Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/10.6TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DISPENSADO
Legislação Nacional: ARTIGOS 135º CPP E 87º Nº 4 DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Sumário: Mostrando-se essencial para a sua defesa enquanto arguida no processo em que se discute a insolvência dolosa da empresa em que exerceu as suas funções profissionais de advogada, o depoimento da requerente, justifica-se a quebra do segredo profissional, a fim de que possa depor sobre factos de que teve conhecimento em tal qualidade.
Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi deduzida acusação imputando aos arguidos A..., B...e C..., sócios da D..., Ldª, a prática, em co-autoria material, de um crime de insolvência dolosa, dos art. 227º, nº 1, al. a), b) e c) do Código Penal e 186º, nº 1 e 2, do CIRE.

À arguida E..., que trabalhou para a empresa insolvente como advogada, foi imputada a prática, como cúmplice dos demais arguidos, de um crime de insolvência dolosa.

2.

            A arguida E...requereu a abertura de instrução e como diligência de prova a realizar requereu a sua própria inquirição e a inquirição de uma testemunha.

            A instrução foi admitida e foi designada data para realização das diligências de prova.

            Entretanto a arguida juntou aos autos requerimento dizendo que não podia prestar declarações, por não ter obtido dispensa de sigilo profissional.

            Chegada a data da diligência foi a mesma adiada para que fosse obtida resposta ao pedido de dispensa de sigilo profissional, submetido pela arguida à Ordem dos Advogados.

            Foi junta ao processo informação proveniente da AO dizendo já ter dado resposta ao solicitado, cujo conteúdo disse não mencionar por a mesma ser confidencial.

            Face ao exposto a arguida requereu a quebra do sigilo profissional, ao abrigo do art. 135º do C.P.P.

            O arguido A... pronunciou-se contra aquela dispensa.

            Começou por dizer que o deferimento do pedido dependia de a possibilidade de prestação de depoimento ter sido recusada pela OA e no caso não se sabe qual foi a sua posição. Para além disso, diz, também não se verifica o fundamento de haver dúvidas sobre a legitimidade da recusa porque a arguida requerente nunca, sequer, iniciou a prestação do depoimento para, no seu decurso, poder recusar responder a uma qualquer questão.

3.

Sobre o pedido o tribunal requerido decidiu suscitar o presente incidente por entender que as objeções opostas não procedem: refere que embora não se conhecendo as limitações impostas pela OA à arguida no que toca à possibilidade de prestar declarações, este desconhecimento, que deriva da posição tomada por esta ordem, não pode prejudicar o direito de defesa da arguida requerente de prestar declarações.

4.

O Ministério Público não se pronunciou.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


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DECISÃO

Os arguidos A..., B...e C... dividiam entre si parte do capital social da D..., Ldª.

A gerência competia aos arguidos A...e C..., sendo que todas as suas decisões eram tomadas com o conhecimento da arguida Maria Vieira.

Quanto à arguida E..., esta desempenhou as funções de advogada da D..., Ldª, desde, pelo menos, Maio de 2005.

Entretanto foi declarada a insolvência da empresa, a arguida E...está, também, acusada da prática, como cúmplice, do crime de insolvência dolosa e é neste enquadramento que requereu a dispensa de segredo profissional.

Nos termos do nº 1 do art. 135º do C.P.P., que versa sobre o segredo profissional, «os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».

Acrescenta o nº 2 que «havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento».

Do texto da norma parece resultar, conforme refere o arguido A..., que o incidente apenas se poderá suscitar perante uma concreta recusa de depor. Quando esta recusa ocorrer o tribunal o tribunal ordenará a prestação de depoimento se concluir, realizadas que sejam as investigações necessárias, que essa recusa é ilegítima.

Porém, previamente a esta decisão há que ouvir o organismo da classe, conforme determina o nº 4 da norma, que estabelece que a decisão «é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa …».

No caso a arguida requerente não recusou depor, isto é, ainda não recusou responder a qualquer questão invocando, como fundamento de recusa, o segredo profissional. Aliás, até ao momento nem sequer teve início o seu depoimento.

No entanto, não nos parece que este facto obstaculize o prosseguimento do incidente.

E dizemos isto pelo seguinte: é manifesto que a requerente quer depor e também é claro que, no juízo e ela própria formulou, qualquer declaração que faça sobre o objeto do processo estará a coberto do segredo profissional.

E isto é fácil de perceber: a requerente está acusada de, no exercício das suas funções de advogada, ter sido cúmplice do crime de insolvência dolosa. Percebe-se, pois, que as suas declarações como arguida contenderão, inexoravelmente, com o segredo profissional derivado do exercício daquelas funções.

Por outro lado também não sabemos, é verdade, qual foi a resposta dada pela OA ao pedido formulado pela arguida, de dispensa de segredo com vista à prestação de declarações como arguida.

Mas também aqui é fácil perceber que a resposta ao pedido foi negativa, pois se assim não fosse a arguida logo teria dito que poderia, finalmente, depor.

Entendemos, portanto, que os pressupostos formais do prosseguimento do incidente estão presentes no caso.

Agora, quanto ao pressuposto substancial, o nº 3 do art. 135º do C.P.P. dispõe que o tribunal decidirá pela prestação do depoimento com quebra do segredo profissional se esta se mostrar justificada «segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos …».

No caso dos autos os interesses conflituantes são, por um lado, o dever de sigilo dos advogados, cuja função é essencial à administração da justiça, conforme refere a nossa Constituição, no art. 208º, essencial ao bom desempenho da sua função e essencial para a defesa e preservação das relações entre o advogado e o seu cliente e, por outro, o interesse do Estado em realizar a justiça penal com observância de todos os princípios jurídico-constitucionais que o integram.

Mas para além destes valores essenciais, há um terceiro interesse aqui presente, que respeita aos direitos de defesa do arguido em processo penal, elevado, também, a direito constitucionalmente consagrado, no art. 32º, dos quais faz parte o direito de prestar declarações, em qualquer momento da audiência, sobre o objeto do processo, conforme estabelece o art. 343º do C.P.P.

Então, no caso, a prestação de depoimento pela arguida requerente pode ser essencial para a sua própria defesa, pelo que também o pressuposto substancial da dispensa, tal como está delineado no nº 3 do art. 135º do C.P.P., ocorre no caso presente.

Tendo a ponderação dos interesse em conflito que ser, sempre, criteriosa, entendemos que, no caso, a dispensa de segredo profissional da requerente, relativamente ao período em que exerceu as suas funções profissionais de advogada da empresa insolvente, impõe-se por esta dispensa ser essencial à defesa dos seus direitos enquanto arguida no processo em que se discute a insolvência dolosa dessa mesma empresa.

Para este desfecho também apontando o nº 4 do art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que permite ao advogado revelar factos abrangidos por aquele segredo se tal se revelar «absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes …».



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            Por todo o exposto, decide esta relação em dispensar a arguida E... do segredo profissional decorrente do exercício das suas funções de advogada para a empresa D.. Ldª. e, em consequência, determinar que preste depoimento como arguida neste processo 60/10.6TAMG, que versa sobre a insolvência dolosa desta empresa.

 

Olga Maurício (Relatora)

Calvário Antunes