Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2148/09.7TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
POSSE
DETENÇÃO
Data do Acordão: 05/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 659º Nº3, 668º B) E 712º Nº5 DO CPC E 1252º Nº2 CC
Sumário: I – Ressalvando os casos em que a decisão da matéria de facto não tem autonomia relativamente à sentença, o dever de fundamentação da sentença – a que alude o art. 659º, nº 3, do C.P.C. e cuja omissão determina a sua nulidade, nos termos do art. 668º, b) – não abrange a motivação da matéria de facto que, em anterior decisão, já foi declarada provada.

II – A falta de fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto não determina a nulidade da sentença ou do julgamento, podendo apenas determinar – se a parte o requerer e se a falta ou deficiência de fundamentação se reportar a factos essenciais para o julgamento da causa – a remessa dos autos à 1ª instância para que colmate aquela falha, fundamentando a decisão e repetindo a prova, se necessário (art. 712º, nº 5, do C.P.C.).

III – Presumindo-se a posse naquele que exerce o poder de facto correspondente ao exercício do direito (art. 1252º, nº 2, do C.C.), caberá àquele que se arroga possuidor alegar e provar que o exercício (por outrem) daquele poder de facto corresponde a uma mera detenção ou posse precária que, como tal, não é susceptível de conduzir à aquisição do direito, por usucapião, sem que exista inversão do título da posse.

IV – Assim, estando demonstrado o exercício daquele poder de facto (corpus) e não tendo sido alegado que o exercício desse poder corresponda – ou alguma vez tenha correspondido – a uma mera detenção ou posse precária exercida em nome de outrem, impõe-se concluir que quem exerce aquele poder de facto é possuidor, podendo, por via dessa posse e desde que verificados os demais requisitos, adquirir o respectivo direito por usucapião.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na Rua (...), Lisboa, intentou a presente acção contra B... (já falecido) e C... , residentes em (...), Castelo Branco, alegando, em suma, que: é comproprietária, juntamente com os seus irmãos, de um prédio rústico (que adveio ao seu domínio por herança de seus pais) com árvores de fruto, sobreiros, olival, horta, mata e quatro pequenas construções; em 19/04/2006, venderam o referido prédio a uma imobiliária pelo preço de 250.000,00€, sendo que esta, após a aquisição do prédio, constatou que o prédio em causa estava desarborizado, alcatroado e dividido em parcelas, algumas das quais já se tinham casas de habitação edificadas; esse facto acabou por conduzir à anulação da compra e venda que havia sido efectuada, tendo sido devolvido o preço que havia sido pago pela compradora; a Autora desconhecia por completo essa situação, tal como desconhece desde quando a mesma se verifica, embora seja certo que não há mais de 4 ou 5 anos; embora desconheça a identidade dos demais terceiros que ocupam aquelas parcelas, apurou que os Réus ocupam uma delas, com cerca de 750m2, o que fazem sem qualquer título, de má fé e contra a vontade da Autora.

Com estes fundamentos, pede:

- que se declare que prédio rústico sito no lugar do (...), (...), na freguesia e concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz sob o nº (...), Secção X, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número (...), onde se inclui a parcela de terreno com cerca de 750 m2, identificada a vermelho na imagem retirada do google earth e na planta de localização 1/5000, da Secção de Topografia do Departamento Técnico Operacional da Câmara Municipal de Castelo Branco, onde o mesmo aparece delineado a laranja, é propriedade da Autora e dos seus irmãos, D (...), E (...)s, F (...)e G (...);

- que os Réus sejam condenados a restituírem à Autora e restantes comproprietários essa parcela de terreno, no estado em que a mesma se encontrava antes da sua intervenção e sem qualquer construção e/ou vedação que tenha realizado;

- que os Réus sejam condenados a absterem-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte da Autora, e dos restantes comproprietários, dessa mesma parcela de terreno.

A Ré – alegando ser viúva desde Agosto de 2008 – contestou, alegando que o prédio em causa foi sujeito a um plano especial de urbanização, através de protocolo celebrado entre os pais da A. e a Câmara Municipal de Castelo Branco que visava a recuperação de clandestinos e a construção existente de génese ilegal, obrigando-se esta última, entre outras, a edificar todos os muros e acessos necessários, recebendo em contrapartida uma parcela de terreno com a área de 23000 m2; nesta parcela, a Câmara Municipal de Castelo Branco veio a construir em 1995 um posto de transformação, procedendo então ao alargamento da Rua do Bonfim e passagem desnivelada do caminho-de-ferro, tendo ainda edificado um pavilhão desportivo que serve de sede à Associação do Bairro da Boa Esperança e dois campos de ténis, o que fez há cerca de 8 anos, tendo ainda instalado condutas para servir de águas e esgotos os diversos lotes de terreno e tendo pavimentado e asfaltado arruamentos; em 1970, a área restante de tal prédio, estava dividida materialmente em lotes e parcelas de terreno e a parte não compreendida no perímetro urbano, em quintinhas, sendo que tais lotes de terreno e quintinhas foram sendo vendidos pelos pais da Autora, entre os anos de 1970 a 1976; assim, por contrato não reduzido a escritura pública, a Ré e o marido, adquiriram em 20.2.1976 aos pais da Autora, um lote de terreno com a área de 10250 m2, que inclui uma casa de habitação de construção muito antiga, composta por cave, rés-do-chão e sótão, com a área de 139 m2 e, desde então e até hoje, há portanto mais de trinta anos, com exclusão de outrem, possuem materialmente tal lote de terreno, na firme convicção de exercerem um direito próprio, fazendo-o coisa sua, de tal ordem que desde logo, a casa lhes serviu de habitação e ali criaram os seus filhos; procederam à construção de 1 casa de banho, de 3 barracões e 1 canil, onde guardam, respectivamente, o tractor agrícola, os animais, os folhelhos de milho, as sementes e as alfaias agrícolas e os cães; vedaram tal parcela de terreno com rede, servida de portão de abrir e fechar, que deita para a Rua do Bonfim; procederam à plantação de árvores de fruto, oliveiras e videiras, fizeram horta, plantam batatas, milho, aveia, tudo para seu governo e das galinhas, dos patos e dos suínos; colheram as laranjas, azeitonas e uvas, as cebolas e batatas, que depois vendiam numa venda que tinham na praça municipal, actos que praticaram desde 1976 até hoje, à vista de toda a gente, ostensivamente e sem oposição de quem quer que seja, sabendo que não causavam dano ou prejuízo a outrem e sem interrupção no tempo; esse lote de terreno, com a área matricial corrigida de 10000 m2,compõe-se de uma casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, com as superfícies corrigidas, a coberta de 100,40 m2, a descoberta de 9899,60 m2 e encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 10602 da freguesia e concelho de Castelo Branco.

Assim, invocando a aquisição do respectivo direito de propriedade, por usucapião, conclui pela improcedência da acção, pedindo, em reconvenção que:

- seja declarado que a Reconvinte e os filhos do seu extinto casal são donos e legítimos possuidores do referido lote de terreno;

- a Autora seja condenada a reconhecer tal direito de propriedade.

A Autora replicou, impugnando os factos vertidos na contestação/reconvenção e reafirmando os factos alegados na petição inicial.

Foi apresentada tréplica, foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu nos seguintes termos:

1. Julgar improcedente e não provada a pretensão formulada pela autora, dela absolvendo os réus;

2. Julgar procedente e provado o pedido reconvencional e, em consequência:

- declara-se que a reconvinte e os filhos do seu extinto casal são donos e legítimos possuidores do lote de terreno, sito na Rua do Bonfim, n.º 1–A, em Castelo Branco, com a área matricial corrigida de 10.000 m2,compõe-se de uma casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, com as superfícies corrigidas, a coberta de 100,40 m2, a descoberta de 9899,60 m2, encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 10602 da freguesia e concelho de Castelo Branco;

- condeno a autora reconvinda a reconhecer tal direito de propriedade da ré reconvinte, bem como dos filhos do seu extinto casal e o pleno domínio do dito prédio.

Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

I. Não é perceptível da fundamentação genérica do Tribunal a quo quais as razões, os documentos e depoimentos de testemunhas concretas que formaram a  convicção deste na prova de cada quesito, e que subjazem ao decidido, tornando a sindicabilidade da matéria de facto um puro exercício de adivinhação, que não se coaduna com o dever fundamentação das decisões judiciais.

II. Tal configura uma nulidade da sentença, nos termos da al. b) do nº1 do artº668 e nº3 do artº659 do CPC.

III. Para além da nulidade da sentença, são razões de facto e de direito que assistem à Recorrente para a interposição do presente recurso.

IV. Não obstante a prova objectiva e factual, produzida pela A nos autos, suportada por documentos com força probatória plena corroborada na íntegra pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela A., o Tribunal a quo, preterindo normas substantivas e adjectivas nível da prova, preferiu acolher a tese da negação da realidade alegada e provada pela A. com base em depoimentos de testemunhas com interesse na causa.

V. Os quesitos 12, 16, 18 a 25, 28 a 30 da base instrutória foram incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo porque os elementos do processo impunham decisão diversa da recorrida.

VI. No quesito 12 o Tribunal a quo não fez a apreciação correcta da prova produzida nos autos sobre este quesito ao responder negativamente porque os depoimentos das testemunhas H (...) (depoimento gravado no CD com data de 18.05.2012, início às 10:06:12) e E (...) (depoimento gravado no CD com data de 18.05.2012, início às 10:34:51) lograram prová-lo e não houve quer outra prova testemunhal ou documental a contrariá-los.

VII. No quesito 16 o Tribunal a quo não fez a apreciação correcta da prova produzida nos autos sobre este quesito porque sobrevalorizou os depoimentos das testemunhas I (...)(depoimento gravado no CD com a data 18.05.2012, início às 11:44:30) e O (...)(depoimento gravado no CD com a data 18.05.2012, início às 11:18:34) e S (...) (depoimento gravado no CD com data de 05.06.2012, início às 14:41:21) em detrimento do depoimento de H (...) (depoimento gravado no CD com data de 18.05.2012, início às 10:06:12), E (...) (depoimento gravado no CD com data de 18.05.2012, início às 10:34:51) e T (...), (depoimento gravado no CD com data de 05.06.2012, início a 15:12:17), com fundamento em interesse na causa destes, quando as duas primeiras testemunhas são partes DIRECTAS interessadas na acção e o terceiro interessado indirecto.

VIII. Para além da contra-prova testemunhal, a Recorrente apresentou 4 documentos (requerimento da A. de 17.05.2012), e o Tribunal a quo nem sequer os ponderou, sendo omissa a sua existência entre as provas produzidas nos autos.

IX. O contrato de arrendamento celebrado em 1963 e a declaração da R. C (...) e do seu marido, rendeiro, B (...), datado de 02.05.1995, a rescindir unilateralmente o contrato de arrendamento referente ao prédio sub judice, têm as assinaturas dos respectivos outorgantes reconhecidas presencialmente em notário, pelo que não tendo sido arguida a falsidade dos mesmos, nem qualquer vício de vontade, fazem prova plena das declarações constantes dos mesmos, não sendo sequer admitida prova testemunhal com a finalidade de contradizer o conteúdo do mesmo, nos termos do artº375, 376 nº1 do C.Civil.

X. O Doc.4 do requerimento de 17.05.2012 consiste numa declaração de rescisão de contrato da R. C (...), cuja assinatura está igualmente reconhecida notarialmente- e que não foi impugnada- e se dá por verdadeira, fazendo prova plena quanto às declarações que são da autoria da Ré C (...) (artº376 do C. Civil).

XI. O contrato de arrendamento celebrado em 31.12.1975 não tem as assinaturas dos seus outorgantes reconhecidas presencialmente e apesar da posição impugnatória dos RR a A. conseguiu fazer prova do mesmo com depoimento das testemunhas H (...) (depoimento gravado no CD com data de 18.05.2012, início às 10:06:12), E (...) (depoimento gravado no CD com data de 18.05.2012, início às 10:34:51) e T (...), (depoimento gravado no CD com data de 05.06.2012, início a 15:12:07).

XII. Face aos meios de prova referidos, produzidos pela A. e pelos RR., há um flagrante erro na apreciação dos mesmos, pelo que se impunha uma resposta negativa ao quesito 16 ou restritivamente provado mas só a partir de Maio de 1995, declaração de rescisão do contrato de arrendamento pela Ré C (...) e seu marido.

XIII. O quesito 18 impunha decisão diversa da recorrida, tendo-se baseado no depoimento de Q (...) (depoimento gravado no CD com a data 18.05.2012, início às 11:44:30, tendo a Recorrente logrado fazer a contraprova do quesitado através dos documentos 5 documentos juntos por requerimento da A. de 17.05.2012, que fazem prova plena dos factos a que respeitam, e que são incompatíveis com os dados como provados pelo Tribunal a quo, a confissão da Ré C (...) na declaração desta (doc.4 junto com o referido requerimento),

XIV. e os depoimentos de todas as testemunhas da A, desde T (...) (depoimento gravado no CD com data de 05.06.2012, início às 15:12:17), passando por E (...), (depoimento gravado no CD com data de 08.05.2012, início a 10:34:51), e H (...), (depoimento com data de 18.05.2012, início às 10:06:15).

XV. Houve na resposta ao quesito 18 um erro de interpretação e aplicação da lei- erro de direito probatório material- no que respeita à não valoração dos referidos documentos que fazem prova plena de factos absolutamente incompatíveis com a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, documentos estes cujo conteúdo contraria em toda a frente os depoimentos das testemunhas dos RR, com violação, nomeadamente, do artº376 nº1 C. Civil, na desconsideração da prova plena da confissão extrajudicial da Ré C (...)- a resposta ao quesito 18 deveria ter sido negativa.

XVI. A resposta dada aos quesitos 19, 20, 21, 23, 24, 28, 29 e 30 merecia resposta diferente daquela que foi dada pelo Tribunal a quo.

XVII. O Tribunal a quo nunca poderia dar como provada a ocupação da parcela pelos RR desde 1976 sem que o fosse apenas na qualidade de esposa do arrendatário, quanto à Ré C (...), e os RR filhos, na qualidade de filhos do arrendatário.

XVIII. O Tribunal ignorou a prova produzida nos autos que faz prova plena das declarações nesses documentos contidas e que nem sequer admite prova testemunhal como contraprova, que consiste nos contratos de arrendamento de 1963, 1975 e declaração da Ré C (...) e seu marido, na qualidade de rendeiro do prédio sub judice, a rescindir unilateralmente o contrato de arrendamento, em 1995.

XIX. Todos estes factos consubstanciam um erro manifesto de apreciação da prova produzida pelo Tribunal a quo, que ignorou os documentos supra referidos atinentes à condição de arrendatário de B (...), marido da R. C (...) e pai dos RR filhos -, a confissão da Ré C (...), corroborados por prova testemunhal.

XX. Assim, as respostas aos quesitos 19, 20, 21, 23, 24 e 28 deveriam ter sido em sentido negativo, e a resposta aos quesitos 29 e 30 deveriam ter merecido resposta afirmativa

Nestes termos, conclui pedindo o provimento do presente Recurso de Apelação e, em consequência, a condenação dos Réus nos termos peticionados.

Foram apresentadas contra-alegações, onde se sustentou a improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a sentença é nula por falta de fundamentação;

• Saber se a decisão da matéria de facto está devidamente fundamentada e determinar as consequências daí emergentes;

• Saber se existiu erro na apreciação da prova e se, em função disso, importa ou não alterar – e em que termos – a decisão da matéria de facto;

• Saber se, perante a matéria de facto – eventualmente alterada na sequência da apreciação da questão anterior – estão ou não reunidos os pressupostos necessários para a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, por parte dos Réus.


