Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
80/16.7GBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PRONÚNCIA;
INDÍCIOS SUFICIENTES
Data do Acordão: 05/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J I CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º E 308.º DO CPP
Sumário:
I - As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
II - O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação.
III - Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
IV - O Juiz de Instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Nos presentes autos de instrução que correm no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 2, após realização do debate instrutório, o Ex.mo Juiz de Instrução, por despacho de 17 de novembro de 2017, decidiu não pronunciar o arguido AA, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.203.º, n.º1 do Código Penal e ordenar o arquivamento dos autos.

Inconformado com o douto despacho de não pronúncia dele interpôs recurso o assistente AS, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. O Assistente apresentou queixa contra AA e realizadas as diligências de inquérito, foi proferido despacho de arquivamento.
2. O Assistente requereu a abertura de Instrução e, realizado debate instrutório, foi proferido Despacho de não pronúncia.
3. O Assistente entende que, da realização das diligências no âmbito dos autos, resultam suficientemente indiciados que: 1. O arguido AA esteve na casa do assistente AS na noite de 25 para 26 de Agosto de 2016; 2. Enquanto o assistente dormia, o arguido apropriou-se de uma máquina fotográfica de marca Sony modelo Cybershot DSCTX1P no valor de 289,00 €, uns óculos de sol no valor de 30,00 € e de uma mochila no valor de 35,00 €, pertencentes ao assistente, bem como uma cópia da chave da casa; 3. O arguido saiu da casa do assistente levando consigo a mochila, a máquina fotográfica de marca Sony modelo Cybershot D5CTX1P, os óculos de sol e a cópia da chave da casa, pertencentes a este último; 4. O arguido fez seus os mencionados objectos; 5. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito concretizado de fazer seus os objectos em causa, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do respectivo dono, lesando o patrim6nio deste, o que representou; e 6. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
4. Tais factos são suportados pela análise e apreciação conjugadas dos documentos dos autos, as declarações do Assistente, o depoimento da testemunha T1, Militar da GNR e o depoimento da testemunha T2.
5. O Assistente imputa ao Arguido a prática do crime de furto baseando-se no facto de este ter sido encontrado, cerca de 3 meses (14 de Novembro) depois deste ter estado na casa daquele (de 25 para 26 de Agosto), na posse da mochila, sendo a sua imputação suportada pelas suas declarações e pelo depoimento da testemunha T2 que conhece a existência de um mochila de cor preta, de uma máquina fotográfica cor-de-rosa e de diversos óculos de sol ao Assistente.
6. A versão dos factos apresentada pelo Arguido que alegou ter, por lapso, confundido a sua mochila com a do Assistente e que, por engano, tinha levado a mochila do Assistente na madrugada do dia 26 de Agosto, não é razoável ou credível.
7. A versão dos factos apresentada pelo Arguido não é compatível com a posição do Assistente e não se coaduna com o facto de, até ser encontrado a usá-la com se fosse sua, não ter procedido à sua devolução no período entre 26 de Agosto e 14 de Novembro de 2016.
8. A incongruência do comportamento do Arguido é suficiente para o indiciar pela prática do crime que o Assistente lhe imputa.
9. Os indícios recolhidos permitem concluir pela forte probabilidade de condenação do Arguido, inexistindo dúvida séria sobre os acontecimentos, quer no que concerne à subtracção da mochila, quer no que diz respeito à máquina fotográfica, óculos de sol e cópia da chave e que o Arguido agiu dolosamente.
10. A força dos indícios, relacionando e conjugando os elementos existentes nos autos, convencem da culpabilidade do Arguido, revelando a convicção de que este virá a ser condenado.
11. Impõe-se uma Decisão de Pronúncia do Arguido pela prática como autor material de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203°, do Código Penal.
12. Pelo exposto, ao proferir Despacho de não pronúncia, o douto Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 283°, n.º 2 e 308°, ambos do CPP.
Termos em que, com os fundamentos supra expostos e sempre com o mui douto suprimento de VV. Exa.s, o douto Despacho a quo deve ser revogado e substituído por outro que pronuncie o Arguido pelos factos e crime imputados (autor material de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203°, do Código Penal) e, decidindo de harmonia com as antecedentes conclusões, VV. Exa.s farão JUSTIÇA.

