:

            -se a petição inicial é inepta por contradição entre a causa de pedir e o pedido e/ou, se os pedidos são entre si incompatíveis por assentarem em causas de pedir inconciliáveis;  

            - se, de todo o modo, se verifica caso julgado relativamente à acção que correu termos nos Julgados de Paz.

            A definição dada à 1ª questão advém essencialmente da conclusão 6º, na qual os apelantes referem ser inepta a petição,  «porquanto, resulta claramente da P.I. que o pedido assenta em causas de pedir inconciliáveis face aquela que é a natureza da ação de demarcação, para além do que, são formulados pedidos cujos efeitos jurídicos se repelem mutuamente».

            Pese embora a invocação da ineptidão da petição inicial surja moldada na contestação do R. e da chamada -  e também, não obstante  a referida conclusão, nas alegações de recurso -  em função da contradição do pedido com a(s)  causa(s)  de pedir, entende-se que, o  que, salvo o devido respeito,  poderá estar em questão na situação dos autos é o motivo de ineptidão que possa resultar da cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, nos termos da 2ª  parte da al d) do nº 1 do art 186º CPC.  

            Desde logo porque os pedidos são diversos e com causas de pedir diferentes.

            Lembremos os pedidos formulados na acção:

            - Deverão ser demarcadas as estremas do prédio identificado em 1.º da Petição Inicial na parte em que confina o Réu;

            - Deverá o Réu ser condenado a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio identificado no art. 1.º da Petição Inicial até à linha delimitadora que vier a ser fixada, abstendo-se, consequentemente, de praticar qualquer ato que, de qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito da Autora sobre tal prédio até tal linha delimitadora;

            - Deverá o Réu ser condenado a demolir e retirar tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar o prédio da Autora, no prazo de 15 dias, entregando-o à Autora completamente livre e desimpedido;

            - Deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00 por cada dia além dos 15 dias acima referidos, que demorar a demolir, limpar e desimpedir o prédio desta.

            O 1º pedido formulado é, claramente, um pedido correspondente ao de uma acção de demarcação.

            O 2º, conjugado com o 3º - e ambos formulados, sem qualquer relação de subsidiariedade ou de alternatividade com o 1º, antes em cumulação real com ele -  corresponde(m) ao de uma acção de reivindicação de propriedade, sendo o 4º uma consequência decorrente dessa reivindicação.

            Lembremos agora o que caracteriza a acção de reivindicação de propriedade e a acção de demarcação.

            Na acção de reivindicação o proprietário exige de qualquer possuidor o reconhecimento do seu direito e a consequente entrega do que lhe pertence (artigo 1311º/1 do CC).

             È uma acção real, condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respectiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e pela violação desse direito pelo reivindicado (que detém a posse ou a mera detenção desta).

             O pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.

            A acção de demarcação é uma acção pessoal e não real, porque não tem como objectivo a declaração do direito real, mas apenas definir as estremas entre dois prédios contíguos, propriedade de donos distintos, perante o estado de indefinição/incerteza das respectivas estremas.

            O direito de propriedade de autor e réu sobre os respectivos prédios, a demarcar, não integra a causa de pedir da acção de demarcação, mas funciona como mera condição de legitimidade activa (autor) e passiva (réu) para a acção de demarcação (nas palavras do Ac STJ de 29/06/00 in BMJ 499º/294, «a qualidade de proprietário de (um dado terreno ou prédio) invocada pelo autor, é apenas condição da sua legitimatio ad causam»).

            Como é uso destacar-se nesta matéria, a causa de pedir na acção de demarcação é complexa, e desdobra-se na existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são duvidosas ou se tornaram duvidosas, não integrando a causa de pedir o facto que originou o invocado direito de propriedade.  

            O pedido na acção de demarcação é a fixação da linha divisória entre os prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos.

            Repetindo, «a demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza ou de dúvida sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios, e por isso, a pretensão a formular pelo autor é, no uso do direito potestativo que lhe assiste, a de que os proprietários dos prédios vizinhos sejam obrigados a concorrer para a definição e fixação das estremas dos prédios confinantes»[1].

