Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2272/15.7T9LRA. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: PROVA
APRECIAÇÃO DA PROVA
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
NOTIFICAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 02/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL- J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 113.º, 127.º, 196.º, 333.º, 374.º, 410.º E 426.º DO CPP
Sumário: I - Na fundamentação da convicção do tribunal não basta enunciar a prova que deu origem à decisão da matéria de facto, isto é, na qual se fundamentou o tribunal a quo para fundamentar a matéria de facto que deu como provada ou não provada, mas proceder ao “exame crítico das provas que serviram para forma a sua convicção do tribunal”. A omissão da apreciação crítica da prova acarreta a nulidade por falta de fundamentação da sentença.

II - Sendo o arguido constituído nessa qualidade e estando sujeito à medida de coacção de TIR, as notificações posteriores são feitas por via postal simples, nos termos dos art. 196.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 113.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do CPP, sendo manifesto que inexiste a nulidade por falta de notificação do arguido, tanto para a acusação, como para o julgamento, em cuja audiência não foi ouvido, por o tribunal considerar não se mostrar imprescindível a sua presença, nos termos do art. 333.º, n.º 1, do CPP.

3- A apreciação em sede de recurso da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, designadamente erro notório na apreciação da prova, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

IV - Os contornos da figura jurídica do vício de erro notório na apreciação da prova aparecem recortados na jurisprudência dos tribunais superiores como sendo o erro segundo o qual na apreciação das provas se constata o mesmo de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, ao comum dos observadores, mas que tem de ser observado a partir do texto da sentença recorrida.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório

No processo supra identificado, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A... , nascido em 11.11.1957, divorciado, motorista, e residente na (...) , Pombal, imputando-lhe a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) do Código Penal.

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O tribunal decidiu:

Condenar o arguido A... , pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

*

Inconformado recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

«1- O Recorrente foi acusado pelo Mº Pº da prática, em autoria material e singular, de um crime de falsificação de documento simples, “p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal e artigo 14º do mesmo diploma legal.”

2- E, produzida a prova e discutida a causa, o tribunal “a quo” considerou provados os factos descritos a fls. 1 e v., no capítulo II, da douta sentença proferida em 07/07/2016.

3- Nomeadamente, deu como provado que, “o arguido não tinha perdido a sua carta de condução pois até entregou a mesma em 16 de Março de 2015 na GNR de Pombal, com vista ao cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir”.

4- Conclusão que não corresponde à verdade pois, a carta de condução que o recorrente perdeu – e ainda hoje não apareceu - com o n.º L - (...) 0, foi emitida em 23/01/2013 e tem o número de controlo 662560723.

5- E o duplicado (ou 2.ª via) que pediu, foi emitida em 03/03/2015, tem número de controlo, 287915104, e ainda o campo n.º 12, com o n.º 71, que significa 2.ª via.

6- E foi este duplicado ou 2.ª via, que foi de facto entregue pelo recorrente na GNR de Pombal em 16/03/2015, e não outro, como prova o termo de recepção emitido pela da GNR de Pombal naquela data.

7- É, por isso, falso como atestam os como as demais considerações de teor conclusivo sobre a alegada actuação e acção criminosas do recorrente.

8- O que tem de abalar irreversivelmente a alegada convicção do Tribunal “a quo” na motivação da Sentença para a decisão de facto e esvazia, consequentemente, todas as consequências jurídico-penais que atribuiu a tais factos.

9- Ou seja, no entender do Recorrente, com a prova produzida, basicamente documental, o tribunal “a quo” tinha que o ter absolvido na Sentença, por inexistência de factos susceptíveis de configurar a prática de qualquer crime.

10- Aliás, já em sede de despacho de saneamento do processo, a própria acusação devia ter sido rejeitada por manifestamente infundada, uma vez que os factos não constituem crime - cfr. 311.º/3- d), do CPP.

11- Ilegalidade não suscitada antes, pelo recorrente por desconhecer tais peças processuais e pelo seu Defensor por, embora conhecendo-as, não conhecia a verdade dos factos.

Efectivamente,

12- O arguido, como motorista TIR, passa a maior parte do tempo fora de Portugal, sem vir a casa e por isso, não teve conhecimento da acusação, nem da data de julgamento, nem da sua realização.

