Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/10.7TBPPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
INTERPRETAÇÃO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
CLÁUSULA DE LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE
NULIDADE
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - LOUSÃ - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 426 C COM., 236, 238 CC, DL Nº 446/85 DE 25/10, DL Nº 176/95 DE 26/7
Sumário: 1.- O contrato de seguro é um contrato bilateral, de execução continuada, aleatório e de adesão, pelo qual uma das partes se obriga a cobrir um risco e, no caso da sua concretização, a indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos.

2. Ocorrido um sinistro, há, no caso de dúvida sobre se o mesmo integra o risco, que precisar o verdadeiro objecto do contrato outorgado, com recurso, nomeadamente, às regras de interpretação do negócio jurídico fixadas nos art.ºs 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1, do CC, podendo o intérprete socorrer-se de outros elementos interpretativos que não a apólice, sendo que limitar a análise do contrato de seguro à apólice seria denegar protecção à parte mais fraca.

3. As cláusulas constantes das condições especiais da apólice de seguro estão sujeitas ao regime das cláusulas contratuais gerais previsto no DL 446/85, de 25/10.

4. Por desvirtuar e esvaziar consideravelmente o conteúdo do contrato de seguro e beneficiar, desmedida e injustificadamente, a posição contratual da seguradora, pondo em perigo a finalidade visada com a celebração do contrato, não é permitida (devendo ser declarada nula), num contrato de seguro de responsabilidade civil (do ramo construção civil), a cláusula (inserta nas “condições especiais”) que exclua da respectiva cobertura/garantia os danos “decorrentes da falta de cumprimento das normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da actividade” ou “resultantes da não adopção das medidas de segurança aconselháveis”.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

             I. G (…), Companhia de Seguros, SpA, propôs a presente acção ordinária contra I (…), Lda., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 36 955,87, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

            Alegou, em síntese: em 16.7.2008, no Parque Eólico do Toutiço, Pampilhosa da Serra, ocorreu um acidente entre duas máquinas volvo Dumper A25, a Dumper n.º 1514 (segura na A., por danos próprios), propriedade de J (…), Lda., e a Dumper n.º 5350V[1] (terceiro), pertença de A (…), que a alugou à Ré; o embate deu-se devido à actuação do condutor do referido segundo Dumper (violou o art.º 24º do Código da Estrada/CE – excesso de velocidade, além de se verificar a presunção legal de culpa do art.º 500º, n.º 1, do Código Civil/CC), ocasionando danos irreparáveis nos principais órgãos do Dumper seguro referidos na petição inicial (p. i.), com a consequente perda total; a A. indemnizou a segurada (proprietária) pelo valor venal do Dumper seguro (€ 32 355,87) acrescido de custos com a remoção (€ 4 600).

            Citada, a Ré contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação. Arguiu a sua ilegitimidade por não ser a proprietária do Dumper terceiro; impugnou a versão da dinâmica do evento, afirmando, nomeadamente, que o mesmo ocorreu num estaleiro de obra e não numa via pública, e é imputável ao condutor do Dumper n.º 1514 (que abandonou a máquina e esta começou a descer e ganhar velocidade, caindo na ravina, sem qualquer contacto com o outro Dumper); a dona daquela máquina, por via do contrato de seguro, é responsável pelo pagamento dos prejuízos.             Conclui pela sua absolvição da instância, ou do pedido, e requereu a intervenção principal provocada da proprietária do Dumper terceiro.

            A A. replicou, concluindo pela improcedência da excepção de ilegitimidade; pediu, como na p. i., que a Ré juntasse aos autos cópia do mencionado contrato de aluguer, e que informasse da existência de eventuais seguros de responsabilidade civil de actividade, juntando-os aos autos; referiu, ainda, que mesmo que não se considerem aplicáveis as normas do Código da Estrada, o sinistro ocorreu por incúria, falta de perícia e inexperiência do condutor do Dumper terceiro, que exercia uma actividade perigosa e não respeitou as normas técnicas de segurança da obra.

            Prestados os esclarecimentos de fls. 114 e pedida a intervenção provocada da Companhia de Seguros A (…), S. A., foi depois admitida a intervenção principal de A (…) e da dita Seguradora.

            A Companhia de Seguros A (…)para a qual a Ré havia transferido o risco derivado do exercício da respectiva actividade de construção civil, contestou, tendo concluído pela inaplicabilidade da apólice: o local do risco da apólice escolhido foi Miranda do Corvo, sendo que o acidente em discussão terá ocorrido em Pampilhosa da Serra; o objecto da garantia é a responsabilidade civil extracontratual, desconhecendo se existe um eventual vínculo contratual entre a empresa segura na A. e a segurada Ré; a admitir-se a versão da p. i., os danos reclamados encontram-se excluídos da apólice por decorrentes da falta de cumprimento das normas legais e/ou regulamentares e dos usos próprios da actividade ou serem resultantes da não adopção das medidas de segurança aconselháveis. Invocou ainda que estão contempladas na apólice de seguro outras “exclusões” que se aplicam ao caso, designadamente: na al. k) do art.º 6º, decorrente de trabalhos de demolição/escavações; nas alíneas m) e n), trabalhos alheios à actividade do segurado (movimentação de terras de um aterro para outro); ou resultantes de defeitos/ineficácia de produtos utilizados pelo segurado. No mais, aderiu aos argumentos da Ré/segurada e impugnou a versão da A. e respectivos documentos. Por fim, invocou que, caso se venha a apurar que é da sua responsabilidade o ressarcimento dos danos reclamados, caberá à Ré arcar com o valor da franquia de 10 % do custo do sinistro, no mínimo de € 500.

            Concluiu que devem as cláusulas contratuais de exclusão da responsabilidade por si invocadas serem aplicadas ao presente sinistro absolvendo-se a Chamada do pedido, ou, em todo o caso, deve a acção improceder, com a “consequente absolvição da Ré e Chamada da instância”.

            A (…) contestou, a fls. 160, concluindo pela sua ilegitimidade, pedindo a sua absolvição do pedido e indicando o seguro, “para efeitos de circulação”, do Dumper terceiro.

            Foi depois suscitada, e admitida, a intervenção provocada da F (…) S. A., e ordenada a notificação da Ré para juntar a apólice de responsabilidade civil pelos riscos de exploração da referida máquina.

