Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
136/16.6T9LSA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA NÃO PAGA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
SUSPENSÃO DA PRISÃO SUBSIDIÁRIA
ÓNUS DO CONDENADO
Data do Acordão: 05/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 47.º, 48.º E 49.º DO CP; ARTS. 489.º, 490.º E 491.º DO CPP
Sumário: I – Transitada em julgado a condenação em pena de multa, se o condenado justificadamente pretender o diferimento do prazo de pagamento ou o pagamento em prestações, compete-lhe requerê-lo, estando o tribunal impedido de o determinar oficiosamente.

II – É também ao condenado que cabe solicitar a substituição da multa por dias de trabalho.

III – Está ainda a cargo do condenado, quando a multa não for paga voluntária ou coercivamente, evitar a execução da prisão subsidiária pagando o respectivo valor ou requerendo, se o Ministério Público o não fizer, a suspensão da dita prisão, provando que a razão do não pagamento devido não lhe é imputável.

IV – De facto, a partir do trânsito em julgado da condenação esgota-se o poder jurisdicional relativamente à causa. A partir desse momento, qualquer modificação dos termos da execução da pena que não tenha carácter meramente processual (como é o caso da execução patrimonial para cobrança da multa), por implicar alteração substantiva dos termos determinados na sentença, carece de requerimento do condenado (apenas a suspensão da prisão subsidiária pode também ser impetrada pelo MP), sendo tramitado e decidido como um verdadeiro incidente da execução da pena.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum que originaram o presente recurso em separado e que correram termos pelo Juízo de Competência Genérica da Lousã – Juiz 1, por sentença transitada em julgado a 25/06/2018, foi o ora recorrente, A., condenado na pena única de 295 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, num total de 1.475,00€.

A multa não foi paga voluntariamente, não foi requerido o pagamento em prestações, não foi requerida a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade e revelou-se impossível o seu pagamento coercivo, pelo que veio a ser proferida a decisão agora em recurso, que determinou o cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente à pena de multa reduzido a dois terços.

Inconformado, recorre o arguido, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A. O douto despacho padece de nulidade por omissão de pronúncia face aos fármacos alternativos, nomeadamente suspensão da execução ou, no limite, cumprimento da pena mediante regime de permanência na habitação com sujeição a vigilância eletrónica dado que verdadeiramente, as exigências de prevenção especial mostram-se deveras atenuadas pela sujeição a tal processado nos presentes autos e tal regime se mostra notoriamente mais favorável à almejada ressocialização e obstará aos efeitos perniciosos do contexto prisional;

B. Estando devidamente comprovada tal impossibilidade de pagamento da multa pelas respostas e ofícios remetidos pelo Serviço de Finanças, Segurança Social e GNR, pelo que inexiste qualquer comportamento culposo do arguido a justificar preterição do disposto no n.º 3 do art. 49º CP, igualmente padece a douta decisão de nulidade face à contradição insanável de que enferma pois algo não pode ser e não ser, simultaneamente, o que é e seu contrário, pelo que, dando como provada a ausência de bens penhoráveis e inviabilidade de cobrança coerciva da multa, não poderá, sem mais, afastar a ausência de culpa por tal não pagamento e consequente não aplicação do vertido no n.º 3 do art. 49º CP;

C. Revelando-se essencial, para a boa decisão da causa e formulação adequada e justa de um juízo de prognose bem como exigências de prevenção, averiguar do circunstancialismo sócio-económico do arguido, pois só em tal caso de conhecimento pleno da realidade se poderia aquilatar do desvalor da conduta inadimplente, a ausência de perseguição/busca de tal realidade representará a consequente demissão ajuizativa do circunstancialismo actual, pelo que o apelo único à condenação conduz a que, também por esta via, o douto despacho se mostre nulo por omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do art. 379º n.º 1 CPP;

