Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58/19.9T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SEGUNDA PERÍCIA
INDEFERIMENTO
RECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REJEITADA COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 485.º; 487.º, 1 E 3; 488.º E 644.º, 2, D) E H) E 3, DO CPC
Sumário: 1. O requerimento de 2ª perícia – rejeitado na 1ª instância – constitui um incidente no quadro da prova pericial anterior admitida e realizada, visando-se abalar/controlar o seu valor probatório, e não um novo/autónomo meio de prova pericial.
2. Da decisão de indeferimento de requerimento de 2ª perícia não cabe recurso de apelação autónoma, apenas sendo admissível recurso ao abrigo do disposto no art.º 644º, n.ºs 3 e 4, do CPC.
Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Vítor Amaral
                 Moreira do Carmo

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                (…)

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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                   

        

           I. AA intentou ação declarativa comum contra A..., S. A., pedindo que seja condenada a pagar-lhe uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de viação referido nos autos, causado pelo segurado da Ré.

           A Ré contestou, e não enjeitando a responsabilidade do seu segurado, defendeu que o A. não tem direito, na totalidade, à indemnização que reclama.

            Em audiência prévia foram selecionados os temas da prova. Foi admitida a prova pericial médico-legal (requerida por ambas as partes), a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).

           Realizada a perícia e junto aos autos o respetivo relatório, a Ré requereu, então, a realização de 2ª perícia médico-legal, indicando perito; subsidiariamente, requereu a realização desse exame no INML.

           O A. opôs-se.

           O tribunal determinou que o perito do INML prestasse esclarecimentos e completasse o relatório. O perito prestou esclarecimentos.

           A Ré veio, então, insistir no pedido de 2ª perícia colegial e subsidiariamente, requerer a realização desse exame no INML.

           O A. opôs-se.

           O Mm.º Juiz do Tribunal a quo indeferiu o requerido.

           Dizendo-se inconformada, a Ré apelou formulando as seguintes conclusões:

           I - Para que seja deferida uma segunda perícia, a parte tem de alegar, fundadamente, as razões da sua discordância quanto ao relatório pericial.

           II - Na medida em que a Lei processual impõe aquele dever de “fundamentação” no que toca às razões da discordância da parte relativamente ao relatório pericial, tem de se admitir que compita ao julgador avaliar se foi ou não cumprido tal requisito pela parte que requereu a segunda perícia.

           III - Porém, como também vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos Tribunal superiores, não pode o julgador ir para além da mera análise do cumprimento desse dever de fundamentação, não lhe cabendo avaliar o mérito das razões invocadas.

           IV- A Ré, no seu requerimento de realização de segunda perícia, expôs, de forma fundada e exaustiva, as razões da sua discordância quanto ao relatório pericial.

           V- De facto, a Ré invocou argumentos técnicos no sentido de infirmar as conclusões da perícia, justificando, um a um, os motivos da sua discordância.

           VI - As razões da discordância da Ré quanto às conclusões do relatório pericial prendem-se, por um lado, com o facto de não estar comprovado, face à documentação clínica constante do processo, que o Autor é portador da sequela que foi considerada para atribuição do grau de incapacidade (anquilose) e, tão pouco, que essa sequela seja decorrente do acidente em apreço, por ter sido, afinal, resultado de um acontecimento posterior.

           VII - Não existem razões sérias – nem o Tribunal as invoca – para se concluir que a pretensão da Ré de realização de segunda perícia seja meramente dilatória.

           VIII - O julgador não poderia, salvo melhor opinião, analisar o mérito dos fundamentos apresentados pela Ré, mas sim, apenas, avaliar se foi cumprido o ónus de alegar, fundadamente, as razões da sua discordância.

           IX - A análise que o julgador fez pode acarretar, na verdade, o erro de o julgador acabar por rejeitar a perícia por não dispor dos especiais conhecimentos técnicos que, logo à partida, justificaram a realização nos autos de perícia.

           X - Por outro lado, o facto de o perito ter, em sede de esclarecimentos, afirmado que, na sua perspetiva, as sequelas que descreveu e desvalorizou existem e são consequência do acidente não retira fundamento ou sustentação ao pedido de realização de segunda perícia apresentado pela Ré.

