Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
274/18.0PBCTB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DISPOSITIVO
CORREÇÃO DA SENTENÇA
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA A NULIDADE
Legislação Nacional: ARTS. 379º, N.º 1, AL. A), 374º, N.ºS 2 E 3, AL. A), E 380º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I. A condenação em pena acessória e a absolvição de um crime de que o arguido se encontrava acusado tem de constar do dispositivo da sentença, sob pena de nulidade por omissão de pronúncia.
II. Configurando nulidade, encontra-se excluída a possibilidade de correção da sentença, que apenas pode ter lugar quando não estejam em causa elementos essenciais da decisão.
Decisão Texto Integral:
*

            Acordam em conferência os Juízes da 4º Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. RELATÓRIO

            1. No âmbito do Processo nº274/18.0PBCTB do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Central Criminal de Castelo Branco, por acórdão proferido a 25-11-2021 [referência 33926903], foi decidido (transcrição):

            «Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, este Tribunal Coletivo decide:

I – EM SEDE DE ILICÍTOS CRIMINAIS

A) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 26º, 152, n.ºs 1 al. a), 4 e 5 todos do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão;

B) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida p.e p. pela al. d) do art.º 86º da Lei das Armas na pena de oito meses de prisão;

C) Proceder ao cúmulo jurídico das duas penas aplicadas em a) e b) deste dispositivo e, em consequência, condenar o arguido AA na pena única de três anos e seis meses de prisão.

D) Determinar que o cumprimento da proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância caso seja concedida liberdade condicional ao arguido antes de decorrido o período de três anos e seis meses;

E) Condenar o arguido AA nas custas da acção penal, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC’s.

II) - NA PARTE CÍVEL:

O Tribunal Colectivo decide julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado e, consequentemente:

a) Condenar o demandado AA a proceder ao pagamento à demandante BB da quantia de 10.000,00 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescida dos juros à taxa legal, actualmente de 4% (Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril), que se vençam a partir da data da presente acórdão até integral pagamento;

b) Condenar o demandado AA a proceder ao pagamento à demandante BB da quantia de€ 1.437,54, a título de danos patrimoniais sofridos, quantia a que acrescerão os respectivos juros vencidos e vincendos desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento.

c) Absolver o demandado do demais contra si peticionado

            d) - Custas a cargo do demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento (cf. art.º 527º do Cód. Processo Civil)»

2. Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso o arguido/demandado AA e o Ministério Público, sobre os quais incidiu o acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra de 08-04-2022 [referência 10169446], onde se decidiu:

            «Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em declarar nulo o acórdão recorrido por falta de fundamentação quanto aos aspectos acima indicados e, em consequência, determinam a sua substituição por outro que supra a apontada nulidade, nos termos enunciados em 3.1.1., devendo para tanto atender aos elementos cuja obtenção repute necessária para cabal satisfação das exigências de fundamentação da decisão, assegurando-se ainda a fundamentação bastante mencionada em 3.1.2. e a observância do requisito descrito em 3.1.3. 

Recurso sem tributação.»

                                                                       *

            3. Na sequência do decidido por este Tribunal superior, foi proferido novo acórdão pelo Tribunal a quo, datado de 07-06-2022 [referência 34680299], com o seguinte dispositivo (transcrição):

            «Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, este Tribunal Coletivo decide:

I – EM SEDE DE ILICÍTOS CRIMINAIS

A) - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 26º, 152, n.ºs 1 al. a), 4 e 5 todos do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão;

B) - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida p.e p. pela al. d) do art.º 86º da Lei das Armas na pena de oito meses de prisão;

C) - Proceder ao cúmulo jurídico das duas penas aplicadas em a) e b) deste dispositivo e, em consequência, condenar o arguido AA na pena única de três anos e seis meses de prisão.

D) - Determinar que o cumprimento da proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, seja telefone, seja e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente e seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância caso seja concedida liberdade condicional ao arguido antes de decorrido o período de três anos e seis meses;

E) Condenar o arguido AA nas custas da acção penal, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC’s.