O Ministério Público no Juízo de Instrução Criminal de Leiria respondeu ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção inalterada a douta decisão recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, confirmando-se a douta decisão recorrida.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«I. Iniciaram-se os presentes autos de instrução a requerimento do assistente AS, a fls. 107/108, inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a fls. 96 a 100, sustentando dever ser proferido despacho de pronúncia do arguido AA pela prática de um crime de furto, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, do C. Penal.
Aberta a instrução realizou-se apenas debate instrutório.
(…)
IV. Feito este introito, analisemos então as questões colocadas nesta instrução.
Os assistentes entendem que o arguido deve ser pronunciado pela prática de um crime de burla qualificada com base na indiciação suficiente da seguinte factualidade:
1. O arguido AA pernoitou na casa do assistente AS na noite de 25 para 26 de Agosto de 2016.
2. Enquanto o assistente dormia, o arguido apropriou-se de uma máquina fotográfica de marca Sony, modelo Cybershot DSCTX1P, no valor de € 289, de uns óculos de sol, no valor de € 30 e de uma mochila, no valor de € 35, pertencentes ao assistente, bem como de uma cópia da chave de casa deste.
3. O arguido saiu da casa do assistente levando consigo tais objectos, que fez seus.
4. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito concretizado de fazer seus os objectos em causa, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do respectivo dono, lesando o património deste, o que representou.
5. Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
O assistente sustenta a imputação que faz ao arguido (cfr. fls. 3 a 5 e 29/30), sem que a mesma seja corroborada por qualquer prova, com excepção de o arguido se encontrar, em 14/11/2016, na posse da mochila do assistente (cfr. fls. 14 a 16, 18 e 19). O arguido justificou tal facto dizendo que tinha por lapso confundido a sua mochila com a do assistente e, por isso, tinha levado por engano a mochila errada na madrugada de 26/08/2016. Adiantou que, ao aperceber-se do lapso, tentou contactar o assistente, que nunca atendeu as chamadas feitas pelo arguido. Negou ter-se apropriado de qualquer câmara fotográfica ou óculos de sol do assistente (cfr. fls. 92/93).
É verdade que, como sustenta o assistente, a tese do “engano” não se compatibiliza harmonicamente com o facto de o arguido não ter devolvido voluntariamente a mochila e de ter sido “apanhado” a usá-la como se fosse sua, dois meses e meio depois de a ter levado da casa do arguido. Mas é igualmente verdade que o assistente, que sustenta ter-se apercebido da falta dos objectos logo no dia 26/08/2016, só veio a apresentar queixa em Dezembro desse ano, o que igualmente é difícil de explicar.
A incongruência de comportamentos não basta para indiciar suficientemente a prática de um crime, sendo a explicação do arguido tão plausível como a imputação do assistente. Como se refere no despacho de arquivamento, não pode concluir-se que os indícios recolhidos suportam uma probabilidade de condenação do arguido superior à da sua absolvição. Pelo contrário, redundam num impasse que não permite ultrapassar a dúvida quanto ao que efectivamente ocorreu, tanto no que toca à subtracção da câmara fotográfica e dos óculos de sol, como no que respeita a ter-se o arguido apoderado da mochila do assistente de forma dolosa ou meramente negligente. Ora, num Estado de direito democrático como o nosso, é a quem acusa que incumbe demonstrar, ainda que indiciariamente, que é mais provável que venha a acontecer condenação do que absolvição. Quando isso não sucede, como no caso presente, privilegia-se a presunção de inocência do arguido e, em decorrência de uma das suas vertentes, expressa pelo princípio in dubio pro reo, não se sujeita a causa a julgamento, proferindo-se despacho de não pronúncia (artigos 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 308º, n.º 1, do C. P. Penal).
V. Tendo em vista clarificar o âmbito do caso julgado passível de ser formado por esta decisão, considero:
FACTOS SUFICIENTEMENTE INDICIADOS
1) O arguido AA esteve na casa do assistente AS na noite de 25 para 26 de Agosto de 2016.
2) O arguido saiu da casa do assistente levando consigo uma mochila pertencente a este último.