13- Não recebeu notificação da acusação ou da data de julgamento; a carta do Defensor foi evolvida pelos CTT; o Defensor não tinha outra forma de o contactar.

14- Só em 26 (vinte e seis) de Julho de 2016, quando foi notificado pela GNR de Pombal da Sentença, soube quem era o seu Defensor que contactado de seguida o informou que fora acusado, julgado e condenado, pelo crime de falsificação de documento.

15- Ou seja, até agora o recorrente, por não a conhecer, não teve oportunidade de se defender da acusação, nomeadamente para suscitar a falsidade dos factos em que assenta.

16- E apesar de ter sido representado pelo Defensor na audiência de julgamento, não estava este informado dos factos e, por isso, não tinha condições para fazer a adequada defesa do recorrente.

17- Além do mais, resulta que foram violadas pelo tribunal “a quo”, as normas constantes dos artigos: 10.º, n.º 1; 13.º e 26.º do C. Penal e art. 2.º; 53.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c); 60.º; 169.º e 311.º, n.º 3, alínea d), do CPP.

Junta: 3 (três) documentos, referenciados nos artigos 19º, 21º e 22º, supra.

Por todo o exposto,

A)- E face ao erro de análise documental que levou á acusação e condenação do Recorrente, resta-lhe pedir a Vossas Excelências que a Sentença proferida no tribunal “a quo”, seja substituída por outra que:          

1 - Confirmando que o Recorrente não praticou factos susceptíveis de configurar a prática de qualquer crime, nomeadamente o de falsificação de documento, p. e p. no art. 256.º, n.º 1, alínea d) e art. 14.º, do C. Penal, o absolva de tal crime por que foi condenado;

2 - O absolva da condenação da multa por falta ao julgamento bem como das custas processuais.

Subsidiariamente

B) - Caso assim se não entenda:

Por força da “questão prévia” supra suscitada, seja o processado declarado nulo a partir da acusação do Mº Pº até final, incluindo julgamento e Sentença, e ordenada sua repetição desse processado, com início na notificação da acusação ao Recorrente e a concessão do correspondente prazo para defesa».


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Notificados os intervenientes processuais nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, respondeu o Ministério Público, o qual, alega que da análise dos documentos ora juntos pelo recorrente, afigura-se- que o documento que efectivamente foi entregue pelo arguido na GNR de Pombal foi o duplicado (2.ª via da carta de condução) emitido em 3.3.2015 e não a carta de condução emitida em 23.1.2013, pelo que os factos dados como provados na sentença devem ser dados como não provados e, consequentemente, deve a sentença ser revogada e o arguido absolvido.

*

Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual se limitou a apor o visto.

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Notificado o arguido, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP não respondeu.

*

Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.

Vejamos a factualidade apurada e respectiva fundamentação que consta da sentença recorrida.

A) Factos Provados:

«1.No dia 3 de Março de 2015, no Instituto da Mobilidade e dos Transportes, em Leiria, o arguido requereu e assinou o respectivo pedido de duplicado da sua carta de condução nº L- (...) , alegando que tinha perdido a mesma, tendo-lhe sido entregue uma guia de substituição da sua carta de condução.

2. Sucede que, o arguido não tinha perdido a sua carta de condução pois até entregou a mesma em 16 de Março de 2015 na G.N.R. de Pombal, com vista ao cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias na qual fora condenado no âmbito de processo de contra-ordenação nº 915491800.

3. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não havia perdido a sua carta de condução e que fazia constar uma declaração não correspondente com a verdade em documento, todavia, tal conhecimento não o coibiu de actuar nos moldes acima descritos, o que quis e concretizou.

4. Agiu o arguido com intenção de obter para si benefício ilegítimo, pois ao entregar a sua carta de condução original no posto policial para cumprimento de sanção acessória, manteria na sua posse uma guia de substituição da mesma que poderia apresentar às autoridade policias quando tal lhe fosse solicitado, continuando ilegitimamente a efectuar a condução de viaturas a motor na via pública, ludibriando assim as autoridades policiais.

5. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

6. Do certificado de registo criminal do arguido constam condenações pela prática de um crime de injúrias a agentes de autoridade, um crime de ofensas corporais simples, quatro crimes de emissão de cheque sem provisão, um crime de falsas declarações e dois crimes de falsas declarações, um crime de descaminho; dois crimes de ameaças, um crime de maus tratos a cônjuge, um crime de roubo.

B) Factos não provados:

Da discussão da causa e com relevo para a decisão nada mais se provou.

C) Motivação da decisão de facto:

A convicção do Tribunal formou-se com base na prova documental junta aos autos, nomeadamente na certidão junta de fls. 2 a 13 e documentos de fls. 23 a 31. No que tange aos antecedentes criminais, no certificado junto a fls. 98 e ss.».


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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questões a decidir:

a) Apreciar se existe erro notório na apreciação da prova quanto aos factos 2 e 3, dados como provados.

b) Apreciar se existem as nulidades por falta de notificação ao arguido da acusação e da data para julgamento.

c) Apreciar se existe nulidade por falta de exame crítico da prova.

Apreciando:

O arguido vem condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) do CP.

A senhora juíza, sem qualquer análise crítica da prova, deu integralmente como provados os dois primeiros parágrafos da acusação, que consubstanciam os factos integradores dos elementos objectivos do crime de falsificação de documento, a que correspondem os factos 1 e 2 da sentença, dados como provados, nos seguintes termos:

«1.No dia 3 de Março de 2015, no Instituto da Mobilidade e dos Transportes, em Leiria, o arguido requereu e assinou o respectivo pedido de duplicado da sua carta de condução nº L- (...) , alegando que tinha perdido a mesma, tendo-lhe sido entregue uma guia de substituição da sua carta de condução.

2. Sucede que, o arguido não tinha perdido a sua carta de condução pois até entregou a mesma em 16 de Março de 2015 na G.N.R. de Pombal, com vista ao cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias na qual fora condenado no âmbito de processo de contra-ordenação nº 915491800.

(…)».

E dizemos que a senhora juíza não fez qualquer análise crítica da prova, porque, na fundamentação da convicção do tribunal, ao arrepio, do art. 374.º, n.º 2, do CPP, limitou-se a dizer:

«A convicção do Tribunal formou-se com base na prova documental junta aos autos, nomeadamente na certidão junta de fls. 2 a 13 e documentos de fls. 23 a 31. No que tange aos antecedentes criminais, no certificado junto a fls. 98 e ss.».

Ora, não basta enunciar a prova que deu origem à decisão da matéria de facto, isto é, na qual se fundamentou o tribunal a quo para fundamentar a matéria de facto que deu como provada ou não provada, mas proceder ao “exame crítico das provas que serviram para forma a sua convicção do tribunal”.

Também aqui o Ministério Público, na acusação se limitou a oferecer prova documental, a fls. 76, limitando-se a indicação genérica da “ Certidão de fls. 2 a 13” e “Documentos de fls. 23 a 31”, sendo aconselhável para eventuais esclarecimentos ou concluir pelos elementos subjectivos do crime ouvir o participante B... e C... , ambos agentes do Destacamento de Trânsito da GNR de Leiria e eventualmente um funcionário do IMT de Leiria que prestou a informação de fls. 23 ou emitiu a guia de substituição da carta de condução que o arguido diz ter extraviado, constante de fls. 22.

O arguido foi constituído nessa qualidade e interrogado em 22/6/2015 (fls. 35) e estando sujeito à medida de coacção de TIR, as notificações posteriores foram-lhe legalmente feitas por via postal simples, nos termos dos art. 196.º, n.º 1, 2 e 3 e 113.º, n.º 1, al. c) e 2, do CPP, designadamente da acusação, à qual deduziu oposição e ofereceu prova a fls. 109, e para a data de julgamento a fls. 95 e 108.

É pois manifesto que inexiste a nulidade por falta de notificação do arguido, tanto para a acusação, como para o julgamento, em cuja audiência não foi ouvido, por o tribunal considerar não se mostrar imprescindível a sua presença, conforme consta de fls. 117 e 118, nos termos do art. 333.º, n.º 1, do CPP. 

