Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1053/10.9TJCBR-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 05/22/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 4º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.S 186º, 523º, 524º E 693º-B DO CIRE
Sumário: O art. 186.º do CIRE, consagra nas alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e nas alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa, e não meras presunções relativas de culpa grave, o que esvaziaria a utilidade destas presunções.

Nos termos da interpretação supra efectuada deste preceito (186.º/3 a) do CIRE), presume-se a insolvência culposa quando o administrador, de direito ou de facto, tenha incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório

Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação A..., Lda., com sede na (...) , Coimbra – decorrido o prazo para algum interessado alegar (ex vi 188.º/1 do CIRE) o que entender por conveniente, tendo em vista a qualificação da insolvência como culposa, veio a respectiva Administradora (nos termos do art. 188.º/2 do CIRE) propor, no parecer que apresentou, que a insolvência seja qualificada como culposa; e que sejam afectados pela qualificação os gerentes da devedora, B... e C..., gerentes de direito da devedora insolvente nos últimos 3 anos.

Para o que invocou, em termos de fundamentação e em síntese, que a insolvente incumpriu o dever de se apresentar à insolvência; e que a contabilidade da empresa não reflecte a realidade, já que não foi localizado o dinheiro resultante do alegado aumento de capital (que parece não ter sido concretizado) registado em 18/01/2010. Daí que conclua que a insolvência deve ser qualificada como culposa por força do art. 186º/1, 2, al. h) e 3, al. a), do CIRE.

Após o que se pronunciou o Ministério Público (art. 188.º/3 do CIRE) no mesmo sentido.

O requerido B(...) veio então apresentar oposição[1] em que – além de referir que renunciou às funções de gerente em 21/01/2012 – invocou a nulidade consistente na insuficiente fundamentação e documentação do parecer da administradora e a nulidade do consequente parecer do M.º P.º – dizendo ser-lhe “manifestamente difícil pronunciar-se sobre os pareceres em causa face à falta de fundamentação e à ausência da documentação neles referidas” – nulidades que foram indeferidas por despacho de 05/09/2011, determinando-se, porém, que o oponente “seja notificado do parecer do TOC constante do processo principal, bem como do teor da petição inicial e documentos que a acompanham, a fim de, querendo, em 15 dias, tomar (nova) posição sobre o parecer apresentado”.

Efectuada tal notificação e decorrido o prazo concedido em tal despacho, nada foi “oposto” pelo requerido B(...) .


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Foi então proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que a Exma. Juíza proferiu a seguinte sentença:

“ (…) Pelo exposto, decide-se:

a) Qualificar como culposa a insolvência de A(...) , Lda.;

b) Julgar afectado pela qualificação B(...) ;

c) Declarar B(...) inibido para o exercício do comércio por um período de 2 (dois) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nesse mesmo período;

 (…) “


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Inconformado com tal decisão, interpôs o requerido B(...) – afectado pela qualificação da insolvência como culposa – o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que não qualifique a insolvência como culposa ou que não o afecte.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I. O recorrente foi manifestamente ludibriado no negócio da cessão das quotas da sociedade insolvente.

II. O valor do preço da cessão seria utilizado para a concretização do aumento do capital social, que foi, entretanto, registado.

III. Não lhe tendo sido pago o preço da alienação das quotas, o recorrente não pode proceder ao aumento do capital social,

IV. Não por sua vontade mas sim devido ao incumprimento por parte do adquirente das quotas, representado pelo co-requerido C(...) .

V. Todos estes factos eram (e são) do conhecimento do co-requerido C(...) .

VI. A situação económico-financeira da sociedade era conhecida do co-requerido C(...) antes da cessão das quotas, até porque foi ele que liderou o processo de aquisição dessas participações sociais em nome e em representação do comprador, tendo sido ele a subscrever os respectivos contratos.

VII. A deterioração da situação económico-financeira da sociedade aconteceu durante a gerência do co-requerido C(...) , altura em que o recorrente já não tinha qualquer intervenção na gestão da sociedade.

VIII. Assim, para além de eventual responsabilidade criminal por prestação de falsas declarações ao Tribunal, o co-requerido agiu como litigante de má fé, já que faltou consciente e voluntariamente à verdade, escamoteando, distorcendo e alterando factos.

IX. O único responsável pela insolvência da sociedade é o co-requerido C(...) , não só como representante da entidade que se propôs comprar as quotas do recorrente, não tendo pago o respectivo preço,

X. Ao afirmar, enganosamente, que o valor correspondente ao preço da cessão estaria a ser recepcionado a todo o momento, dando, pois, entrada no caixa social para concretizar o aumento de capital social, o que nunca veio a acontecer,

XI. E ainda através de uma gestão da sociedade, enquanto gerente, deveras ruinosa para ela,

XII. Pelo que deverá ser revogada a decisão recorrida no que concerne ao recorrente,

XIII. Declarando-se como único responsável pela ocorrência da situação de insolvência o co-recorrente C(...) ,

XIV. Para além da sua condenação como litigante de má fé,

XV. Bem como o apuramento de eventuais responsabilidades criminais.

O Ministério Público apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

Encontra-se provado o seguinte factualismo:

1. A insolvente é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com o NIF n.º (...), matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra sob o mesmo número e com sede no (...) , (...) , (...) , em Coimbra (alínea A) dos factos assentes).

2. Foi constituída em 1989, tendo por objecto social a construção civil e obras públicas e a comercialização de materiais de construção (alínea B) dos factos assentes).