FACTOS NÃO SUFICIENTEMENTE INDICIADOS
1) Enquanto o assistente dormia, o arguido apropriou-se de uma máquina fotográfica de marca Sony, modelo Cybershot DSCTX1P, no valor de € 289, de uns óculos de sol, no valor de € 30 e de uma mochila, no valor de € 35, pertencentes ao assistente, bem como de uma cópia da chave de casa deste.
2) O arguido saiu da casa do assistente levando a câmara fotográfica e os óculos de sol do assistente
3) O arguido fez seus os mencionados objectos.
4) Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito concretizado de fazer seus os objectos em causa, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do respectivo dono, lesando o património deste, o que representou.
5) Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
VI. Assim, face a todo o exposto, decido não pronunciar o arguido AA pela prática do crime de furto que lhe foi imputada pelo assistente, ordenando o arquivamento dos autos. (…).».
*
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º, pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso do assistente AS a questão a decidir é a seguinte:
- se existem indícios suficientes da prática, pelo arguido AA, de um crime de furto, p. e p. pelo art.203.º do Código Penal, pelo que deverá ser revogado o despacho recorrido e ser substituindo por outro que o pronuncie pela prática deste crime.
-
Passemos ao seu conhecimento
O assistente AS defende que o Ex.mo Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia, do arguido AA, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.203.º do Código Penal, violou o disposto nos artigos 283.°, n.º 2 e 308.º do Código de Processo Penal.
Alega para este efeito, e em síntese, o seguinte:
- O assistente apresentou queixa contra o arguido cerca de 3 meses depois deste ter estado na casa daquele (de 25 para 26 de Agosto de 2016), imputando-lhe a subtração de uma mochila de cor preta, de uma máquina fotográfica cor-de-rosa e de diversos óculos de sol.
- O arguido foi encontrado em 14 de Novembro de 2016 na posse da mochila do assistente e da apreciação conjugada dos documentos dos autos juntos aos autos, das declarações do assistente, e do depoimento das testemunhas T1, Militar da GNR e T2, resultam indícios de forte probabilidade de subtração por parte do arguido da mochila, da máquina fotográfica, óculos de sol e cópia da chave do assistente;
- A versão dos factos apresentada pelo arguido que alegou ter, por lapso, confundido a sua mochila com a do assistente e que, por engano, tinha levado a mochila deste na madrugada do dia 26 de Agosto, não é razoável ou credível, pois não é compatível com a posição do assistente e não se coaduna com o facto de, até ser encontrado a usá-la com se fosse sua, não ter procedido à sua devolução no período entre 26 de Agosto e 14 de Novembro de 2016.
A resposta a esta questão, suscitada pelo recorrente, impõe, antes do mais, uma referência, ainda que breve, às circunstâncias em que deve ser proferido um despacho de pronúncia, bem como às normas processuais penais e penais que o recorrente entende terem sido violadas na decisão recorrida e a que ainda se não fez menção.
Nos termos do art.286.º, n.º1, do Código de Processo Penal “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Dentro da fase da instrução, é obrigatório o debate instrutório, que visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento (art.298.º do C.P.P.).
Nos termos do art.308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por expressa remissão do n.º2 do art.308.º - «É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º1 do artigo anterior.». -, para o n.º 2 do art.283.º, este respeitante ao despacho de acusação, ambos do Código de Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
Esta definição legal do que são indícios suficientes integra-se na orientação perfilhada pela doutrina e jurisprudência que era seguida no domínio de vigência do Código de Processo Penal de 1929, onde se realça, entre outras fórmulas, a de Luís Osório que referia: “devem considerar- se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. Cfr. “Comentário ao Código de Processo Penal Português,” vol. IV, pág. 441.
Os indícios são as provas recolhidas no processo até ser proferida a acusação ou a decisão instrutória. Não parece haver aqui qualquer problema de interpretação.
Já o qualificativo de suficientes, relacionados com uma possibilidade razoável de condenação exige um esclarecimento do grau de probabilidade da condenação.
O Dr. Jorge Noronha e Silveira observa que na resposta à questão do que seja a possibilidade razoável de condenação podem distinguir-se, na doutrina e jurisprudência, três correntes fundamentais:
- uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
- numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
- e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.
Depois de esclarecer que certos autores advogam esta terceira interpretação da suficiência de indícios como forte possibilidade de condenação sem verdadeiramente a autonomizar da segunda interpretação referida, adota a terceira posição, mas com o sentido de que para a acusação, como para a pronúncia, se exige a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final, atendendo, designadamente, ao facto de naquelas primeiras fases processuais já se encontrarem recolhidas todas as provas da acusação e de o princípio da presunção da inocência vigorar para todo o processo penal. In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 161.