            Assentando o pedido em causa nos arts 1353º e 1354º C.C, que dispõem que  o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles, a demarcação é feita de conformidade com os títulos, pela posse, por outro meio de prova, ou, se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

            Tornaram-se clássicas, nesta matéria de distinção entre a acção de reivindicação e a de demarcação, as palavras de  Pires de Lima e Antunes Varela[2], quando estabelecem a diferença entre esses dois tipos de acções, em função,  essencialmente, do facto de na primeira estarmos perante um “conflito acerca do título” e na segunda estarmos perante um “conflito de prédios”. Assim, se «as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que a medição é feita, ou, mesmo em relação à usucapião, se não se discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção é já de demarcação».

            Voltemos à ineptidão da petição inicial.

            Acentua Anselmo de Castro[3] que «com a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar correctamente a causa  (…)». Advertindo o mesmo autor que «a figura da ineptidão da petição inicial não se limita a circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à sua actividade decisória. Propõe-se ainda impedir que se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o pedido contra ele formulado e o respectivo fundamento». 

            È, em função da não consecução de uma destas finalidades, que, aliás, se mostram ligadas – não poder o juiz  julgar correctamente a causa e/ou não poder o réu defender-se capazmente – que melhor se pode compreender quando se está  perante a ineptidão da petição inicial, enquanto nulidade total do processo.

            Lembra também Anselmo de Castro [4] e, concretamente no que se reporta à cumulação de causas de pedir substancialmente incompatíveis,  estar apenas em causa a cumulação de causas de pedir que, minimamente interpretada a petição, se mostre como real. Se interpretada, se conseguem harmonizar as causas de pedir, por exemplo, hierarquizando-as como principal e subsidiária, não haverá ineptidão.

            O que é igualmente válido para a cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.

            Também aqui se tem que interpretar a petição, e interpreta-la à luz do sistema jurídico.

            Os pedidos serão substancialmente incompatíveis quando não possam ser ambos acolhidos sem se introduzir uma contradição interna na ordem jurídica. [5] 

            Acentua, porém, Anselmo de Castro,  que essa contradição substantiva tem de existir no próprio pensamento do autor e não apenas no plano da lei, porque se a contradição dos pedidos for (apenas) no plano legal, o tribunal não está impossibilitado de decidir, «de tomar toda e qualquer decisão», como é próprio que sucede perante a ineptidão da petição inicial - «resta-lhe  não admitir o pedido que tenha por infundado»-  citando a este propósito Manuel de Andrade [6], quando refere, «não interessa que o enquadramento jurídico constante da petição caracterize efeitos antagónicos, uma vez que não se trata de verdadeira ininteligibilidade do pensamento que orientou aquele articulado».

            Para que se verifique cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, o próprio pensamento do autor tem de ser ininteligível, não ser perceptível, de tal modo que os pedidos se anulem um ao outro.

            È essa radical ininteligibilidade que afinal justifica a solução do nº 4 do art 186º: ainda que um dos pedidos cumulados passe a não subsistir por motivos formais (vg incompetência do tribunal para a sua apreciação) não valerá o pedido subsistente, isto é, a acção não poderá prosseguir com o pedido para o qual o tribunal se mostre competente, porque, previamente, na sua base, o pensamento do autor era imperceptível, inacolhível. Os pedidos anulam-se um ao outro.

           

            Vejamos, pois, à luz destes considerandos, se os pedidos formulados na acção – já se viu que o primeiro correspondente a uma acção de demarcação e os demais a uma acção de reivindicação de propriedade – se mostram entre si substancialmente incompatíveis, analisando-se, previamente, qual a causa de pedir de um e outro. 

            No que se reporta ao pedido de demarcação, os factos jurídicos de que o mesmo decorre, interpretada devidamente a petição inicial, encontram-se na prévia improcedência da acção de reivindicação interposta pela A. contra o aqui R. nos Julgados de Paz, de cujo caso julgado  resulta objectivamente a incerteza ou indefinição dos limites  ali definidos dos dois prédios confinantes, não podendo mais o Autor sustentar, sem mais, em juízo, que o prédio de que se arroga proprietário compreende aquela faixa de que o réu se arroga também proprietário, e tão pouco que este a está ocupar abusivamente.

            E, por assim ser, o A. aceita que importa definir as estremas entre os dois prédios contíguos, dada a indefinição/incerteza das respectivas estremas decorrente do resultado da referida acção, e dai que peça, na presente acção, e à cabeça, a demarcação das estremas do prédio identificado em 1º da petição inicial na parte em que confina com o R.