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III.

Na 1ª instância, foi considerada provada a seguinte matéria de facto:

1. Sito no (...), (...), na freguesia e concelho de Castelo Branco encontra-se um terreno, alcatroado e dividido em parcelas separadas fisicamente por muros ou gradeamentos de arame sendo que, em algumas dessas parcelas foram edificadas casas de habitação, encontrando-se outras, com estaleiros montado, em vias de ser dado inicio à construção – alínea A) da matéria assente.

2. Foi solicitada a anulação da venda do prédio sito (...), (...), na freguesia e concelho de Castelo Branco celebrada entre a autora e seus irmãos e a imobiliária (Processo n.º 3359/08.8TVLSB, que correu termos na 5ª Vara Cível, 2ª Secção, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa), anulação essa que foi efectuada por transacção judicial – alínea B) da matéria assente.

3. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco, sob o n.º 9988/18950518, da freguesia de Castelo Branco, correspondente à descrição n.º (...), do Livro n.º 23, o prédio denominado “ (...)”, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo (...).º, da dita freguesia, composto de terra de cultura arvense, horta e mato, com figueiras, oliveiras, sobreiros, citrinos e carvalhos, quatro construções rurais, a confrontar de norte com (...) e (...), de sul com caminho público, de nascente com herdeiros de (...)e de poente com linha férrea, com a área de 109.125 m2, a favor de E (...), A (...), F (...) , G (...), D (...), mediante a apresentação 23, de 10-05-2006, por sucessão hereditária de N... e L (...)– resposta aos pontos 1º, 2º e 3º da base instrutória.

4. Por escritura pública datada de 19 de Abril de 2006 a autora e os seus irmãos declararam vender a uma imobiliária, “ U (...)S.A.”, que declarou comprar, um prédio rústico com a área de cento e nove mil e cinco metros quadrados, sito no lugar do (...), freguesia e concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz sob o artigo (...), Secção X, com o valor patrimonial tributário de 3.300,77 €, descrito na conservatória sob o n.º oito mil e um, registado a favor de J (...)pela inscrição dezassete mil quatrocentos e noventa e um – resposta ao ponto 4º da base instrutória.

5. Nos termos da escritura referida em 4., a transacção efectuada entre a autora e os irmãos foi pelo preço de duzentos e cinquenta mil euros, que, segundo o que consta da transacção judicial mencionada em B), foi restituído à “ U (...)S.A.” – resposta ao ponto 7º da base instrutória.

6. Os réus ocupam uma parcela com cerca de 10.000,00 m2 que foi destacada do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (...), Secção X, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...) – resposta aos pontos 9º e 11º da base instrutória.

7. Os réus, na parcela referida, construíram edificações e vedações, sem a autorização da autora – resposta ao ponto 12º da base instrutória.

8. Foi celebrado um protocolo, em 3 de Março de 1995, designado de “Protocolo de acordo de cedência da Área de pormenor do Bairro da Boa Esperança/ (...) de Castelo Branco – Projecto de Alargamento da Rua do Bonfim, Implantação do Posto de Transformação e Zona de Lazer do Bairro da Boa Esperança/ (...)”, entre a Câmara Municipal de Castelo Branco e João José Martins Batista Ribeiro, na qualidade de procurador de J (...), nos termos do qual se fez constar, além do mais, que: “PRIMEIRA: O segundo outorgante obriga-se a ceder à Câmara Municipal de Castelo Branco vinte e três mil metros quadrados da parte rústica da sua propriedade… SEGUNDA: O segundo outorgante obriga-se, desde já, a ceder à Câmara Municipal de Castelo Branco a parcela de terreno necessária à construção de um P.T. e alargamento da Rua do Bonfim… TERCEIRA: a Câmara Municipal compromete-se a viabilizar o estudo em planta anexa…O critério a seguir pela Câmara Municipal em relação ao estudo atrás referido será o mesmo já adoptado para o Bairro onde está inserido e que faz parte integrante do referido plano de pormenor…, plano este de recuperação de clandestinos… DÉCIMA: todos os muros e acessos necessários à propriedade [prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 00 (...), da freguesia e Concelho de Castelo Branco], serão da responsabilidade da Câmara Municipal, executados com a máxima urgência, sendo os muros com a altura mínima de um metro e meio” – resposta ao ponto 13º da base instrutória.

9. Naquela parcela, veio a Câmara Municipal de Castelo Branco a construir em 1995 um posto de transformação, procedeu então ao alargamento da Rua do Bonfim e passagem desnivelada do caminho de ferro, edificou um pavilhão desportivo que serve de sede à Associação do Bairro da Boa Esperança e construiu dois campos de ténis, o que fez há cerca de 8 anos – resposta ao ponto 14º da base instrutória.

10. Tendo ainda instalado condutas para servir de águas e esgotos os diversos lotes de terreno, designadamente o dos réus, pavimentou e asfaltou os arruamentos – resposta ao ponto 15º da base instrutória.

11. Pelo menos em 1976, já a área restante do prédio se encontrava dividida materialmente em parcelas de terreno e a parte não compreendida no perímetro urbano em quintinhas – resposta ao ponto 16º da base instrutória.

12. Pelo menos algumas dessas parcelas de terreno e quintinhas foram vendidos pelos pais da autora – resposta ao ponto 17º da base instrutória.

13. Por escrito datado de 20-02-1976, assinado pelos declarantes J (...)e L (...), estes declararam “…que venderam nesta data ao Sr. B.... portador do Bilhete de  Identidade n.º ...., um terreno rústico com a área de 10 250 m2…aproximadamente, que incluiu uma casa de habitação de construção muito antiga, composta por cave, rés-do-chão e sótão (com a área de 139 m2) pelo preço de 200 000$00… quantia que já receberam.

O terreno tem a localização assinalada na planta anexa e as confrontações são as seguintes:

Norte: Herdeiros de (...)

Sul: Vendedores

Poente: (...)

Nascente: Vendedores

O terreno é a destacar da propriedade rústica com o número 00 (...) da secção x da freguesia e concelho de Castelo Branco, registada na Conservatória do Registo Predial sob o número (...)

A escritura será feita por conta do comprador, quando lhe for possível.

A propriedade está livre de quaisquer encargos.

Este documento anula os anteriores.” – resposta ao ponto 18º da base instrutória.

14. A casa que ali existe serviu-lhes de habitação e aí criaram os seus filhos – resposta ao ponto 19º da base instrutória.

15. Os réus procederam à edificação de várias estruturas de apoio à agricultura e para resguardo dos animais – resposta ao ponto 20º da base instrutória.

16. Vedaram tal parcela de terreno com rede, servida de portão de abrir e fechar, que deita para a Rua do Bonfim, procederam à plantação de árvores de fruto, oliveiras e videiras – resposta ao ponto 21º da base instrutória.

17. Fizeram horta, plantam batatas, milho, aveia, tudo para seu governo e das galinhas, dos patos e dos suínos – resposta ao ponto 22º da base instrutória.

18. Colheram (actualmente apenas a ré, depois da morte do marido), as laranjas, azeitonas e uvas, as cebolas e batatas, que depois vendiam numa venda que tinham na praça municipal – resposta ao ponto 23º da base instrutória.

19. O que sempre fizeram, nos termos sobreditos, desde 1976 e até hoje e quanto ao seu marido, até à sua morte, quanto a si, à vista de toda a gente, ostensivamente e sem oposição de quem quer que seja, sabendo que não causavam dano ou prejuízo a outrem e sem interrupção no tempo – resposta ao ponto 24º da base instrutória.