II - ) NA PARTE CÍVEL:

O Tribunal Colectivo decide julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado e, consequentemente:

a) - Condenar o demandado AA a proceder ao pagamento à demandante BB da quantia de 10.000,00 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescida dos juros à taxa legal, actualmente de 4% (Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril), que se vençam a partir da data da presente sentença até integral pagamento;

b) - Condenar o demandado AA a proceder ao pagamento à demandante BB da quantia de € 1.437,54, a título de danos patrimoniais sofridos, quantia a que acrescerão os respectivos juros vencidos e vincendos desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento.

c) - Absolver o demandado do demais contra si peticionado;

d) - Custas a cargo do demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento (cf. art.º 527º do Cód. Processo Civil)»

            4. Inconformado, o Ministério Público interpôs novo recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

               «1. O arguido AA, vinha pronunciado entre o mais, pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. p. pelos arts. 132º, nºs 1 e 2, al. b), 131º, 22º, nºs 1 e 2, al. c), 23º, nº 2 e 26º do Código Penal e art. 86, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

2. O tribunal a quo absolveu o arguido da prática do indicado crime.

3. Porém, da matéria de facto provada resultam elementos de facto que impunham a condenação do arguido nos precisos termos em que foi pronunciado

4. Quando o tribunal a quo deu como não provados os factos inscritos sob as alíneas oo), pp), qq) e rr) não o fundamenta de forma lógica e racional e perceptível na respectiva motivação, tendo em conta a prova produzida em sede de julgamento.

5. Incorrendo, assim, o acórdão em nulidade prevista no artº 379º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal.

6. Acresce que, não tendo dado como provados os factos que veio a dar como não provados, violou o tribunal a quo as regras da experiência comum na formação da sua convicção para obter a conclusão a que chegou de os considerar não provados.

7. Incorreu o tribunal em erro notório na apreciação da prova, o que se constata a partir do próprio texto da decisão recorrida, previsto no artº 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal, tendo ainda em atenção o disposto no artº 127º do mesmo diploma legal.

8. Diferentemente, fez-se prova da intenção do arguido em tirar a vida à assistente, prova segura a que se chega mediante um raciocínio lógico, estando, assim, verificados todos os elementos típicos, objectivos e subjectivos do crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. p. pelos arts. 132º, nºs 1 e 2, al. b), 131º, 22º, nºs 1 e 2, al. c), 23º, nº 2 e 26º doCódigo Penal e art. 86, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

9. Deverá o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro na parte em que considera não provados os factos oo) a rr), considerando os mesmos provados.

10. E, assim, considerar verificada a prática pelo arguido do crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. p. pelos arts. 132º, nºs 1 e 2, al. b), 131º, 22º, nºs 1 e 2, al. c), 23º, nº 2 e 26º do Código Penal e art. 86, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Alterando o acórdão recorrido nos termos preditos farão Vossas Excelência a habitual JUSTIÇA!»

            (…)

            7. – Pelo Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto foi emitido parecer, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo Arguido e pela procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.

            8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

             1. Delimitação do objeto dos recursos.

            Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos. 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

            Atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes:

            A) Recurso do Ministério Público:

            1 - Vício de erro notório na apreciação da prova – artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal [conclusão 7.]

2 - Erro de julgamento relativamente à matéria de facto descrita nas alíneas oo), pp), qq) e rr) dos factos provados, devendo tal matéria ser levada ao elenco dos factos provados e, em consequência, ser o Arguido condenado também pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 23.º, n.º 2 e 26.º do Código Penal e artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro [conclusões 6., 8., 9. e 10.]

B) Recurso do arguido.

(…)

            2. Da decisão recorrida.

            O acórdão proferido pelo Tribunal a quo é do seguinte teor (transcrição dos segmentos pertinentes à decisão a proferir):

            «I – Relatório

Veio pronunciado para julgamento em processo comum, com intervenção do TRIBUNAL COLETIVO, o arguido:

(…)

Sendo-lhe imputada a prática, como autor material, de:

- um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p. p. pelos arts. 3º, nºs 1 e 2, al. g) e 86º, nº 1, al. d) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro;

- um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. p. pelo art. 152º, nºs 1, 4 e 5 do Código Penal;

- um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. p. pelos arts. 132º, nºs 1 e 2, al. b), 131º, 22º, nºs 1 e 2, al. c), 23º, nº 2 e 26º do Código Penal e art. 86, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro;

(…)

II . I FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

               Da prova produzida, com relevo para a decisão da causa resultaram os seguintes:

A) Factos Provados

(…)

B) Factos Não Provados

(…)

C) MOTIVAÇÃO

(…)

III. Enquadramento jurídico-penal

Deste modo, cumpre agora proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos considerados provados nestes autos, a fim de verificar se o arguido incorreu na prática do crime de violência doméstica, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada e de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p. p. pelos arts. 3º, nºs 1 e 2, al. g) e 86º, nº 1, al. d) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.

