Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1817/09.6TBACB.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
REVELIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 269/98 DE 1/9
Sumário: I - Nas acções especiais a que alude o decreto-lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, não pode o juiz conferir força executiva à petição quando o pedido formulado for manifestamente improcedente.

II - É manifestamente improcedente o pedido que contrarie jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I. Relatório:

Banco (…) S.A., com sede na Avenida (…), intentou contra N (…) e mulher, D (…) , residentes na Rua (…), (…) acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, alegando, em resumo, que:
No exercício da sua actividade comercial, emprestou ao réu marido, para aquisição de um veículo automóvel destinado ao património comum do casal dos réus, a quantia de € 8.075,00, que o mesmo se obrigou a restituir, acrescida de juros à taxa nominal de 14,05% ao ano, de comissão de gestão, de imposto de selo e de prémio de seguro de vida, em 60 prestações mensais sucessivas, no valor de € 209,29, vencendo-se a primeira em 10 de Agosto de 2005 e as restantes no dia 10 de cada um dos meses subsequentes.
Aquando da celebração do contrato, ficou acordado entre as partes que a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implicaria o vencimento imediato de todas as restantes, incluindo-se no valor das prestações o capital, os juros do empréstimo, o valor dos impostos e os prémios das apólices de seguro.
Mais estipularam os contratantes que, em caso de mora no pagamento das prestações, acresceria, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada (14,05%), somada de 4 pontos percentuais.
O réu não pagou a 35.ª prestação nem as seguintes, pelo que o seu débito ascende ao montante de € 5.441,54.
Pediu, a final, a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 5.441,54, acrescida das importâncias de € 1.184,02 e de € 47,36, respeitantes a juros vencidos até 24.08.2009 e a imposto de selo sobre os mesmos, respectivamente, e, ainda, dos juros vincendos, à taxa anual de 18,05, desde 25.08.2009 até integral pagamento.
Regulamente citados, os réus não contestaram.
Foi, então, proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a pagar ao autor uma quantia a liquidar em incidente próprio, correspondente à 35.ª prestação e às subsequentes vencidas e não pagas, excluindo delas os juros remuneratórios, acrescidas dos juros de mora, à taxa de 18,05%, desde 10 de Junho de 2008, bem como do correspondente imposto de selo, até integral pagamento.
Inconformado, o autor interpôs recurso, alegou e formulou as seguintes conclusões:
1) Dada a natureza do processo em causa e a ausência de contestação, deveria ter sido conferida, de imediato, força executiva à petição inicial;
2) Assim, deverá ser concedido provimento ao recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e a sua substituição por acórdão que condene os réus na totalidade do pedido.
Os recorridos não contra-alegaram.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
É uma só a questão a decidir, qual seja a de saber se o tribunal de 1.ª instância deveria ter conferido força executiva à petição inicial, sem se pronunciar sobre o mérito da acção.

II. A matéria de facto:

O tribunal recorrido considerou confessados os factos articulados pelo autor, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 484.º do Código de Processo Civil.
Visto os mesmos não terem sido impugnados, nem haver lugar à sua alteração, remete-se a matéria de facto para a decisão de 1.ª instância (n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil).