20. Tal lote de terreno, sito na Rua (...), em Castelo Branco, com a área matricial corrigida de 10.000 m2, compõe-se de uma casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, com as superfícies corrigidas, a coberta de 100,40 m2, a descoberta de 9899,60 m2, encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 10602 da freguesia e concelho de Castelo Branco – resposta ao ponto 25º da base instrutória.

21. A ré enviuvou em 29/08/2008 – resposta ao ponto 26º da base instrutória.

22. O terreno referido em 1. encontra-se desarborizado – resposta ao ponto 27º da base instrutória.

23. Antes de 1976 os pais da autora cultivavam, plantavam e colhiam os frutos do prédio referido em 1.º - resposta aos pontos 28º e 29º da base instrutória.


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IV.

Apreciemos, pois, as questões suscitadas no recurso.

Nulidade da sentença

A Apelante começa por invocar a nulidade da sentença, com fundamento no disposto nos arts. 668º, nº 1, alínea b) e 659º do Código de Processo Civil, alegando que não é perceptível da fundamentação genérica do Tribunal a quo quais as razões, os documentos e depoimentos de testemunhas concretas que formaram a convicção deste na prova de cada quesito, e que subjazem ao decidido, tornando a sindicabilidade da matéria de facto um puro exercício de adivinhação, que não se coaduna com o dever fundamentação das decisões judiciais.

Dispõe o citado art. 668º, nº 1, alínea b) que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, dispondo o art. 659º, nº 3, que, na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.

É indiscutível que a sentença recorrida enunciou a matéria de facto que se encontrava provada e com base na qual foi proferida a decisão e, ao nível da matéria de facto, nada mais tinha que fazer com vista ao cumprimento do dever de fundamentação.

De facto, ao contrário do que pretende a Apelante, a sentença não tinha que fazer o exame crítico das provas que conduziram à fixação da matéria de facto, na medida em que a sentença não considerou quaisquer outros factos, além daqueles que já haviam sido fixados em anterior decisão referente à matéria de facto.

A fundamentação da convicção do julgador relativamente à decisão proferida sobre a matéria de facto – com a análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação dessa convicção – é feita na decisão que julga e fixa a matéria de facto provada (como impõe o art. 653º do C.P.C.) e não tem que ser repetida na sentença, onde apenas se impõe enunciar a matéria de facto que já havia sido considerada provada em anterior decisão (art. 659º do mesmo diploma). O exame crítico das provas a efectuar na sentença – em conformidade com o disposto no art. 659º, nº 3 – apenas abrange os factos que aí venham a ser considerados (factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito) e que não tenham sido abrangidos e incluídos na decisão sobre a matéria de facto anteriormente proferida.

Como resulta expressamente do disposto no art. 659º, nº 3, na sentença, o juiz tomará em consideração os factos que, anteriormente (na decisão proferida sobre a matéria de facto), foram considerados provados e, como parece óbvio, não tem que indicar as razões que foram determinantes para considerar esses factos como provados. Em primeiro lugar, porque, na sentença, o juiz não está a proferir qualquer decisão sobre esses factos, limitando-se a reproduzir ou a considerar os factos que já foram considerados provados em decisão autónoma e anterior; em segundo lugar, porque essa fundamentação seria totalmente inútil, na medida em que já consta de decisão anterior (a que julgou a matéria de facto) e, em último lugar, porque o juiz que profere a sentença, podendo não ser o juiz que presidiu ao julgamento, não estará, sequer, em condições de analisar as provas produzidas em audiência.

É certo que o art. 659º, nº 3, reportando-se à sentença, determina – à semelhança do que acontece no art. 653º, nº 2 – que o juiz faça o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.

Mas, este exame crítico das provas – que deve ser efectuado na sentença – tem um objecto diferente daquele que é efectuado na decisão que julga a matéria de facto.

Com efeito, como resulta expressamente do citado art. 659º, nº 3, o juiz, na sentença, além de considerar os factos que foram julgados provados na decisão sobre a matéria de facto, deve ainda considerar os factos admitidos por acordo e os factos provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e é apenas a estes factos que se reporta o exame crítico das provas a que está vinculado o juiz que profere a sentença.

Veja-se, a propósito, José Lebre de Freitas[1], quando escreve: ““Na anterior decisão sobre a matéria de facto (do tribunal colectivo ou do tribunal singular que presidiu à audiência final), foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita a livre a apreciação do julgador (…). Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulta da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante (…), independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase da condensação (…). Ao fazê-lo, o juiz examina criticamente as provas, mas de modo diferente de como o fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova, mas de verificar atentamente se existiram os factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório”.

Concluímos, pois, em face do exposto, que, ressalvando os casos em que a decisão da matéria de facto não tem autonomia relativamente à sentença (como acontece, designadamente, no processo sumaríssimo), o dever de fundamentação da sentença – a que alude o art. 659º, nº 3, e cuja omissão determina a sua nulidade, nos termos do art. 668º, b) – não abrange a motivação da matéria de facto que, em anterior decisão, já foi declarada provada.

Quando a matéria de facto foi objecto de decisão autónoma, o dever de fundamentação da sentença – cuja omissão determina a citada nulidade – exige apenas: a indicação dos factos que foram considerados provados na decisão da matéria de facto; a indicação de outros factos que se considerem provados por estarem admitidos por acordo ou por estarem provados por documentos ou confissão reduzida a escrito, procedendo-se, no que respeita a estes factos, ao exame crítico das provas que, neste domínio, é permitido ao juiz conhecer e que emergem daqueles meios de prova e do respectivo regime legal probatório; indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

No caso sub júdice, a sentença recorrida não considerou quaisquer factos que não tivessem sido considerados provados na decisão proferida sobre a matéria de facto e, portanto, nenhuma fundamentação se impunha a esse nível, na medida em que o exame crítico das provas e a indicação dos fundamentos que determinaram a formação da convicção relativamente a esses factos já constava (ou devia constar) da decisão proferida sobre a matéria de facto e não tinha que ser repetida na sentença.

É evidente, por isso, que a sentença não padece de qualquer nulidade.

Mas, apesar de aludir à nulidade da sentença, o que a Apelante pretende invocar é a falta de fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto (não propriamente da sentença), importando notar, todavia, que essa falta de fundamentação não determina a nulidade da sentença ou do julgamento, podendo apenas determinar – se a parte o requerer e se a falta ou deficiência de fundamentação se reportar a factos essenciais para o julgamento da causa – a remessa dos autos à 1ª instância para que colmate aquela falha, fundamentando a decisão e repetindo a prova, se necessário (art. 712º, nº 5, do C.P.C.).

Ora, sendo certo que a Apelante não requereu a remessa dos autos à 1ª instância, também nos parece que a decisão da matéria de facto contém a necessária fundamentação.

É evidente que o cumprimento do dever de fundamentação da decisão da matéria de facto – imposto pelo art. 653º, nº 2, do C.P.C. – não se basta com a mera indicação dos meios de prova que serviram de base à decisão e nem tão pouco se basta com a alusão ao teor dos depoimentos prestados, já que aquilo que se impõe é que o julgador concretize, na medida do possível, o processo lógico que levou à formação da sua convicção, especificando, não só os concretos meios de prova em que se baseou, mas também as razões que o levaram a considerar esses meios de prova como aptos ou adequados para formar a sua convicção relativamente à verificação (ou não verificação) dos factos, analisando criticamente as diversas provas produzidas, explicando as razões pelas quais lhe mereceram credibilidade as provas que foram fundamentais para a formação da sua convicção e concretizando, na medida do possível, as razões que o levaram a atribuir maior credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros que com eles eram incompatíveis.
Não sendo tarefa fácil o cumprimento desse dever de fundamentação (até porque no processo de formação da convicção do julgador intervêm inúmeros factores que nem sempre se conseguem exteriorizar), o certo é que a transparência das decisões judiciais impõe a realização de um esforço nesse sentido.
De facto, segundo refere Teixeira de Sousa[2], “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convicente”. 