            A Interveniente Companhia de Seguros F (…) contestou, a fls. 245, por excepção (inexistência de contrato de seguro à data do sinistro) e por impugnação (o sinistro ocorreu num estaleiro de obra, em local vedado ao trânsito de veículos, tratando-se, assim, de um acidente de laboração/industrial), concluindo pela improcedência da acção.

            Foi proferido despacho saneador (tabelar) e seleccionada a matéria de facto (assente e controvertida), não reclamada.

            Realizado o julgamento, o Tribunal julgou a acção procedente, e, em consequência, condenou a Interveniente A (…) a pagar à A. a quantia de € 36 955,87 acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à citação até integral pagamento, deduzida da quantia de € 3 695,59 a título de franquia; condenou a Ré no pagamento daquele valor da franquia, absolvendo-a do demais pedido; absolveu os demais Intervenientes (do respectivo pedido).

            Inconformada, pugnando pela sua “absolvição”, a Interveniente A (…) interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            A Mm.ª Juíza a quo veio a concluir pela inexistência da invocada “nulidade”.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar, sobretudo, as seguintes questões: a) nulidade da sentença; b) decisão de mérito, face à factualidade provada (não impugnada) e ao teor do contrato de seguro que teve por objecto o risco da actividade de construção civil desenvolvida pela Ré, maxime, se os danos em causa estão abrangidos, ou não, pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro firmado entre a Ré e a recorrente.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) O Dumper Volvo A25 n.º 1514 encontrava-se seguro pelo contrato titulado pela apólice 8144 10000001 0000001807 da A., na qual consta a cláusula 30ª, sob a epígrafe de “Sub-rogação”, como seguinte teor: n.º 1, “A seguradora, uma vez paga a indemnização, fica sub-rogada até à concorrência da quantia indemnizada, em todos os direitos do Segurado, contra terceiros responsáveis pelos prejuízos, obrigando-se o Segurado a praticar o que necessário for para efectivar esses direitos”; n.º 2, “O Segurado responderá por perda e danos por qualquer acto ou omissão voluntária que possa impedir ou prejudicar o exercício desses direitos” - cf. documentos de fls. 50 a 70. (A) 

            b) Pelo contrato titulado pela apólice 9301 10013690 93 a Ré transferiu para a chamada Companhia de Seguros A (…). A., a responsabilidade civil para o exercício da sua actividade de construção civil e obras públicas (cf. documentos de fls. 230 a 239). (B)

            c) Do contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração (ramo construção civil/”RC GERAL – EMPRESAS”) titulado pela apólice mencionada em II. 1. b) (emitida em 14.9.2005/”acta n.º 5”, com “data efeito” a 03.6.2005) consta, designadamente:

            Das Condições Especiais:

            - Cláusula 2ª: “A Seguradora garante, dentro dos limites fixados na apólice, as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que, exclusivamente durante os trabalhos de construção civil descritos na apólice, sejam causados a terceiros por actos ou omissões dos seus legítimos representantes ou das pessoas ao seu serviço e pelas quais seja civilmente responsável.”

            - Cláusula 4ª: “Os danos resultantes da utilização de máquinas destinadas à construção civil só serão garantidos se as mesmas não estiverem sujeitas a seguro obrigatório automóvel e quando não se encontrem em circulação na via pública.“

            - Cláusula 6ª: “Além das exclusões previstas nas condições gerais ficam excluídos os danos: b) decorrentes da falta de cumprimento das normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da actividade; k) resultantes de trabalhos de demolição e/ou escavações; m) Resultantes de quaisquer trabalhos alheios à actividade do Segurado; n) Resultantes de defeitos ou ineficácia de produtos utilizados pelo Segurado no exercício da sua actividade; o) Resultantes da não adopção das medidas de segurança aconselháveis; p) Resultantes de trabalhos ligados a construção, reparação, ampliação de (…) estradas.”

            Cláusula 7ª: “Em caso de sinistro, fica a cargo do segurado a franquia estipulada nas condições particulares”, sendo a franquia de 10 % do valor do custo do sinistro, no mínimo de € 500.

            Condições gerais:

            Artigo 2º, n.º 1 - “O presente contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado enquanto na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referida nas Condições Especiais e Particulares, ficando garantidos os danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, exclusivamente decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causadas a terceiros, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes”.

            Artigo 3º, n.º 1 - “Ficam sempre excluídos os seguintes danos: (…) al. b) decorrentes de acidentes provocados por veículos que, nos termos da legislação em vigor, sejam obrigados a seguro”.

            Condições particulares:

             “Riscos Seguros”: “Responsabilidade Civil Construção Civil”. Local de risco: “Miranda do Corvo”.[2]

            d) O Chamado A (…) transferiu para a chamada F (…) o seguro de responsabilidade civil automóvel, relativo ao Dumper Volvo A25 n.º 5350V, através do contrato titulado pela apólice 751542468 – na qual consta a cláusula 2ª, sob a epígrafe “Objecto e garantias do Contrato”, n.º 1 “O presente contrato corresponde ao legalmente exigido quanto à obrigação de segurar a Responsabilidade Civil decorrente da circulação de veículos terrestres a motor, seus reboques ou semi-reboques perante terceiros, transportados ou não, por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais, nos termos da lei”; n.º 2, al. a) “O presente contrato garante a responsabilidade civil do proprietário do veículo, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, bem como dos seus legítimos detentores e condutores, pelos prejuízos causados a terceiros em virtude da circulação do veículo seguro, até aos limites e nas condições legalmente estabelecidas”- cf. documentos de fls. 445 a 510. (C - corrigida por acordo/Acta de fls. 702/711)

            e) A Ré celebrou com A (…), contrato de aluguer do Dumper Volvo A25 n.º 5350V, que à data do acidente era a máquina Dumper Terceiro. (D e 72º)

            f) No dia 16.7.2008, pela 9.30 horas, no Parque Eólico do Toutiço, em Pampilhosa da Serra, ocorreu um acidente entre a máquina industrial de Marca Volvo Dumper A25, n.º 5350V e a máquina industrial de Marca Volvo Dumper A25, n.º 1514. (1º)

            g) A máquina industrial de Marca Volvo Dumper A25 – n.º 5350V é pertença de A (…), empresário em nome individual. (2º)

            h) Por contrato de aluguer celebrado entre A (…) e a Ré, esta última era a única e exclusiva responsável pela laboração do referido veículo. (3º)

            i) A máquina industrial de Marca Volvo Dumper A25 n.º 1514 era pertença da sociedade comercial J (…) Lda., e foi adquirida através de contrato de leasing celebrado com a sociedade Totta – Crédito Especializado, Instituição de Crédito, S. A.. (4º)

            j) O local da ocorrência do acidente mencionado em II. 1. f) encontrava-se em obras e a actividade das máquinas consistia na movimentação de terras de um aterro para outro, tratando-se aquele local de um estaleiro de obra, não aberto ao trânsito automóvel, mas reservado aos veículos em serviço. (5º, 41º, 42º e 43º).