            Note-se, mais uma vez, que é precisamente porque a A. aceita o resultado da acção de reivindicação e a inerente situação objectiva de incerteza que dela decorreu relativamente aos limites dos dois prédios, que, não obstante continuar intimamente convencido, como resulta das suas alegações na petição, que o R., em 2014, quando mandou edificar um muro para dividir as propriedades,  ampliou o seu prédio, ocupando parte do dele, se propõe com a presente acção e em função deste primeiro e determinante pedido, obter a demarcação do seu prédio. [7]

            Estão, pois, presentes e suficientemente nítidos, os pressupostos de que depende esta acção – a existência de prédios confinantes, de proprietários distintos, e de estremas incertas.

            Como é referido na decisão recorrida – embora a propósito da apreciação da exceção do caso julgado - «a A. pede a demarcação das estremas do prédio do lado confinante com o do réu, tendo todos os demais pedidos por base aquilo que resultar do pedido principal, isto é, daquilo que for decidido quanto à demarcação das estremas do prédio (…)  Sujeita-se assim a autora à demarcação que vier a resultar dos presentes autos, mesmo que em seu prejuízo, uma vez que, em última análise e na ausência de prova, haverá que determinar a demarcação nos termos do disposto no artigo 1354.º, n.º 2, do Código Civil, isto é, distribuindo-se o terreno em litígio por partes iguais».

            È, obtida essa demarcação, e qualquer que ela seja – mais ou menos em seu favor ou mais ou menos a favor dos RR. (nas palavras do Ac R L 12/2/2009 [8], «sujeitando-se a que a linha divisória seja a que defende ou outra, designadamente a (…)  defendida pelo réu» – que pede, então, o reconhecimento do seu  direito de propriedade sobre o prédio identificado no art. 1.º da Petição Inicial até à linha  delimitadora que venha  a ser fixada no âmbito dessa demarcação, e a condenação dos RR., para além da abstenção de praticarem qualquer ato que, de qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito da Autora sobre tal prédio, até à tal linha delimitadora, a, vindo a ser esse o caso - o que só se definirá em função da pretendida demarcação - demolir e retirar tudo o que depois de definida a linha delimitadora estiver a ocupar o prédio da A., e por isso, possivelmente, o referido muro que o R. ali erigiu.

            Dir-se-á que está aqui em causa uma condenação condicional, podendo a mesma ser controvertida na sua admissibilidade.

             Mas essa questão já nada tem a ver com a aptidão da petição inicial, mas com o mérito da acção.

            Por isso se entende que os pedidos formulados na presente acção não se apresentam como substancialmente incompatíveis e tao pouco o são as causas de pedir em que assentam[9].  

            Do que se veio de dizer, é fácil concluir pela improcedência da excepção de caso julgado.

            O Tribunal recorrido, para sustentar o seu entendimento de improcedência dessa excepção, citou vários acórdãos , entre eles  o Ac STJ 9/10/2006 [10] [11], estando em todos eles em causa a ofensa de caso julgado formado em acção  anterior de reivindicação, relativamente a posterior  acção de demarcação[12].

            Diz-se no sumário deste último, com relevância para o melhor entendimento das questões objecto do presente recurso: «1- Para a averiguação da existência de caso julgado não é indiferente o objecto do processo e a apreciação que dele se faça na sentença, como o não é a natureza das acções em confronto. II - No caso, perante uma acção de reivindicação e outra de demarcação, é natural que haja coincidência ou sobreposição de vários elementos da situação de facto que estão na origem dos pedidos. III - Mas, os pedidos e os resultados jurídico e prático visados não são confundíveis: - na reivindicação, se o autor prova os limites que alega vê reconhecido o direito sobre a parcela na sua totalidade (ganha tudo), se não prova, o litígio mantém-se, pois fica sem saber quais são os limites (não ganha nem perde); - na demarcação, diferentemente, o autor indica os limites que entende mas sujeita-se a um resultado que pode ou não coincidir com a linha proposta, podendo obter total ou parcial ganho da causa ou nenhum. IV - Reivindica-se para pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma coisa ou parte dela e a respectiva restituição, mas intenta-se acção de demarcação para obrigar o dono do prédio confinante a concorrer para a definição e fixação da linha divisória, não definida (arts. 1311.º e 1353.º do CC).V - Diversos, pois, os pedidos e a causa de pedir, como, de resto, é postulado pela própria natureza das acções e respectivo objecto, tal afasta a pretendida ofensa de caso julgado formado na anterior acção de reivindicação lidada entre as mesmas partes.