No que diz respeito ao primeiro dos ilícitos criminais mencionados (…)

Quer isto dizer que se encontram preenchidos todos os elementos que integram os tipos objectivo e subjectivo de ilícito do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, 4 e 5 do Código Penal, não podendo, portanto, o arguido deixar de ser condenado pela prática desse crime.


*

Mas, para além disso, em sede de despacho de pronúncia foi imputada ainda ao arguido a prática de um crime de homicídio, na forma tentada na pessoa da assistente relativamente aos factos ocorridos a 3 de Junho de 2018.

Estabelece o artigo 131º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

O crime de homicídio descrito neste preceito constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida.

O bem jurídico tutelado com a referida incriminação é a vida humana.

O tipo objectivo de ilícito do homicídio consiste em matar outra pessoa, isto é o tipo objetivo de ilícito do homicídio realiza-se com a morte de outra pessoa, ou seja, com o causar a morte de pessoa diferente do agente.

Quer isto dizer que o causar a morte significa que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objectiva do resultado à conduta. Com absoluta irrelevância dos meios e do modo através dos quais a morte é provocada: directa ou indirectamente, por conduta activa ou omissiva, sejam utilizados meios físicos ou psíquicos, resulte aquela de encurtamento do período de vida de uma pessoa sã ou do apressamento do momento da morte de um moribundo, ocorra ela imediatamente ou após um período longo relativamente à acção ou omissão. 

É um crime de dano, quanto ao bem jurídico, e de resultado, quanto ao objecto da acção.

A vida humana termina com a morte cerebral, isto é, a cessão irreversível das funções do tronco cerebral, nos termos do art.º 2º da Lei 141/99, de 28.08, conjugado com o art.º 12º da Lei 12/93, de 22.04, e a declaração da Ordem dos Médicos de 1.09.94.

O tipo subjectivo de ilícito do homicídio previsto no art.º 131º exige o dolo em qualquer uma das suas formas contempladas no art.º 14º, isto é, directo, necessário ou eventual.

É certo que no caso não se discute o preenchimento do tipo na sua forma consumada, mas sim a tentativa.

Ora, nos termos previstos no artigo 22º, n.º 1, do Código Penal, “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.

Por seu turno, acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal que “são actos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores”.

Verifica-se assim a tentativa de homicídio quando iniciada a conduta que visa a pôr termo à vida de uma pessoa, o resultado material não se produz, isto é, não ocorre a morte da aludida pessoa que o agente visava aniquilar.

A tentativa de cometimento do homicídio é sempre punível por força do disposto no n.º 1 do art.º 23º do CP que estatui que: “salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão”.

               Dito isto olhemos para o caso em apreço.

As lesões que foram infligidas à assistente não foram de molde a provocar-lhe a morte, consideramos que as mesmas ocorreram dentro do mesmo contexto de violência doméstica que o arguido e assistente vinham vivendo.

De salientar que não nos parece ter existido aqui uma resolução criminosa diferente por parte do arguido no sentido de se decidir a colocar termo à vida da assistente, tanto assim é que teria tido várias ocasiões mais propícias para o efeito, desde logo à noite (tendo o mesmo na sua posse a chave do atelier). E veja-se que o arguido, não obstante ter a chave do estabelecimento para entrar (dito pela própria assistente) não entrava se não fosse esta a abrir-lhe a porta.

Não consideramos que existiu aqui uma pluralidade de resoluções criminosas caso contrário, as lesões da vítima teriam necessariamente que ser outras bem mais graves assim como as sequelas.

A intenção de matar pressupõe necessariamente um “ir mais além”. A própria vítima referiu saber da existência do bastão e que o mesmo se encontrava em casa do casal precisamente para lhe causar medo e terror. Atentar contra a vida humana é um plus significativo relativamente a martirizá-la com maior ou menor intensidade.

Sem dúvida que as agressões do arguido iam em escalada e provavelmente um dia teria consequências mais trágicas, no entanto, não nos parece que neste dia o arguido tivesse agido com o propósito de tirar a vida da assistente pelo que acima se deixou dito.

Assim sendo, não se tendo prova quanto ao elemento subjectivo, teremos que absolver o arguido da prática de um crime de homicídio na forma tentada, o que se decide.


*

               Vejamos agora o que dizer quanto ao crime de detenção de arma proibida na forma consumada, p. p. pelos arts. 3º, nºs 1 e 2, al. g) e 86º, nº 1, al. d) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro;

               (…)

Assim sendo, não se vislumbrando nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, encontram-se preenchidos todos os elementos típicos do crime previsto e punido pelo art.º 86º, n.º 1, al. d), pelo que será o arguido condenado pela prática deste crime de detenção de arma proibida.