3. Em 18 de Janeiro de 2010, a insolvente tinha um capital social de € 1.350.000,00, dividido em sete quotas, seis no valor nominal global de € 1.349.501,20, pertencentes ao sócio B(...) e uma, no valor nominal de € 498,80, pertencente à sócia D... (alínea C) dos factos assentes).

4. Sendo seu único gerente, desde a sua constituição, o B(...) (alínea D) dos factos assentes).

5. A insolvência foi requerida pelo credor E(...), S.A. em 25 de Março de 2010 (alínea E) dos factos assentes).

6. As dificuldades económicas e financeiras da empresa e o incumprimento das obrigações assumidas perante fornecedores já se arrastavam desde 2008, tendo-se agravado em 2009 (alínea F) dos factos assentes).

7. Em 25 de Março de 2010 corriam contra a insolvente as seguintes acções e execuções:

- Proc. n.º 324/09.1TBMLD, que corria termos no Tribunal Judicial da Mealhada, Secção Única, Acção de Processo Ordinário, instaurada por F(...) S.A., para pagamento de € 73.274,81;

- Proc n.º 110/10.6TBSJM, que corria termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, Execução Comum, instaurada por G(...), Lda, para pagamento de € 4.061,30;

- Proc. n.º 351/09.9TBCBR, que corria termos nas Varas de Competência Mista de Coimbra, 2.ª Secção, Acção de Processo Ordinário, instaurada por H(...), Lda, para pagamento de € 128.490,00;

- Proc. n.º 112/10.2TJCBR, que corria termos no 2.º Juízo Cível de Coimbra, Execução Comum, instaurada por I(...), Lda, para pagamento de € 1.004,02;

- Proc. n.º 130/10.0TJCBR, que corria termos no 2.º Juízo Cível de Coimbra, Execução Comum, instaurada por J(...), Lda, para pagamento de € 3.776,41;

- Proc. n.º 434/10.2TJCBR, que corria termos no 1.º Juízo Cível de Coimbra, Execução Comum, instaurada por L(...), Lda, para pagamento de € 12.651,24;

- Proc. n.º 70/10.3TBARC, que corria termos no Tribunal Judicial de Arouca, Secção única, Execução Comum, instaurada por M(...), Lda, para pagamento de € 8.518,98;

- Proc. n.º 2248/09.3TJCBR, que corria termos no 5.º Juízo Cível de Coimbra, Execução Comum, instaurada por H(...), Lda, para pagamento de € 39.191,00;

- Proc. n.º 728/10.7TJCBR, que corria termos no 4.º Juízo Cível de Coimbra, Execução Comum, instaurada por N(...), SA, para pagamento de € 8.295,56;

- Proc. n.º 572/10.1TJCBR, que corria termos no 1.º Juízo Cível de Coimbra, Execução Comum, instaurada por O(...), S.A., para pagamento de €1.208,06;

- Proc n.º 767/07.5TBPCV, que corria termos no Tribunal Judicial de Penacova, Secção Única, Acção de Processo Sumaríssimo, para pagamento de 1.516,36 € (alínea G) dos factos assentes).

8. O passivo da insolvente ascende a mais de € 3.800.000,00 (alínea H) dos factos assentes).

9. Em 18 de Janeiro de 2010, foi registado na respectiva conservatória um aumento de capital no valor de € 1.000.000,00, em dinheiro, subscrito pelo sócio B(...) , para a criação de uma nova quota (alínea I) dos factos assentes).

10. Este aumento de capital não foi concretizado (alínea J) dos factos assentes).

11. Em 20 de Janeiro de 2010, os sócios venderam a P(...), que comprou, todas as quotas, passando, em consequência, esta a ser a titular da totalidade do seu capital social (alínea K) dos factos assentes).

12. C(...) foi por esta nomeado gerente da sociedade por deliberação de 20 de Janeiro de 2010, qualidade que foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial em 22 de Janeiro de 2010 (alínea L) dos factos assentes).

13. C(...) pediu aos anteriores gerentes a escrita e os elementos contabilísticos da sociedade (resposta ao quesito 1.º).

14. A anterior gerência não lhe forneceu a totalidade dos elementos da contabilidade da insolvente (resposta ao quesito 2.º).


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III – Fundamentação de Direito

Versam os presentes autos/incidente sobre a qualificação da insolvência da A(...) , Lda. como culposa (cfr. art. 185.º e ss. do CIRE).

A sentença recorrida, analisando os fundamentos expostos pela Sr.ª Administradora, considerou o seguinte:

Quanto à alínea a) do art. 186º/3 do CIRE:

“ (…) nas situações previstas n.º 3 do art. 186.º apenas se estabelece uma presunção de que os administradores agiram, por omissão, com culpa grave, havendo que demonstrar que a actuação com culpa presumida criou ou agravou a situação de insolvência insolvência”; nesta linha de raciocínio – concedendo “que a insolvente incumpriu o dever de apresentação à insolvência, na medida em que se não terá apresentado à insolvência nos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, que remontará ao ano de 2009 – ponderou “que não consta do parecer apresentado, nem resulta da matéria de facto provada (pelo menos com suficiente nitidez), a existência de um nexo de causalidade entre a não apresentação tempestiva à insolvência e a criação ou o agravamento da situação de insolvência”; e concluiu que “não pode esta circunstância [186.º/3/a) do CIRE] ser tida em consideração para efeito da qualificação da insolvência.