Resumiu-se pois a prova aos documentos juntos aos autos.

Já vimos que há nulidade por falta de fundamentação da sentença, por omissão da apreciação crítica da prova, que se resume aos documentos acima mencionados e que existe erro notório na apreciação da prova, como vamos demonstrar.

Ambas as maleitas de que sofre a sentença recorrida, não estão devidamente identificadas pela motivação de recurso, mas ambas são de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, pelo que nos cumpre apreciá-las, respectivamente nos termos dos art. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 e art. 410.º, n.º 2, do CPP.

E tanto a nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova, como o vício de erro notório na apreciação da prova, podem e devem ser supridos, porque a prova é exclusivamente documental e por isso os autos reúnem todos os elementos, para decidir, em vez de enviar os autos à 1.ª instância.

Apreciemos pois as deficiências de que padece a sentença.

A senhora juíza dá como provado que o arguido, no dia 3/3/ 2015, junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, em Leiria, requereu e assinou o pedido de duplicado da sua carta de condução nº L- (...) , alegando que tinha perdido a mesma, tendo-lhe sido entregue uma guia de substituição da sua carta de condução.

E depois dá como provado que o arguido não tinha perdido a sua carta de condução, o que concluiu do facto de ter entregue a mesma em 16/3/2015 na GNR de Pombal, para cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias na qual fora condenado no âmbito de processo de contra-ordenação n.º 915491800.

O facto 1, dado como provado tem suporte nos documentos juntos, mas dos mesmos não se pode dar como provado o facto 2, nos termos que consta da matéria de facto e a senhora juíza não fundamenta a matéria de facto para concluir que o arguido não tinha perdido a carta de condução.

Vejamos os documentos juntos aos autos.

- O arguido em 3/03/2015, junto do IMT formulou pedido de reemissão de 2.ª via da carta de condução, com o n.º L- (...) 0, emitida em 23/01/2013, alegando motivo de extravio (fls. 24 e 21).

- No próprio dia 3/03/2015, o IMT - Delegação Distrital de Leiria, emitiu guia, para substituição da carta de condução, válida até 30/08/2015 (fls. 22 e 21).

- A 2.ª via solicitada pelo arguido foi emitida em 3/03/2015 e entregue ao arguido em 10/03/2015.

 - No âmbito de processo de contra-ordenação nº 915491800 o arguido entregou a 2.ª via da carta de condução com o n.º L- (...) 0, emitida em 3/03/2015.

Ora, como vimos o Ministério Público na acusação apenas ofereceu prova documental, limitando-se a remeter de forma genérica para a certidão de fls. 2 a 13 e documentos de fls. 23 a 31, sem especificar a que factos se destinavam a fazer prova.

Por outro lado, a senhora juíza, na audiência de julgamento, sem a presença do arguido, e sem ter ordenado outra prova, designadamente oral, limitou-se a dar a palavra ao Ministério Público e ao defensor, para alegações orais, para exporem as conclusões de facto e de direito extraídas da prova documental constante dos autos.

É manifesto que a sentença não tem apreciação crítica da prova.

Por outro lado, também é manifesto que a senhora juíza, interpretou erradamente a prova, no sentido errado que já vinha da acusação, no sentido de que o arguido simulou o extravio da carta de condução, ao solicitar a 2.ª via, conforme declarou junto do IMT, para daí tirar benefício, acabando por entregar essa mesma carta de condução que dera como extraviada e que ficara na sua posse.

Só que os documentos, exigiam melhor rigor na apreciação, pois deles constata-se sem problemas de interpretação que o arguido deu como extraviada a carta de condução, com o n.º L- (...) 0, emitida em 23/01/2013 (com n.º de controlo 662560723 – fls. 163).

Porém, a carta de condução que entregou não foi esta, que a acusação e a sentença dão como tendo ficado na posse do arguido, para daqui concluírem a falsa declaração de extravio, mas a 2.ª via da carta de condução com o n.º L- (...) 0, emitida em 3/03/2015 (com n.º de controlo 287915104 – fls. 164).

Contudo, este facto, por si só, não justifica que se dê como provado que o arguido perdera a carta de condução, facto do qual não se exige prova ao arguido, para a sua absolvição.