            k) As máquinas efectuavam um percurso de subida e descida com acessos distintos. (6º)

            l) Desciam carregados com terra por um acesso até ao depósito de material onde descarregavam a sua carga. (7º)

            m) Reiniciavam a sua marcha, subindo, por outro acesso e para outro aterro. (8º)

            n) Havia um ponto de cruzamento entre os dois acessos, uma zona alargada com dois “trilhos”, que permitia o cruzamento de duas máquinas. (9º e parcialmente 40º)

            o) Nesse ponto de cruzamento [o condutor da] máquina que subia (descarregada) verificava se a outra máquina já tinha passado. (10º)

            p) Se a máquina que descia (carregada) ainda não tivesse passado, a máquina que subia aguardava até aquela ultrapassar o cruzamento para prosseguir a sua marcha até ao ponto de carga. (11º)

            q) O sinistro ocorreu próximo do ponto de cruzamento das duas máquinas. (12º)

             r) O condutor do Dumper Seguro iniciou a sua marcha de subida e chegado ao ponto de cruzamento verificou que o Dumper Terceiro ainda não tinha passado. (13º)

             s) Imobilizou a sua máquina e aguardou pela passagem do Dumper Terceiro (carregado). (14º)

            t) O condutor do Dumper Terceiro efectuou a descida desgovernado e sem o controlo da sua máquina. (15º)

            u) Veio na direcção do Dumper Seguro. (16º)

            v) Perdeu o controlo da máquina e com receio de resvalar para a ravina à sua direita guinou para a esquerda. (17º)

            w) Na tentativa de evitar o embate de frente no Dumper Seguro guina novamente para a esquerda, para embater na barreira ali existente. (18º e 19º).

            x) O que determinou que tombasse para a direita, capotasse, e que embatesse, com parte da máquina não concretamente apurada, no Dumper Seguro. (20º)

             y) Em consequência do acidente o Dumper Seguro foi projectado e capotou por uma ravina com cerca de 150 metros. (21º)

             z) O condutor do Dumper Seguro não sofreu quaisquer lesões porquanto se apercebeu que o Dumper Terceiro vinha desgovernado na sua direcção e saltou antes da ocorrência do embate. (22)

            aa) O condutor do Dumper Terceiro teve de ser socorrido pelos Bombeiros Voluntários de Pampilhosa da Serra, que o transportaram ao Centro de Saúde de Pampilhosa da Serra. (23º)

            bb) No local do sinistro compareceu a GNR de Pampilhosa da Serra que elaborou o auto de Ocorrência com o n.º de Registo 11/08, sem qualquer referência ao Dumper Seguro e ao depoimento do seu condutor, por ter sido tratado como acidente de trabalho que apenas provocou lesões no condutor do Dumper Terceiro. (24º)

            cc) O referido auto de ocorrência foi enviado para o Tribunal de Trabalho de Coimbra, sendo que foi arquivado porque o condutor do Dumper Terceiro não manifestou intenção de deduzir queixa. (25º)

            dd) Em consequência dos factos anteriores e por ter caído na ravina, a frente do Dumper Seguro ficou totalmente danificada e a cabine de operação ficou totalmente destruída. (26 e 27º)

            ee) O veículo em apreço foi declarado pela A. como perda total, porquanto a reparação era materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as condições de segurança. (28º)

            ff) A A. procedeu ao cálculo do valor venal do Dumper Seguro. (29º)

            gg) A A., ao abrigo do seguro de danos próprios, titulado pela apólice 8144 10000001000 0001807, indemnizou o segurado J (…), Lda., no valor correspondente ao valor venal do Dumper Seguro, que se cifra em € 32 355,87 (trinta e dois mil trezentos e cinquenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos). (30º)

            hh) A A. teve de suportar os custos com a remoção do Dumper Seguro. (31º)

            ii) Atento o facto de o Dumper ter capotado e caído para um local de difícil acesso os custos com a remoção importaram em € 4 600 (quatro mil e seiscentos euros). (32º)

            jj) Quantias que a A. pagou ao segurado J (…), Lda.. (33º)

            kk) O condutor do Dumper Terceiro era funcionário da Ré e laborava, no seu horário de trabalho, sob as instruções desta. (34º)

            ll) Por sua conta, ordem e no seu único e exclusivo interesse. (35º)

            mm) Por carta datada de 07.11.2008 a A. reclamou junto da Ré o reembolso das quantias despendidas. (36º)

            nn) Por carta datada de 12.11.2008, a Ré declinou a responsabilidade pelo sinistro. (37º)

            oo) A Ré nunca se mostrou disponível e não autorizou os seus funcionários a reunirem com os serviços da A., não permitindo a esta obter mais dados sobre o presente sinistro: as características do Dumper Terceiro, a versão do seu condutor e se existe ou não seguro de responsabilidade civil. (38º)

            pp) A (…) comunicou sempre aos representantes da Ré que o Dumper Terceiro estava coberto por seguro de responsabilidade civil automóvel, e que apresentariam a respectiva apólice. (39º)

            qq) Na ligação entre os dois aterros, havia um ponto em que passavam por uma lomba. (44º)

            rr) Passando essa lomba, iniciava-se uma descida onde, alguns metros mais à frente, existia a citada zona mais alargada que permitia o cruzamento das máquinas. (45º)

            ss) O operador do Dumper n.º 1514 que se encontrava imobilizado, ao aperceber-se do surgimento do Dumper terceiro saltou da cabine do mesmo. (54º e 60º)

            tt) A máquina estava a ser utilizada pela Ré no exercício da sua actividade industrial de prestação de serviços que havia contratado com terceiros. (68º)

            uu) Era a Ré quem determinava a qualidade e quantidade de serviços da máquina e as circunstâncias em que os mesmos ocorreriam. (69º)

            vv) E quem a utilizava no seu próprio interesse. (70º)

            ww) Utilização essa, através de terceiro, funcionário seu ou contratado por si para o efeito (o respectivo condutor ou operador). (71º)