Quanto à alínea h) do art. 186º/2 do CIRE:

“Está efectivamente assente que em 18 de Janeiro de 2010 a insolvente registou na respectiva conservatória um aumento de capital no valor de € 1.000.000,00, em dinheiro, subscrito pelo sócio B(...) , para a criação de uma nova quota e que, no entanto, este aumento de capital não foi concretizado.

Parece-me evidente que este aumento fictício do capital social constitui uma irregularidade que comprometeu de forma relevante, ou mesmo decisiva, a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente, prejudicando todos os que estão interessados e têm o direito de conhecer o estado de saúde económico-financeira da empresa.

Assim sendo, cumpre concluir que se encontra verificada a previsão da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o que determina, inelutavelmente, a qualificação da insolvência como culposa.

Destarte, e nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, haverá que proceder à qualificação da insolvência como culposa, sendo abrangido pela qualificação o requerido B(...) , que exercia as funções de gerente à data em que foi registado o aumento de capital, sendo pois responsável pela irregularidade cometida (cfr. art. 6.º do CIRE)”[2].

Sobrou pois, para abranger/afectar o apelante – enquanto gerente da insolvente entre a sua constituição e 21/01/2010 – na qualificação culposa, não ser a contabilidade da devedora insolvente, do ano de 2010, transparente; com o que ficou preenchida, segundo a sentença recorrida, a alínea h) do art. 186.º/2 do CIRE.

Em face disto – tendo a sentença recorrida considerado que não se verificava a alínea a) do art. 186.º/3 do CIRE – o apelante fez incidir o seu labor recursivo sobre tal alínea h) do art. 186.º/2.

Compreende-se, mas – é a observação preliminar que cumpre efectuar – o objecto do recurso não é apenas a alínea h) do art. 186.º/2 do CIRE; o objecto do recurso (e da divergência recursiva) é a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) do apelante.

É isto que está aqui em causa e é disto que nos cumpre conhecer, confirmando ou revogando tal qualificação culposa da insolvência.

E, para tal, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 664.º do C. P. C.).

É justamente o caso.

Efectivamente, antecipando o desfecho do recurso, entendemos, ao contrário da sentença recorrida, que não se encontra preenchida a alínea h) do art. 186.º/2 do CIRE; e entendemos, ainda ao contrário da sentença recorrida, que se encontra verificada a alínea a) do art. 186.º/3 do CIRE.

Expliquemo-nos (começando pela premissa maior):

Interpretando o art. 186.º do CIRE, entendeu a sentença recorrida – na esteira da jurisprudência maioritária – que as alíneas do n.º 2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa e que as alíneas do n.º 3 apenas consagram presunções relativas de culpa qualificada, ou seja, para a insolvência ser dada como culposa com base no art. 186.º/3, é necessário – segundo a sentença recorrida – que a presunção de culpa qualificada não seja ilidida e, ainda, a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186.º/1 do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Corresponde um tal entendimento – reconhece-se e insiste-se – à posição que maioritariamente a jurisprudência vem adoptando[3]; posição de que nos “afastamos” a partir das seguintes constatações e reflexões:

Não é plausível, a nosso ver, que o legislador tenha introduzido, com o art. 186.º/3 do CIRE, um preceito vazio de sentido útil e – interpretado como consagrando uma simples presunção de culpa (qualificada) no facto omitido – é o que na prática acontece.

Entre o facto omitido (incumprimento do dever de apresentação à insolvência e incumprimento do dever de elaboração e depósito das contas) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência não há, logo em abstracto, um perceptível nexo lógico ou uma qualquer conexão; o que torna mais ou menos “impossível” a prova, em concreto, do nexo de causalidade e redunda – exigindo-se a prova de tal nexo causal – na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE (enquanto enumeração de actos/factos susceptíveis de desencadear como consequência a qualificação da insolvência como culposa).

Em que medida – é a questão/reflexão que, a nosso ver, deve ser feita – é que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pode ser causa da sua criação (da insolvência)? Em que é que a não apresentação à insolvência contribui para a situação de insolvência? Se há incumprimento do dever de apresentação à insolvência é porque há situação de insolvência e, sendo assim, se já há situação de insolvência, como é que o incumprimento de tal dever pode contribuir para algo – situação de insolvência – que é um pressuposto de existência do próprio dever de apresentação (à insolvência)?

Em que medida – é a questão/reflexão que pode/deve ser feita em relação à alínea b) – é que o incumprimento do dever de elaboração e de depósito das contas pode ser causa duma insolvência ou sequer do seu agravamento? Como é que o “balanço” do que já aconteceu – e que é suposto exprimir com fidelidade o que antes (no ano anterior) aconteceu – pode contribuir, pode ser causa, duma situação de insolvência ou do seu agravamento?[4]

Trata-se de casos (de incumprimento/violação de deveres[5]) – é o que pretendemos demonstrar – em que, tendo em vista desencadear a qualificação da insolvência como culposa (como é intenção do legislador), não faz sentido exigir o nexo causal entre o facto/dever omitido e a geração ou o agravamento da situação de insolvência; desde logo por, com tal exigência, se estar a impedir que o desígnio tido em vista possa ser atingido[6].

É justamente por isto – procurando encontrar sentido útil no art. 186.º/3 e interpretando em conjunto e em harmonia todo o art. 186.º do CIRE – que entendemos que as presunções do art. 186.º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada (no facto praticado), tendo antes que ser vistas como presunções (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência.

Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura económica ou as condições de mercado[7].