 E, apesar de não ser exigível que tal análise seja efectuada relativamente a cada quesito individualmente, é claro que a fundamentação tem que evidenciar, de forma clara, quais as concretas razões que estiveram subjacentes à decisão de cada um dos quesitos ou pontos da matéria de facto.

No caso sub júdice, a fundamentação foi efectuada em termos genéricos e reportados à generalidade da matéria de facto, sem alusão aos pontos concretos da matéria de facto (como seria desejável). De qualquer forma, referindo quais os depoimentos que se mostravam credíveis e quais os que não mereciam credibilidade (e explicando porquê) e fazendo alusão ao teor desses depoimentos, bem como ao teor dos documentos que também estiveram subjacentes à decisão, parece-nos que, apesar de tudo, é possível determinar quais as concretas razões que conduziram à resposta dada a cada um dos pontos da base instrutória e, portanto, parece-nos que está cumprido minimamente o dever de fundamentação.

Improcedem, pois, nesta parte, as conclusões das alegações.

Impugnação da matéria de facto

A Apelante vem impugnar a decisão da matéria de facto, sustentando que os quesitos 12, 16, 18 a 25 e 28 a 30 foram incorrectamente julgados.

Porque os depoimentos foram registados e porque a Apelante cumpriu o ónus imposto pelo art. 685º-B do C.P.C., nada obsta à reapreciação da prova tendo em vista a eventual alteração da decisão da matéria de facto.

É o que passamos a fazer.

Ponto 12º da base instrutória:

Perguntava-se aqui se “Os RR. detêm a parcela de terreno no prédio identificado no ponto 1º contra a vontade da A., nele construindo edificações e vedações sem a autorização daquela?”, e a resposta que mereceu foi de “Não provado”.

Na perspectiva da Apelante, essa matéria deveria ser considerada provada, face aos depoimentos das testemunhas, H (...) e E (...), que não foram contrariados por qualquer outra prova testemunhal ou documental.

Acontece que as aludidas testemunhas são, respectivamente, cunhada e irmão da Autora e, portanto, têm manifesto e evidente interesse na decisão da causa, sendo que a última testemunha será, de acordo com a versão da Autora, comproprietário do prédio aqui em causa e, portanto, tem posição e interesse idêntico ao da Autora e essa circunstância não poderá deixar de afectar e condicionar a credibilidade dos seus depoimentos. Além do mais, as referidas testemunhas não estão sequer em condições de garantir que aquela ocupação e aquelas construções não tenham sido autorizadas pela Autora ou pelos seus pais.

Mantém-se, pois, a resposta dada.

Ponto 16º da base instrutória:

Este ponto tinha a seguinte redacção: “Em 1970, já a área restante de tal prédio se encontrava dividida materialmente em lotes e parcelas de terreno e a parte não compreendida no perímetro urbano, em quintinhas?”.

E mereceu a seguinte resposta: “Provado que, pelo menos em 1976, já a área restante do prédio se encontrava dividida materialmente em parcelas de terreno e a parte não compreendida no perímetro urbano em quintinhas”.

Considera a Apelante que, na resposta dada, o Tribunal sobrevalorizou os depoimentos das testemunhas, Q (...), O (...)e S (...), em detrimento dos depoimentos de H (...), E (...) e T (...), quando é certo que as duas primeiras testemunhas são partes directas interessadas na acção e a terceira interessado indirecto. Mais alega que o Tribunal não ponderou os quatro documentos que foram juntos aos autos em 17/05/2012.

As testemunhas, P (...) e O (...), declaram ter adquirido ao Sr. Covas (pai da Autora) um dos referidos lotes, em 1975/1976, confirmando, portanto, que, nessa data, o aludido prédio já se encontrava dividido em lotes e quintinhas, que foram vendidos pelos pais da Autora a diversas pessoas.

Tais testemunhas terão, portanto, um litígio com a Autora que é idêntico àquele que opõe a Autora aos Réus. Mas essa circunstância – apesar de poder determinar alguma falta de isenção e imparcialidade nos seus depoimentos (que terá que ser ponderada na avaliação da sua credibilidade) não equivale a dizer – como diz a Apelante – que tais testemunhas sejam partes directas interessadas na acção. E, de facto, não são, já que, não sendo partes na presente acção (onde apenas está em causa a parcela de terreno que é ocupada pelos Réus), não sofrem qualquer benefício ou prejuízo com a decisão que aqui venha a ser proferida e que não terá força de caso julgado na acção que tenha sido ou venha a ser instaurada contra eles, relativamente à parcela que eles próprios ocupam.

Importa dizer que as testemunhas, H (...) e E (...) (cujos depoimentos deveriam prevalecer, na perspectiva da Apelante, sobre os das testemunhas acima referidas) têm interesse directo no desfecho da acção, já que, sendo cunhada e irmão da Autora, também se arrogam (pelo menos o último) comproprietários do prédio aqui em questão e, portanto, os seus depoimentos terão, à partida, uma credibilidade ainda menor do que os depoimentos das demais testemunhas. E, se é certo que estas testemunhas têm interesse directo no desfecho da acção, a outra testemunha que é citada pela Apelante ( T (...)) foi casado com a Autora e tal circunstância também condiciona a isenção e credibilidade do seu depoimento.

 Sucede que, ao contrário do que acontece com os depoimentos destas três testemunhas (arroladas pela Autora), os depoimentos de P (...) e O (...) são confirmados por outras testemunhas que não manifestaram possuir qualquer interesse directo ou indirecto na presente causa. É o caso da testemunha S (...) (embora também se deva referir que o irmão desta testemunha terá adquirido um dos referidos lotes) e é o caso das testemunhas, R (...) e João Manuel Prata Mendes, que, não tendo ali qualquer lote (e, portanto, não tendo qualquer interesse na questão), declaram morar perto do prédio há muitos anos, sabendo, por isso, que, em 1975/1976, o prédio já se encontrava dividido em lotes e quintinhas.

E estes depoimentos são ainda confirmados pela declaração junta a fls. 66 – datada de Fevereiro de 1976 – na qual os pais da Autora declaram ter vendido uma casa e um terreno a destacar do aludido prédio, circunstância que, indo de encontro ao relatado pelas referidas testemunhas, indicia que, nessa data, o prédio já estaria dividido em vários lotes ou parcelas de terreno.

Tudo aponta, portanto, para o facto de, em 1976, o prédio já se encontrar dividido em parcelas de terreno e em quintinhas, como se refere na resposta dada ao ponto da base instrutória que estamos a analisar.

E, ao contrário do que pretende a Apelante, os documentos que juntou com o requerimento de 17/05/2012 não são suficientes para abalar aquela convicção.

Vejamos porquê.

Os primeiros dois documentos reportam-se ao contrato de arrendamento que teria sido celebrado com o marido da Ré em 09/09/1963 e dele nada mais decorre a não ser que o mesmo era, efectivamente, arrendatário do prédio (como declaram, aliás, todas as testemunhas). O terceiro documento é um novo contrato de arrendamento que respeitará ao mesmo prédio e que, estando datado de 31/12/1975 (data em que o marido da Ré ainda era arrendatário), também não traz qualquer contributo para a matéria aqui em discussão.

Analisemos agora o documento nº 4 (a que a Apelante se reporta nas suas alegações) junto com aquele requerimento.