            2. E deu como não provado:

            a) Nas circunstâncias referidas em II. 1. n) se tratassem de duas faixas de rodagem.

            b) Nas circunstâncias referidas em II. 1. u) tivesse embatido no dumper seguro.

            c) Nas circunstâncias referidas em II. 1. x) tivesse embatido com a sua lateral direita.

            d) O local do acidente se tratasse de uma zona alargada.

            e) Que a lomba referida em II. 1. qq) fosse de tal forma pronunciada que, só estando no seu topo e numa posição avançada, se tivesse visibilidade para o outro lado.

            f) Nas circunstâncias referidas em II. 1. rr), havia uma separação de acessos, tendo como referência o topo da colina, e que as máquinas descessem carregadas pelo lado esquerdo, descarregassem na zona de aterro (no final da descida), e que subissem descarregadas pelo lado direito.

            g) As regras para o cruzamento determinavam que, o Dumper que subisse descarregado, deveria aguardar no lado direito (visto do topo da colina) in casu o n.º 1514, até que o Dumper que descia carregado passasse pelo lado esquerdo, in casu o nº 5350V.

            h) Estes sentidos de movimentação eram determinados pela direcção de obra constituindo uma regra a ser cumprida por todos os operadores de máquinas em concreto.

            i) O condutor do Dumper n.º 1514, segurado pela A., em vez de esperar no lado a que estava obrigado, ou seja, o direito, estava imobilizado no lado esquerdo, exactamente por onde era hábito fazer-se a descida. (49º)

            j) Tenha subido pelo acesso em que normalmente se descia e aí imobilizasse a sua máquina. (50º)

            k) O condutor do Dumper n.º 5350V, após passar a lomba supra referida, se tivesse deparado, sem que nada o fizesse prever, com o n.º 1514 imobilizado no local por onde deveria o seu deveria passar.

            l) Por esse motivo tentou imobilizar a sua máquina no espaço que ainda tinha à sua frente, prevendo a possibilidade de embater no n.º 1514, virou para o lado da barreira, momento em que capotou lateralmente sobre o seu lado direito, após o que o Dumper se imobilizou.

            m) Que fosse em virtude do operador do Dumper n.º 1514, se encontrar imobilizado no local errado (onde o outro deveria passar), que ao aperceber-se do surgimento deste, tenha abandonado a sua máquina, saltando da cabine.

            n) Ficou algo distanciado do Dumper n.º 1514 e, em momento algum chegou a existir qualquer contacto físico entre as duas máquinas.

            o) O Dumper 1514 não apresente qualquer marca de ter existido colisão, em virtude dos danos visíveis serem apenas somente consequência do capotamento.

            p) Nas circunstâncias referidas em II. 1. rr) o dumper n.º 1514 estivesse no local errado.

            q) O Dumper n.º 1514 trabalhou na obra em questão durante sete dias e, na frente de obra onde se veio a dar a ocorrência, devesse ter trabalhado a partir do dia 11.7.2008 e por vários dias.

            r) Logo no primeiro dia (11 de Julho), só trabalhasse entre as 8:00 e as 10:00, porque evidenciava problemas com o sistema de travagem.

            s) Os mecânicos da proprietária “João Ribeiro Dias & Filhos, Lda.” trabalharam então na referida máquina com o objectivo de sanar o problema de travões.

            t) Tendo dado a mesma apta para continuar o trabalho na Terça-Feira dia 15 de Julho e véspera do acidente.

            u) No dia do acidente este Dumper trabalhou das 8:00 até à ocorrência do mesmo às 9:30m.

            v) Nas circunstâncias referidas em II. 1. ss) o operador do Dumper 1514 se tivesse esquecido de accionar o travão da máquina.

            w) Mesmo que o travão de mão fosse accionado não teria capacidade para manter o Dumper imobilizado, já que se tratava de maquinaria pesada num declive acentuado.

            x) Tratasse de um equipamento que já por mais de uma vez tinha revelado problemas de travões.

            y) Fosse em virtude do abandono da máquina pelo seu operador, que ela começou a descer, a ganhar velocidade e por fim cair pela ravina abaixo, sem que sofresse qualquer contacto do Dumper terceiro.

            z) Se o operador se mantivesse no seu posto poderia ter controlado a sua máquina, evitando que ela descesse abandonada e desgovernada pela ravina abaixo.

            aa) O capotamento do Dumper n.º 1514 tivesse sido uma consequência directa do facto dele, estar posicionado no local errado, e que os danos por ele sofridos tivessem sido apenas uma consequência directa do seu abandono por parte do operador.

            bb) O operador do referido Dumper n.º 5350V seja um trabalhador experiente e conhecedor tanto da máquina como do local em estava a laborar e tenha cumprido todos os procedimentos de segurança que são exigíveis numa obra com as características desta.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            No que concerne à problemática do “local do risco” e às “exclusões” previstas no art.º 6º das “condições especiais” da apólice, diz a recorrente, nomeadamente, que atenta a matéria de facto provada (mormente, quanto ao “local do risco”) e a fundamentação da matéria de facto assente (sobretudo, em relação à causa do evento e à actividade de construção de uma estrada), a interpretação efectuada pelo tribunal a quo está em clara contradição com a matéria de facto dada como provada e/ou a respectiva fundamentação, pelo que a sentença é nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º, do CPC.