É isto que, com o devido respeito por opinião diversa, resulta de todo o regime da “insolvência culposa” constante do art. 186.º do CIRE.

Segundo o art. 186.º/1 do CIRE – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto[8], nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

“Definição” esta que é complementada, nos n.º 2 e 3 do art. 186.º, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[9] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos.

É justamente a não homogeneidade dos comportamentos descritos nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE que nos deve fazer reflectir que não estão necessariamente em causa e enunciados (em tais n.º 2 e 3 do art. 186.º) comportamentos imediata e presumivelmente geradores da insolvência.

Nas alíneas a) a g) do n.º 2 do art. 186.º estão factos/actos em que há um denominador comum de delapidação do património do devedor; estão factos/actos que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja pessoa singular, se configuram como infracções ao dever geral de fidelidade consagrado no art. 64.º/1/b) do CSC; estão pois factos/actos em que existe (em abstracto) um nexo lógico entre os respectivos factos/actos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[10]; em que, sendo assim, pode dizer-se que o legislador mais não fez do que mandar presumir a causalidade (que era latente) entre eles e a insolvência.

Porém, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas duas alíneas do n.º 3 já não se consegue ver onde é que possa estar o nexo lógico, a conexão substancial entre o facto/acto que dá origem à presunção e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

A verificação dos factos constantes de tais alíneas (h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3) faz suspeitar da existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência; a não organização ou desorganização da contabilidade, a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas, permitem supor que, se assim se procedeu, é porque há alguma coisa a esconder, é porque foram praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, porém – é o ponto – os factos em causa em tais alíneas (h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3), cuja verificação desencadeia a insolvência culposa, não são estes últimos (os factos que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência)[11].

E é justamente por isto que as perguntas/reflexões supra formuladas – a propósito da possível relação causal entre os factos de tais alíneas e a criação ou agravamento da situação de insolvência – têm sempre uma mesma resposta.

Em que medida é que a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos – enfim, irregularidades contabilísticas – geram ou agravam a insolvência? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência[12].

Em que medida é que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pode ser causa da sua criação (da insolvência)? Em nenhuma medida; quando muito tal incumprimento não revela a, em si pressuposta, situação de insolvência.

Em que medida é que o incumprimento dos deveres de elaboração e de depósito das contas podem ser causa duma insolvência ou sequer do seu agravamento? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência.

Em que medida a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos contribuem para a situação de insolvência? Em nenhuma medida; desde logo, tal falta sistemática de comparência e de apresentação apenas ocorre e releva em momento posterior à própria declaração judicial de insolvência.

Enfim, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal com a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

O que basicamente está em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, é o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e/ou dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE)[13]; é a violação ilícita e culposa de tais deveres legais que leva a lei determinar a aplicação do regime (da insolvência culposa) a estas situações.

A lei (art. 186.º do CIRE), além da cláusula geral contida no n.º 1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus n.º 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa; factos enumerados em que, “em vez de se limitar a desenvolver, casuisticamente, o enunciado geral [contido no n.º 1], acrescenta alguns casos de insolvência (…) que não se subordinam aos requisitos da noção geral de insolvência culposa – a sua submissão ao mesmo regime resulta de um juízo diferente ou de uma distinta valoração.

Em síntese, as alíneas a) e g) são factos/actos que se reconduzem ainda à cláusula geral; havendo nos factos/actos apurados indícios sérios de que a insolvência se deve a tais actos/factos, não surpreendendo ou repugnando que consubstanciem presunções. Mas, nas alíneas h) e i) o caso é diverso. Só muito remotamente algum dos factos/actos pode ser considerado causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento. Constituindo, por um lado, a violação de um dever específico do comerciante e, por outro lado, a violação de um dever elementar de todo o insolvente, é legítimo supor que houve culpa qualificada do sujeito – mas culpa qualificada no acto praticado ou omitido e não na insolvência, como é exigido pela norma geral do n.º 1. E, no entanto, desencadeiam os mesmos efeitos da insolvência culposa.

O legislador terá entendido submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um acto ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também. Na base desta opção legal está, portanto, como se disse, uma valoração diferente daquela que terá estado na origem da disciplina. Deve, por isso, considerar-se que a lei estabeleceu, nestes dois pontos, não presunções, mas – passe o paradoxo – verdadeiras ficções.

(…) Trata-se de um intuito repressivo (punitivo) e simultaneamente preventivo e pedagógico em que os deveres legais em questão saem reforçados. (…) as sanções de natureza civil sempre tiveram uma justificação prática: conseguir a efectividade dos deveres impostos.[14]

Evidentemente, não o ignoramos, assim vistas as coisas, serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa; uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do n.º 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do n.º 2, em que a presunção é iuris et de iure.

É, porém, este o sentido da lei: abarca os casos em que se verifica a culpa qualificada e o nexo de causalidade integrantes da noção de insolvência culposa, nos termos do art. 186.º/1; e, além e fora disso, sanciona a violação culposa de certos deveres específicos dos comerciantes e dos deveres gerais dos insolventes, sujeitando a sua violação aos efeitos da insolvência culposa, sempre e sem possibilidade de prova em contrário, nos casos do 186.º/2, quando não se prove que não ocorreu algum dos requisitos da insolvência culposa, nos casos do 186.º/3.

As presunções constantes do n.º 2 e 3 do art 186.º do CIRE foram estabelecidas, repete-se, para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais; daí que se oneram estes devedores com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade; daí que se vá ao ponto, em certos casos, de não se admitir sequer qualquer prova em contrário.