               III. Escolha e determinação da medida concreta das penas a aplicar

a) Da Escolha da pena

(…)

Finalmente, e uma vez que se encontram determinadas as penas principais a aplicar ao arguido, cumpre agora aferir se deverá ser aplicada alguma das penas acessórias previstas no artigo 152º do Código Penal.

Como é sabido, o artigo 152º do Código Penal, no seu n.º 4, estatui que, “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.

Por seu turno, o n.º 5 do mesmo preceito esclarece que “a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.

Assim, considerando adequada a medida concreta já fixada para a pena principal em que o arguido foi condenado por ter incorrido na prática do crime de violência doméstica, decide o Tribunal Colectivo aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida BB pelo período de três anos e seis meses, devendo a referida pena acessória ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, caso seja concedida a liberdade condicional ao arguido antes de terminado o prazo ora fixado.

Fica o arguido proibido de contactar por qualquer meio a ofendida, seja telefone, e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente.

               (…)

               V. Pedido de indemnização cível

               (…)

               VI. Decisão

Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, este Tribunal Coletivo decide:

I – EM SEDE DE ILICÍTOS CRIMINAIS

A) - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 26º, 152, n.ºs 1 al. a), 4 e 5 todos do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão;

B) - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida p.e p. pela al. d) do art.º 86º da Lei das Armas na pena de oito meses de prisão;

C) - Proceder ao cúmulo jurídico das duas penas aplicadas em a) e b) deste dispositivo e, em consequência, condenar o arguido AA na pena única de três anos e seis meses de prisão.

D) - Determinar que o cumprimento da proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, seja telefone, seja e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente e seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância caso seja concedida liberdade condicional ao arguido antes de decorrido o período de três anos e seis meses;

E) Condenar o arguido AA nas custas da acção penal, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC’s.

II) - NA PARTE CÍVEL:

O Tribunal Colectivo decide julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado e, consequentemente:

a) - Condenar o demandado AA a proceder ao pagamento à demandante BB da quantia de 10.000,00 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescida dos juros à taxa legal, actualmente de 4% (Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril), que se vençam a partir da data da presente sentença até integral pagamento;

b) - Condenar o demandado AA a proceder ao pagamento à demandante BB da quantia de € 1.437,54, a título de danos patrimoniais sofridos, quantia a que acrescerão os respectivos juros vencidos e vincendos desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento.

c) - Absolver o demandado do demais contra si peticionado;

d) - Custas a cargo do demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento (cf. art.º 527º do Cód. Processo Civil)»

3. Apreciação do recurso.

            Pese embora as questões colocadas no recurso e que, como dissemos, delimitam o objeto do mesmo, outra se coloca, de conhecimento oficioso e que, atentas as consequências a retirar da mesma, cabe conhecer em primeiro lugar por afetarem o conhecimento das demais.

           

3.1. Da nulidade da sentença por força do disposto no artigo 379º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal estabelece, no seu artigo 379º, um regime específico das nulidades da sentença.

Assim, e nos termos das três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º [1. a)]; quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos artigos 358º e 359º [1.b)], e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia [1. c)].

Acrescenta o número 2 deste mesmo preceito legal que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.

            A propósito deste preceito legal, refere o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 1183 “Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso, a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser…conhecidas em recurso».

            (…) “Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias, quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior”.         

            Como se disse, e no que aqui nos importa, o artigo 379º nº 1 alínea a) é do seguinte teor:

Artigo 379.º

Nulidade da sentença

1 – É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º ou, (…)

Por seu turno, estabelece o artigo 374º nº3 alínea b), do Código de Processo Penal:

3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:

(…)

b) A decisão condenatória ou absolutória;”

Como assinala José Mouraz Lopes[2] em anotação àquele primeiro preceito: “A razão de ser da norma pode sustentar-se na consagração de um regime de invalidade específico da sentença, tendo em conta que estão em causa as questões nucleares do ato decisório, nomeadamente a omissão da fundamentação e do dispositivo na sentença ou acórdão. São essas situações/patologias, nomeadamente a sua natureza jurisdicional estrutural, face a outros regimes de vícios de atos e respetivas consequências identificados no CPP, que estão na base da estrutura autónoma fixada para a nulidade. Recorde-se que a sentença é o ato decisório que conhece a final do objeto do processo”.