            A Mm.ª Juíza a quo concluiu pela inexistência de tal vício, tendo referido, designadamente: o que resultou provado[3] é que o acidente foi causado durante e no exclusivo desempenho funcional do Dumper, no local onde essa actividade era desenvolvida, local esse não aberto ao trânsito automóvel, mas reservado aos veículos em serviço. A circulação do Dumper foi desenvolvida na específica prossecução dos trabalhos de movimentação de terras. Nesta decorrência, a construção de trilhos/acessos temporárias não era a finalidade da obra, apenas visou facilitar a actividade da construção civil desenvolvida; a finalidade dos trabalhos não era a construção, reparação ou ampliação de qualquer estrada, e que os “trilhos provisórios” tiveram apenas uma função coadjuvante da actividade desenvolvida de movimentação de terras; a interpretação defendida pela recorrente, contraria o próprio objecto do contrato bem como o risco que se pretendia salvaguardar; [relativamente às “exclusões” do art.º 6º das “condições especiais”, especialmente, a respectiva alínea “b)”] é de tal forma incompatível com o risco que se pretende assegurar que torna excessivamente difícil a assunção do risco que envolve o fim do contrato, e, como se referiu na sentença sob censura, “não restam quaisquer dúvidas, que é abusiva a cláusula que, num seguro de responsabilidade civil de exploração do ramo da actividade de construção civil, exclua os danos consequência da inobservância de disposições legais e dos usos próprios da actividade ou serem resultantes da não adopção das medidas de segurança aconselháveis (neste sentido também AC. STJ de 14-11-2006, revista n.º 3618/06), porquanto tal cláusula retira utilidade ao seguro em causa face à tua amplitude”.

            Reza a referida disposição legal [alínea c) do n.º 1 do art.º 615º, do CPC] que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

O vício em causa verifica-se sempre que exista contradição dos fundamentos com a decisão, quanto os fundamentos de facto e de direito invocados conduzirem logicamente a resultado oposto ou diverso daquele que integra o respectivo segmento decisório, ou se ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

            Isso significa que os fundamentos de facto e de direito da sentença devem ser logicamente harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão e que tal se não verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta.

Contudo, uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão da sentença [vício na construção da sentença, vício lógico nessa peça processual], e outra, essencialmente diversa, o erro de interpretação dos factos ou do direito ou na aplicação deste [a errada valoração da prova produzida ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis/o erro de julgamento/a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário] que não raro se confunde com aquela contradição.[4]

 Perante o descrito enquadramento e analisada a sentença sob censura é manifesto que a mesma não sofre do mencionado vício, sendo que a decisão sobre a matéria de facto também se encontra fundamentada, a fls. 749 a 761, de forma lógica, suficiente (procedendo-se à análise crítica das provas e especificando-se as concretas razões que conduziram a essa decisão) e inteligível.

Ademais - e relevando para a apreciação das questões submetidas à apreciação desta Relação -, a recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto (dada como provada ou não provada), pelo que fica naturalmente prejudicada ou impossibilitada a eventual reapreciação da prova produzida nos autos e em audiência de julgamento [cf., v. g., as “conclusões 25ª e 26º”, ponto I, supra],

Improcede, assim, a invocada “nulidade”, que não se confunde com eventuais falhas/erros da decisão de facto ou “erros de julgamento”.

         4. O sinistro em análise ocorreu no desempenho da actividade de construção civil da Ré, actividade segura por contrato de responsabilidade civil celebrado com a recorrente.

            E esta não se insurge propriamente contra a afirmada verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art.º 483º, n.º 1, do CC); questiona, sim, que estejam reunidos os requisitos para que, na qualidade de seguradora dos riscos inerentes ao desenvolvimento da actividade prosseguida pela Ré (de construção civil e obras públicas), e em razão do contrato de seguro dito em II. 1. alíneas b) e c), supra, esteja obrigada a indemnizar os danos sobrevindos, inclusive, no contexto de uma acção sub-rogatória como aquela que a A. decidiu exercitar.

            Por outro lado, dúvidas não restam de que o evento em apreço está relacionado com os riscos próprios do funcionamento de uma máquina industrial (estando o Dumper a laborar no desempenho da actividade prosseguida pela Ré), e não com os riscos inerentes à sua circulação enquanto veículo automóvel [cf., designadamente, II. 1. j) e l), supra, e art.º 4º, n.º 4, do DL 291/2007, de 21.8/Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, que estabelece que a obrigação de seguro não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais].[5]  

            5. O contrato de seguro é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[6]

            É um contrato que tem natureza de contrato bilateral, de execução continuada, aleatório e de adesão.[7]

            6. Dado o momento em que os factos em causa tiveram lugar [cf. II. 1. f), supra], na fixação do conteúdo do contrato de seguro em apreço atender-se-á ao disposto na respectiva apólice (art.º 426º, do Código Comercial/C. Com.), no DL 176/95, de 26/7 (diploma que veio estabelecer regras de transparência para a actividade seguradora e disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro)[8] e - na interpretação das cláusulas de limitação do risco assumido - à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais/LCCG (DL n.º 446/85, de 25.10[9], aplicável aos contratos de seguro, pelo menos desde a alteração introduzida pelo DL n.º 220/95, de 31.10).

            Resultava do art.º 426º, do C. Com.[10], que o seguro em causa era contrato sujeito a forma, por dever ser reduzido a escrito, num instrumento que constituía a apólice de seguro (formalidade ad substantiae); o § único do mesmo art.º acrescentava que a apólice devia enunciar, além do mais, o objecto do seguro e a sua natureza e valor (3º), os riscos contra que se faz o seguro (4º) e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes (8º).

            Estabelecia também o art.º 427º, do C. Com., que o contrato de seguro se devia reger, em primeira linha, pelas estipulações e cláusulas da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do próprio Código Comercial; e, além destas, subsidiariamente ainda, pelas regras do direito civil (art.º 3º, do C. Com.).

            Aquelas estipulações e cláusulas seriam precisamente as condições da apólice do seguro, as quais podem e devem ser objecto de interpretação, como quaisquer outras declarações de vontade e, de resto, tratando-se (além do mais) de cláusulas contratuais gerais teriam sempre de ser interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam (art.º 10º do DL n.º 446/85, de 25.10).

            Normalmente, a apólice[11] era constituída pelas condições gerais, estipulações que, de um modo genérico, regulavam determinado tipo de seguro, que previamente eram oficialmente aprovadas, se revestiam de carácter imperativo e que eram idênticas para todos os contratos do mesmo género; pelas condições especiais, normalmente adoptadas pela seguradora relativamente a um risco ou cobertura específica, a ter em consideração apenas quando se encontrassem discriminadamente referenciadas nas condições particulares; e por estas condições particulares que constituíam o enunciado dos elementos individuais necessários à elaboração do contrato singular, por norma, cláusulas manuscritas ou dactilografadas que permitiam adaptar o contrato a cada espécie.