Última solução esta (a do n.º 2 do art. 186.º) porventura excessiva, especialmente quanto às alíneas h) e i), em que não é detectável uma diferença sensível em relação às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º (em que, todavia, a presunção pode ser ilidida); efectivamente, não existindo nas alíneas h) e i) do art. 168.º/2 do CIRE um nexo lógico ou uma conexão substancial entre o acto/facto aí referido e o facto presumido (insolvência culposa), parece que, também aqui, devia ser concedida a possibilidade do devedor se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita – e porventura culposa – não causou a insolvência[15].

Tendo isto presente – procurando aproximar as alíneas h) e i) do art. 186.º do tratamento das alíneas do n.º 3.º – entendemos que pode/deve ser colocada alguma exigência na preenchimento de tais alíneas h) e i); entendemos que deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º.

Do que acaba de ser dito – sobre o modo como interpretamos todo o art. 186.º do CIRE, consagrando as alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa[16] (e não meras presunções relativas de culpa grave, o que, como se referiu, esvaziaria a utilidade destas presunções) – irradia para o caso dos autos e do recurso o seguinte:

Os comerciantes (e uma sociedade por quotas é comerciante – cfr. art. 13.º/2 do C. Comercial) estão, desde “sempre”, atenta a especificidade da sua actividade e do seu regime legal, sujeitos a um conjunto de obrigações; designadamente, estão obrigados a ter escrituração comercial, a dar balanço e a prestar contas (cfr. art. 18.º do C. Comercial).

Faz parte da gestão saudável duma actividade económica (como é o caso duma sociedade), que se quer e pretende organizada, o registo constante e integral do exercício respectivo e de periódicos acertamentos da sua situação financeira; por outro lado, destinando-se a sociedade a realizar lucros para se repartirem entre os sócios (art. 980.º C. Civil), há toda a conveniência em proporcionar a possibilidade da distribuição periódica de lucros; e como também há interesses de terceiros – dos credores da sociedade e o interesse tributário do Estado – tudo conflui para uma exigência de acertamento periódico da situação financeira da sociedade.

Daí a exigência de escrituração mercantil, que é o registo dos factos que podem influir nas operações e na situação patrimonial dos comerciantes; cuja obrigatoriedade também decorre dos art. 29.º e 40.º/1 do C. Comercial e que constitui um meio de verificação da regularidade da conduta do comerciante (v. g. no caso de insolvência e em todos os casos em que isso estiver em causa) e que serve de base à liquidação de impostos e à fiscalização do cumprimento das normas tributárias. Escrituração que, porém, não se confunde – não é a mesma coisa – com a sua contabilidade, que é a compilação, registo, análise e apresentação, em termos de valores pecuniários, das operações comerciais.

Daí também o disposto no art. 62.º do C. Comercial, segundo o qual “todo o comerciante é obrigado a dar balanço anual ao seu activo e passivo nos 3 primeiros meses do ano imediato e lançá-lo no livro de inventário e balanços, assinando-o devidamente”. Balanço que constitui a síntese da situação patrimonial do comerciante em determinado momento, através da indicação abreviada dos elementos do activo, do passivo e da situação líquida e respectivos valores[17],[18].

É neste ambiente legal – de escrituração, contabilidade e contas devidamente organizadas – que se insere o dever legal de apresentação à insolvência (cfr. art. 18.º do CIRE), corolário lógico duma actividade que se quer organizada e que se destina a gerar lucros; com o que também se visa – tanto mais que o CIRE se dirige abertamente à protecção dos credores – evitar o agravamento de situações que podem prejudicar gravemente os credores.

E é ainda neste ambiente legal que se insere o art. 186º/2, al. h), do CIRE, segundo o qual constitui fundamento de qualificação da insolvência o incumprimento, “em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, a manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Alínea esta, porém, que estabelece como presunção inilidível (iuris et de iure) duma insolvência culposa não todo e qualquer incumprimento, não toda e qualquer irregularidade contabilística, mas sim o incumprimento “em termos substanciais” da obrigação de manter uma contabilidade organizada e fiel da situação patrimonial e financeira da empresa.

Ou seja, para tal alínea estar preenchida, tem que se estar perante uma irregularidade contabilística com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade contabilística com influência na percepção que uma contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.

Configurará por certo tal presunção inilidível uma contabilidade cuja organização fuja às regras do SNC em vigor, que não contenha os documentos de prestação de contas exigíveis, que esteja engenhosamente feita por forma a esconder/mascarar/disfarçar a realidade financeira e patrimonial da empresa contabilizada.

Ora, não é isto, salvo o devido respeito, que a fundamentação factual da sentença recorrida retrata.

Sustentou-se, na sentença recorrida, para considerar verificada a previsão da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE que, “em 18 de Janeiro de 2010 a insolvente registou na respectiva conservatória um aumento de capital no valor de € 1.000.000,00, em dinheiro, subscrito pelo sócio B(...) , para a criação de uma nova quota e que, no entanto, este aumento de capital não foi concretizado”; extraindo-se daqui “que este aumento fictício do capital social constitui uma irregularidade que comprometeu de forma relevante, ou mesmo decisiva, a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente, prejudicando todos os que estão interessados e têm o direito de conhecer o estado de saúde económico-financeira da empresa.”

Significa isto – traduzindo-se a contabilidade, como supra se referiu, na compilação, registo, análise e apresentação, em termos de valores pecuniários, das operações comerciais – que não foi apontado no parecer da Administradora[19] nem se encontra retratado nos factos provados da sentença um único elemento factual sobre a contabilidade da insolvente[20].