Neste contexto, o dispositivo da sentença surge como parte essencial por nele se condensar aquilo que é a decisão do Tribunal quanto às questões concretas submetidas à sua apreciação. Ali o Tribunal se pronuncia de forma clara e expressa sobre o objeto do processo. Na parte criminal, sobre as imputações que são feitas ao Arguido na acusação ou pronúncia e, na parte cível, sobre a situação do demandado em face do pedido de indemnização formulado e liminarmente admitido.

 

O arguido/demandado é sujeito a julgamento tendo por base uma determinada imputação criminal ou um pedido de condenação de natureza cível e, realizado o mesmo, é fundamental, quer para este, quer para o ofendido/demandante, quer ainda para o sistema de justiça e para a comunidade em geral, que a sua situação seja definida não restando dúvidas sobre aquilo que é essencial, isto é, sobre a sua condenação e/ou absolvição em face daquilo que é o objeto do processo delineado na acusação/pronúncia e pedido de indemnização.

Por isso, a omissão da condenação e/ou absolvição [nº3 alínea b) do artigo 374º do Código de Processo Penal] no dispositivo da sentença, é cominada com nulidade pelo artigo 379º do Código de Processo Penal, sendo a omissão de outras referências que devem constar do dispositivo [disposições legais aplicáveis (a); indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas (c); ordem de remessa de boletins ao registo criminal (d) e data e as assinaturas dos membros do tribunal (e)],  configuradas como vícios da decisão que não a afetam de forma tão essencial, pelo que constituem meras irregularidades.

Isso mesmo refere o autor citado[3]:

Na alínea b) do nº3 do artigo 374º está em causa a parte nuclear do dispositivo. Na omissão do dispositivo, como causa de nulidade, está em causa, apenas a omissão de uma das suas componentes, qual seja a existência da decisão condenatória ou absolutória, que nele deve constar (Cf. Comentário art.374º). Trata-se da componente do dispositivo que fixa a essência da decisão e consequentemente o caso julgado. Nesse sentido a sua omissão só pode conformar uma nulidade. Trata-se também aqui da fixação de um regime específico de nulidade semelhante ao vigente no Código de Processo Penal italiano, conforme decorre do seu artigo 546, 3. A omissão dos restantes elementos que devem constar do dispositivo comporta apenas uma irregularidade.”

Compulsado o acórdão recorrido, emergem do mesmo, no que ao dispositivo concerne, duas omissões, uma relativa à condenação e outra, relativa à absolvição, tendo em conta aquilo que, no corpo do acórdão efetivamente, se decidiu.

Quanto à condenação, o Tribunal a quo, não dando, aliás, cumprimento ao determinado no acórdão deste Tribunal da Relação, omitiu a menção expressa de condenação do arguido numa pena acessória, mencionando apenas a sua forma de execução.

Concretizando.

Constando do primeiro acórdão proferido pelo Tribunal a quo, no que ao dispositivo concerne e, nessa parte, à pena acessória: “D - Determinar que o cumprimento da proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância caso seja concedida liberdade condicional ao arguido antes de decorrido o período de três anos e seis meses;”, este Tribunal da Relação determinou, nesta parte, o seguinte (transcrição):

“3.1.3. Ainda no plano das exigências ditadas pelo artigo 374.º do CPP, importa dar nota do que resulta do seu n.º 3, alínea c), ao determinar que o dispositivo da sentença (ou acórdão, como é o caso) deve conter a decisão condenatória ou absolutória. Isto sob pena de a decisão ser nula, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP. 

Ora, em relação à pena acessória, verifica-se que na fundamentação do acórdão recorrido consta que o tribunal a quo decide aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida BB, pelo período de três anos e seis meses, devendo a referida pena acessória ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, caso seja concedida a liberdade condicional ao arguido antes de terminado o prazo aí fixado, e que fica o arguido proibido de contactar por qualquer meio a ofendida, seja telefone, seja e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente.

Sucede, todavia, que no dispositivo apenas a alínea D trata da referida pena acessória, constando dessa alínea que o tribunal colectivo decide determinar que o cumprimento da proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância caso seja concedida liberdade condicional ao arguido antes de decorrido o período de três anos e seis meses.

Como se constata, o dispositivo não reflecte tudo o que em sede de fundamentação foi determinado, ficando por referir que o tribunal a quo decide aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida BB, pelo período de três anos e seis meses, ficando o arguido proibido de contactar por qualquer meio a ofendida, seja telefone, seja e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente.

