Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
365/09.9TBCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
CONTRATO
CLÁUSULA PENAL
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º DO DECRETO-LEI Nº 269/98, DE 1 DE SETEMBRO; 4 NºS 1 E 2 B) DO CPC
Sumário: I – Só há erro sobre a forma de processo especial, quando o fim concreto para que processo foi utilizado não corresponde ao fim a que lei o destina.

II - A dívida de indemnização é uma dívida de valor, dado que o dinheiro é apenas o substituto ou sucedâneo do objecto inicial da prestação, porquanto é o valor que determina a quantidade.

III - Operada a conversão do débito de valor em dívida em dinheiro – quer dizer, uma vez fixado por acordo ou por decisão judicial o montante em dinheiro do débito de valor - o credor passa, a partir desse momento, a correr o risco das oscilações do valor da moeda, tal como no comum das obrigações pecuniárias.

IV - Na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato é admissível ao credor exigir do devedor a indemnização convencionada em qualquer estipulatio poena, desde que a prestação prometida pelo devedor consista numa soma pecuniária.

Decisão Texto Integral: I. Forma de julgamento do recurso.

Dado que a questão, de índole adjectiva, que constitui objecto do recurso, é notoriamente simples, declaro que aquele será julgado, liminar singular e sumariamente (artºs 701 nº 1 c) e 705 do CPC).

II. Julgamento do recurso.

1. Relatório.

Banco …, SA pediu ao Sr. Juiz de Direito do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior ao da alçada do Tribunal da Relação, que condenasse J… a pagar-lhe a quantia de € 7 746,39, acrescida de juros de mora.

Alegou, como fundamento desta pretensão, um contrato de mútuo que concluiu com o demandado.

Porém, o Sr. Juiz de Direito, notando que o autor pede determinado montante a título de cláusula penal, ou seja, uma indemnização por incumprimento contratual, e que o presente processo não serve para exigir o cumprimento de obrigações não emergentes directamente de contratos, pelo que não é possível aqui exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias resultantes de indemnização por incumprimento contratual antecipadamente fixada, concluiu pelo erro na forma de processo, aproveitando-se apenas o requerimento inicial e determinou a anulação de todos os actos praticados, com excepção apenas daquele requerimento e a sua distribuição pela 2ª espécie.

É esta decisão que o autor impugna por via do recurso de apelação – que por incorrecção manifesta dirigiu ao Tribunal da Relação – no qual pede a sua revogação e sua substituição por outra que ordene que seja conferida força executiva à petição inicial.

O recorrente condensou os fundamentos da impugnação nestas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso são os que, e síntese apertada, o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições, tendo os parâmetros de cognição representados pela decisão impugnada e pelo conteúdo das conclusões do recorrente, a questão fundamental que este Tribunal é chamado a resolver é só uma: a de saber se, realmente, o recorrente errou quanto a forma de processo aplicável. Concluindo-se por esse erro – a improcedência do recurso é irrecusável; assentando-se no acerto da forma processual utilizada, a procedência do recurso é meramente consequencial.

A resolução do problema enunciado vincula, naturalmente, a ponderação do procedimento de determinação da forma de processo adequada e da finalidade da acção declarativa de condenação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação.

3.2. Procedimento de determinação da forma de processo.

O processo é comum ou especial (artº 460 nº 1 do CPC). O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum aplica-se a todos os casos a que não corresponda processo especial (artº 460 nº 2 do CPC).

Dado que não existe um processo especial, mas uma multiplicidade de processos especiais, cada um dos quais apresenta em relação aos outros diferenças sensíveis de forma, e como cada processo especial deve ser aplicado ao caso para o qual a lei expressamente o estabeleceu, o problema da forma de processo empregar em cada caso concreto põe-se assim: ao caso corresponde, segundo a lei, algum processo especial?

A resposta é dada pelo procedimento seguinte: examina-se se entre o quadro dos processos especiais há algum que se ajuste ao caso de que se trata; averigua-se se, para o caso vertente, a lei estabeleceu algum processo especial. Se a averiguação conduz a um resultado positivo, lança-se mão do processo especial; se o resultado é negativo concluiu-se, de forma segura, que tem de empregar-se processo comum.

A consequência do erro na forma de processo consiste, regra geral, na anulação, maior ou menor, dos actos praticados (artº 199 nº 1 do CPC). O princípio geral é este: anulam-se unicamente os actos que não puderem ser aproveitados.