D. Os factos, tal qual se mostram na sua essência, desacompanhados de efectiva prova de particulares exigências ao nível do alarme social ou indignação da sociedade, bem como de definitividade do incumprimento de qualquer injunção de cariz não económico, não justificam a colocação nos carris e em circulação das pesadas, custosas e morosas locomotivas do Direito prisional, dado que “não se devem disparar canhões contra pardais, mesmo que seja a única arma de que disponhamos” adaptado da frase de Georg Jellinek “[N]ão se abatem pardais, disparando canhões", sendo certo porém que, a manter-se o douto despacho, não obstante ser o arguido mais réu que culpado, por conta de tal factualidade e de todo um conjunto de desencontros e infelizes ocorrências, mostrar-se-á a caminho do estabelecimento prisional por a possibilidade de pagamento da multa ser mais legal que real!

E. Temos por violados os princípios da igualdade, adequação, proporcionalidade bem como carácter de ultima ratio do Direito prisional que assim se verá convocado, para efeitos de execução de pena de prisão, quando a danosidade material se mostra diminuta e a “justiça restauradora” uma realidade ao alcance do decurso do tempo e cumprimento das injunções ou regras de conduta subjacente à suspensão da pena de prisão e assim efectuar o pagamento em termos ressarcitórios à sociedade, sendo que o reforçar da simples exigência acrescida em termos de censura de revogação e ameaça de efectiva execução da pena de prisão (com o estigma associado!), realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mostrando o arguido já interiorizado o desvalor da sua conduta e seriamente empenhado em tornar a sociedade contrafacticamente de novo acreditada nos valores da justiça e bens jurídicos violados;

F. No presente processo um olhar despretensioso, sério e isento, não poderá vislumbrar e atribuir maior fatia de culpa pelo não pagamento da pena de multa ao arguido, pessoa jovem, com pouco mais de 30 anos, desempregada, sem antecedentes prévios aos factos em causa nos presentes autos, que nunca esteve preso e a quem a cultura prisional, além de todo o estigma associado lhe será prejudicial, quando nunca o mesmo teve reais condições de a pagar, sendo mesmo caricato e injusto que, num apego literal à douta promoção do Ministério Público, assente na informação de não pagamento, se pretenda imputar responsabilidade total ao arguido pelo facto de não ter pago a totalidade da considerável quantia de € 1.475,00 (mil quatrocentos e setenta e cinco euros), pois desconhece o arguido como a poderia ter pago e o seu comportamento, de omissão do pagamento total numa situação económica deveras precária e nada desafogada, nunca poderá ser taxado de infracção grosseira e consequentemente tido por imputável ao mesmo!

G. Tem-se por inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, proporcionalidade, igualdade e presunção de inocência, a interpretação, dimensão normativa e o entendimento do n.º 3 do art. 49º CP segundo o qual [P]ara efeitos de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, radicada no incumprimento do pagamento, não tem de estar previamente comprovada a existência de efectiva possibilidade de liquidação, por forma a aquilatar do real desinteresse do arguido que não poderá ser presumido, dado tal presunção ser contrária às suas garantias constitucionalmente plasmadas e característica da liberdade como verdadeira “exigência ôntica”;

H. A fortiori, e por identidade violatória, tem-se por inconstitucional a interpretação literal de tal norma legal no sentido de [P]ara efeitos de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, é de atender unicamente à factualidade objectiva do não pagamento sem aquilatar do dolo ou real culpa do arguido, podendo o Tribunal decidir sem investigar, nos termos do art. 340º n.º 1 CPP, a real situação pessoal, vivencial, social e económica do arguido condenado mediante a requisição de relatório social, por forma a constatar inequivocamente que o arguido é culpado que vítima, atenta a manifesta necessidade de consagração de cláusula geral de salvaguarda a impedir que situações de incumprimento não culposo nem imputável ao arguido venham a descambar em tal flagrante violação da condição humana;