Assim, atendendo ao requisito que o artigo 374.º, n.º 3, alínea b), do CPP impõe para o dispositivo do acórdão e à consequência que o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, prevê para a sua inobservância, afigura-se a esta Relação que, baixando os autos à primeira instância para os fins determinados em 3.1.1., deverá também o tribunal a quo suprir as insuficiências do dispositivo, nos termos aqui indicados.” (sublinhado nosso)

Ora, compulsado o acórdão proferido na sequência daquela decisão, constata-se que a omissão se mantém.

Com efeito, também aqui, pese embora no corpo do acórdão o Tribunal a quo discuta e fundamente a decisão de condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos, prevista no artigo 152º nº4 do Código Penal, omite tal condenação no dispositivo.

Consta do acórdão que (transcrição):

“Finalmente, e uma vez que se encontram determinadas as penas principais a aplicar ao arguido, cumpre agora aferir se deverá ser aplicada alguma das penas acessórias previstas no artigo 152º do Código Penal.

Como é sabido, o artigo 152º do Código Penal, no seu n.º 4, estatui que, “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.

Por seu turno, o n.º 5 do mesmo preceito esclarece que “a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.

Assim, considerando adequada a medida concreta já fixada para a pena principal em que o arguido foi condenado por ter incorrido na prática do crime de violência doméstica, decide o Tribunal Colectivo aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida BB pelo período de três anos e seis meses, devendo a referida pena acessória ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, caso seja concedida a liberdade condicional ao arguido antes de terminado o prazo ora fixado.

Fica o arguido proibido de contactar por qualquer meio a ofendida, seja telefone, e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente.” (sublinhado nosso)

Não obstante, do dispositivo do acórdão apenas consta (transcrição):

“D) - Determinar que o cumprimento da proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, seja telefone, seja e-mail, sms, carta e muito menos pessoalmente e seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância caso seja concedida liberdade condicional ao arguido antes de decorrido o período de três anos e seis meses;”

É manifesto que continua a não constar do dispositivo a expressa menção de condenação numa pena acessória, qual pena acessória e respetiva duração, quedando-se o Tribunal pela menção da forma de execução da mesma e acrescentando apenas ao texto do acórdão anulado a referência às formas de contacto com a ofendida abrangidas pela proibição.

A omissão da condenação mantem-se.

Porém, é ao nível da absolvição que a omissão do Tribunal assume dimensão a reclamar, nos termos aludidos supra, a invalidade do acórdão.

Vejamos.

O arguido vinha pronunciado, para além do mais, pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. p. pelos arts. 132º, nºs 1 e 2, al. b), 131º, 22º, nºs 1 e 2, al. c), 23º, nº 2 e 26º do Código Penal e art. 86, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, como é referido no relatório do acórdão, aliás, em cumprimento do determinado no artigo 374º nº1 alínea c) do Código de Processo Penal.

Também dando cumprimento ao disposto no nº2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo, após enumeração dos factos provados e não provados e respetiva fundamentação, indicou os motivos que fundamentam, de facto e de direito, a sua decisão de absolver o arguido da prática desse ilícito, conforme resulta do trecho que segue:

“Mas, para além disso, em sede de despacho de pronúncia foi imputada ainda ao arguido a prática de um crime de homicídio, na forma tentada na pessoa da assistente relativamente aos factos ocorridos a 3 de Junho de 2018.

Estabelece o artigo 131º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

O crime de homicídio descrito neste preceito constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida.

O bem jurídico tutelado com a referida incriminação é a vida humana.

O tipo objectivo de ilícito do homicídio consiste em matar outra pessoa, isto é o tipo objetivo de ilícito do homicídio realiza-se com a morte de outra pessoa, ou seja, com o causar a morte de pessoa diferente do agente.

Quer isto dizer que o causar a morte significa que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objectiva do resultado à conduta. Com absoluta irrelevância dos meios e do modo através dos quais a morte é provocada: directa ou indirectamente, por conduta activa ou omissiva, sejam utilizados meios físicos ou psíquicos, resulte aquela de encurtamento do período de vida de uma pessoa sã ou do apressamento do momento da morte de um moribundo, ocorra ela imediatamente ou após um período longo relativamente à acção ou omissão. 

É um crime de dano, quanto ao bem jurídico, e de resultado, quanto ao objecto da acção.