            7. Em geral, para a delimitação do objecto do contrato de seguro há que interpretar, então, as condições gerais, especiais e particulares, que o constituem e que, como se viu, constam da apólice do contrato (e porventura ainda da própria proposta do seguro).

            Na interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes, do CC), com as especificidades decorrentes dos art.ºs 7º, 10º e 11º da LCCG e 8º e 9º do DL n.º 176/95, de 26.7.[12]

            E por isso é que a sua interpretação haverá de ser feita em conformidade com as regras de interpretação dos negócios jurídicos. Seja nas cláusulas contratuais gerais e especiais do seguro, sejas nas cláusulas particulares, estas individualmente contratadas, deve seguir-se a regra do art.º 236º, n.º 1, do CC, onde se consagra uma teoria objectivista, na modalidade da chamada doutrina da impressão do destinatário, para a qual é relevante o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante, supondo-se aquele uma pessoa normalmente diligente e experiente e devendo atender-se aos termos do negócio, aos interesses nele compreendidos, ao seu mais razoável tratamento, ao objectivo do declarante e às demais circunstâncias do caso concreto.

           No caso do seguro, negócio formal, esta doutrina ainda sofre desvios no sentido de um maior objectivismo, não podendo a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238º, n.º 1, do CC); não significando isso, contudo, que o intérprete não possa socorrer-se de outros elementos interpretativos que não a apólice, sendo que limitar a análise do contrato de seguro à apólice seria denegar protecção à parte mais fraca.[13]

            Os conceitos e linguagem utilizados na apólice e outros escritos relativos ao contrato de seguro; a complexidade dos clausulados dos contratos; a necessidade de articular as condições gerais e particulares; a consideração de outros documentos anteriores ou posteriores à apólice, são algumas das fontes de dificuldades na interpretação do contrato de seguro. E significam portanto que importará sempre uma cuidadosa análise do contrato, através dos meios consentidos em direito e com as limitações já referidas.[14]

            Há, para finalizar, ainda um outro princípio a que se deve prestar atenção e que é o da boa fé contratual, no sentido de que os contratos devem ser negociados, celebrados, interpretados, integrados e cumpridos, segundo os princípios da boa fé. E dado que, como se vê, o contrato de seguro, em especial no que se trata das cláusulas gerais que o regem, é essencialmente um contrato de adesão, em que o particular aceita um conjunto de cláusulas, cujo texto foi via de regra preparado antecipada e genericamente pela seguradora (e que normalmente só pode aceitar ou recusar, sem lhe poder introduzir qualquer alteração), a interpretação das suas cláusulas de harmonia com os princípios da boa fé é uma forte e natural imposição legal.[15]

            8. O regime imperativo das cláusulas contratuais gerais aplica-se às condições gerais e especiais elaboradas sem prévia negociação individual, mas já não às cláusulas particulares, às quais se aplicam as regras gerais de interpretação do negócio jurídico.[16]

            Em matéria de cláusulas contratuais gerais o art.º 11º, n.º 2, da LCCG, estabelece o princípio do in dubio contra proferentem, de acordo com o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário, em aplicação do critério mais objectivo – emergente aliás do n.º 1 do art.º[17] –, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.

            9. Relativamente às cláusulas abusivas no contrato de seguro tem vindo a ser entendido, no tocante às cláusulas de definição e exclusão/limitação do risco, nomeadamente, que se deverá ponderar a finalidade do contrato e, assim, quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do seguro podia (de boa fé) contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato, tais cláusulas são nulas.

            Neste contexto, o Supremo Tribunal de Justiça já considerou abusiva a cláusula que, num seguro de responsabilidade civil resultante da actividade de construção, exclua os danos consequência da inobservância de disposições legais e/ou camarárias, na medida em que tal cláusula retira utilidade ao seguro em causa face à sua amplitude, entendendo-se ainda, e em geral, que se impõe o seu conhecimento oficioso, tanto no domínio das cláusulas abusivas (art.ºs 286º, do CC e 12º, da LCCG), como das cláusulas não transparentes (integradas num regime que releva da ordem pública económica, subsistindo o interesse público em que as cláusulas nele abrangidas não produzem efeitos).[18] 

            10. Na interpretação deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada.

            Por outro lado, no domínio da interpretação de um contrato - que consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com essas declarações -, surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente, a natureza e o objecto do negócio, as circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes e os interesses em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento).[19]

            11. O contrato que, por certo, mais questões suscita quanto à sua interpretação e integração é o contrato de seguro, e a definição dos riscos assumidos (as cláusulas que definem ou delimitam claramente o risco seguro e o compromisso do segurador) é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado respectivo.[20]

            Trata-se de matérias que exigem sobretudo bom senso e uma análise serena dos interesses em presença: dos tomadores de seguro consumidores, frequentemente logrados nas suas legítimas expectativas por cláusulas ambíguas, demasiado técnicas ou escondidas nas apólices; das seguradoras que lutam contra a fraude dos segurados e para as quais a definição do risco é essencial para uma boa gestão dos seus negócios.

            Se é certo que, tratando-se de um negócio formal, a interpretação, efectuada de acordo com os princípios gerais, deve encontrar no documento um mínimo vestígio (no dizer da lei, “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”), também não se poderá arredar ou menosprezar o entendimento de que deverá a interpretação literal ser afastada se conduzir a soluções desprovidas de qualquer racionalidade, cabendo ao intérprete, usando da sua ampla margem de apreciação, encontrar, à luz dos princípios legais, a melhor e mais razoável protecção (e concordância prática) dos interesses em presença.[21]

            12. Ao contratar o seguro dito em II. 1. b) e c), supra, a Ré Isidoro Correia da Silva, Lda., pretendia ver garantidos os acidentes sofridos no âmbito da sua actividade industrial de construção civil e obras públicas, resultando dos elementos disponíveis [atendendo, por exemplo, ao objecto/finalidade e aos meios da obra dos autos] que essa actividade não se confina(va) a uma determinada Rua[22], ou a uma determinada Localidade [em particular, a Vila de Miranda do Corvo, lugar da sede da Ré] ou, sequer, a um determinado Concelho [precisamente, Miranda do Corvo, um dos dezassete Concelhos do Distrito de Coimbra e com uma área de aproximadamente 126 km2 (cerca de 3,2 % da área do Distrito), sendo que o Concelho da ocorrência, Pampilhosa da Serra, pertence ao mesmo Distrito], antolhando-se, assim, evidente que a Ré, empresa de dimensão regional,  sempre quis garantir todo e qualquer sinistro directamente ligado ao objecto da sua actividade, sem afastar a possibilidade da sua ocorrência em qualquer ponto do território nacional.