Está em causa uma declaração assinada pela Ré e seu falecido marido – com reconhecimento presencial – datada de 02/05/1995, em que estes, dirigindo-se ao pai da Autora, declaram e informam que, por motivos de doença, a partir de 15 de Maio desse ano, se consideravam desligados da propriedade rústica ali identificada (o prédio em causa nos autos) e que o contrato de arrendamento agrícola deveria ser considerado nulo e sem qualquer efeito a partir dessa data. Refira-se, a título de curiosidade, que, além desse documento, a Autora também juntou um outro – subscrito pelo seu pai e datado de 09/05/1995 – que corresponderá, ao que parece, a uma carta de resposta à que os Réus teriam enviado e que estava datada de 02/05/1995 (pelo menos é isso que, aparentemente, os referidos documentos pretenderão demonstrar), sendo que, apesar de ser uma carta dirigida ao marido da Ré, B (...), estava em poder da Autora e com a assinatura do destinatário (o que nos suscita algumas dúvidas relativamente às exactas circunstâncias em que tais documentos foram elaborados).

É certo, de qualquer forma, que a aludida carta/informação/declaração de 02/05/1995 foi subscrita pela Ré e pelo seu marido (entretanto falecido), pois que tem as assinaturas reconhecidas presencialmente e, portanto, fará prova plena quanto às referidas declarações, sendo que os factos contidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses dos declarantes (cfr. art. 376º do C.C.).

Mas, ainda que assim seja, isso não contraria o facto de a propriedade já estar, há muito, dividida em lotes. De facto, o que resulta daquela declaração (que, atendendo ao teor da resposta que lhe foi dada e ao facto de esta resposta estar assinada pelo seu destinatário e em poder do remetente, terá sido, muito provavelmente, o resultado de um acordo estabelecido entre os Réus e o pai da Autora) é que, naquela data, se pôs fim a um contrato de arrendamento que, formalmente, ainda existia. De facto, ainda que o prédio já estivesse, há muito, dividido em lotes e ainda que cada um desses lotes tivesse sido “vendido” verbalmente a outras pessoas, a verdade é que, em termos formais e legais, o marido da Ré continuava a ser arrendatário do prédio, uma parte da qual já estaria na posse de outras pessoas e, portanto, aquelas cartas ou declarações terão servido para formalizar a extinção de um arrendamento que, formalmente, ainda estava em vigor.   

Não nos parece, pois, que tais documentos sejam bastantes para contrariar os demais elementos probatórios que conduziram à resposta dada ao ponto 16º, mantendo-se, por isso, essa resposta.

Ponto 18º da base instrutória:

Perguntava-se aqui o seguinte:

Por contrato não reduzido a escritura pública, os RR. adquiriram em 20/02/1976 aos pais da A., um lote de terreno com a área de 10250 m2, que inclui uma casa de habitação de construção muito antiga, composta por cave r/c e sótão, com a área de 139 m2 a destacar do prédio rústico com o nº (...) da secção X da freguesia e concelho de Castelo Branco, registado na CRPredial de Castelo Branco sob o nº (...)?

E foi dada a seguinte resposta:

Por escrito datado de 20-02-1976, assinado pelos declarantes J (...)e L (...), estes declararam “…que venderam nesta data ao Sr. B (...) portador do Bilhete de Identidade n.º...., um terreno rústico com a área de 10 250 m2…aproximadamente, que incluiu uma casa de habitação de construção muito antiga, composta por cave, rés-do-chão e sótão (com a área de 139 m2) pelo preço de 200 000$00… quantia que já receberam.

O terreno tem a localização assinalada na planta anexa e as confrontações são as seguintes:

Norte: Herdeiros de (...)

Sul: Vendedores

Poente: (...)

Nascente: Vendedores

O terreno é a destacar da propriedade rústica com o número 00 (...) da secção x da freguesia e concelho de Castelo Branco, registada na Conservatória do Registo Predial sob o número (...)

A escritura será feita por conta do comprador, quando lhe for possível.

A propriedade está livre de quaisquer encargos.

Este documento anula os anteriores.”

Sustenta a Apelante que a resposta deveria ser negativa, invocando, para tanto, os depoimentos das testemunhas que arrolou, os documentos juntos com o seu requerimento de 17/05/2012 e a confissão da Ré que consta de um desses documentos (o doc. nº 4).

Mas, salvo o devido respeito, não lhe assiste qualquer razão.

A resposta dada ao citado ponto da base instrutória limita-se a reproduzir o teor do documento junto aos autos a fls. 66, dizendo que os subscritores desse documento efectuaram as declarações nele constantes.

Ora, apesar de ter impugnado o citado documento – dizendo que o mesmo corresponde a uma mera declaração de vontades que não prova a aquisição de qualquer lote ou parcela de terreno – a A. nunca impugnou a autoria desse documento (não alegou que as assinaturas dele constantes não pertenciam aos seus pais e nem tão pouco alegou desconhecer se lhes pertenciam ou não) e, portanto, face ao disposto no art. 374º, nº 1, do C.C., tais assinaturas consideram-se verdadeiras (importando notar que nada, na prova produzida, indicia que assim não seja) e, estando reconhecida a autoria desse documento, está plenamente provado que os respectivos subscritores (os pais da Autora) efectuaram as declarações dele constantes.

 E foi apenas isso que se considerou provado: que os pais da Autora efectuaram as declarações constantes do referido documento.

Não vislumbramos, pois, como esse facto poderia deixar de ser considerado provado.

Além do mais, as testemunhas arroladas pela Autora nem sequer contrariaram esse facto, limitando-se a dizer que não têm conhecimento disso e que, se eles tivessem vendido, os filhos saberiam. Por outro lado, os documentos a que alude a Apelante (e aos quais já fizemos referência a propósito do quesito anterior) não têm qualquer relevância para contrariar o facto (que nos parece incontroverso) de os pais da Autora terem efectuado as declarações constantes de um documento que é da sua autoria (porque, como dissemos, tal autoria não foi impugnada).

Pontos 19º a 25º e 28º a 30º da base instrutória:

Apesar de afirmar, nas suas alegações, que os quesitos 19º a 25º foram incorrectamente julgados, a verdade é que a Apelante não se pronuncia expressamente sobre os pontos 22º e 25º (não diz que a decisão deveria ter sido diferente, não diz qual é a decisão que considera correcta e não diz as razões pelas quais esses quesitos foram incorrectamente julgados). Assim, não poderemos considerar devidamente impugnada essa matéria.

Analisemos a demais matéria.

Os pontos da base instrutória aqui em causa tinham a seguinte redacção e mereceram as seguintes respostas:

19. A casa serviu-lhes de habitação e ali criaram os seus filhos?

R: Provado.

20. Procederam à construção de 1 casa de banho, de 3 barracões e 1 canil, onde guardam, respectivamente, o tractor agrícola, os animais, os folhelhos de milho, as sementes e as alfaias agrícolas e os cães?

R: Provado que os réus procederam à edificação de várias estruturas de apoio à agricultura e para resguardo dos animais.

21. Vedaram tal parcela de terreno com rede, servida de portão de abrir e fechar, que deita para a Rua do Bonfim, procederam à plantação de árvores de fruto, oliveiras e videiras?

R: Provado.

23. Colheram (actualmente apenas a R., depois da morte do marido), as laranjas, azeitonas e uvas, as cebolas e batatas, que depois vendiam numa venda que tinham na praça municipal?

R: Provado.

24. O que sempre fizeram, nos termos sobreditos, desde 1976 e até hoje e quanto ao seu marido, até à sua morte, quanto a si, à vista de toda a gente, ostensivamente e sem oposição de quem quer que seja, sabendo que não causavam dano ou prejuízo a outrem e sem interrupção no tempo?

R: Provado.

28. e 29. Há 30 anos os pais da A. cultivavam, plantavam e colhiam os frutos da totalidade do prédio referido em 1?; Tendo os pais da A, contratado um caseiro para auxiliar nas tarefas agrícolas e de manutenção da quinta?

R: Provado que antes de 1976 os pais da autora cultivavam, plantavam e colhiam os frutos do prédio referido em 1.º

30. A A e os seus irmãos frequentavam, até há 10 anos, o prédio referido em 1?

R: Não provado.