A vida humana termina com a morte cerebral, isto é, a cessão irreversível das funções do tronco cerebral, nos termos do art.º 2º da Lei 141/99, de 28.08, conjugado com o art.º 12º da Lei 12/93, de 22.04, e a declaração da Ordem dos Médicos de 1.09.94.

O tipo subjectivo de ilícito do homicídio previsto no art.º 131º exige o dolo em qualquer uma das suas formas contempladas no art.º 14º, isto é, directo, necessário ou eventual.

É certo que no caso não se discute o preenchimento do tipo na sua forma consumada, mas sim a tentativa.

Ora, nos termos previstos no artigo 22º, n.º 1, do Código Penal, “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.

Por seu turno, acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal que “são actos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores”.

Verifica-se assim a tentativa de homicídio quando iniciada a conduta que visa a pôr termo à vida de uma pessoa, o resultado material não se produz, isto é, não ocorre a morte da aludida pessoa que o agente visava aniquilar.

A tentativa de cometimento do homicídio é sempre punível por força do disposto no n.º 1 do art.º 23º do CP que estatui que: “salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão”.

               Dito isto olhemos para o caso em apreço.

As lesões que foram infligidas à assistente não foram de molde a provocar-lhe a morte, consideramos que as mesmas ocorreram dentro do mesmo contexto de violência doméstica que o arguido e assistente vinham vivendo.

De salientar que não nos parece ter existido aqui uma resolução criminosa diferente por parte do arguido no sentido de se decidir a colocar termo à vida da assistente, tanto assim é que teria tido várias ocasiões mais propícias para o efeito, desde logo à noite (tendo o mesmo na sua posse a chave do atelier). E veja-se que o arguido, não obstante ter a chave do estabelecimento para entrar (dito pela própria assistente) não entrava se não fosse esta a abrir-lhe a porta.

Não consideramos que existiu aqui uma pluralidade de resoluções criminosas caso contrário, as lesões da vítima teriam necessariamente que ser outras bem mais graves assim como as sequelas.

A intenção de matar pressupõe necessariamente um “ir mais além”. A própria vítima referiu saber da existência do bastão e que o mesmo se encontrava em casa do casal precisamente para lhe causar medo e terror. Atentar contra a vida humana é um plus significativo relativamente a martirizá-la com maior ou menor intensidade.

Sem dúvida que as agressões do arguido iam em escalada e provavelmente um dia teria consequências mais trágicas, no entanto, não nos parece que neste dia o arguido tivesse agido com o propósito de tirar a vida da assistente pelo que acima se deixou dito.

Assim sendo, não se tendo prova quanto ao elemento subjectivo, teremos que absolver o arguido da prática de um crime de homicídio na forma tentada, o que se decide.”

Não obstante, o Tribunal a quo omitiu no dispositivo do acórdão qualquer menção a esta absolvição, como se constata da transcrição supra do mesmo.

É indubitável, pois, que ocorre a nulidade do acórdão prevista no artigo 379º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal, nulidade essa que carece de suprimento.

Uma nota para dizer que, a tratar-se, pelo menos neste segundo caso, de omissão decorrente de lapso do Tribunal, a mesma é insuscetível de ser configurada como um dos casos de correção da sentença a que alude o artigo 380º do Código de Processo Penal.

Com efeito, estabelece o preceito em causa que:

1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;”

            Portanto, o legislador, por considerar não estarem em causa elementos essenciais da decisão, atribuiu ao Tribunal de recurso (nº2) a possibilidade de proceder à correção da sentença, quando estejam em causa omissões relativas aos requisitos da mesma descritos no artigo 374º, mas excluindo dessa faculdade as omissões que, nos termos do artigo 379º configuram nulidades da mesma. 

            Assim, por esta via, está este Tribunal impedido de sanar as assinaladas patologias.

            Ainda quanto a eventual sanação da nulidade em causa por parte deste Tribunal de recurso, estabelece o artigo 379º nº2 do código de Processo Penal:

            “2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”

            E estabelece o artigo 414º nº4 do mesmo código que:

            “4 - Se o recurso não for interposto de decisão que conheça, a final, do objecto do processo, o tribunal pode, antes de ordenar a remessa do processo ao tribunal superior, sustentar ou reparar aquela decisão.”

            Alinhamos, contudo, com o entendimento da Doutrina e Jurisprudência no sentido de que, neste caso (omissão no dispositivo de absolvição e/ou condenação) não compete a este Tribunal de recurso proceder àquela sanação.