I. Temos assim por inconstitucional a dimensão normativa do n.º 1 do art. 49º CP, por violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade, e o entendimento segundo o qual “A aplicação de pena de prisão não tem de respeitar os mesmos requisitos e estar sujeita às mesmas formalidades e exigências de adequação, proporcionalidade e necessidade quer se trate de prisão a título de pena principal ou subsidiária em sede de conversão de pena de multa em prisão subsidiária, impondo assim um juízo de efectividade e não suspensão da sua execução bem como formas alternativas do seu cumprimento, nos termos dos arts. 44º e 46º CP”;

J. Da mesma forma que se mostra disforme face à Lei fundamental, por violação do princípio da igualdade, legalidade, adequação e proporcionalidade, o entendimento e interpretação do n.º 1 do art. 49º CP no sentido de “Em caso de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, é a mesma automática e sem necessidade de ponderação e juízo de prognose sobre a personalidade do arguido, necessidade de pena, defesa da sociedade, prevenção de prática de crimes e reintegração social do condenado, assim frustrando totalmente as finalidades inerentes e necessidade de efectivação da pena de prisão”.

K. Requer-se aos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, quer do ponto de vista jurídico quer sobretudo humanista, o provimento do presente recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que equacione a possibilidade de se lançar mão da medida prevista no n.º 3 do art. 49º e nas alíneas a) a d) do art. 55º CP, porquanto a opção pela “bomba-atómica” de efectividade da prisão subsidiária é manifestamente excessiva, possibilitando o cumprimento da injunção de cariz não económico, em razão da impossibilidade de pagamento da multa, certo de que não desiludirá a confiança depositada afirmando-se, acompanhando Santa Catarina de Siena, que “a pérola da Justiça, brilha melhor na concha da misericórdia”, devendo ser temperada por esta, conforme dizeres de Taylor Caldwell em conformidade com a imagem global do ilícito que não deixará de abonar, de certa forma, a posição do arguido!

L. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 40º, 42º, 44º a 46º, 49º n.os 1 e 3 e 50º a 54º CP; arts. 97º n.º 5, 340º, 374º n.º 2, 379º n.º 1 a) e c) e 410º n.º 2 CPP; arts. 13º n.º 2, 18º, 27º n.º 4, 30º n.º 4, 32º n.os 1 e 5, 110º n.º 1, 202º n.os 1, 2 e 3, 204º e 205º CRP; art. 412º nos. 1 e 2 CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime in dubio pro reo, interpretação jurídica, preferência por pena não privativa da liberdade, da culpa, legalidade, igualdade, proporcionalidade bem como inerentes aos fins das penas e a sobrevivência condigna. Sic, contando sempre com o mui douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal materialmente justo e processualmente conforme, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso, maxime em razão dos vícios de nulidade por omissão de pronúncia e injustiça de que padece a douta decisão recorrida.

V/ Exas., seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada Justiça, na medida em que, citando Montesquieu e Milo Sweetman, a injustiça feita a um é uma ameaça dirigida a todos, devendo a justiça, tal como o relâmpago, causar a ruína de poucos homens, mas o receio de todos! Todavia, nunca esquecendo que, acompanhando Emma Andievska A justiça é a bondade medida ao milímetro!

            O M.P., em bem fundamentada resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso, alegando, em síntese, que o recorrente não põe em crise o facto de ter sido determinado o cumprimento de prisão subsidiária, mas o facto de o Tribunal a quo não se ter oficiosamente pronunciado sobre a eventual suspensão da execução da pena de prisão subsidiária nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 49º, nº3 do Código Penal e que o recorrente se alheou e desinteressou por completo do pagamento da pena de multa em que foi condenado, não obstante as notificações que lhe foram efectuadas para proceder ao pagamento, alertando-o para as consequências processuais do não pagamento.