O registo na Conservatória do Registo Comercial de um aumento de capital (que não terá “entrado” no fundo comum) não é um registo/documento contabilístico.

Evidentemente, o capital social (cifra representativa da soma das entradas dos sócios para o fundo comum) tem que ter numa contabilidade devidamente organizada um registo contabilístico, porém, ignoramos de todo o que o requerido/recorrente – única pessoa afectada com a qualificação da insolvência como culposa – fez constar em termos de registo contabilístico.

Pode – é até o mais natural – o requerido/recorrente não ter feito qualquer registo contabilístico do aumento de capital não realizado.

É que o registo do aumento de capital (na Conservatória do Registo Comercial) ocorreu no dia 18/01/2010 e dois dias de pois, em 20/01/2010, o requerido/recorrente vendeu as suas quotas e deixou de ser gerente, tendo “ C(...) sido nomeado gerente da sociedade por deliberação de 20 de Janeiro de 2010, qualidade que foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial em 22 de Janeiro de 2010 (alínea L) dos factos assentes)”

Neste contexto factual, sem que quaisquer balanços, balancetes ou demonstrações, respeitantes ao ano de 2010, hajam sido juntos aos autos, não se pode dizer que o recorrente, enquanto administrador de direito (gerente) da insolvente, incumpriu a obrigação de ter uma contabilidade organizada e/ou que tenha praticado uma irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; não se podendo assim dar como preenchida a alínea h) do art. 186.º/1 do CIRE.

Não é o que vimos de concluir, todavia, relevante e decisivo; uma vez que, como já antecipámos, entendemos ser de manter a qualificação da insolvência, como culposa, com fundamento no art. 186.º/3 a) do CIRE.

Nos termos da interpretação supra efectuada deste preceito (186.º/3 a) do CIRE), presume-se a insolvência culposa quando o administrador, de direito ou de facto, tenha incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

De acordo com o art. 18º/1 do CIRE, em conjugação com o art. 3º/1 do mesmo diploma, o devedor/comerciante deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la.

Exige pois a aplicação deste normativo legal a demonstração do início da situação de insolvência; só com a determinação deste facto é que se poderá delimitar o prazo de que o devedor dispunha para cumprir o dever referido.

A tal propósito, ponderou-se na sentença recorrida “que a insolvente incumpriu o dever de apresentação à insolvência, na medida em que se não terá apresentado à insolvência nos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, que remontará ao ano de 2009”.

Concorda-se com tal ponderação.

Embora a facticidade recolhida não seja abundante, tendo presente o que consta do facto 6, o número de acções e execuções referidas no facto 7 (assim como o seu valor e a data da sua instauração) e o passivo global da insolvente referido no facto 8 (€ 3.800.000,00) – facto estes que não são impugnados no presente recurso – pode situar-se a situação de insolvência (a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas) antes de Novembro de 2009.

Tendo a sentença recorrida considerado que não se verificava a alínea a) do art. 186.º/3 do CIRE, o recorrente, como já se admitiu, terá concentrado o seu labor recursivo à volta da alínea h) do art. 186.º/2 (que a sentença considerou verificada).

Em todo o caso, como foi desenvolvido, foi um labor improfícuo; uma vez que, mais do que uma verdadeira alegação recursiva, o requerente produziu a oposição prevista no art. 188.º/5 do CIRE (em vez de a ter produzido, com tal teor, no momento próprio).

Efectivamente, o recorrente – como as conclusões supra transcritas o espelham – ocupou toda a peça recursiva a alegar factos novos; a alegar factos que podia/devia ter deduzido na oposição do art. 188.º/5 do CIRE; a explicar por que é que o dinheiro do aumento de capital não entrou na sociedade; a dizer que toda situação económico-financeira da devedora era do conhecimento do outro possível afectado com a insolvência culposa (o C(...) , nomeado gerente da sociedade por deliberação de 20/01/10) e que foi este o único responsável pela insolvência da devedora.

Não teve o recorrente presente que um recurso se encontra objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido; que o tribunal ad quem não pode ser chamado a pronunciar-se sobre questões que não foram alegadas pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados; que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamentos de questões novas, destinam-se a facultar a reapreciação da decisão com base nos mesmos fundamentos que foram invocados na instância recorrida (salvaguardada, naturalmente, a possibilidade de apreciação de matérias de conhecimento oficioso – o que não é o caso).

Foge pois por completo aos cânones processuais a alegação recursiva do recorrente[21], em que coloca/invoca fundamentalmente questões factuais novas, que, por isso, não podem fazer parte do objecto do recurso e aqui conhecidas.

Em conclusão e em síntese, “apenas” resulta dos factos provados da sentença que, quando o recorrente cessou, em 21/01/2010, as suas funções de gerente da insolvente já esta, há mais de 60 dias, se encontrava em situação de insolvência, o que, nos termos do art. 186.º/3 a) do CIRE, por incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, faz presumir a insolvência culposa; por outro lado, onerando tal presunção (ilidível) o recorrente – que se podia “livrar” da qualificação da insolvência como culposa com a prova de que não foi a sua conduta ilícita e culposa que deu causa à insolvência, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade (por exemplo a conjuntura económica ou as condições de mercado) – nada foi alegado a tal propósito no momento próprio[22], nada se encontrando provado que ilida tal presunção, que assim subsiste e funciona, o mesmo é dizer, que impõe que se mantenha a qualificação da insolvência como culposa.


