Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1646/08.4TBGRD-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: VENDA JUDICIAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 824º, Nº 2 DO C.CIVIL.
Sumário: I – A venda judicial de fracção hipotecada faz caducar o arrendamento, quando posteriormente celebrado à constituição e registo da hipoteca, por na expressão “direitos reais” mencionados no nº 2 do art. 824º/C.C. se incluir, por analogia, o arrendamento.

II - Estando em causa a venda de coisa locada em processo executivo, deve, em princípio, considerar-se o disposto no falado art.824º/2: são inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas posteriormente ao registo de qualquer arresto, penhora ou garantia.

Decisão Texto Integral:                                                DECISÃO SUMÁRIA

I- RELATÓRIO

            I.1- Por apenso à execução instaurada contra L… e herdeiros, …, para pagamento de quantia certa, veio A… deduzir, em 29.01.14, embargos de terceiro.

            Em síntese, alega que por despacho com a referência …, foi julgado caducado o contrato de arrendamento que em 1.1.09 celebrou com os executados, tendo por objecto o 1º andar da fracção C e cave do prédio urbano  inscrito na matriz …, e determinada a entrega de tal prédio ao adquirente do mesmo, o «Banco B…», decisão que ofende e lesa o direito da embargante ao uso e fruição do imóvel, pois que a venda judicial não está incluída nas causas de caducidade taxativamente enunciadas no art.1057º/C.C., e os direitos emergentes do contrato de arrendamento de natureza obrigacional, de carácter vinculístico, não estão abrangidos pelo disposto no art.824º/C.C..

            Por despacho datado de 13.2.14, foram os embargos rejeitados.

            Na parte final da decisão, ponderou-se: “Deste modo, caducado o direito de arrendamento da embargante com a transmissão judicial, conclui-se que a (posterior) ordem de entrega não ofende qualquer direito da embargante (que já não tinha existência) e, em consequência, nos termos do art.345º/C.P.C., não havendo probabilidade séria de existência do direito invocado pela embargante, os embargos devem ser rejeitados.”.

            I.2- Apelou a embargante, finalizando as alegações recursivas deste modo:

            1ª/ O contrato de arrendamento dos autos não caducou, pois a venda executiva não constitui causa de caducidade, de acordo com o disposto no art.1051º/C.C.;

            2ª/ Os direitos que emergem do contrato de arrendamento celebrado pela embargante têm natureza obrigacional, pelo que não é aplicável o disposto no nº2 do art.824º/C.P.C..

            I.3- Em contra-alegações, a embargada defende o acerto da decisão recorrida.

            Nada havendo a obstar ao conhecimento do objecto do recurso, decidir-se-à sumariamente o mesmo nos termos do art.656º/NCPC [1]   

            II – FUNDAMENTOS

            Na decisão impugnada atendeu-se a este circunstacialismo fáctico:

Como flui das conclusões acima transcritas, a questão que a apelante coloca é saber se subsiste o contrato de arrendamento aludido, na sequência da venda e entrega em processo executivo do imóvel hipotecado/penhorado, objecto do dito contrato.

            A 1ª instância entendeu que esse contrato caducou por força do estatuído no art.824º/2, C.C., e isto substancialmente pelo seguinte: a alusão, neste preceito, que “os bens são transmitidos livres (…) dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia”, deve ser aplicada analogicamente aos contratos de arrendamento celebrados posteriormente a qualquer acto de arresto, penhora ou garantia real, como a decorrente da hipoteca (registada), como é o caso em apreço.

            É controversa a questão colocada de saber se o contrato de arrendamento que recaiu sobre bem hipotecado, caducou ou não pela venda judicial deste, por força do disposto no art.824º/2. Cremos que o entendimento adoptado na decisão é o que maioritariamente vem sendo seguido na doutrina e na jurisprudência, ou seja, que a venda judicial de fracção hipotecada faz caducar o arrendamento, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão “direitos reais” mencionados no nº 2 do art.824º/C.C.  se incluir, por analogia, aquele arrendamento. [2]

            Vejamos.

Dispõe o art.824º/1, C.C. que “a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”. A mesma transferência acontece, por força do art.826º, em caso de adjudicação.

            E no nº 2 daquele art.824º estatui-se que: “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiros, independentemente de registo”.

            Deste preceito resulta que: os direitos de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, à mais antiga dessas garantias; exceptuam-se os direitos que produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, porque estes também não caducam, se tiverem sido constituídos anteriormente ao mais antigo daqueles actos.[3]

            A definição de locação dada pelo art.1022º do C.C. leva-nos a qualificar esse contrato como negócio obrigacional de natureza pessoal. E porque a lei confere o gozo temporário da coisa alheia, podemos concluir que se está perante um direito pessoal de gozo.