            Considerações estas que valem no presente recurso para a relação entre a anterior acção de reivindicação nos Julgados de Paz e o pedido de demarcação já assinalado no primeiro dos pedidos formulados na presente acção. Como se assinala no referido acórdão, «a demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a estado de incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois prédios, incerteza que bem pode resultar do anterior insucesso, por falência da prova, da reivindicação de uma faixa de um deles por um dos confinantes».  

            Relativamente à relação entre a referida anterior acção de reivindicação e os pedidos que na presente acção se configuram como correspondentes a esse tipo de acção,  não se verifica igualmente identidade nas causas de pedir, desde o momento em que a causa de pedir, ali, respeitava a uma parcela de terreno definida, e no pedido aqui formulado de reivindicação essa parcela de terreno está por definir, podendo não corresponder àquela.

            Entende-se, pois, que a decisão recorrida não merece censura.

            V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelos apelantes.

           

Coimbra, 14 de Março de 2023

(Maria Teresa Albuquerque)

(Falcão de Magalhães)                                

(Pires Robalo)

            (…)





               [1] - Como se afirma no AC RP de 8/3/2022 (Ana Paula Dias da Silva) que se tem estado, de algum modo, a acompanhar.
               [2] - «Código Civil Anotado»,Vol. III, pág. 199.
               [3] - «Direito  Processual Civil Declaratório», 1982, Vol II, p 219
               [4] - Obra citada, p 226
               [5] Rodrigues Bastos, «Notas ao Código de Processo Civil » Vol I , p 388 ; Abrantes Geraldes  «Temas da Reforma do Processo Civil», T1, p 131
               [6] - «Noções Elementares de Processo Civil , 2ª ed, p 171
               [7] - A incerteza ou indefinição sobre os limites dos prédios tanto pode resultar do desconhecimento sobre os limites dos prédios como do desacordo sobre os mesmos,  AC R P 13/10/2009  e de 16/1/2006 , Ac R G 5/472018 .
               A demarcação pressupõe uma incerteza, objectiva ou subjectiva, quanto aos limites materiais de determinado prédio – Lorenzo Gonsalez, «Limitações e Vizinhança», p 163
               Como se refere no Ac STJ de 10/5/2012, «Desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a proprietários diferentes e inexista linha divisória entre eles  (seja porque, indiscutida entre os proprietários confinantes, não está marcada, sinalizada no terreno, seja porque ela (isto é, a sua localização) é objecto de controvérsia entre eles, seja porque eles pura e simplesmente desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação»
               [8] - Relator, Pereira Rodrigues
               [9]  - Não se desconhece que tem sido decidido com muita frequência, em situações de cumulação de pedidos de reivindicação e de demarcação, a incompatibilidade substancial entre esses dois pedidos, entendendo-se, consequentemente que a  petição inicial é inepta.
               Assim,,por exemplo,  Ac R P  25.01.2021, processo 4029/18.4T8STS.P1; o Ac R P 13/7/2021 pr 500/20.6T8ALB.P1;Ac R E 31.10.2013 Proc 98/11.6TBNIS.E1; Ac RG 2/6/2011 pr 406/09.0TBCMN.G1; Ac RP de 8/3/2022; .Ac R P 21/10/2021; Ac R P 25/1/2020; Ac R G  5/4/2018 , Ac R P 2/6/2011.
                Sucede que nem em todos eles se verifica a relação entre os dois pedidos que nos presentes autos se verifica, sendo frequente que o pedido de demarcação não preceda o de reivindicação.
               De todo o modo, no sentido que se defende, cfr Ac R C 10/2/2009 (Isabel da Fonseca) e 25/5/2010 (Carlos Gil), embora em qualquer deles, a situação de facto não se equivalha à dos presentes autos.

               [10] - Relator, Alves Velho
               [11] - E também o Ac R L 20/11/2003 (Ana Paula Boularot) e o Ac STJ 9/10/2006  (Urbano Reis)

               [12] No mesmo sentido, Ac STJ de 27/7/82 (proc. 070114), 12/12/02 (proc. 02A3688) e 21/01/03 (proc. 02A3029).