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Enfim, tudo razões que conduzem à improcedência do que o recorrente invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o completo naufrágio da apelação e a confirmação do decidido na 1ª instância.

Efectivamente, quanto à capacidade de exercício, não sendo as sociedades comerciais pessoas físicas, necessitam de quem as represente, isto é, de alguém que pratique actos que, mediante certo condicionalismo, produzam efeitos na esfera jurídica da sociedade, de alguém que intervenha por elas e no seu interesse, formando e manifestando a vontade social.

Formação e manifestação da vontade social que cabe, nas sociedades por quotas, quanto à administração e representação, à gerência nos termos do art. 252.º, n.º 1, do CSC; sendo os gerentes designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios – cfr. 252.º, n.º 2, do CSC.

Gerentes que têm poderes e competência para praticar todos os actos – de administração e de disposição – pertinentes à realização do escopo social (cfr. 259.º do CSC); que dispõem duma competência genérica e indefinida para realizar todas as operações sociais, só não podendo praticar os actos que a lei ou o contrato social reservam à competência de outros órgãos (assembleia-geral ou ao órgão fiscalizador).

Vale isto para dizer e explicar que, sendo assim, a qualificação, como culposa, da insolvência duma sociedade por quotas tem necessariamente que afectar e que se reflectir sobre a pessoa que constitui o órgão que forma e manifesta a sua vontade[23]; sobre a pessoa – enquanto elemento e “parte componente” da sociedade – que, nos 60 dias após a situação de insolvência, não cumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência, o mesmo é dizer, o gerente então designado no contrato de sociedade.

É justamente o caso do aqui recorrente, sócio-gerente da devedora insolvente até ao dia 20/01/2010 (isto é, em 2 anos e 10 meses dos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência); a quem a sentença recorrida, nos termos do art. 189.º/2 c) do CIRE, inibiu para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 anos (“moldura” mínima da inibição).


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Uma última nota ainda:

Também foge aos mais elementares cânones processuais a abundante junção de documentos que o recorrente pretendeu efectuar.

Efectivamente, os documentos – de acordo com o art. 523.º, n.º 1, do C. P. Civil – devem ser apresentados na fase inicial dos articulados; devem ser oferecidos com o articulado a que se referem, seja como fundamento da acção, seja como fundamento da defesa; excepcionalmente, porém, podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância, “mas a parte será condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado” – cfr. 523/2 do CPC; mais excepcionalmente, ainda, podem os documentos ser juntos após o encerramento da discussão em 1.ª Instância, designadamente, na seguinte circunstância: havendo recurso da decisão proferida e tratando-se de documentos cujo oferecimento não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância – cfr. 524.º/1 do C. P. C.; todavia, para que haja tal impossibilidade de oferecimento, até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância, é necessário que a parte ignore a existência do documento ou que à parte não fosse viável (dentro do limite temporal do encerramento da discussão em 1.º Instância) a posse do mesmo, cabendo-lhe, todavia, a prova de tal impossibilidade.

Daí o disposto no actual 693.º-B do CPC (correspondente ao anterior 706.º, n.º 1) segundo o qual “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 524.º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância (…)”; continuando a valer, em relação a esta última parte, a seguinte e pertinente observação do Prof. Antunes Varela[24]: “É evidente que, na última parte, a lei não abrange a hipótese de a parte (…) pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª Instância”.

Isto dito, revertendo aos documentos cuja junção se requereu, de imediato se constata que não se trata de documentos cujo oferecimento não tenha sido possível efectuar até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância.

Concluindo pois neste ponto, não se verifica a situação excepcional prevista nos art. 693.º-B e 524.º do CPC e, por consequência, não se pode por tal razão autorizar (com a alegação do recorrente) a pretendida junção de documentos; ordenando-se assim, após o trânsito, o seu desentranhamento e restituição ao recorrente.


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IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Ordena-se, após o trânsito, o desentranhamento e restituição ao apelante dos documentos de fls. 95 a 260; com custas de tal incidente (da não admissão da junção dos documentos) a cargo do apelante, fixando-se a TJ de tal incidente em 1 UC.


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Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] O mesmo fazendo o requerido C(...) – que não foi afectado com a qualificação da insolvência como culposa e que não é assim “parte” no presente recurso – que alegou que nunca foi sócio da insolvente, tendo sido nomeado seu gerente apenas 62 dois dias antes da entrada em tribunal do processo de insolvência, razão porque não incumpriu o dever de se apresentar à insolvência, tanto mais que não conhecia a sua situação de insolvência, uma vez que os anteriores gerentes lhe não forneceram a escrita e elementos contabilísticos da sociedade (não tendo tido acesso às contas da mesma).