            Nesta instância, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

            O arguido respondeu, renovando a posição assumida.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte:

- Nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia;

- Violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade;

- Inconstitucionalidade por violação dos princípios da culpa, proporcionalidade, igualdade e presunção de inocência, decorrente da prévia comprovação da possibilidade de liquidação da multa;

- Inconstitucionalidade da interpretação opera a conversão da pena de multa em prisão subsidiária sem ponderação e juízo de prognose sobre a personalidade do arguido, necessidade de pena, defesa da sociedade, prevenção de prática de crimes e reintegração social do condenado.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

Por sentença transitada em julgado a 25.06.2018, A. foi condenado na pena única de 295 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz um total de € 1.475,00.

Tal multa não foi paga voluntariamente, uma vez que, notificado o condenado para o efeito, nada pagou, não tendo requerido o respectivo pagamento em prestações, nem tendo requerido a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade.

Por outro lado, não se revela possível a obtenção do pagamento coercivo da pena de multa, em face das informações recolhidas nos autos.

Notificado o arguido para proceder ao pagamento da pena de multa, com cominação de prisão subsidiária, nada pagou, nem alegou.

Assim, determina-se que o condenado cumpra a prisão subsidiária pelo tempo correspondente à pena de multa em que foi condenado reduzido a dois terços, atento o disposto no art.º 49.º, n.º 1, do Código Penal, ou seja, determino que o condenado A. cumpra 196 dias de prisão subsidiária, já atendendo ao desconto do dia de detenção (fls. 32).

Notifique, sendo o condenado com a informação de que pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, desde que pague, no todo ou em parte, a pena de multa em que foi condenado e que se encontra ainda em dívida, ao abrigo do disposto no art.º 49.º, n.º 2, do Código Penal.

Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal e emita os competentes mandados de detenção e condução ao estabelecimento prisional, a enviar ao competente órgão de polícia criminal, neles consignando o teor dos art.ºs 49.º, n.º 2, do Código Penal, e 491.º-A, do Código de Processo Penal.         

            Em função dos elementos constantes dos autos, consideram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:

1. O ora recorrente A. foi julgado em Processo Comum (tribunal singular), no Proc. nº 136/16.6T9LSA, do Juízo de Competência Genérica da Lousã – Juiz, tendo sido condenado, por decisão transitada em julgado em 25/06/2018, pela prática, em autoria material, de:

- Um crime contra a preservação da fauna e espécie, p. e p. pelo art. 30º, nº 2, da Lei nº 174/99, de 21 de Setembro, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);

- Um crime de falta de habilitação para o exercício da caça, p. p. pelo art. 32º, da Lei nº 174/99, de 21 de Setembro, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);

- Um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);

- Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 295 (duzentos e noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 1.475,00 (mil quatrocentos e setenta e cinco euros).

2. O condenado foi notificado para proceder ao pagamento da multa, não o tendo feito no prazo que lhe foi assinalado para o efeito nem em momento ulterior;

3. Não foi requerido o pagamento em prestações nem foi requerida a substituição da multa por prestação de trabalho a favor da comunidade;

4. Foram solicitadas informações sobre bens e rendimentos disponíveis à Segurança Social, à GNR e aos serviços de Finanças sem que se tenham encontrado quaisquer bens susceptíveis de penhora;

5. O condenado foi novamente notificado para efectuar o pagamento da multa no prazo de 10 dias sob pena de se determinar a sua cobrança coerciva ou, na sua impossibilidade, se determinar a sua conversão em pena de prisão subsidiária, notificação essa que foi dirigida tanto ao arguido como ao seu defensor oficioso;

6. Foram renovados os pedidos de informação para localização de bens penhoráveis, sem que tenham sido localizados, tendo vindo aos autos a comunicação da GNR, recebida em 26 de Fevereiro de 2019, informando ser desconhecido o paradeiro do condenado desde o início do ano, residindo este, anteriormente, com os seus pais.

7. Por despacho de 21/05/2019 foi a pena de multa convertida em 196 dias de prisão subsidiária, já atendendo ao desconto do dia de detenção.