Portanto, o princípio, claramente ordenado por uma ideia de máximo aproveitamento dos actos processuais, é o seguinte: o erro na forma de processo não importa, em regra, a anulação de todo o processo e, portanto, não se resolve, em regra, numa excepção dilatória (artº 288 nº 1 b) do CPC).

Pode, porém, excepcionalmente, ter esse efeito em dois casos: quando nada se puder aproveitar, por haver uma incompatibilidade irredutível entre a forma que se seguiu e a que devia seguir-se – como sucede quando a petição não puder ser aproveitada para a forma de processo que devia adoptar-se; quando o aproveitamento do processo, embora possível, redunde numa diminuição de garantias do réu (artº 199 nºs 1 e 2 do CPC)[1].

                Fora destes casos excepcionais, o referido erro tem, portanto, esta consequência limitada: a anulação dos actos que não puderem ser aproveitados, e a prática daqueles que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida na lei.

                Mas quando é que, realmente se comete a nulidade de empregar processo comum para caso em que a lei não o admite?

                Como o processo comum há-de aplicar-se a todos os casos a que não corresponda processo especial, segue-se que cada processo especial tem a índole de forma excepcional de processar, contraposta à forma comum. Por outras palavras: cada processo especial é, em confronto com o processo comum, uma excepção à regra. A regra é o processo comum, nalguma das suas três formas: ordinário, sumário e sumaríssimo; cada um dos processos especiais constitui uma excepção ou desvio a essa regra.

                E como, evidentemente, a amplitude da regra só se conhece depois de recortadas as excepções, daí vem que o campo de aplicação dos vários processos especiais se determina directamente – ao passo que o campo de aplicação do processo comum se obtém por exclusão de partes.

O caso ou casos para que o processo especial foi criado pela lei estão designados pelo fim; o fim a que se destina qualquer processo é-nos dado pela respectiva petição inicial, dado que é neste articulado que o autor ou requerente marca a finalidade que se propõe atingir – e marca-a, formulando o pedido que pretende ver acolhido pelo tribunal[2]; assim, deve empregar-se processo especial quando o pedido formulado na petição inicial corresponde precisamente ao fim para o qual a lei estabeleceu esse mesmo processo[3].

                Perante determinado caso concreto o problema de forma do processo a empregar põe-se assim: ao caso corresponde algum processo especial? Vai examinar-se se, entre o quadro dos processos especiais há algum que se ajuste ao caso de que se trata: vai apurar-se se, para o caso vertente, a lei estabeleceu algum processo especial.

                Se a averiguação conduz a resultado positivo, não há que hesitar: lança-se mão do respectivo processo especial; se o resultado é negativo, conclui-se com segurança: tem de empregar-se processo comum. Obtida esta certeza, determina-se de seguida qual, dentre das três formas de processo comum, deve fazer-se uso, o que, de um modo geral, é função do valor da causa.

3.3. Finalidade da acção declarativa especial de condenação destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior ao da alçada do Tribunal da Relação.

A acção especial de condenação destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior ao da alçada da Relação - como a sua designação logo indelevelmente inculca – visa, evidentemente, como é característico das acções condenatórias, um duplo objectivo: o reconhecimento do direito a uma prestação pecuniária e a imposição ao réu devedor do cumprimento dessa prestação (artºs 1 do Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, 4 nºs 1 e 2 b) do CPC).

Nitidamente ordenado por um propósito de simplificação processual e de descongestionamento dos tribunais, este processo especial apresenta, no tocante à composição da acção por revelia do réu – i.e., por abstenção definitiva de contestação - uma característica notável. A consequência quanto à decisão por revelia operante – consequência que se produz ex-lege e não ex-voluntate – consiste no seguinte: a revelia operante implica a concessão, com valor de decisão condenatória, de força executiva à petição inicial, excepto no caso de ocorrência de excepções dilatórias evidentes ou de manifesta improcedência do pedido (artº 2 do Regime dos Procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação).

Esta acção especial tem, portanto, por fim obter o reconhecimento do direito à realização de uma prestação, no qual se contém uma faculdade de exigir a prestação ao devedor e um correspondente poder de adquirir a prestação realizada. Mas essa prestação só pode ter um objecto: a entrega de dinheiro. Há-de, portanto, tratar-se de uma obrigação pecuniária – i.e., uma obrigação em que se atende ao valor da moeda devida e não às espécies concretamente determinadas ou ao género de certas espécies, com abstracção do seu valor liberatório ou aquisitivo[4]. O recurso a esta acção não é, pois, admissível para exigir o cumprimento, por exemplo, de uma obrigação de informação, de prestação de facto ou de entrega de coisa, etc.