            Trata-se, sem dúvida, de um direito obrigacional particular, por ser de gozo, o que o aproxima, funcionalmente, dos direitos reais desta categoria.[4]

            O art.1057º/C.C. consagra a regra da oponibilidade da locação ao adquirente da coisa locada. Assim, o transmissário do direito com base no qual o contrato de locação foi celebrado não pode subtrair-se aos efeitos da relação locativa, adquirindo os direitos e ficando sujeito ás obrigações que dela derivavam para o locador. O direito do locatário segue também a coisa. Todavia, a subsistência da locação só se justifica verdadeiramente em atenção aos interesses do locatário quando, à data da alienação da coisa, ele tenha iniciado já o gozo da desta. Deve, pois, fazer-se uma interpretação restritiva do art.1057º, que é também inaplicável à venda da coisa locada em processo executivo, hipótese que deve considerar-se incluída no nº 2 do art. 824º, sendo, portanto, inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas posteriormente ao registo de qualquer arresto, penhora ou garantia. [5]

Ponderou-se no Ac. STJ de 3.12.98: “a subsunção da relação locatícia na fórmula legal «demais direitos reais» constante do nº 2 do art.824º é de fazer por recurso à analogia”.[6]

            Estando em causa a venda de coisa locada em processo executivo, deve pois, e em princípio, considerar-se o disposto no falado art.824º/2: são inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas posteriormente ao registo de qualquer arresto, penhora ou garantia.

            No caso em exame está assente que o prédio adquirido em venda judicial pelo reclamante/recorrido «Banco…», fora objecto de arrendamento em que figura como inquilina a embargante aqui recorrente.

Porém, sobre a fracção em causa pendia uma hipoteca a favor do mesmo banco adquirente, registada a 25.1.06. E não obstante ter sido efectuada penhora do mesmo imóvel em 19.1.2010, certo é que, tendo sido celebrado em 1.1.2009 o contrato de arrendamento em causa, este foi posterior à constituição/registo da hipoteca, e sendo assim, caducou o direito do locatário nos termos daquele art.824º/2.

            A circunstância de o arrendamento não se encontrar registado e de constituir um direito pessoal de gozo, não exclui, consoante antes se referiu, a sua subsunção à estatuição desse normativo. 

             Como se escreveu no Ac. STJ de 6.7.00, “a oneração, traduzida em arrendamento de bem hipotecado, é válida. Só que semelhante desvalorização do prédio, agora em fase executiva, atenta a sua finalidade, vai frustar a posição do credor hipotecário (…) o art.695º completa-se com o art.824º/2”.[7]

            Numa primeira abordagem, não há dúvida de que o invocado direito de arrendamento é anterior à penhora. Nesta medida, com a entrega à recorrida «Banco…» do prédio em causa feita em decorrência da venda, não teria caducado nos termos do art.824º/2, o direito ao arrendamento cuja subsistência vem invocada pela embargante/recorrente, o que legitimaria a esta a recusa da entrega do imóvel.

            Com efeito, conforme decorre do art.1311º do C.C., a restituição da coisa ao proprietário desta só pode ser recusado com base em qualquer relação obrigacional ou real que confira a outrem a detenção da coisa.

            Sucede que, como vimos, quando foi feito o alegado arrendamento, já tinha sido constituída e registada a hipoteca voluntária a favor do banco «Banco...», adquirente do imóvel.

             Logo, caducou o direito da arrendatária com a venda do imóvel, o qual se transmitiu para o adquirente, expurgado do ónus locatício (art.824º/2).

Argumenta a recorrente que nos casos enumerados no art.1051º/C.C. de caducidade do contrato de locação, não figura a venda judicial. Não é exacto atribuir carácter taxativo ás causas de caducidade aí contempladas, antes devendo presumir-se como meramente exemplificativas. A caducidade, como meio de cessação do contrato de locação independente da vontade das partes, é mera consequência de um evento a que a lei atribui esse efeito. No caso, esse evento foi a venda do imóvel objecto do arrendamento, a que o nº 2 do art.824º faz operar a sua caducidade.

             Sem necessidade de mais considerações, resta concluir pela improcedência do recurso.

            III - DECISÃO

            Decide-se, pelo exposto, julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão apelada.

            Custas pela apelante.

            Notifique.

            COIMBRA, 10.07.2014


Regina Rosa

[1]  Diploma aqui aplicável, atento o disposto no art.6º/4 da Lei nº41/13, de 26.6
[2]  entre outros, cfr. Ac.STJ de 6.7.2000, CJ II/00-151
[3]   Cfr. P. Lima e A. Varela, «C.C. anotado», vol.II-99
[4]    Cfr. Luís Carvalho Fernandes, «Lições de direitos reais», pág.166
[5]    Cfr. Prof. Henrique Mesquita, «Obrigações Reais e Ónus Reais», pág.149
[6]    BMJ 482, pág.225
[7]    CJstj tomoII-2000, pág.152