Apreciando e decidindo:

            O recorrente começa por arguir a nulidade, por omissão de pronúncia, da decisão que procedeu à conversão da multa em prisão subsidiária e ordenou o respectivo cumprimento. Esse vício resultaria, segundo o alegado, da circunstância de não terem sido equacionadas em alternativa a suspensão da execução da pena ou o respectivo cumprimento em regime de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica. Vejamos se lhe assiste razão:

O ordenamento penal português resultante da reforma de 1982, conformado por um pendor marcadamente humanista, privilegiou a pena de multa em contraponto com a pena de prisão, vertente que veio a ser aprofundada com a revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março. Sendo intenção do legislador elevar a pena de multa ao patamar de pena principal, contrariamente ao que sucedia antes da reforma de 1982, em que a multa tinha natureza meramente residual, havia que rodeá-la dos mecanismos aptos a acentuar a sua natureza de verdadeira pena criminal, conferindo-lhe a dignidade que esse estatuto reclamava, sob pena de não conseguir responder ao desafio de relegar a pena detentiva para o papel de ultima ratio do sistema penal. Estabeleceu-se assim logo de início, no Código Penal de 1982, um sistema de pena de multa orientado para a consecução dos fins das penas legalmente consagrados, subordinando-se a determinação concreta da pena de multa aos limites impostos pela culpa e pelas exigências de prevenção, à semelhança do previsto para a pena de prisão, sistema esse ulteriormente aprimorado pela revisão de 1995; e estabeleceu-se concomitantemente um sistema de execução da pena orientado para a preservação da dignidade penal da pena pecuniária, visando evitar que esta, para usar as palavras de Figueiredo Dias, se convertesse numa (…) forma disfarçada de absolvição ou (…) de uma dispensa ou isenção da pena que se não tem a coragem de proferir [1]. O legislador acautelou, no entanto, eventuais situações de maior carência económica, gizando formas de garantir que um condenado economicamente mais débil e impossibilitado de proceder ao pagamento da multa não se veria, apenas por essa razão, privado da liberdade; mas ainda assim, não perdeu de vista a finalidade última da preservação da eficácia da pena de multa enquanto instrumento de prevenção e de ressocialização, como melhor se explicitará.

O regime da execução da pena de multa, que consta no essencial dos arts. 47º a 49º do Código Penal, é complementado por algumas disposições do Código de Processo Penal [2]. Esse regime é o seguinte:

A multa deve ser paga no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da decisão que a impôs (art. 489º, nºs 1 e 2, do CPP), salvo se o seu pagamento tiver sido diferido ou autorizado pelo sistema de prestações (nº 3 do mesmo artigo), posto que o art. 47º, nº 3, do Código Penal estabelece que, sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento dentro de um prazo que não exceda um ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação.

Os prazos de pagamento inicialmente estabelecidos podem ser alterados, ainda que necessariamente dentro dos limites previstos no nº 2 e desde que o justifiquem motivos supervenientes (nº 4 do mesmo artigo), implicando a falta de pagamento de uma das prestações o vencimento de todas (nº 5).

A pena de multa pode ainda ser total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, desde que o condenado o requeira e seja de concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 48º, nº 1 do Código Penal). O prazo para a apresentação do requerimento é de 15 dias, devendo o condenado indicar as habilitações profissionais e literárias, a situação profissional e familiar e o tempo disponível, bem como, se possível, mencionar alguma instituição em que pretenda prestar trabalho (art. 490º, nº 1, do CPP). O tribunal, se o entender necessário, solicitará informações complementares aos serviços de reinserção social e se porventura não operar a substituição da multa por dias de trabalho, o prazo para o pagamento da multa será de 15 dias a contar da notificação da decisão (nºs 2 e 4 do citado art. 490º).

Findo o prazo de pagamento da multa não substituída por dias de trabalho, ou de alguma das suas prestações, sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução patrimonial, conforme prevê o art. 491º, nº 1, do CPP, dispondo o nº 2 que tendo o condenado bens penhoráveis suficientes de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações.

Por fim, prevê o art. 49º, nº 1, que se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão (…), podendo o condenado (…) a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado (nº 2).