E a única fonte admissível dessa obrigação pecuniária é um contrato ou contratos. Como a pretensão – imperativamente pecuniária - actuável através do procedimento tem necessariamente de emergir de um contrato ou contratos, segue-se que a causa petendi, que o requerente deve expor de forma sucinta, deve ser integrada pelos factos que caracterizam esse contrato, do qual deriva o direito de crédito e consequentemente o direito de obrigação. Esses factos são, naturalmente, as declarações negociais convergentes das partes.

Por último, o valor do pedido deve ser inferior ao da alçada da Relação que, actualmente, é de € 30.000,00 (artº 31 nº 1 da Lei nº 52 2008, de 28 de Agosto). O valor que releva – note-se – é do pedido e não os do contrato ou contratos que lhe servem de causa de pedir – embora não seja admissível ao credor o fraccionamento do valor de um único contrato de modo a instaurar vários procedimentos com o fim de obstar a que o devedor se defenda num processo que ofereça melhores garantias de defesa e nele formule pedido reconvencional.

O contrato de que a obrigação pecuniária emerge pode, naturalmente, conter – e contém muitas vezes – elementos acidentais, i.e., cláusulas ou estipulações acessórias: as cláusulas ou estipulações negociais que, não sendo indispensáveis para caracterizar o tipo abstracto de negócio - mútuo, compra e venda, empreitada, etc. – ou para individualizar a sua entidade concreta, todavia, não se limitam a reproduzir disposições legais supletivas, antes se tornam necessárias para que tenham lugar os efeitos jurídicos a que tendem[5].

Entre as cláusulas típicas – tanto social como juridicamente – encontra-se a cláusula penal (artºs 810 a 812 do Código Civil).

A cláusula penal, em sentido amplo ou lato, consiste na convenção por que o devedor promete ao seu credor uma prestação para o caso de não cumprir, ou de não cumprir perfeitamente, a obrigação[6].

                A doutrina tradicional construía a cláusula penal como um instituto unitário e com uma dupla função: de fixar antecipadamente a indemnização; de incentivar ou compelir o devedor ao cumprimento.

                A doutrina e jurisprudência mais recentes quebraram a unidade do conceito, separando as cláusulas penais em indemnizatórias e compulsórias: nas primeiras, a convenção das partes tem por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento definitivo, de mora ou de cumprimento defeituoso; nas segundas, aquele acordo tem por escopo compelir o devedor ao cumprimento ou sancionar o não cumprimento[7]. Portanto, ao lado da pena convencional tradicional ou da cláusula penal estrita, às partes é lícito estabelecer uma pura e simples liquidação antecipada da indemnização a que, eventualmente, em face de uma patologia contratualmente identificada, haja lugar (artº 810 nº 1 do Código Civil).

                Uma experiência velha de séculos, torna patente que as partes, quando convencionam uma cláusula penal, não estão a pensar na hipótese de vir a sofrê-la, fiadas em que, em qualquer caso, cumprirão o contrato. Isto explica que aceitem subscrever cláusulas penais exorbitantes ou excessivas que, no momento em que são chamadas a actuar, colocam delicados problemas de justiça[8].

                Neste plano, assumem, evidentemente, particular relevância, os mecanismos de controlo jurisdicional das cláusulas penais, de que constitui claro exemplo, a reductio ad aequitatem, disposta na lei civil geral (artº 812 do Código Civil). Todavia, as apertadas cautelas com a que lei rodeia a redução equitativa das cláusulas penais restringem naturalmente o âmbito da tutela que disponibiliza. Esta pode, porém, ser alargada através do esquema referente às cláusulas contratuais gerais (artº 19 c) da LCCG).

Seja como for, a poena, traduz-se, frequentemente, numa quantia certa, em juros especiais (agravados) ou na entrega à contraparte de determinada quantia por cada dia de mora. Mas bem pode, porém, revestir outras modalidades, podendo, inclusivamente, não ter por objecto uma quantia em dinheiro e, portanto, a prestação prometida pelo devedor pode ser não pecuniária[9].