            Neste sentido se pronunciou o STJ no acórdão prolatado no âmbito do processo nº1193/04.3TDLSB.L2.S1 – 5ª Secção 16-05[4], ainda na vigência da redação do preceito dada pela  Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto:

            “II – A norma do art.379º nº2 do CPP, segundo a qual «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º», tem sido entendida como permitindo ao Tribunal superior suprir nulidades  no recurso; tal porém, só é possível nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer, declarando, então o tribunal de recurso suprimida na decisão recorrida a parte respeitante à questão que não podia ter sido apreciada, pois, nos demais casos, a supressão da nulidade redundaria na supressão de um grau de jurisdição”.

            Também nesse sentido se pronuncia o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes[5] mesmo em face da redação dada ao preceito pela Lei nº20/2013 de 21 de fevereiro, sustentando que:

            “Por efeito da alteração introduzida ao texto do nº2 pela Lei nº20/2013, de 21 de fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da atual letra da lei «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las …»), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja suscetível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na grande maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na supressão de um grau de jurisdição.”

            Também Mouraz Lopes[6], reportando-se ao artigo 379º nº2 do Código de Processo Penal se refere à possibilidade de sanação do vício, mesmo por parte do tribunal recorrido, em moldes muito restritos:

            “O nº2 do artigo por via da remissão que efetua para o artigo 414º/4 permite que o tribunal recorrido em caso de nulidade da sentença supra as situações que a originam. Trata-se de um mecanismo atribuído ao juiz que admite o recurso no sentido de apreciar no próprio despacho em que isso ocorra as questões suscitadas ou por ele detetadas oficiosamente, numa clara consequência do princípio da celeridade processual, sem que seja posto em causa qualquer outro princípio fundamental (defendendo a inconstitucionalidade desta possibilidade normativa, Albuquerque, 2009. P. 962)

            Ainda sobre esta questão, mas a propósito da possibilidade de sanação da nulidade por parte do Tribunal de recurso, escreve Paulo Pinto de Albuquerque[7]:

            “O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá ser exercido negativamente. Isto é, o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer (nulidade da 2ª parte da alínea c) do nº1). Neste caso, o tribunal superior exerce o seu poder de suprimento da nulidade simplesmente declarando suprimida na sentença recorrida a parte atinente à questão que não deveria ter sido conhecida. Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição (acórdão do TRL, de 14.4.2003, in CJ, XXVIII, 2, 143, e acórdão do TRE, de 8.7.2003, in CJ, XXVIII, 4, 252). A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao tribunal a quo para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, completando-se a sentença com as “menções” em falta (nulidade da alínea a) do nº1) ou conhecendo-se nela das “questões” que o tribunal deveria ter apreciado (nulidade da 1ª parte da alínea c) do nº1). Não deve, pois, nestes casos anular-se o próprio julgamento (acórdão do STJ , de 31.5.2001, in SASTJ, 51, 97). Do exposto resulta também evidente a inaplicabilidade no processo penal da disposição do artigo 715, nº1 do CPC.”  

            Atento tudo o exposto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b) e 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, mostra-se o acórdão recorrido ferido de nulidade a qual, nos termos explicitados supra, não pode ser sanada por este Tribunal de recurso sob pena de assim, ser negado um grau de recurso, violando-se por essa via o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.  

Assim sendo, devem os autos baixar à primeira instância para que aí sejam supridas as assinaladas omissões do dispositivo.

            Tal como já havia decidido este Tribunal da Relação no primeiro acórdão proferido, “(…) resta referir que, face à sua natureza e consequências, a nulidade do acórdão recorrido prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso do arguido e, bem assim, no recurso interposto pelo Ministério Público.” 

            III. DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 4º Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em declarar nulo o acórdão recorrido por omissão, no dispositivo, da decisão condenatória e absolutória nos termos assinalados supra e, em consequência, determinam a sua substituição por outro que supra a apontada nulidade.

            Sem tributação.

                                                                       *

                                                                               (Texto elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)


Coimbra, 06-03-2024

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (Relatora)

Cândida Martinho (1ª Adjunta)

Teresa Coimbra (2ª Adjunta)

(Data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


           





[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] In “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo IV, Almedina, setembro de 2022, página 796.
[3] Obra citada página 798/799
[4] Citado pelo Juiz Conselheiro Pereira Madeira em anotação ao artigo 414º do código de processo Penal, in “Código de Processo Penal Comentado”, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, página 1320
[5] In “Código de Processo Penal Comentado”, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, página 1133
[6] In “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo IV, Almedina, setembro de 2022, página 802.
[7] In “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição atualizada, página 962/963