Prevendo a hipótese de o não pagamento decorrer de circunstância alheia à vontade do condenado, dispõe o nº 3 que se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. A decisão sobre a suspensão da execução da prisão subsidiária será precedida de parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente (art. 491, nº 3, do CPP). Se for autorizada a suspensão, caso os deveres ou as regras de conduta não sejam cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta (parte final do nº 3 do art. 49º do Código Penal).

Este regime legal, totalmente consentâneo com os pressupostos que conduziram à sua consagração, tem que ser interpretado e aplicado na harmonia do sistema, em sintonia com as finalidades apontadas às penas; sem que se ignore, pois, em momento algum, no decurso da respectiva execução, que constituindo a pena de multa uma verdadeira pena criminal haverá que assegurar sempre a tutela do bem jurídico violado e a reintegração social do condenado, qualquer que seja a modalidade da execução que venha a ser seguida, porquanto é através da execução da pena, qualquer que ela seja, que se confere razão prática à sentença condenatória e se asseguram as finalidades de prevenção. Dito de outro modo, precisamente porque se trata de uma pena criminal, o condenado tem que a sentir como tal, sob pena de frustração das finalidades visadas através da sua aplicação; razão que justifica que as alternativas de cumprimento da pena de multa exijam a sua intervenção concreta e interessada, pois é a ele que cabe explicar o não cumprimento da pena em que foi condenado e para cujo cumprimento foi devidamente notificado sendo, pois, ao condenado que cabe requerer a suspensão da pena de prisão subsidiária e provar que o não pagamento lhe não é imputável [3] .

Assim, transitada em julgado a condenação em pena de multa, se o condenado justificadamente pretender o diferimento do prazo de pagamento ou o pagamento em prestações, é a ele que compete requerê-lo, pois o tribunal está impedido de o determinar oficiosamente («…o tribunal pode autorizar (…) ou permitir…», diz o art. 47º, nº 3, do CP, pressupondo uma solicitação nesse sentido). É também ao condenado que compete requerer a substituição da multa por dias de trabalho («A requerimento do condenado (…)», diz o art. 48º, nº 1, do CP). É ainda ao condenado que compete, quando a multa não for paga voluntária ou coercivamente, evitar a execução da prisão subsidiária pagando a multa em que foi condenado (a menção constante do art. 49º, nº 2, do CP, «O condenado pode a todo o tempo evitar (…), pagando …» deve, aliás, ser interpretada literalmente, não sendo admissível o pagamento por terceiros, que desvirtuaria a finalidade da pena) ou requerer, se o Ministério Público o não fizer, a suspensão da prisão, provando que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável (art. 49º, nº 3, do CP: «Se o condenado provar…»; art. 491º, nº 3, do CPP: «(…) parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente», donde resulta, na economia do texto da lei, que tem que ser requerida, seja pelo M.P., seja pelo condenado). Por seu turno, compete ao Ministério Público promover a execução patrimonial quando a multa não tenha sido paga voluntária ou coercivamente e forem conhecidos ao condenado bens suficientes e desembaraçados (Art. 491º, nº 2, do CPP).

Na verdade, e revertendo ao caso dos autos, com o trânsito em julgado da condenação esgotou-se o poder jurisdicional relativamente à causa. A partir desse momento, qualquer modificação dos termos de execução da pena que não tenha carácter meramente processual (como é o caso da execução patrimonial para cobrança da multa), por implicar alteração substantiva dos termos determinados na sentença, carece de requerimento do condenado (apenas a suspensão da prisão subsidiária pode também ser requerida pelo Ministério Público), sendo tramitado e decidido como um verdadeiro incidente da execução da pena.

Sendo assim, soçobra a alegação de nulidade decorrente de omissão de pronúncia, pois que o juiz não estava obrigado, na decisão recorrida, a considerar opções que só poderia atender se lhe tivessem sido requeridas.