Este viaticum habilita, com suficiência à resolução da questão concreta controversa, objecto do recurso.

3.4. Concretização.

Na espécie, o recorrente invocando como causa petendi um contrato de mútuo que conclui com o demandado, pediu se impusesse a este o dever de lhe entregar a quantia de € 7 746,39, acrescida de juros de mora. Existe, aparentemente, uma coincidência perfeita entre o fim a que, segundo a lei, o processo se destina e o fim para o qual o autor o utilizou. Esta acção especial serve para pedir o cumprimento de uma obrigação pecuniária, de valor inferior ao da alçada do Tribunal da Relação, emergente de um contrato, e foi precisamente par este fim que o recorrente o aproveitou: vê-se pela petição inicial que o recorrente, fundado num contrato de mútuo, pediu a condenação do demandado a entregar-lhe € 7 746,39.

Obtempera, porém, a decisão recorrida que este processo especial não serve para exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias resultantes, designadamente, de responsabilidade contratual, ou da cláusula penal, quando convencionada a título de indemnização por incumprimento contratual antecipadamente fixada.

Realmente, alguma doutrina sustenta que o procedimento em apreço não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes de responsabilidade civil contratual nem é susceptível de instrumentalizar a formulação de um pedido relativo a uma cláusula penal – embora só da cláusula penal de escopo indemnizatório, estipulada para o caso de incumprimento do contrato: o pedido assente numa cláusula de finalidade estritamente compulsória, por se estar perante uma sanção aplicável sempre que se verifique um facto contratualmente previsto, esse, já seria admissível[10].

 A razão material que alimenta esta restrição da finalidade do procedimento é, patentemente, esta: o facto de a obrigação de indemnização ser uma dívida de valor.

Dívidas há que, sendo embora solvíveis em dinheiro, não têm directamente por objecto o dinheiro mas atribuição de um poder aquisitivo de uma prestação de outra natureza. Tal é, justamente, o caso da obrigação de indemnizar – quando a indemnização se faz em dinheiro – da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sine causa, da obrigação de alimentos, etc. A particularidade relevante da dívida de valor é a de não lhe ser aplicável o princípio nominalista e de, consequentemente, ser admissível fixação do seu montante em momento posterior ao da constituição da respectiva obrigação (artº 550 do Código Civil).

Trata-se, em geral, de obrigações ex-lege em que está primariamente em causa é a reintegração de um património ou a substituição do valor de um bem. Por isso antes da operação de liquidação do débito em moeda legal, há que proceder à avaliação e os critérios dessa avaliação não estão de antemão determinados: estas dívidas não seriam, pois, originariamente dívidas de dinheiro – mas, segundo a terminologia corrente, dívidas de valor. A dívida de indemnização não é, pois, uma dívida pecuniária em sentido estrito, mas uma dívida de valor: o dinheiro é apenas o substituto ou sucedâneo do objecto inicial da prestação, porquanto é o valor que determina a quantidade.

Uma vez, porém operada a conversão do débito de valor em dívida em dinheiro – quer dizer, uma vez fixado por acordo ou por decisão judicial o montante em dinheiro do débito de valor - o credor passa, a partir desse momento, a correr o risco das oscilações do valor da moeda, tal como nas outras obrigações pecuniárias[11].

É, pois, o carácter de dívida de valor da indemnização que, justifica, no ver da concepção apontada, que, no procedimento, se tenha por inadmissível a exigência da cláusula penal de escopo exclusivamente indemnizatório.

Mas há boas e várias razões para não ter esta proposta de solução por exacta.

A afirmação de que este procedimento não serve para exigir a realização de prestações pecuniárias emergentes de uma responsabilidade ex-contractu, merece a mais funda das reservas.

Pense-se na mora do devedor no cumprimento, por exemplo, da obrigação de restituição da quantia lhe foi mutuada pelo credor. Essa mora é um acto ilícito e, portanto, a primeira consequência que dele emerge é, naturalmente, uma imputação de danos, constituindo-se o devedor na obrigação de indemnizar todos os prejuízos que, com o atraso, tenha causa ao credor (artº 804 nº 1 do Código Civil). Nas obrigações pecuniárias a lei entende que há sempre danos e fixa o seu montante no equivalente aos juros legais, regra que só não tem aplicação quando a própria obrigação vença juros superiores aos legais, altura em que se mantêm na mora ou quando, por cláusula penal, as partes tivessem convencionado juro moratório superior (artº 806 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Portanto, a indemnização moratória dos danos causados pelo retardamento, pelo mutuário, da sua obrigação de restituição da quantia mutuada, assenta, nitidamente, numa responsabilidade obrigacional.