           XI - Mesmo que o perito entenda e reafirme que a sequela é consequência do acidente, é legítima e fundada a discordância da Ré quanto a essa conclusão, por entender, como manifestou, que essa relação não existe e, até, que a sequela não existe.

           XII - Por outro lado, não pode ser recusada a realização de uma segunda perícia com o fundamento de que esta pode redundar no mesmo resultado da primeira,

           XIII - Se o facto de a segunda perícia poder apontar para conclusões idênticas às da primeira fosse um facto juridicamente relevante, o legislador não teria previsto a possibilidade de ser ordenada e teria antes previsto a possibilidade de realização de uma segunda perícia por processo.

           XIV - Além disso, o legislador preveniu o risco de as partes requererem sucessivas perícias até alcançarem o resultado pretendido limitando a duas o número de perícias que podem ser realizadas em cada processo.

           XV - Neste contexto, os motivos invocados na decisão sob censura para se indeferir a realização da segunda perícia não podem manter-se.

           XVI - Consequentemente, impõe-se que seja revogado o despacho sob censura e, em sua substituição, seja proferida decisão que admita a realização de uma segunda perícia, nos moldes que se considerar adequados.

           XVII - No despacho do qual se recorre o julgador indeferiu a realização de uma segunda perícia.

           XVIII - Existe, porém, a possibilidade de se entender que o julgador não decidiu sobre a admissibilidade de uma segunda perícia, mas antes sobre a admissibilidade de uma segunda perícia colegial, conforme requerido pela parte.

           XIX - Nos requerimentos que apresentou e nos quais pediu a realização de uma segunda perícia, a Ré, apesar de ter pedido que fosse ordenada a sua realização em moldes colegiais (e com nomeação de peritos pelas partes), não deixou de peticionar que, se assim não se entendesse, a aludida perícia deveria ser realizada por perito singular, pelo INM.

           XX - Assim, caso se entenda que no despacho em apreço o Tribunal apenas se pronunciou sobre se segunda perícia deveria ou não ser colegial e se se limitou a indeferi-la por entender que não era admissível nesses termos, o Tribunal sempre teria deixado de se pronunciar sobre a pretensão subsidiária oportunamente formulada, ou seja, a de que a segunda perícia fosse realizada por perito singular, pelo INML.

           XXI - Logo, caso seja esse o entendimento deste Tribunal superior, deve ser anulada a decisão proferida e ordenado o regresso dos autos ao Tribunal a quo, a fim de que seja proferida decisão que se pronuncie sobre a pretensão subsidiária formulada pela Ré, ou seja, a da realização de segunda perícia por perito singular, pelo INML.

           XXII - Sendo ordenada a realização de uma segunda perícia, deve ser anulado todo o processado posterior à prolação do despacho que indeferiu a realização da segunda perícia, de forma a que os autos regressem ao estado em que estavam nesse momento.

            XXIII - O despacho sob censura violou a norma do artigo 487º, n.º 1 do CPC.

            O A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa decidir, previamente, se é admissível recurso imediato/autónomo da decisão que indefira a realização de segunda perícia médico-legal.[1]


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           II. 1. Releva a factualidade que decorre do relatório que antecede.

           2. Sobre a questão atrás enunciada, esta Relação (e Secção) já se pronunciou nos seguintes termos:[2]

           Constituirá a rejeição da segunda perícia a não admissão de um meio autónomo de prova? Ou estaremos ainda no âmbito/decurso de prova pericial já admitida, implicando a rejeição da apelação autónoma (por o recurso dever ser interposto apenas a final)?

           Dispõe o art.º 644º, n.º 2, alíneas d) e h), do CPC, que: “Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância: (…) d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova; (…) h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;”.

           Ora, perante este dispositivo legal, deve, então, colocar-se a questão da tempestividade do recurso, se ele devia subir imediatamente (e em separado) ou, nos termos do n.º 3 do mesmo art.º 644º (conjugado com o n.º 1), se poderia/deveria a decisão proferida ser impugnada (apenas) “no recurso que venha a ser interposto” da decisão “que ponha termo à causa”.