III. O direito:

A acção em presença, tal como, aliás, o recorrente a classificou na petição inicial, é uma acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação, prevista no decreto-lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.
A possibilidade de criação de uma nova forma processual diferente da forma sumaríssima foi prevista no artigo 7.º do Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, mas para ser aplicada, apenas, aos Tribunais de Pequena Instância Cível.
O Decreto-lei n.º 269/98 surge na concretização desse propósito, visando introduzir mecanismos processuais que permitissem dar resposta ao aumento explosivo da litigiosidade, derivado essencialmente da concessão de crédito ao consumo, que deu origem à instauração de acções de baixa densidade, que erigiram os tribunais em órgãos para reconhecimento e cobrança de dívidas (preâmbulo do diploma).
Instituiu-se, assim, um novo tipo de acção, mais simples e ágil do que a acção sumaríssima, conquanto baseado no modelo desta, mas generalizada ao conjunto dos tribunais judiciais, em vez de ser aplicável somente à pequena instância cível.
Prevista, primeiro, apenas para os contratos que não excedessem a alçada dos tribunais de 1.ª instância, esta nova forma processual viu o respectivo valor alargado até à alçada da Relação, com as alterações introduzidas ao diploma criador pelo Decreto-lei n.º 107/05, de 1 de Julho.
Pode dizer-se que o que distingue verdadeiramente a acção sumaríssima desta nova forma processual é a consequência da falta de contestação. Naquela, a omissão implica a confissão dos factos articulados pelo autor, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 464.º e 484.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (diversamente do que sucedia antes da entrada em vigor das alterações efectuadas pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, em que a ausência de oposição ditava o efeito cominatório pleno, nos termos do artigo 795.º, n.º 1, excepção feita à hipótese dos direitos indisponíveis); nesta nova acção, a falta de contestação impõe que o juiz se limite a conferir força executiva à petição, a menos que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente (artigo 2.º do regime aprovado pelo referido DL 269/98).
Não obstante mais incisivo do que referente à acção sumaríssima, o efeito cominatório estabelecido para a acção especial do DL 269/98 não é, ainda assim, pleno, mas, tão-só, semi-pleno. Salvador da Costa chama-lhe cominatório semi-pleno sui generis; e embora entenda não serem aplicáveis as excepções constantes das alíneas a), b) e d) do artigo 485.º do código de Processo Civil, porque o falado artigo 2.º as não menciona, acaba por concluir que ele se não afasta muito do regime daquele preceito; “basta que uma parte conteste os factos articulados pelo autor para que não funcione o efeito cominatório da aposição da fórmula executória, a incapacidade do réu traduz-se em excepção dilatória de oficioso conhecimento e a citação edital do réu implica a realização do julgamento” (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5.ª edição, página 92).
Lopes do Rego, indo um pouco mais longe, sustenta que, apesar de aquele artigo 2.º não contemplar nenhuma das excepções ao efeito cominatório previstas no artigo 485.º do Código de Processo Civil, algumas delas não poderão deixar de ser aplicáveis, não devendo ser aposta a fórmula executiva quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter ou quando estejam em causa factos para cuja prova a lei exija documento escrito (Comentários ao Código de Processo Civil, páginas 932 e 933).
Como quer que seja, a evidência de excepções dilatórias ou a manifesta improcedência do pedido haverão de obstar à condenação de preceito.
Deixando de lado as excepções dilatórias, porque a sentença impugnada a elas se não arrimou, dir-se-á que o pedido é manifestamente improcedente quando lhe falte alguma das condições para que o tribunal, ao julgar de mérito, possa acolhê-lo, como sucede se o autor não tiver o direito material que se arroga contra o réu (Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, página 379), quando a pretensão do autor carecer de fundamento (Prof. Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 259), quando não possa haver dúvida sobre a inexistência dos factos que constituiriam o direito ou sobre a existência deste (Prof. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume I, página 400).
Revertendo ao caso em apreço, decidiu-se na sentença que o pedido de juros remuneratórios incorporados no montante das prestações objecto de vencimento antecipado era manifestamente improcedente, em face do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 25.03.2009, publicado no DR, 1.ª Série, de 5 de Maio de 2009, cuja decisão é do seguinte teor: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nela incorporados”.
Os fundamentos são sabidos, reconduzindo-se à ideia de que, sendo os juros remuneratórios um rendimento do capital, não podem ser concebidos sem a obrigação principal, razão pela qual não perduram para além do vencimento antecipado das prestações vincendas e da exigibilidade da dívida correspondente.
Que é, precisamente, o caso dos autos. O que a recorrente pretende é receber remuneração por uma obrigação de capital já vencida, ao arrepio de jurisprudência firmada ao abrigo do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil.
Dir-se-á que a jurisprudência uniformizadora, não sendo vinculativa para quaisquer tribunais, não pode servir de suporte ao conceito de manifesta improcedência.
Verdade que a jurisprudência uniformizada não é vinculativa; mas nem por isso é inócua, visto que a lei assegura o seu acatamento pelas instâncias, ao menos, de forma indirecta, através da admissibilidade de recurso das decisões que a contrariem, em conformidade com o disposto nos artigos 678.º, n.º 1, alínea c), e 721.º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, página 129).
E importa não esquecer, como diz Amâncio Ferreira, que a mesma contribui para a unidade da ordem jurídica, face à autoridade que normalmente anda ligada às decisões dos supremos tribunais, designadamente quando eles se reúnem em pleno ou em plenário de secções para solucionar divergências jurisprudenciais (Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª edição, páginas 394 e 395).
Nessa perspectiva (na da autoridade especial que têm as decisões uniformizadoras), se encontra justificação bastante para considerar manifestamente improcedente pretensão que a contrarie.
Por muitas voltas que a recorrente dê, não logra afastar a certeza de que o pedido esbarra na ausência do direito invocado (direito a juros remuneratórios de capital vencido).
E nem o apelo ao contrato de mútuo lhe permite a afirmação de que ter sido convencionado regime diferente do estabelecido no artigo 781.º do Código Civil, porquanto, como muito bem se observou na sentença apelada, a cláusula 8.ª se limita a reproduzir o teor de tal normativo.
Não merece, portanto, censura a sentença, quando não conferiu força executiva à petição, pois que se limitou a aplicar a lei e o direito.


IV. Sumário:

1) Nas acções especiais a que alude o decreto-lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, não pode o juiz conferir força executiva à petição quando o pedido formulado for manifestamente improcedente.
2) É manifestamente improcedente o pedido que contrarie jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.


V. Decisão:

Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, nessa medida, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.