            Por outro lado, verifica-se que o “Prémio” indicado na apólice em causa era “reajustável anualmente a taxa de 1.4400 % sobre o volume anual de salários” (cf. documento de fls. 115 e 230).

            Ora, se o risco pode ser espacialmente delimitado pelas partes, no sentido de que só em certas condições de espaço será vinculativo, e, em determinadas situações, em caso de dúvida, importará averiguar e decidir o âmbito espacial do risco contratado pelas partes ao celebrarem o contrato de seguro - precisando o verdadeiro objecto do contrato outorgado, com recurso às regras de interpretação do negócio jurídico fixadas nos art.ºs 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1, do CC[23] -, pelo que se deixa exposto, afigura-se, sem quebra do respeito devido por entendimento contrário e cientes de que a questão não é isenta de dificuldades, que nada será de objectar ao juízo expresso pelo Tribunal recorrido: o “Local de Risco mencionado na apólice, conforme se indica em II. 1. c), in fine, supra, nada mais poderá significar do que aludir ao local onde está sedeada a tomadora de seguro, e, não à exclusividade da cobertura de risco nesse local, pois tal seria um absoluto contra-senso, e implicaria um grave desequilíbrio das prestações, face ao próprio escopo da actividade de construção civil.

            Na verdade, a perspectiva da recorrente levaria a um considerável esvaziamento do objecto do contrato de seguro que celebrara com a Ré, e, potencialmente, a um efectivo “não-seguro”, sem que, nomeadamente, os elementos disponíveis atinentes às circunstâncias da celebração do contrato e/ou às características da actividade da Ré apontem para a pretendida “restrição” espacial/territorial.[24] 

            13. No que concerne às demais questões suscitadas na apelação, perante a forma como o sinistro ficou configurado [cf. II. 1. j) a y) e qq) a tt), supra] e o objecto do contrato de seguro, também não vemos a menor razão para divergir da resposta dada pelo Tribunal recorrido.

            Assim, considerada a “cláusula 6ª” das “condições especiais” da Apólice, ao prever, principalmente, a “exclusão” dos danos decorrentes da falta de cumprimento das normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da actividade [b)]; resultantes de trabalhos de demolição e/ou escavações [k)]; Resultantes da não adopção das medidas de segurança aconselháveis [o)] ou Resultantes de trabalhos ligados a construção, reparação, ampliação de (…) estradas [p)], e face ao que se deixou exposto, mormente em II. 7. a 9., supra, dir-se-á:

            - Atendendo a que entre as causas geradoras de responsabilidade civil extracontratual imputável às empresas de construção (de edifícios ou outras obras privadas e/ou públicas) estão, frequentemente, actos ilícitos e culposos dos seus trabalhadores, muitos dos quais devidos à inobservância de disposições legais ou administrativas referentes às medidas de segurança que devem ser observadas/implementadas na execução de uma determinada obra, ou até à simples omissão de procedimentos aconselháveis pela experiência comum na realização dos respectivos trabalhos ou tarefas [e será porventura de acolher o explanado pela Mm.ª Juíza a quo quando refere que, na sua actuação concreta, o condutor do “Dumper terceiro” terá violado deveres de cuidado inerentes à actividade que desenvolvia (não pode deixar de exigir-se a quem manobra máquinas industriais uma permanente e incessante atitude de tensão, e atenção, intelectual e mecânica em relação à actividade que se desenvolve, em específicas e concretas circunstâncias, v. g., neste caso especifico de adequação da carga à velocidade], necessariamente se imporá a conclusão de que a admissão do clausulado em crise, i. é, da limitação do risco assumido aludida nas ditas “alíneas b) e o)”, interpretadas à luz dos preceitos atrás indicados, excluiria a responsabilidade da apelante em casos de particular gravidade e relativamente a terceiros lesados, desvirtuando e esvaziando consideravelmente o conteúdo do próprio contrato de seguro celebrado com a Ré, prejudicando desmedida e injustificadamente, por um lado, a aderente (Ré) e beneficiando, também desmedida e injustificadamente, por outro, a seguradora apelante e pondo até em perigo a finalidade visada com a celebração de tal contrato.

            Não resta, pois, qualquer dúvida que é abusivo e absolutamente proibido o vertido nas mencionadas “alíneas b) e o)”, com as consequências assinaladas na decisão sob censura (“nulidade”/”ineficácia”), por retirar utilidade ao seguro em causa face à sua amplitude, ficando quase sem objecto, pois os riscos próprios (comummente associados ou naturais, e ainda que porventura desconsiderados os potenciados ou incrementados por actuações dolosas ou indesculpáveis) da modalidade de seguro em apreço não se encontram cobertos no contrato em causa [cf., ainda, v. g., os art.ºs 12º, 15º, 16º, alínea b) e 18º, alíneas b) e d), da LCCG];[25]

            - A interpretação da “al. k)”, atento o objecto de actividade da Ré, visará primacialmente a execução de obras em edifícios ou construções e as específicas tarefas aí referidas mas não a simples movimentação de terras, como sucedeu no caso vertente [o acidente ocorreu durante a operação de movimentação de terras pelos Dumpers nos moldes atrás explanados; o Dumper Seguro encontrava-se a movimentar terra de um ponto para outro], pelo que não se verifica tal “exclusão”, sendo desnecessários outros considerandos;

            - Finalmente, relativamente à previsão da aludida “alínea p)” [apenas incidentalmente invocada no art.º 9º da contestação de fls. 146, sem qualquer concretização…], é por demais evidente que os trabalhos efectuados não se traduziram na construção (manutenção/reparação ou ampliação) de qualquer estrada (pública ou privada/particular), além de que a Recorrente, de forma indevida e inconsistente, pretende fazer radicar na “fundamentação da decisão de facto” e em determinados meios de prova [testemunhal e documental – cf. as “conclusões 25ª e 26ª”/ponto I, supra] o que não se encontra plasmado na matéria factual provada. Ademais, a construção de estradas temporárias está ligada à actividade da construção civil, o que não significa que tal fosse a finalidade da obra, tanto mais que os trilhos criados para a movimentação das máquinas terão sido removidos no final da obra, o que por si só é indicativo de como esta era uma operação acessória à obra de construção que estava a ser realizada.