           Na verdade, não parece – prima facie – que, in casu, estejamos perante rejeição de algum meio de prova, no caso a prova pericial.

           Esta, uma vez (inicialmente) requerida, foi admitida e produzida, nos termos legais. Seguiu-se a prestação de esclarecimentos.

           Assim, tal prova pericial, numa perspetiva global, em vez de rejeitada, foi admitida e produzida, conclusão que – parece – não será invalidada pelo facto de a Ré, inconformada com o resultado da perícia efetuada, agora pretender, incidentalmente, no mesmo âmbito, uma segunda perícia.

           Esta pretensão, neste contexto processual e probatório, não passará de um incidente no quadro da prova pericial já admitida e realizada, visando-se, no fundo, abalar/controlar o seu valor probatório.

           A esta luz, pois, o despacho recorrido constitui decisão respeitante a incidente suscitado no âmbito da produção da prova pericial já admitida e produzida.

           E também não parece que estejamos perante decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil, no sentido de uma inutilidade absoluta/irreversível. E o risco de inutilização corre relativamente ao processado subsequente, podendo estender-se à sentença, mas não parece poder afetar, na sua substância, a decisão final do pleito.

           Daí, o recurso interposto será intempestivo, devendo ser interposto, sendo o caso, ulteriormente, nos termos aplicáveis do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 644º do CPC.

           3. Prosseguindo

           Acrescenta-se que está em causa uma discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, ou seja, à perícia já realizada (cf. art.º 487º, n.º 1, do CPC), visando-se apenas a averiguação dos mesmos factos, com vista a corrigir a eventual inexatidão dos resultados do dito relatório pericial oferecido (n.º 3 do mesmo art.º), com aplicação das mesmas regras/disposições que valem para a primeira perícia (art.º 488º do CPC).

           Por isso, nenhuma das duas perícias invalida a outra, sendo ambas livremente apreciadas pelo tribunal, podendo, em rigor, dizer-se que: «IV - A segunda perícia não é uma nova perícia. A segunda perícia, dado que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta, é, simplesmente, a repetição da primeira (...). V - O que justifica a segunda perícia é a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação de outro perito ou peritos os factos que já foram apreciados. Parte-se do princípio que o primeiro perito ou os primeiros peritos viram mal os factos ou emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque não se considera convincente o parecer obtido na primeira perícia é que se lança mão da segunda. VI - No tocante ao valor da perícia, quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (art.º 389º do Código Civil)[3]

           Ora, se a «segunda perícia não é uma nova perícia», mas, por averiguar «dos mesmos factos» e se destinar à «correcção da eventual inexactidão dos resultados» da primeira, «é, simplesmente, a repetição» desta, não poderá dizer-se que estamos perante um diverso meio de prova, mas apenas perante o prolongamento/prosseguimento, incidental, da prova pericial já iniciada.

           Tratar-se-á, com efeito, de um incidente no decurso da prova pericial inicialmente admitida e até já produzida, suscitado no encadeamento da perícia anteriormente realizada, desta funcionalmente dependente, por exclusivamente direcionado, dentro do mesmo âmbito fáctico (ou objeto probatório), à dita correção da eventual inexatidão dos resultados do relatório pericial já obtido e com que a parte requerente da segunda perícia não concorda.

           Tal como o pedido de esclarecimentos na veste de reclamação contra o relatório pericial (cf. art.º 485º do CPC), não dá início a um novo meio de prova (os esclarecimentos/complementos dos peritos), por se estar perante um incidente suscitado no quadro da produção da prova (pericial) já admitida, a ela funcionalizado e sem extravasar o seu âmbito, também a segunda perícia não assume a autonomia correspondente a um diverso meio de prova.

           Funcionalizada perante o requerimento de prova pericial inicialmente apresentado, versando sobre os mesmos factos, sujeita às mesmas regras e destinada, somente, a responder à discordância de uma das partes perante o relatório pericial já produzido, em termos de levar à correção eventual de alguma inexatidão de resultados, em causa está apenas, na segunda perícia, controlar os resultados e o valor probatório da primeira.