O facto do arguido ter entregue a 2.ª via da carta de condução, não que dizer que não tenha feito constar falsamente de documento ou dos seus componentes, facto juridicamente relevante, dizendo que se extraviara a carta de condução, para assim obter aquela 2.ª via, quando sabia não corresponder á verdade, o que o faria incorrer mesmo assim na prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal.

Mas, afastado o facto, de o arguido ter entregue na GNR, em 16/03/2015, a carta que dera como extraviada, a senhora juíza não pode extrair a ilação dando como provado que “ o arguido não tinha perdido a sua carta de condução”.

Ficamos pois na dúvida se o arguido perdera ou não a carta de condução.

E cabia à acusação fazer prova deste facto.

Nos termos do art. 32.º, n.º 2, da CRP todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado.

Este princípio de inocência in dubio pro reo, deve estar sempre presente na mente do julgador, em cada caso concreto, cabe-lhe a apreciação crítica que faz dos vários elementos probatórios e em que termos os conjugou, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros.

Aqui, a factualidade objectiva apenas estava ancorada no facto do arguido ter entregue a carta que dera como extraviada, para o tribunal a quo concluir e dar como provado que o arguido não tinha perdido a carta de condução, contrariamente ao por si declarado junto do IMT, tese que se desmoronou em benefício do princípio da inocência e in dubio pro reo.

Ora, de acordo com o disposto no art. 127.º, do CPP, o princípio da livre apreciação da prova, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Porém, o julgador, obedecendo a estas regras, não deve apreciar a prova de forma arbitrária, pois os factos dados como provados e não provados, com base neste princípio, devem ter fundamentação suficiente com apoio na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, como um dos requisitos da sentença, exigidos pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP.

Foi o que não se fez na sentença.

E que nos cabe fazer agora, porque os autos reúnem os elementos probatórios para tal, já que a prova é exclusivamente documental.

A apreciação em sede de recurso da eventual violação do princípio in dúbio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, designadamente erro notório na apreciação da prova, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

O juiz deve procurar a verdade material, como meta a atingir, que tem de ponderar, de forma objectiva, imparcial e com bom senso, conciliando a preocupação da verdade com o respeito por aquele princípio constitucional de presunção de inocência.

Essa é a trave mestra da função do julgador num Estado de Direito.

No caso dos autos não estamos propriamente perante a existência de duas versões contraditórias, mas uma versão que é a da acusação, cuja factualidade objectiva constante do facto 2 dado como provado, não tem suporte probatório.

Tal resulta de um juízo positivo de dúvida resultante de um impasse probatório, face a um facto que se deu erradamente como provado (entrega da carta dada como extraviada) e que nos levava a um facto essencial objectivamente relevante como elemento constitutivo do crime de falsificação (o arguido não tinha perdido a sua carta de condução, contrariamente ao declarado).

Admite-se que assim seja, que o arguido não tenha perdido a carta de condução, mas não há prova nesse sentido e nesse dilema entre a dúvida dos factos e o princípio in dubio pro reo, deve prevalecer a dúvida a favor do arguido.

Neste sentido, como resolver este conflito pelo julgador, entre a vastíssima jurisprudência podemos citar os seguintes arestos: Ac. do STJ, de 12/03/2009 – Proc. 07P1769, in http://www.dgsi.pt; Ac. do STJ, de 3/04/2003 – Proc. 975/03, in http://www.pgdlisboa.pt/iure/stj; Ac. do TRC de 30/09/2009 – Proc. 195/07.2GBCNT.C1 e de 6/09/2009 – Proc. 363/08.00GACB.1, in http//www.trc.pt.

O papel do julgador tem de ir muito mais além do que ser um mero recolhedor de provas.

Mas o esforço em conseguir a justiça material tem limites, pois não conseguindo qualquer conclusão face a dúvida irremovível, deve dar como não provada a factualidade sobre a qual a mesma recai, em honra do princípio in dúbio pro reo e presunção de inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 2, da CRP.

Como já referimos a apreciação da prova pelo julgador é livre, embora a discricionariedade na apreciação da prova tenha o limite das regras da experiência comum, utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e de controlo, nos termos do art. 127. ° do CPP.