Na perspectiva da Apelante, as respostas aos quesitos 19, 20, 21, 23, 24 e 28 deveriam ter sido negativas e as respostas aos quesitos 29 e 30 deveriam ter sido afirmativas.

Sustenta a Apelante que o Tribunal nunca poderia dar como provada a ocupação da parcela pelos RR desde 1976 sem que o fosse apenas na qualidade de esposa e filhos do arrendatário, tendo o Tribunal ignorado toda prova produzida (designadamente a prova documental e a confissão da Ré) da qual resulta que o prédio em causa esteve arrendado ao marido da Ré desde 1963 até 1995, o que é incompatível com a convicção vertida na resposta ao ponto 24º.

Ora bem.

Em rigor, a Apelante não contesta o teor das respostas dadas aos pontos 19º, 20º, 21º e 23. De facto, a prática material dos actos a que se reportam esses pontos da base instrutória resulta, com clareza, dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Réus e, em parte, até são confirmados pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora, sendo que a Apelante nada refere nas suas alegações no sentido de a prova produzida não permitir concluir que tais actos não tenham sido praticados.

O que a Apelante alega é que tais actos foram praticados na condição de arrendatário e família do arrendatário, já que, na sua perspectiva, existe prova documental e confissão da Ré (que nem sequer poderia ser contrariada por prova testemunhal) de que tal arrendamento vigorou até 1995 e que, como tal, era nessa qualidade que aqueles actos eram praticados.

Apesar de resultar claramente da prova produzida que o marido da Ré, B (...), foi arrendatário do aludido prédio, a verdade é que tal contrato de arrendamento nunca foi alegado nos articulados. E não deixamos de estranhar que a Autora – considerando e tendo vindo posteriormente juntar documentos no sentido que o referido B (...) havia ocupado o prédio na qualidade de arrendatário – nunca tenha alegado esse facto.

Portanto, o que a Apelante pretende, na prática, é que, nas respostas aos pontos da base instrutória aqui em questão, seja introduzido um facto que não alegou: a existência de um contrato de arrendamento e a detenção ou posse precária que lhe era inerente.

De qualquer forma, apesar de ter sido arrendatário do aludido prédio, o que resultou da prova produzida foi que, a partir de 1976, o referido B (...) deixou de ter a efectiva detenção da totalidade do prédio de que era arrendatário, já que o prédio foi dividido em parcelas que foram sendo entregues a outras pessoas, tendo ele próprio passado a deter apenas a casa de habitação onde já residia com a família e uma parcela de terreno daquele prédio, fazendo-o agora na convicção de usufruir de coisa própria que lhe havia sido vendida pelo respectivo proprietário (os pais da Autora). Foi isto que resultou dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Réus, é isso que resulta da declaração de fls. 66 (que está datada de Fevereiro de 1976 e assinada pelos pais da Autora, que aí declaram ter vendido ao referido B (...) a casa e uma parcela de terreno com a área de 10.250m2, a destacar daquele prédio e pelo preço de 200.000$00, que declararam já ter recebido) e é isso que se depreende também do facto de a mãe da Autora (em 1997) não ter relacionado, por óbito do seu marido, o prédio aqui em causa (o que indicia claramente que a mesma já não considerava esse prédio como fazendo parte da herança de seu marido, pois que não será de admitir como provável que se tivesse esquecido de relacionar uma Quinta com alguma dimensão), prédio que apenas veio a ser relacionado em 2006 por um dos filhos. Atente-se também na circunstância de a Autora – apesar de considerar agora (embora não o tenha alegado oportunamente) que o referido B (...) foi arrendatário até 1995 e afirmando, a fls. 258, que, não obstante a declaração de 02/05/1995, o referido B (...) continuou a pagar a renda – não ter apresentado a mínima prova do pagamento de rendas por parte do arrendatário.

Ainda a propósito destes quesitos, continua a Apelante a chamar à colação os documentos que comprovam a celebração do arrendamento e a declaração de 02/05/1995 que, na perspectiva da Apelante, corresponde a uma confissão da Ré que provaria plenamente a existência do arrendamento até essa data.

Já nos pronunciamos sobre esses documentos e, tal como dissemos, a referida declaração, embora prove plenamente que os subscritores a efectuaram, não faz prova plena de que o referido B (...) não ocupasse já a casa de habitação e uma parcela do prédio em nome próprio e com a convicção de ser o proprietário em virtude de o prédio lhe ter sido vendido pelos pais da Autora em 1976 (como resulta da declaração por estes emitida).

Na perspectiva da Apelante, tal declaração corresponde a uma confissão da Ré, na medida em que aí se reconhece a qualidade de arrendatário do seu marido até 1995. Mas, pelo menos formalmente, o marido da Ré ainda era, efectivamente, arrendatário da parte restante do prédio, já que a circunstância de ocupar a casa e uma determinada parcela como proprietário, não lhe retiraria a qualidade de arrendatário que formalmente ainda detinha relativamente à parte restante do prédio, sendo que a declaração em causa (que, ao que tudo indica e pelas razões que supra mencionámos, não terá sido propriamente da iniciativa dos Réus, mas sim elaborada de acordo com o pai da Autora) ter-se-á destinado a pôr termo a um arrendamento que, formalmente, ainda estava em vigor, embora, na prática, tal não acontecesse, em virtude de uma boa parte do arrendado já estar ocupado por outras pessoas.

Assim, o reconhecimento da qualidade de arrendatário (em 1995) que emerge daquela declaração não implica necessariamente que aí se estivesse a reconhecer essa qualidade relativamente à casa de habitação e à parcela de terreno daquele prédio que, em 1976, os pais da Autora haviam declarado ter vendido ao referido B (...). 

Refira-se, aliás, que, atribuindo extrema importância e relevância a esta declaração – que, na sua perspectiva, provaria plenamente que B (...) foi arrendatário da casa e parcela de terreno aqui em questão até 1995 e até inviabilizaria qualquer prova testemunhal – a Apelante parece esquecer a relevância e importância da declaração que foi emitida pelos seus pais, onde estes declaram ter vendido a casa e uma determinada parcela daquele prédio ao referido B (...). É que esta declaração – cuja autoria não foi impugnada – também prova plenamente que os pais da Autora a emitiram, reconhecendo que venderam a B (...) as referidas casa e parcela de terreno e que receberam o preço correspondente.

Assim sendo, nenhumas razões encontramos para alterar as respostas dadas aos citados pontos da base instrutória.

Mantém-se, pois, integralmente, a decisão da matéria de facto.

  

Fundamentação de Direito

Considerou a sentença recorrida, em face da matéria de facto provada, que estavam reunidos todos os pressupostos dos quais dependia a aquisição (pelos Réus), por usucapião, do direito de propriedade relativamente à casa de habitação e à parcela de terreno, com a área de 10.000m2, razão pela qual julgou a acção improcedente e julgou procedente a reconvenção.

A Apelante discorda dessa decisão porque, na sua perspectiva, os Réus eram meros detentores da referida casa e parcela de terreno, que apenas detinham por força da condição de rendeiro de B (...), pelo menos até 1995, considerando, por isso, que não praticavam actos materiais na parcela como possuidores nem sequer há 15 anos.

Esta alegação pressupunha – como refere a própria Apelante – a alteração da matéria de facto no sentido que propugnava, o que não aconteceu.

Como é sabido e como decorre do disposto no art. 1287º do C.C., a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou de outro direito real pressupõe a posse do direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa fé ou má fé). A posse que é susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião tem que ser uma posse pública e pacífica (já que, como decorre do disposto no art. 1297º do C.C., os prazos para a usucapião não correm enquanto a posse for violenta ou oculta) e tem que ser uma posse efectiva (que corresponde, segundo o disposto no art. 1251º, ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real) e não uma detenção ou posse precária.