             Ou seja, e em conclusão, nada justifica a aplicação de qualquer das mencionadas cláusulas limitativas (de limitação do risco assumido)[26].

            14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.      

            Custas pela apelante.


*

30.6.2015


                        Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Com a rectificação efectuada no decurso dos autos do lapso de identificação existente na petição inicial.
[2] Completou-se a redacção tendo em atenção o documento de fls. 115/230.
  Resulta do mesmo documento que o “Prémio” indicado na apólice em causa era “reajustável anualmente a taxa de 1.4400 % sobre o volume anual de salários”.
[3] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto (sem menção diversa).
[4] Vide, de entre vários, Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 671 e os acórdãos do STJ de 21.5.1998, 22.6.1999, 30.9.2004-processo 04B2894 e 06.7.2011-processo 7295/08.0TBBRG.G1.S1, in CJ-STJ, VI, 2, 95; BMJ 488º, 296 e “site” da dgsi, respectivamente.
[5] Vide, a propósito, o acórdão do STJ de 25.3.2010-processo 112/04.1TBADV.E1.S1, publicado no “site” da dgsi, assim sumariado: 1. Um dumper, enquanto veículo automóvel e com possibilidade de transitar na via pública, não pode deixar de estar sujeita a sua circulação ao seguro de responsabilidade civil que garanta os danos eventualmente provocados a terceiros, ou seja, ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. 2. Mas sendo um acidente causado durante e no exclusivo desempenho funcional do dumper, no local onde essa actividade era desenvolvida, local esse não aberto ao trânsito automóvel, mas reservado aos veículos em serviço, o acidente ocorre no desempenho dos trabalhos específicos desta máquina e em local não aberto ao trânsito. Por isso, o acidente está relacionado com os riscos próprios do funcionamento do dumper, enquanto máquina industrial, e não com os riscos inerentes à sua circulação enquanto veículo automóvel.
Nesta medida e sendo o acidente provocado quando o dumper reiniciava o seu trabalho específico de transporte de inertes, não estava o dumper sujeito ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

[6] Vide, entre outros, Pedro Romano Martinez, Contratos Comerciais, Principia, 2006, pág. 73 e José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 20, e os acórdãos do STJ de 02.10.1997 e 10.12.1997 in CJ-STJ, ano V, Tomo 3, págs. 45 e 158.
[7] Cf., designadamente, os acórdãos da RP de 15.3.1999 e da RL de 09.11.2010-processo 1870/08.0TVLSB.L1-7, in CJ, XXIV, 2, 182 e “site” da dgsi, respectivamente.
[8] O actual regime jurídico do contrato de seguro, instituído pelo DL n.º 72/2008, de 16.4, não se aplica à situação dos autos atento o disposto nos art.ºs 2º, n.º 1, e 7º, deste diploma.
[9] Diploma que sofreu as alterações introduzidas pelos DL n.ºs 220/95, de 31.8; 249/99, de 07/07 e 323/2001, de 17.12.
[10] Depois revogado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4 [o art.º 6º, n.º 2, alínea a), revogou os art.ºs 425º a 462º, do referido Código].
[11] Definida pelo art.º 1º, alínea l), do DL n.º 176/95, de 26.7, como o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas.
[12] Vide Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 80.
   A respeito da exigência da transparência na celebração dos contratos, estabelecia-se nos referidos art.ºs do DL n.º 176/95, de 26.7: As condições gerais e especiais devem ser redigidas de modo claro e perfeitamente inteligível (art.º 8º); As condições especiais ou particulares dos contratos não podem modificar a natureza dos riscos cobertos nos termos das condições gerais e ou especiais a que se aplicam, tendo em conta a classificação de riscos por ramos de seguros e operações legalmente estabelecida (art.º 9º).
[13] Cf., nomeadamente, J. C. Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, 2009, págs. 116 e seguintes e, sobre a parte final deste segmento da exposição, o acórdão do STJ de 11.3.1999, in CJ-STJ, VII, 1, 156.
[14] Vide José Vasques, ob. cit., págs. 348 e seguintes.
[15] Cf. os acórdãos da RL de 02.10.1997 (in CJ XXII, 4, 100) e de 09.11.2010-processo 1870/08.0TVLSB.L1-7, cit..
[16] Vide José Vasques, ob. cit., pág. 350.
[17] Sobre a interpretação de cláusulas ambíguas estabelece o art.º 11º, n.º 1, da LCCG, que as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.
[18] Vide J. C. Moitinho de Almeida, ob. cit., págs. 99 e seguinte e 110 e notas (65), (83) e (98), sendo aí citado, entre outros, o acórdão do STJ de 14.11.2006-revista n.º 3618/06.

[19] Vide Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª edição, 2010, Almedina, pág. 547; C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 444 e Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, Lex, 1996, págs. 349 e seguinte.

[20] Cf., entre outros, J. C. Moitinho de Almeida, ob. cit., págs. 93 e seguintes e o acórdão da RC de 15.10.2013-processo 73/12.3TBLRA.C1, publicado no “site” da dgsi.
[21] Vide J. C. Moitinho de Almeida, ob. cit., págs. 123, 134 e 151 e seguinte.
[22] Veja-se a “nota 24”, infra.
[23] Cf. o acórdão do STJ de 09.10.2014-processo 2544/08.7TBLLE.E2.S1, publicado no “site” da dgsi.
[24] A adoptar-se o entendimento da Ré, também a A. não teria de suportar a indemnização dos danos causados no Dumper Seguro, já que, segundo a apólice em causa, reproduzida a fls. 69, o “Local do Risco” é/era: “TV da Rua Principal, 22, 6000-691 Sarzedas, Castelo Branco”… (cf. os documentos de fls. 51 e 69).
[25] Cf., no mesmo sentido, os acórdãos da RP de 26.3.2007-processo 0654478 e 31.01.2012-processo 8728/09.3TBVNG.P1, publicados no “site” da dgsi.
  Cf., também, o regime, menos amplo, consagrado no art.º 9º do DL n.º 176/95, de 26.7 [cf. “nota 12”, supra].
[26] Vide Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 76.