Sendo isto inegavelmente exacto, então, em boa lógica, de harmonia com a doutrina apontada, no processo considerado não seria admissível ao credor, fundado na mora do devedor no cumprimento da obrigação pecuniária primária – v.g., de restituição do capital mutuado – exigir do devedor a indemnização moratória correspondente aos juros legais.

Sendo, todavia, irrecusável que, neste procedimento, é admissível exigir a indemnização da mora, correspondente aos juros legais, que justificação material se pode adiantar, para impedir que o credor peça, com base numa cláusula penal, convencionada precisamente para o caso de mora, que consista num juro moratório superior, este juro mais elevado?

A cláusula penal indemnizatória – quer tenha sido convencionada para o simples retardamento da realização da prestação, quer tenha sido estipulada para o cumprimento definitivo da obrigação correspondente – produz dois efeitos essenciais: a inversão do ónus da alegação e da prova da existência e da extensão dos danos decorrentes do não cumprimento; a fixação e a limitação do dever de indemnizar.

Quando se convenciona uma cláusula penal pecuniária que defina ne varietur o valor da indemnização devida ao credor em caso de não cumprimento, a convenção não se limita a estabelecer, por acordo prévio, o valor dessa reparação, mas antes produz estoutro efeito fundamental: opera a conversão da dívida de valor em débito em dinheiro, fixa o montante em dinheiro do débito de valor e, a partir desse momento, a dívida fica deve ser tratada como uma obrigação pecuniária, tout court.

De resto, a dívida de valor é, ao fim e ao cabo, uma dívida pecuniária, uma vez que a sua liquidação é feita ou tem de ser efectuada em dinheiro[12].

Como quer que seja, ao menos para o problema da admissibilidade da sua exigência nesta espécie processual, a dívida de indemnização que decorra de uma cláusula penal de feição indemnizatória deve ser considerada uma dívida pecuniária. Só assim não será, evidentemente, a prestação prometida pelo devedor através dessa cláusula, não tiver carácter pecuniário. Obrigação pecuniária tem, pois, neste contexto, o mesmo significado com que, por exemplo, é utilizada na norma reguladora do recurso de apelação (artº 691 nº 2 d) do CPC).

Portanto, qualquer que seja a exacta finalidade da cláusula penal – indemnizatória, punitiva, mista – desde que através dela o devedor tenha prometido uma prestação em dinheiro, ao credor é lícito exigi-la através deste meio processual.

A isto objectar-se-á que a simplicidade do procedimento – que se reduz a dois articulados – não é compatível, por exemplo, com a discussão sobre nulidade ou a exigibilidade da poena e, sobretudo, com a controvérsia relativa à sua redução (artº 1 do Regime dos Procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valo não superior à alçada da Relação). O argumento tem o singular inconveniente de provar demais dado que, em boa lógica, ele levaria à inadmissibilidade do pedido assente em toda e qualquer cláusula penal e não apenas na que assuma uma feição exclusivamente indemnizatória. De resto, nos termos gerais, a restrição a dois do número de articulados é meramente aparente, em vista da faculdade que é reconhecida ao autor – imposta pelo princípio do contraditório - de, sempre que o réu lhe tenha oposto uma qualquer excepção, dilatória ou peremptória, responder no início da audiência, à respectiva matéria (artº 3 nº 4 do CPC).

Por último, a inadmissibilidade do pedido fundado numa estipulatio poena desta espécie importaria uma restrição notável da aplicabilidade do procedimento, com nítido prejuízo para as finalidades de simplificação e de descongestionamento da actividade sob cujo signo foi geneticamente concebido. Realmente, a observação da realidade económica mostra que é extraordinariamente vulgar, por exemplo, nos contratos de crédito ao consumo a estipulação de cláusula daquela espécie e natureza: em todos os contratos deste tipo, o autor seria forçosamente remetido para o processo comum, sumário pelo valor.

Todas as contas feitas, a conclusão que se tem por exacta, é, assim, a de que ao credor é admissível, nesta acção especial, exigir do devedor a indemnização fundada na estipulatio poena – em qualquer estipulatio poena – desde que a prestação prometida pelo devedor consiste numa soma pecuniária.