O Tribunal da Relação entende que a tese que afirma a suficiência de indícios nos casos em que a possibilidade de condenação é diminuta, ou dito de outro modo, que os indícios só não seriam suficientes se a acusação fosse manifestamente infundada, não pode ser proceder, porquanto posição não tem o mínimo de consagração na letra da lei e seria desproporcionada e injusta, violando desde logo a presunção de inocência do arguido.
Mas também a posição que exige nas fases da acusação e da pronúncia a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final, não respeita, no nosso entender, a letra e o espírito da lei.
Mais concretamente e no que respeita à fase da instrução, nesta não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos; pretende-se, tão só, recolher indícios, sinais, de que um crime foi, ou não, cometido pelo arguido.
As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva, nesta fase processual a lei «… não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.» Ou seja, «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação.». Cfr. “Curso de Processo Penal” , Editorial Verbo, 1994, vol. III , páginas 179 a 182 .
O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º2 do art.283.º do C.P.P., aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação.
Seguindo a lição do Prof. Figueiredo Dias, proferida ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, consideramos que continua a ser aceitável, na interpretação do conceito normativo indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133.
Por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Para a pronúncia, não obstante não ser necessária a certeza da existência da infração, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de razoável probabilidade de condenação no que respeita aos factos que lhe são imputados
A decisão de pronúncia, tal como a de acusar, não pode ser proferidas de forma apressada ou precipitada, pois sujeitar alguém a um julgamento, para além do natural incómodo, pode ser causa, se não para o próprio, para outras pessoas, de desonra e de vergonha.
Na mente do julgador deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso do bom nome e reputação do cidadão.
A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo, pelo menos para quem defenda, como é o nosso caso, que este vigora em todas as fases do processo penal. No sentido de que o mesmo não tem aplicação na fase de pronúncia decidiu o acórdão da Relação de Évora, de 15 de Outubro de 1991, in BMJ n.º 410, pág. 903.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 439/02, após considerar que o princípio in dubio pro reo não deve ser excluído da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, decidiu «julgar inconstitucionais os artigos 286.º, n.º 1, 298.º, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil.». In, www.tribunalconstitucional.pt.
Em suma e na perspetiva que seguimos, afigura-se-nos que o Juiz de Instrução, na fase de instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo e, por outro lado, o tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o mesmo Juiz - e não os sujeitos processuais ou algum deles – ao valorar a prova chegou a um estado de dúvida insanável sobre a suficiência dos indícios para o arguido vir a ser condenado e, face a tal estado, escolheu a tese desfavorável ao mesmo, pronunciando-o e submetendo-o a julgamento.
Estando em causa no RAI do assistente, a imputação ao arguido de um crime de furto simples, p. e p. pelo art.203.º, n.º 1 do Código Penal, a pronúncia daquele exige a prova da existência de suficientes os indícios do preenchimento do tipo objetivo do ilícito - isto é, que o arguido AA subtraiu coisa móvel alheia, com ilegítima intenção de apropriação, seja para si ou para outra pessoa -, bem como do tipo subjetivo do ilícito - doloso, que impõe consequentemente, o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, com consciência da ilicitude, em qualquer das modalidades: direto, necessário ou eventual.
Com este pano de fundo, vejamos as provas trazidas aos autos.
O militar da GNR, T1, a prestar serviço no Posto territorial de …, em «Auto de ocorrência», datado de 13 de dezembro de 2016, consigna, designadamente, que no dia 14 de novembro de 2016, por volta das 12 horas recebeu uma chamada telefónica efetuada pelo ora assistente AS, informando que estava junto de um minimercado no centro da ..., na companhia do ora denunciado AA, e que este último tinha na sua posse uma mochila que pertencia ao denunciante, não tendo no seu interior nenhum dos bens que estavam no seu interior quando foi subtraída do interior de sua residência; que tal mochila fora retirada pelo suspeito quando permaneceu na residência do denunciante com a sua autorização para conviverem na madrugada de 25 para 26 de agosto de 2016 e que o denunciante ao ser abordado terá dito que a levou por ser parecida com a mochila dele e que só reparou quando já estava na residência dele; e que quando o denunciante disse que ia ligar para a GNR o suspeito logo de imediato se prontificou a ir pessoalmente ao Posto de ... “para resolver o mal-entendido”.