           Por isso, nesta perspetiva, tudo não passará, assim, de um incidente suscitado no âmbito da produção da prova pericial inicialmente requerida, já não se tratando de admitir ou rejeitar o meio de prova – aquela prova pericial sobre aqueles factos –, mas de controlar o seu valor probatório, vistos os resultados do relatório já obtido.

           Não ocorrerá, pois, uma nova perícia – a segunda perícia não é um novo meio de prova –, mas a repetição da anterior/primeira, no quadro da prova pericial inicialmente requerida e admitida, termos em que não parece, salvo o devido respeito, poder enquadrar-se o caso na hipótese normativa da rejeição de um meio de prova, a que alude o art.º 644º, n.º 2, alínea d), do CPC, o que afasta a possibilidade de recurso de apelação autónoma.

           4. Como exposto na fundamentação do acórdão desta Relação de 27.9.2016-processo 26/11.9TBMDA-A.C1:[4]

           «Comece por dizer-se, em abstracto, que o procedimento probatório da prova pericial comporta quatro fases distintas, a saber: a da sua proposição, a da sua admissão, a da sua preparação (fixação do objecto da perícia) e a da sua produção e assunção - A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pp. 584 a 586».

           Ora, in casu, o objeto da perícia resultou fixado/estabelecido aquando da preparação da prova pericial – fixado para a primeira perícia, a que tem de conformar-se a segunda perícia –, o que significa que a fase da preparação do procedimento probatório de toda esta prova pericial já ocorreu.

           Na fase da produção e assunção, houve reclamação e decorrentes esclarecimentos periciais, na sequência do que, ainda inconformada uma das partes (Ré), foi requerida a segunda perícia, e não uma nova perícia, isto é, uma repetição, incidental, da primeira perícia, com sujeição ao mesmo fixado objeto e no intuito, apenas, de corrigir/alterar os resultados desta.

            5. Neste sentido se pronunciou a Relação do Porto - no acórdão de 04.11.2019-processo 701/17.4T8MAI.P1[5] - rejeitando a possibilidade de interposição de recurso de apelação autónoma da decisão de não admissão de segunda perícia, podendo ler-se no respetivo sumário: «I - O indeferimento da realização de uma 2ª perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644º, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação. II - Assim, o despacho que não admite a 2ª perícia não é passível de recurso autónomo.».

            E, como resulta da fundamentação deste aresto:

           «14 – Importa fazer notar que a razão de ser do recurso autónomo não esclarece que decisões devam ser objeto do mesmo: são coisas distintas. Aliás, se o fundamento do recurso autónomo definisse a extensão da sua admissibilidade, não vemos que decisões – com a finalidade de se afastar o risco de anulação do processo – poderiam deixar de o admitir.

            15 - No mais, mantemos as razões que foram avançadas na decisão singular, ou seja «entendemos que a segunda perícia não é um meio de prova no sentido da previsão do preceito que admite a recorribilidade imediata e autónoma. A razão de ser desta recorribilidade não se estende a todas as vicissitudes da prova (como entendemos ser a segunda perícia ou a contradita, por exemplo), nem a clareza da lei – referindo-se, apenas mas significativamente, à admissão e rejeição -, aceitará essa interpretação alargada. O que está em causa é sempre a admissão ou rejeição de um meio de prova. No caso, do meio de prova, prova pericial. A prova pericial constitui o Capítulo IV do Título V (Da Instrução do Processo) do Código de Processo Civil e o Capítulo seguinte é outro meio de prova, A Inspeção Judicial. As diversas secções daquele Capítulo IV (Designação de peritos, Proposição e objeto da prova pericial, Realização da perícia e Segunda perícia) não são autónomos ou diferentes meios de prova: esta é e sempre continua a ser a Prova Pericial.».

