Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/07.5TELSB-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: PERDÃO DE PENAS
AMNISTIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 2.º, N.º 1, 3.º E 4.º DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO/PERDÃO DE PENAS E AMNISTIA DE INFRACÇÕES – JMJ
Sumário:

I – O perdão de penas e a amnistia, previstos na Lei da Amnistia JMJ, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-6-2023 por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, conforme resulta dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º e 4.º.

II – Esta lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º 1 do artigo 2.º.

Decisão Texto Integral:
Relator: João Abrunhosa
1.ª Adjunta: Teresa Coimbra
2.ª Adjunta: Rosa Pinto

o despacho de 12/09/2023, relativamente ao Arg.[1] foi, para além do mais, decidido o seguinte:

“... No caso vertente, por factos reportados a 2006 e entre o verão de 2008 e maio de 2009, foram condenados nos autos:

...

-… pela prática, em co-autoria, de um crime de contrabando qualificado, p. e p. pelos arts.º 92º, n.º1, als. a) e b), e 97º, al. b), do RGIT na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

...

Compulsados os dados e circunstâncias dos arguidos condenados, verificamos que à data dos factos em causa nos autos, apenas o arguido …, nascido a .../.../1987 (que perfez os 30 anos de idade em 2017), tinha menos de 30 anos de idade, pelo que é o único relativamente ao qual se poderia colocar a consideração de um eventual perdão à luz da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08 (da Lei de Perdão de penas e amnistia de infrações), como estabelece o art.º 2º, n.º1 daquele diploma.

Com efeito, este arguido, foi condenado pela prática, em co-autoria, de um crime de contrabando qualificado, p. e p. pelos arts.º 92º, n.º1, als. a) e b), e 97º, al. b), do RGIT, numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período.

Sucede, todavia, que a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, ao sobredito arguido se mostra prejudicada, na medida em que aquela pena foi declarada extinta por despacho de 15.11.2019.

...”.


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Não se conformando, o Arg., interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

“... 1º - A restrição contemplada no artº2º-1 da Lei 38-A/2023 de 2/8 aplica-se à amnistia de crimes e infrações disciplinares, não ao perdão de penas vertido no artº3;

2º - Pelo que deve o despacho recorrido ser revogado e em sua substituição ser decidido que o recorrente beneficia do perdão de penas, …

3º - Se diferentemente for entendido que o artº2º-1 se aplica quer a amnistias quer ao perdão de penas, resulta que essa norma é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade vertido no artº13º da CRP, devendo tal inconstitucionalidade ser declarada e substituindo-se a decisão recorrida nessa conformidade. ...”.


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[8][9], …

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I. Âmbito de aplicação da L 38-A/2023, de 02/08 (Perdão de penas e amnistia de infracções);

II. Inconstitucionalidade da norma que restringe a aplicação da lei aos condenados que tivessem até 30 anos de idade, à data da prática do crime.


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Cumpre decidir.

I. Entende o Recorrente que “... A restrição contemplada no artº2º-1 da Lei 38-A/2023 de 2/8 aplica-se à amnistia de crimes e infrações disciplinares, não ao perdão de penas vertido no artº3 ...”, pelo que este lhe devia ter sido aplicado.

“... a norma fundamental da hermenêutica jurídica radicada no art. 9º do Código Civil que incide sobre a interpretação da lei. “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.(...). Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.(...). Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

É nessa lógica que, também neste domínio, têm aplicabilidade as palavras de Manuel de Andrade Cfr. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, pp. 21 e 26. quando afirmava que interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.

Interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva. …

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende, ainda, o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico, por seu turno, compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional, ou teleológico, consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. …

Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. ...”[10].

Aplicando estes parâmetros de interpretação ao caso em apreço e tendo em conta o teor literal das normas, a sua inserção sistemática e a exposição de motivos, …, concluímos que, em matéria criminal, o perdão de penas e a amnistia, previstos na L 38-A/2023, de 02/08, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19/06/2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos.

É o que resulta do teor das normas, uma vez que o art.º 1º/1, ao fixar o âmbito de aplicação da lei, para além dos limites temporais e de idade dos beneficiários, refere expressamente os art.º 3º e 4º, isto é, o perdão de penas e a amnistia de infracções penais.

Improcede, pois, nesta parte, o recurso.


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II. entende o Recorrente, que, em qualquer dos casos, “... Se ... for entendido que o artº2º-1 se aplica quer a amnistias quer ao perdão de penas, resulta que essa norma é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade vertido no artº13º da CRP ...”.

Ora, a lei aqui em causa reveste carácter geral e abstracto, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.

Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável.

Não padece, por isso, da apontada inconstitucionalidade (como refere o despacho de sustentação, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional de normas que restringem o âmbito de aplicação de amnistias e perdões[11]).

Improcede, assim, também nesta parte, o recurso.


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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e confirmamos a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, com taxa de Justiça que se fixa em 5 (cinco) UC.


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Notifique.

D.N.


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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
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[9]
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2015, relatado por Santos Cabral, no proc. 85/14.2YFLSB, in www.dgsi.pt.
[11] Veja-se nesse sentido, por todos, o acórdão n.º 300/00, relatado por Guilherme da Fonseca, …