Neste sentido o Tribunal Constitucional em Acórdão de 19-11-96, in BMJ, 461, 93.

Sendo o tribunal soberano na apreciação da prova, o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, pode servir de fundamento à motivação do recurso, desde que resulte do texto do acórdão recorrido e dos elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.

Os contornos da figura jurídica do vício de erro notório na apreciação da prova aparecem recortados na jurisprudência dos tribunais superiores como sendo o erro segundo o qual na apreciação das provas se constata o mesmo de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, ao comum dos observadores, mas que tem de ser observado a partir do texto da sentença recorrida nos termos sobreditos.

Ora, o tribunal a quo ao dar como provado, que o arguido entregou a carta que diz ter-se extraviado (emitida em 23/01/2013), em vez da carta como 2.ª via (emitida e, 7/03/2015), interpretou de forma errada a prova documental juta aos autos, designadamente a informação do IMT de fls. 23 e termo de recepção da carta de condução da GNR de fls. 13, incorrendo assim a sentença recorrida em vício de erro notório da apreciação da prova, a que alude o art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP e ao dar como provado que “ o arguido não tinha perdido a sua carta de condução”, sem prova nesse sentido violou o princípio da livre apreciação da prova e o princípio da inocência ou in dúbio pro reo, previstos respectivamente no art. 127.º, do CPP e art. 32.º, n.º 2, da CRP.

Nesta conformidade, reunindo os autos os elementos necessários, para se decidir da causa, não se ordena o reenvio do processo, e, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP, altera-se a matéria de facto, mudando a redacção dos factos 1 e 2, dados como provados e consequentemente se dão como não provados os restantes factos que integram os elementos subjectivos do crime de falsificação de documento, nos seguintes termos:

Facto 1 provado:

«1.No dia 3 de Março de 2015, no Instituto da Mobilidade e dos Transportes, em Leiria, o arguido requereu e assinou o respectivo pedido de duplicado da sua carta de condução nº L- (...) , emitida em 23/01/2013, alegando que tinha perdido a mesma, tendo-lhe sido entregue uma guia de substituição da sua carta de condução, e emitida a 2.ª via da carta de condução em 3/03/2015, entregue ao arguido em 10/03/2015.

Facto 2 provado:

2. O arguido entregou em 16 de Março de 2015 na GNR de Pombal, a 2.ª via da carta de condução, emitida em 3/03/2015, com vista ao cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias, na qual fora condenado, no âmbito de processo de contra-ordenação nº 915491800.

Facto 3, 4 e 5 provados:

Dão-se como não provados.

Face á alteração da matéria de facto, é manifesto que o arguido deve ser absolvido, por falta dos elementos constitutivos de ordem objectiva e subjectiva, do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) do CP.

*

III - Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em conceder, provimento ao recurso interposto pelo arguido A... , e, consequentemente decidem:

a) Alterar a redacção da matéria de facto dos factos 1 e 2 provados nos seguintes termos:

Facto 1 provado:

«No dia 3 de Março de 2015, no Instituto da Mobilidade e dos Transportes, em Leiria, o arguido requereu e assinou o respectivo pedido de duplicado da sua carta de condução nº L- (...) , emitida em 23/01/2013, alegando que tinha perdido a mesma, tendo-lhe sido entregue uma guia de substituição da sua carta de condução, e emitida a 2.ª via da carta de condução em 3/03/2015, entregue ao arguido em 10/03/2015».

Facto 2 provado:

«O arguido entregou em 16 de Março de 2015 na GNR de Pombal, a 2.ª via da carta de condução, emitida em 3/03/2015, com vista ao cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias, na qual fora condenado, no âmbito de processo de contra-ordenação nº 915491800».

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b) Dar os factos 3, 4 e 5 provados, como não provados.

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c) Revogar a sentença condenatória recorrida, a qual se substitui pela absolvição do arguido, da prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) do CP, pelo qual vinha condenado.


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Sem custas, nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP.

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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

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Coimbra, 16 de Fevereiro de 2017

(Inácio Monteiro - Relator)

(Alice Santos - Adjunta)