Como decorre da matéria de facto provada, os Réus ocupam uma parcela com cerca de 10.000,00 m2 que foi destacada do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (...), Secção X, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...), o que fazem desde 20/02/1976 (data em que os pais da Autora, J (...)e L (...), declararam ter-lhes vendido essa parcela, bem como uma casa de habitação, pelo preço de 200.000$00, que declararam ter já recebido); desde então, os Réus construíram edificações e vedações nessa parcela; procederam à edificação de várias estruturas de apoio à agricultura e para resguardo dos animais; vedaram essa parcela com rede, servida de portão de abrir e fechar, que deita para a Rua do Bonfim; procederam à plantação de árvores de fruto, oliveiras e videiras; fizeram horta, plantam batatas, milho, aveia, tudo para seu governo e das galinhas, dos patos e dos suínos; colheram (actualmente apenas a ré, depois da morte do marido), as laranjas, azeitonas e uvas, as cebolas e batatas, que depois vendiam numa venda que tinham na praça municipal; habitaram na casa referida e praticaram todos esses actos desde 1976 e até hoje e quanto ao seu marido, até à sua morte, à vista de toda a gente, ostensivamente e sem oposição de quem quer que seja, sabendo que não causavam dano ou prejuízo a outrem e sem interrupção no tempo.

Ou seja, os Réus – mais concretamente, a Ré mulher e o seu marido, B (...) (já falecido) – exerceram durante todos esses anos o poder de facto que corresponde ao “corpus” da posse correspondente ao exercício do direito de propriedade.

A existência de posse não se basta, porém, com essa actuação ou poder de facto (corpus), já que, para que se possa falar em posse, será ainda necessário que exista a intenção de actuar como titular de um direito real sobre a coisa (o animus). De facto, é a existência deste elemento subjectivo (animus) que distingue o possuidor do mero detentor ou possuidor precário, já que, apesar de ambos exercerem sobre a coisa o poder de facto que corresponde ao corpus da posse, o primeiro exerce esse poder com a convicção e a intenção de actuar como titular do direito real correspondente, enquanto que o segundo actua sem essa intenção e com a convicção de que o direito não lhe pertence e que apenas actua por tolerância ou permissão do titular do direito e, portanto, em nome deste (cfr. art. 1253º).

Todavia, apesar de não prescindir da existência do animus, o legislador – consciente das dificuldades de prova desse elemento subjectivo – presumiu a sua existência, determinando – no art. 1252º – que, existindo dúvidas relativamente ao facto de a posse ser exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. E, portanto, caberá àquele que se arrogue a posse provar que quem exerce o poder de facto não é realmente possuidor por estar em causa uma mera detenção ou posse exercida em seu nome.

Ora bem.

Na perspectiva da Apelante, era esta a situação dos Réus, pelo menos até 1995, já que o poder de facto que exerciam sobre a casa e parcela de terreno era feita ao abrigo de um contrato de arrendamento e, portanto, estaria em causa uma mera detenção ou posse precária que era exercida em nome de outrem e que, como tal, não poderia conduzir à usucapião.

A verdade é que, apesar de invocar agora, em sede de recurso, essa situação, a Apelante nunca a invocou nos articulados; nunca alegou que existia um contrato de arrendamento e que era ao abrigo desse contrato, que a Ré, bem como o marido e filhos, praticavam aqueles actos materiais e, portanto, nunca alegou que a posse por eles exercida era uma mera detenção ou posse precária exercida em nome dos respectivos proprietários. 

E, não o tendo alegado, também não o provou, razão pela qual os Réus terão que ser considerados como verdadeiros possuidores da casa e parcela de terreno aqui em questão.

De facto, embora tenha resultado da prova produzida (documental e testemunhal) que o marido da Ré foi arrendatário do prédio do qual faz parte a parcela de terreno que está em causa nos autos – sendo, por isso, durante a vigência desse contrato, um mero detentor ou possuidor precário do prédio, que, em conformidade com o disposto no art. 1290º do C.C., apenas poderia adquirir o imóvel, por usucapião, se tivesse ocorrido inversão do título de posse – a verdade é que a matéria de facto é totalmente omissa a propósito desse contrato. E é omissa porque a existência de tal contrato – bem como a detenção ou posse precária que lhe era inerente – nunca foi alegada nos autos e, não tendo sido alegada, é claro que não poderá ser considerada pelo Tribunal.

O que resulta da matéria de facto provada é apenas que: em 20/02/1976, os pais da Autora, J (...)e L (...), declararam ter vendido ao marido da Ré uma determinada parcela de terreno a destacar do prédio rústico em causa nos autos, bem como uma casa de habitação, pelo preço de 200.000$00, que declararam já ter recebido; que, a partir desse momento, a Ré e seu marido praticaram sobre a referida casa e terreno os mais diversos actos materiais, o que sempre fizeram à vista de toda a gente, ostensivamente e sem oposição de quem quer que seja, sabendo que não causavam dano ou prejuízo a outrem e sem interrupção no tempo.

Ou seja, apesar de a venda a que alude a citada declaração dos pais da Autora ser nula – por inobservância da forma legalmente prescrita – e apesar de não ter idoneidade para transferir o direito de propriedade sobre o imóvel, a verdade é que, a partir daí, a Ré e seu marido passaram a exercer o poder de facto que corresponde ao “corpus” da posse referente ao exercício do direito de propriedade. E, se é certo que, por força daquela declaração, a Ré e marido terão praticado esses actos com o “animus” de proprietários, a verdade é que, de qualquer forma, essa intenção se presume, face ao disposto no já citado art. 1252º, nº 2.

E, presumindo-se a posse naquele que exerce o poder de facto – como decorre da última disposição que citámos – cabia à Autora alegar e provar que, apesar de exercerem o poder de facto, a Ré e marido não eram possuidores, mas apenas detentores ou possuidores precários.

O certo é que a Autora não o alegou e, por essa razão, nada resulta da matéria de facto que permita afirmar que a posse exercida pela Ré e seu marido seja – ou alguma vez tenha sido – uma posse precária exercida em nome de outrem, o que equivale a dizer que a Autora não ilidiu aquela presunção.

Assim, porque a Ré e marido terão que ser considerados como verdadeiros possuidores e porque essa posse foi exercida desde 1976, de forma pacífica e pública, estão reunidos os pressupostos para a aquisição do direito por usucapião, conforme se considerou na sentença recorrida.

Nestes termos, terá que improceder o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Ressalvando os casos em que a decisão da matéria de facto não tem autonomia relativamente à sentença, o dever de fundamentação da sentença – a que alude o art. 659º, nº 3, do C.P.C. e cuja omissão determina a sua nulidade, nos termos do art. 668º, b) – não abrange a motivação da matéria de facto que, em anterior decisão, já foi declarada provada.

II – A falta de fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto não determina a nulidade da sentença ou do julgamento, podendo apenas determinar – se a parte o requerer e se a falta ou deficiência de fundamentação se reportar a factos essenciais para o julgamento da causa – a remessa dos autos à 1ª instância para que colmate aquela falha, fundamentando a decisão e repetindo a prova, se necessário (art. 712º, nº 5, do C.P.C.).

III – Presumindo-se a posse naquele que exerce o poder de facto correspondente ao exercício do direito (art. 1252º, nº 2, do C.C.), caberá àquele que se arroga possuidor alegar e provar que o exercício (por outrem) daquele poder de facto corresponde a uma mera detenção ou posse precária que, como tal, não é susceptível de conduzir à aquisição do direito, por usucapião, sem que exista inversão do título da posse.

IV – Assim, estando demonstrado o exercício daquele poder de facto (corpus) e não tendo sido alegado que o exercício desse poder corresponda – ou alguma vez tenha correspondido – a uma mera detenção ou posse precária exercida em nome de outrem, impõe-se concluir que quem exerce aquele poder de facto é possuidor, podendo, por via dessa posse e desde que verificados os demais requisitos, adquirir o respectivo direito por usucapião.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª ed., pág. 677.
[2] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 348.