No que respeita às múltiplas inconstitucionalidades suscitadas pelo recorrente, não conseguimos vislumbrá-las. O que verdadeiramente avulta no retrato trazido ao conhecimento desta Relação é a completa omissão e falta de vontade do recorrente em cumprir a pena de multa, em qualquer das modalidades possíveis. O recorrente não se quis incomodar nem quer ser incomodado, revelando total desinteresse, senão mesmo desprezo, pela condenação que lhe foi imposta, tanto mais censurável porquanto foi por diversas vezes notificado para proceder ao pagamento sem que alguma vez tenha manifestado qualquer posição. Nem mesmo quando notificado das consequências da falta de pagamento da multa se não se lograsse a cobrança coerciva, portanto, com plena consciência de que a multa poderia ser convertida em prisão subsidiária, se veio pronunciar ou requerer o que quer que fosse. Tenha-se presente, de resto, que esta última notificação foi feita tanto na pessoa do ora recorrente como na do seu defensor, que não terá certamente deixado de o informar devidamente sobre as possíveis consequências da sua omissão.

Naufraga, pois, a alegação de violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade, que nem sequer faz sentido neste contexto, em que as alternativas ao cumprimento da prisão subsidiária sempre estiveram ao alcance do ora recorrente, a quem bastava, para ter obtido pronúncia sobre a sua viabilidade, ter formulado o correspondente requerimento, em consonância com o legalmente previsto. Se o não fez, sibi imputet!

No que concerne às demais inconstitucionalidades suscitadas, e nomeadamente, quanto à interpretação do nº 3 do art. 49º do Código Penal, por suposta violação dos princípios da culpa, proporcionalidade, igualdade e presunção de inocência, por ser de exigir, para efeitos de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, a prévia comprovação da possibilidade de liquidação, a falta de razão do recorrente resulta exuberantemente de tudo o que acima se referiu. A lei é clara ao deixar a cargo do condenado a demonstração de que a falta de pagamento lhe não é imputável e essa norma nada tem de inconstitucional; bem pelo contrário, é por imperativos constitucionais, máxime, de igualdade perante a lei, que se faculta ao condenado impossibilitado de solver a multa em que foi condenado a possibilidade de em momento ulterior ao trânsito em julgado da condenação vir ainda provar a incapacidade de satisfazer o montante correspondente.

            Quanto à suposta inconstitucionalidade da interpretação do nº 1 do art. 49º do Código Penal permitindo operar a conversão da pena de multa em prisão subsidiária sem ponderação e juízo de prognose sobre a personalidade do arguido, necessidade de pena, defesa da sociedade, prevenção de prática de crimes e reintegração social do condenado, não só não tem qualquer sustentação como enferma de uma petição de princípios. Na verdade, os juízos de prognose relativos à personalidade do agente, as exigências de prevenção e a reintegração social valoram-se no momento da escolha e graduação da pena, não no momento da sua execução, que apenas tem lugar por força de uma decisão transitada em julgado que necessariamente atendeu a esses vectores.

O despacho recorrido não enferma, pois, de qualquer vício, evidenciando-se como perfeitamente ajustado ao desenvolvimento revelado pelos autos, posto que a atitude omissiva e desinteressada assumida pelo arguido em todos os estádios da execução da pena apenas evidencia não terem sido ainda alcançadas as finalidades de prevenção e de ressocialização visadas pela pena de multa em que o ora recorrente foi condenado, devendo a execução da pena prosseguir nos termos legais.

                                                                       ***                                                    

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente na taxa de justiça de 4 UC

Coimbra, 13 de maio de 2020

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)


[1] - Cfr. «Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», § 123
[2] - Circunstância que decorre da coexistência de normas de relativas à determinação prática do conteúdo da sentença e de normas respeitantes ao efeito executivo da sentença – Cfr. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal I», Ed. de 1974, págs. 36/38.
[3] - Paulo Pinto de Albuquerque, «Comentário do Código de Processo Penal», 4ª Ed., pág. 1249.