           6. Assim se conclui pelo não conhecimento do objeto do recurso, por inadmissibilidade legal de apelação autónoma.[6]

            7. Dir-se-á, por último, que o recurso, a poder ser já apreciado, estaria votado ao insucesso, pois que tal é o entendimento que este coletivo tem sobre a matéria - cf., nomeadamente, acórdão da RC de 03.3.2015-processo 450/12.0TBSCD-A, publicado no “site” da dgsi [a existir 2ª perícia ela não seria colegial - as perícias médico-legais colegiais apenas têm lugar quando o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada, em conformidade com o disposto no art.º 21º, n.º 4, da Lei 45/2004, de 19.8, e são efetuadas por peritos designados nos termos previstos nessa lei, não tendo aplicação o disposto no art.º 468º do CPC], sendo que, no tocante à pretensão deduzida por via subsidiária, a recorrente não arguira a pretensa nulidade (por falta de pronúncia).


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           III. Pelo exposto, não sendo admissível o recurso interposto como apelação autónoma, não se conhece do seu objeto, julgando-se, por isso, o mesmo findo.

            Custas pela Ré/apelante.


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09.01.2024

Voto de Vencido

Tenho o entendimento que da decisão de indeferimento de requerimento de 2ª perícia cabe recurso de apelação autónoma, nos termos do art. 644º, nº 2, d), por se estar perante um despacho de rejeição de um meio de prova.
Sumariamente diremos o seguinte:
- Diz-se no acórdão que a 2ª perícia não passará de um incidente no quadro da prova pericial já admitida e realizada, e ao mesmo tempo se diz que a reclamação da 1ª perícia também é um incidente, o que não subscrevemos, pois se esta última se afigura ser um verdadeiro incidente já aquela tem autonomia, sob pena de termos de admitir que tudo é um incidente a partir do momento inicial do despacho de admissão da realização da 1ª perícia (parece ser este o argumento do referido acórdão da Rel. Porto de 4.11.2019);
- No respeitante à jurisprudência citada, e trecho do Ac. desta Relação de 24.4.2012, o mesmo limita-se a convocar o teor do art. 589º, nº 3, do anterior CPC, sem mais adicional justificação; o de 27.9.2016, não tem pertinência para o caso concreto; e o de 7.11.2017, aprecia questão colateral de reclamação do relatório da peritagem, decidindo correctamente sobre um verdadeiro incidente, embora se pronuncie sobre o nosso tema, en passant, por mera reprodução daquele primeiro acórdão de 24.4.2012, sem mais justificação;
- Primeiro nosso argumento. Apesar da 2º perícia visar a eventual inexactidão dos resultados da 1ª (art. 487º, nº 3, do NCPC), segundo professa A. Reis, em CPC Anotado, Vol. IV, pág. 304, a 2ª perícia é uma prova a mais (o itálico é do referido autor). Os dois arbitramentos subsistem, um ao lado do outro, e assim poderão ser valorados livremente, podendo o segundo prevalecer sobre o primeiro. Assim, a 2ª perícia, não deixa de ser um meio de prova, a que alude o referido art. 644º, nº 2, d);
- Segundo. Também Lebre de Freitas professa este entendimento. Segundo ele (CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., notas 2. e 3. ao anterior art. 589º e 591º = aos actuais arts. 487º e 489º, págs. 554/557), a 2ª perícia visa fornecer ao tribunal novo elemento de prova, relativo aos factos que foram objecto da primeira, podendo até ter mais latitude factualmente. E podendo a 2ª perícia prevalecer sobre a 1ª.
- Terceiro. Igualmente Rui Pinto defende esta posição (em Revista da Fac. Direito da Uni. de Lisboa, Ano LXI, 2020, Nº 2, pág. 640) ao argumentar que “Mas já constitui rejeição de um meio de prova a rejeição do requerimento de uma segunda perícia, tal como constitui a rejeição do requerimento de depoimento de uma nova testemunha (e diríamos nós de um novo documento). Pois que ao contrário de certo entendimento (o da Rel. Porto de 4.11.2019, acima referido) o critério e preocupação da lei é material: evitar que a admissão ou a rejeição de certa prova concreta e autónoma, passe sem recurso imediato, porquanto uma revogação tardia dessa admissão ou rejeição poderia ter sérios reflexos no complexo avaliativo de toda a demais prova; não, evitar a admissão ou rejeição der certa categoria legal ou abstracta de meio de prova (como entendeu o referido acórdão da Rel. Porto). Por conseguinte, a expressão «meio de prova» deve ser entendida em sentido concreto e não em sentido abstracto” – o negrito é nosso.
Assim admitiria o recurso.
Moreira do Carmo