Volvidos alguns momentos compareceu no Posto o suspeito e, posteriormente, o denunciante. Questionado o suspeito por não ter tentado entregar a mochila ao denunciante quando se apercebera da troca das mochilas, este referiu que tentou por várias vezes ligar e encontrar o denunciante, mas sempre sem sucesso e então, por a mochila lhe fazer falta andava com ela até que conseguisse chegar à fala com este. Por sua vez, o denunciante declarou que além da mochila o denunciado lhe furtou uma máquina fotográfica de marca Sony, no valor aproximado de € 350, uns óculos de sol e uma cópia da chave de casa. O denunciante ficou de formalizar posteriormente a queixa.
Por «Auto de Denúncia» de 23 de dezembro de 2016, o denunciante AS declarou que no dia 25 de agosto de 2016, pelas 22h30m, o denunciado lhe bateu à porta de casa, em …, e pediu para entrar e ali ficar um bocado na conversa, o que veio acontecer, tendo ficado na “cavaqueira” até às 3 horas, altura em que o denunciado lhe pediu autorização para ai pernoitar dado o avançado da hora. Pelas 6h30m o denunciado já se tinha ausentado, mas veio a encontra-lo pelas 10 horas desse dia na Vila, altura em que o confrontou com o desaparecimento da mochila e dos óculos, tendo respondido que não lhos roubara. Mais tarde veio a deparar com o furto ainda de uma máquina fotográfica.
No dia 14 de novembro de 2016, o denunciante viu o denunciado com a sua mochila ás costas e pediu a colaboração da GNR.
No auto de inquirição de 14 de março de 2017, limita-se o ora assistente AS a confirmar a queixa apresentada, acrescentado que apenas “reaveu” a mochila.
A testemunha T2 declarou, no essencial, que nos finais de agosto de 2016, recebeu uma chamada telefónica do seu amigo AS para passar em casa deste para levantar uma mochila e dinheiro para ir buscar umas cervejas e uma garrafa de compal cheia de aguardente a um café em ..., o que fez. Voltando a casa do denunciante, esteve aí uns 5 minutos, pois viu que este e o denunciado estavam a beber algo e a fumar “um charro” e como estes lhe negaram “um charro” foi-se embora.
No período de tempo em que esteve na casa, não viu qualquer mochila, máquina fotográfica ou óculos de sol, mas sabe que o denunciante possuía uma mochila de cor preta, uma máquina fotográfica de cor rosa e diversos óculos de sol.
Por fim, o arguido AA, no “Auto de interrogatório” de 2 de maio de 2017, declarou, no essencial, que “não furtou qualquer mochila, máquina fotográfica, óculos ou chaves ao denunciante”. Que no mês de agosto, quando ia a passar perto da residência do denunciante convidou-o a entrar, quando decorria uma festa. Manteve-se aí até cerca da 1 hora e quando saiu ainda ficaram na festa várias pessoas. Dois ou três dias depois apercebeu-se que a mochila que levara era muito semelhante á sua, estando vazia. Tentou contactar várias vezes o denunciante com vista a trocar as mochilas, mas este nunca atendeu as chamadas telefónicas. Meses depois, quando viu o denunciante junto ao supermercado, abordou-o, dizendo-lhe que tinha trazido a mochila dele por engano e fazerem a troca, pois a mochila do denunciado estaria certamente na residência do denunciante. O denunciante começou a falar alto e referiu que ia à GNR, pelo que, para evitar qualquer confusão dirigiu-se ao Posto da GNR a relatar o sucedido.
A folhas 9 encontra-se uma guia de entrega de uma mochila ao ora assistente AS e, a folhas 8, uma fatura relativa à compra, por ---, de uma máquina fotográfica.
Do exposto resulta existirem duas versões sobre os factos:
Uma, do ora assistente AS, referindo que o arguido AA, em agosto de 2016, bateu à porta da sua residência e pediu para entrar e aí ficou após as três horas da manhã.