[2] Ao que se acrescentou: “Ao invés, o requerido C(...) foi nomeado gerente já depois de registado o aumento de capital, e escassos três meses antes da insolvência, não sendo responsável pela irregularidade, ou pelas suas consequências, tanto mais que se apurou que, depois de iniciar funções, pediu ao anterior gerente a escrita e os elementos contabilísticos da sociedade e este lhe não forneceu a totalidade dos elementos da contabilidade da insolvente. Como tal, cumpre concluir que a irregularidade que determina a qualificação da insolvência não lhe é imputável, não devendo por isso ser afectado pela qualificação.”
[3]Cfr., v. g., Ac. Rel. de Guimarães de 12/03/2009, in CJ online, ref. 5220/2009; e Ac. Rel. de Coimbra de 20/04/2010, in CJ online, ref. 3246/2010, e de 08/02/2011, in CJ online, ref. 741/2011.
[4] A falta de nexo lógico (entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência) atinge o seu paroxismo no caso do incumprimento do dever de depositar as contas. Como é que “alguma vez” o mero não depósito na conservatória de contas, elaboradas e aprovadas, pode contribuir, pode ser causa, duma situação de insolvência ou do seu agravamento? A nosso ver, com o devido respeito, nunca.
[5] Do dever de apresentação à insolvência (cfr. art. 18.º do CIRE), do dever de dar balanço e de prestar contas (cfr. art. 18.º e 62.º do C. Comercial e art. 9.º/1/i) do CSC) e do dever de inscrever no registo os actos a ele sujeitos (cfr. art 18.º do C. Comercial e 2.º e 3.º do C. Registo Comercial).
[6] Quando muito, pode dizer-se que tal nexo causal não está à partida e em abstracto afastado no agravamento da insolvência em caso de incumprimento do dever de apresentação à insolvência; mas, em todo o art. 186.º/3, só aqui se vislumbra que tal prova positiva possa eventualmente ser feita.

[7] Cfr. Catarina Serra, in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março de 2008, pág. 69.
[8] Cfr. art. 6.º do CIRE.
[9] Sem prejuízo do 186.º/4 mandar aplicar, “com as necessárias adaptações”, os n.º 2 e 3 à actuação da pessoa singular.
[10] Como é evidente, a delapidação de património causa ou pode causar, pela diminuição de recursos que gera, impossibilidades de cumprimento e/ou activos manifestamente inferiores ao passivo (cfr. art. 3.º/1 e 2 do CIRE).
[11] Como refere Catarina Serra, local citado, pág. 65, “entre o facto conhecido – não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos – e o facto desconhecido ou presumido – insolvência culposa – interpõe-se um outro que não chega a ser conhecido”.
[12] O que gera ou agrava a situação de insolvência serão os factos que porventura se quis/quer esconder.

[13] Nos art. 186.º/2/i) e 186.º/3/a) estão claramente em causa deveres nascidos da própria insolvência (da situação de insolvência ou da sua declaração judicial), sendo por isso impensável, como já se referiu, qualquer ligação causal entre o acto/facto referido em tais alíneas e a insolvência.
[14] Catarina Serra, local citado, pág. 68/69.

[15] Como refere Catarina Serra, in o Novo Regime Português da Insolvência (4.ª ed.), pág. 122, “melhor seria, por isso, que o legislador tivesse integrado as duas últimas alíneas do n.º 2 na norma do n.º 3: continuar-se-ia a penalizar (a onerar com uma presunção), como parece ter sido intenção, o sujeito que viola deveres jurídicos, mas ser-lhe-ia concedida, como é de elementar justiça, a possibilidade de ele se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita – e porventura culposa – não causou a insolvência, não sendo, portanto, adequado que se produzam os efeitos concebidos para as situações de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência).”
[16] Neste sentido, Ac. Rel. do Porto de 05/02/2009, in CJ online, ref. 2737/2009, e Ac. Rel. de Coimbra de 26/01/2010; e, na doutrina, além de Catarina Serra, locais citados, Cassiano Santos, Direito Comercial, Vol. I, pág. 214/5, e Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, pág. 34.
[17] Para o que, em face da crescente complexidade dos exercícios sociais (e a necessidade de ajustamento às directivas comunitárias), foram sendo desenvolvidas normas tendentes ao apuramento técnico e à obtenção de um maior grau de rigor na demonstração dos resultados, normas essas que hoje integravam o Sistema de Normalização Contabilística – DL 158/2009, de 13-07.

[18] No termo de cada exercício, o membro ou membros do órgão de administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas de exercício e os demais documentos de prestação de contas previstas na lei (cfr. art. 65.º do CSC); e no tocante às sociedades por quotas – resulta do art. 263.º, n.º 3, do CSC – deverão ser elaboradas, pelo menos, “o relatório de gestão, as contas e a proposta sobre a aplicação de lucros e tratamento de perdas”.
[19] E na perícia do TOC para que o parecer da administradora remete.
[20] Não encontramos no presente apenso e nos documentos que acompanham a perícia do TOC um único documento contabilístico do ano de 2010.

[21] Ao que não será alheio, admite-se, ter sido ele próprio a subscrever – só mais tarde regularizando o patrocínio judiciário – a sua alegação recursiva.

[22] Mesmo agora nas alegações recursivas – que, insiste-se, já não é o momento próprio – o recorrente limita-se a “argumentar” que o C(...) tinha toda a informação da insolvente e conhecia totalmente a situação económica da insolvente, não mencionando com detalhe factual consistente as razões que o levam a dizer ter sido a actividade de gerente do C(...) a causar a situação de insolvência (designadamente, nada diz sobre a “participação” dos 2 meses de gerente do C(...) no passivo de € 3.800.000,00); deixando perpassar a ideia que o gerente C(...) , conhecendo a situação de insolvência, propôs-se enfrentar tal situação (contribuindo com a injecção de € 1.000.000,00 na insolvente) e desistiu, porém, tal desistência, ainda que sem aparente justificação, não equivaleria à ilisão da presunção que onerava o aqui recorrente.
[23] Como é evidente, se afectasse apenas o ente jurídico autónomo, seria bastante inócuo.
[24] In Manual de Processo, pág. 517, 1.ª ed..