[1] Não se ouviram as partes, antes da prolação do presente acórdão, atendendo, designadamente ao seguinte: 1º - A posição da Ré sobre a matéria já é conhecida e o decidido nestes autos não poderá constituir “decisão surpresa” (cf., a propósito, “nota 3”, infra); 2º - Se a situação se enquadra, formal e aparentemente, na previsão do art.º 655º, n.º 1, do CPC, verifica-se, contudo, que esta Relação acaba por se pronunciar sobre o “objeto do recurso” (cf. II. 7., infra); 3º - Daí, ter-se por (manifestamente) desnecessária a observância/atuação do princípio do contraditório (art.º 3º, n.º 3 do CPC), cumprimento que, ao fim e ao cabo, redundaria na prática de um ato substancialmente inútil (art.º 130º do CPC) e de uma formalidade dispensável, porquanto sem qualquer (ou, pelo menos, relevante) ganho para a posição das partes e em manifesto prejuízo para a celeridade dos autos e o princípio da economia processual.

[2] Acórdão de 13.12.2023-apelação 3181/19.6T8LRA-A.C1 (tirado por unanimidade), relatado pelo ora 1º adjunto (o aqui relator interveio como 1º adjunto), sendo Ré/demandada a mesma dos presentes autos.

[3] Cf. acórdão da RC de 24.4.2012-processo 4857/07.6TBVIS.C1, publicado no “site” da dgsi; sublinhado nosso.
[4] Publicado no “site” da dgsi.
[5] Publicado no “site” da dgsi.
[6] Em idêntico sentido, nesta Secção, com a intervenção do ora relator, como 2º adjunto (relator: Carlos Moreira),  cf. acórdão da RC de 07.11.2017-processo 1025/15.7T8LMG-B.C1 [assim sumariado: «A al. d) do n. 2 do art.º 644º, pressupõe a rejeição liminar do meio probatório, ´qua tale´ - v. g. prova pericial -   não prevendo para as vicissitudes que este possa vir a encerrar, como sejam, o pedido de esclarecimentos aos peritos ou o pedido de segunda perícia, casos em que o recurso sobe a final, nos termos dos n.ºs 3 e 4.»; Consta da fundamentação, nomeadamente: «A decisão de indeferimento de uma reclamação apresentada contra um relatório pericial com fundamento na insuficiência deste por alegada ausência de resposta a alguns dos quesitos formulados…não envolve qualquer rejeição de qualquer meio de prova, especialmente nos casos em que o reclamante não demonstra e não desenvolve qualquer esforço argumentativo...» - Ac. da RC de 27.09.2016-processo 26/11.9TBMDA-A.C1. / Tal entendimento é, aliás, o mais conforme à lei, não apenas para as decisões sobre o pedido de esclarecimentos da primeira perícia, como, inclusive, para as decisões atinentes à segunda perícia. / Efetivamente: / «A segunda perícia não é uma nova perícia. A segunda perícia, dado que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta, é, simplesmente, a repetição da primeira (art.º 589º, n.º 3 do CPC (hoje 487º n.º 3) – Ac. da RC de 24.04.2012, p. 4857/07.6TBVIS.C1. (sublinhado nosso). / A segunda perícia, apresenta-se, assim, apenas como um adicional ou complemento da primeira. / Tanto assim é que: «a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal» - art.º 489º do CPC. / E sendo admitida ou rejeitada já após a fase liminar de admissão deste meio de prova pericial. / Destarte, outrossim neste caso, o indeferimento da segunda perícia não representa a rejeição de tal meio de prova, mas apenas a rejeição de um complemento ou adicional probatório. / O qual é requerido e rejeitado já com a produção do meio de prova em curso e numa sua fase ulterior e já avançada. / Ora se assim é para a segunda perícia, outrossim, por igualdade ou, até, maioria de razão - argumento a fortiori - o deve ser para o caso do pedido de esclarecimento sobre a 1ª perícia. (...)»], aresto que não se viu publicado.