Faz menção apenas à sua própria mochila de cor preta, que terá sido levada pelo arguido juntamente com outros objetos da sua residência. Logo no dia do seu desaparecimento, confrontou o arguido, pelas 10 horas, com este facto, que negou ter levado a mochila e no dia 14 de novembro de 2016 foi ele que viu o denunciado com a sua mochila às costas e se dirigiu a ele.
Não refere a existência de outras pessoas, em casa, ou de outra mochila, na noite em causa.
Outra é a versão do arguido AA. Esta no sentido de que havia uma festa na residência do assistente e que foi este que o convidou a entrar quando ia a passar ali, tendo saído cerca da 1 hora, ficando várias pessoas ainda na festa.
Deixou lá a sua mochila e levou por engano a do arguido, que se encontrava vazia e procurou contacta-lo por via telefónica sem sucesso.
Não o voltou a ver até ao dia 14 de novembro de 2016, altura em que trazia a mochila do arguido porque precisava da mesma, tendo sido ele que abordou o assistente para lhe referir o engano e fazerem a troca da mochila.
O consignado pelo militar da GNR, T1 no «Auto de ocorrência», espelha a divergência de versões ora mencionadas.
Não foi inquirido como testemunha, nem se vislumbra que tenha outro conhecimento dos factos para além do que o assistente e o arguido lhe comunicaram.
A única testemunha inquirida foi T2, que declarou ter recebido uma chamada telefónica do seu amigo e assistente AS nos finais de agosto de 2016 para passar em casa deste para levantar uma mochila e dinheiro para ir buscar umas cervejas e uma garrafa de compal cheia de aguardente a um estabelecimento de cafetaria em ..., o que fez. Esta testemunha diz que conhecia uma mochila preta ao assistente AS, mas naquele dia não a viu.
Ao mencionar que na residência ficou apenas cerca de 5 minutos, pois o assistente AS e o arguido AA estavam a fumar “um charro” e não lhe quiseram dar um a si, não esclareceu se havia na residência uma festa ou não; mas do seu depoimento parece resultar que, afinal, no dia 25 de Agosto de 2016 existia na residência do ora assistente outra mochila, além da mochila deste, com a qual terá ido buscar umas cervejas e uma garrafa cheia de aguardente a um estabelecimento de cafetaria, depois de para tal ter recebido uma chamada telefónica do assistente.
O depoimento da testemunha T2, prima facie, dá, assim, mais credibilidade à versão apresentada pelo arguido, do que à apresentada pelo assistente, pois se existiam duas mochilas na data em causa e uma delas não era a do assistente, então poderá ter havido uma troca de mochilas por engano, como refere o arguido AA.
A apresentação da queixa vários meses após os imputados factos não facilitou a recolha de prova e o esclarecimento dos factos. E a verdade é que sempre a poderia apresentar contra incertos se tinha dúvidas sobre o seu autor.
Temos, assim, por pertinente a dúvida invocada pelo Tribunal a quo, fundada no princípio de presunção de inocência consagrada no art.32.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa.
Em suma: em função das provas trazidas aos autos e da insuficiência de indícios, demonstrada, não é de considerar como razoavelmente provável a futura condenação do arguido/recorrido em sede de julgamento penal pelos factos que lhe são imputados no RAI, ou seja, de que a mochila pertencente ao assistente foi levada pelo arguido com intenção de se apropriar dela, integrando-a no seu património, e que levou consigo ainda, na mesma data, a máquina fotográfica, óculos de sol e chave da casa, referidos pelo assistente.
Pelo contrário, sendo de admitir como muito mais provável a absolvição penal do que a condenação do arguido/recorrido, impunha-se o não recebimento da acusação do assistente AS deduzida no R.A.I. pela prática de um crime de furto e a prolação de despacho de não pronúncia relativamente ao arguido AA.
Não se reconhecendo a violação pelo Ex.mo Juiz de Instrução de qualquer das normas mencionada pelo assistente AS nas conclusões da motivação do seu recurso, mais não resta que confirmar o douto despacho recorrido e negar provimento ao recurso.

Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente AS e, em consequência, manter o douto despacho de não pronúncia do arguido.
Custas pelo recorrente, fixando em 3 UCs a taxa de justiça.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Coimbra, 23 de maio de 2018

Orlando Gonçalves (relator)

Inácio Monteiro (adjunto)