E, sendo isto, exacto, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que o processo foi empregado com acerto, dado que foi utilizado para o fim a que a lei o destina: o reconhecimento do direito a uma prestação pecuniária, de valor inferior ao da alçada da Relação, emergente de um contrato, e a imposição ao réu devedor do cumprimento dessa prestação.

E não havendo qualquer erro sobre a forma de processo – dada a perfeita coincidência entre o fim concreto para que o processo foi empregado com o fim abstracto designado pela lei – a revogação da decisão impugnada é meramente consequencial.

Expostos todos os argumentos, afirma-se em síntese que:

a) Só há erro sobre a forma de processo especial, quando o fim concreto para que processo foi utilizado não corresponde ao fim a que lei o destina;

b) A dívida de indemnização é uma dívida de valor, dado que o dinheiro é apenas o substituto ou sucedâneo do objecto inicial da prestação, porquanto é o valor que determina a quantidade.

c) Operada a conversão do débito de valor em dívida em dinheiro – quer dizer, uma vez fixado por acordo ou por decisão judicial o montante em dinheiro do débito de valor - o credor passa, a partir desse momento, a correr o risco das oscilações do valor da moeda, tal como no comum das obrigações pecuniárias.

d) Na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato é admissível ao credor exigir do devedor a indemnização convencionada em qualquer estipulatio poena, desde que a prestação prometida pelo devedor consista numa soma pecuniária.

As custas do recurso deverão ser satisfeitas pela parte que sucumbir a final – e na medida dessa sucumbência.

                Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julgo o recurso procedente, revogo a decisão impugnada e determino a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento do processo como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.

Custas pela parte vencida a final – e na medida dessa sucumbência - devendo a taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP.

                                                                 

Henrique Antunes

                                                           

[1] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, Coimbra Editora, Coimbra, 1945, págs. 470 e 471 e Ac. da RE de 10.03.94, CJ, II, pág. 259.

[2] A determinação da forma de processo legalmente adequada deve ocorrer face ao pedido formulado pelo autor ou requerente na petição inicial; a defesa do réu ou requerido, seja a título de impugnação seja a título de excepção, não releva para tal efeito: cfr. Acs. do STJ 03.01.81 e 03.11. 81, BMJ nºs 303, pág. 182, e 311, pág. 316, respectivamente.
[3] Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pág. 8.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 2000, pág. 848.
[5] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, pág. 35
[6] Vaz Serra, Pena Convencional, BMJ nº 67, págs. 185 a 243.
[7] António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 602, e Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Cláusulas Acessórias ao Contrato, Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar e Cláusulas Penais, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 73 a 78; Acs. do STJ de 18.11.97, BMJ nº 471, pág. 380 e 09.02.99, CJ, STJ, VII, I, pág. 97. Mais rigorosamente, distingue-se, designadamente, a cláusula penal de fixação antecipada da indemnização – que visa liquidar, antecipadamente, de modo ne varietur o dano futuro – a cláusula penal puramente compulsória – convencionada como um plus, como algo que acresce à execução específica da prestação ou á indemnização pelo não cumprimento – e a cláusula penal em sentido estrito – que visa compelir o devedor ao cumprimento através da cominação de outra prestação, que o credor terá a faculdade de exigir, em vez da primeira, a título sancionatório, caso o devedor se recuse a cumprir e que substituirá a indemnização. Apenas a primeira espécie coincide com a definida na lei (artº 810 nº 1 do Código Civil). A qualificação de uma concreta cláusula penal, assenta na intencionalidade das partes ao convencioná-la, do interesse prático que com ela visam acautelar, enfim, da finalidade prosseguida pelas partes.
[8] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 532 e 533.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 74, António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, cit., pág. 44, e António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 427. No sentido, porém, da monetarização, cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra, 2002, pág. 280.
[10] Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Livraria Almedina, 2005, págs. 43 e 44 e Carlos Pereira Gil, “Algumas Notas sobre os Decretos-Leis nºs 269/98 e 274/97”, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1999, pág. 3.
[11] João Baptista Machado, “Nominalismo e indexação”, Obra Dispersa, Vol. I., Scientia Iuridica, Braga, 1991, pág. 433 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª Edição, cit., pág. 860.
[12] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral Vol. I, 10ª Edição. Livraria Almedina, Coimbra, 2009, pág. 860.