Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/13.2TBCLB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REQUISITOS
PREJUÍZO
CREDORES
Data do Acordão: 06/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 238.º/1/A) DO CIRE
Sumário: 1 - A exoneração do passivo restante tem em vista e deve ser concedida ao devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência; é para quem, sem culpa, caiu na situação de insolvência.

2 - Assim, o “prejuízo para os credores” – a que alude o art. 238.º/1/a) do CIRE – compreende os comportamentos do devedor que, encontrando-se já em situação de insolvência, continua a contrair novos débitos (não integrando, porém, o conceito normativo de “prejuízo para os credores” o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo mero vencimento e acumular de juros), assim como os comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé.

3 - É o caso – destes segundos comportamentos – do devedor que, estando já em situação de insolvência, se desfaz dos bens livres que possui, apresentando-se depois à insolvência apenas com bens “onerados” com hipotecas e penhoras.

4 - Os eventos ou circunstâncias que fizeram o devedor cair em situação de incumprimento e de insolvência devem ser explicitados pelo requerente na PI – não sendo suficientes meras referências vagas, genéricas e conclusivas – para que o tribunal possa concluir, a partir de tais eventos e circunstâncias, pela inexistência de elementos indiciadores de existência de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – Relatório

Na apresentação à insolvência, logo os requerentes A...e B..., ambos com os sinais dos autos, requereram as “exonerações do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE.

Tendo ambos sido declarados insolventes e prosseguindo nos autos – tendo em vista as requeridas exonerações do passivo restante – o Exmo. Juiz, por considerar verificado o preceituado no artigo 238.º/1, al. d), do CIRE, indeferiu liminarmente os pedidos.

Inconformados com tal decisão, interpuseram ambos os insolventes recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que defira liminarmente os pedidos.

O Ministério Público apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação

II a) De Facto

1. O insolvente marido nasceu em 26/11/1970.

2. A insolvente mulher nasceu em 15/06/1976.

3. Tendo contraído casamento em 21/11/1996, sem convenção antenupcial.

4. Encontra-se registada como filha de ambos C..., nascida em 10/08/1998.

5. Os insolventes foram sócios e gerentes da “D..., Lda”, com sede em (...), Trancoso, cujo objecto era “comércio por grosso de madeiras, areias e materiais de construção civil, prestação de serviços de desaterros e terraplanagens, construção civil e obras públicas, compra e venda e permuta de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim”, com o capital social de € 50.000,00.

6. Sociedade que foi declarada insolvente por sentença de 25/01/2012, transitada em julgado.

7 Sociedade a que os aqui insolventes haviam prestado diversas garantias pessoais.

8.O passivo reconhecido, de ambos os insolventes, ascende ao montante de € 578.911,99.

9 Passivo representado, em grande parte, por avales (prestados em livranças) e fianças à “ D..., Lda”.

Como sucede, designadamente, em relação:

À livrança de que é portador o BCP, no valor de € 35.213,70 e juros desde 09/09/2011;

À livrança de que é portadora a CCM do Vale do Távora e Douro, no valor de 6.978,78 e juros desde 20/12/2011;

À livrança (executada no processo 93/12.8TBTCS) de que é portadora a CCM do Vale do Távora e Douro, no valor de 7.412,52 e juros desde 27/02/2012;

Às livranças (executadas no processo 109/12.8TBCLB) de que é portador o Banco Santander, no valor de € 9.332,92 e € 17.3131,64 e juros desde 15/06/2012;

À livrança (executada no processo 53/12.9TBCLB) de que é portadora a Consulteam - Consultores de Gestão, SA, (por cessão do BPP) no valor de 61.688,69 e juros desde 08/03/2012;

Aos empréstimos do Banco da Caja Espana Salamanca Y Soria, nos montantes de € 15.886,67 e € 59.889,86;

Ao empréstimo do BANIF, no montante de € 21.978,62 e juros desde Dezembro de 2011.

10. Passivo também representado pelo empréstimo hipotecário do BPI no montante de € 52.498,19 e juros; pelo crédito pessoal do Barclays no montante de € 35.687,63; e por um empréstimo do Banco da Caja Espana Salamanca Y Soria (executado no processo 314/10.1TBTCS), no montante de € 24.626,97 e juros desde 27/09/2010 (data aposta na livrança executada);

11. E ainda representado por dívidas à UNICRE, decorrentes da atribuição e utilização de crédito; designadamente, da dívida no montante de € 3.282,35 executada em 11/12/2009 no processo 365/09.9TBTCS.

12. Os requerentes apresentaram-se à insolvência em 24/01/2013.

13. Em 22/07/2010, foi registada a constituição da sociedade “Chuva de Resultados – Construções, Lda.”, tendo como objecto o “aluguer de equipamentos de construção e demolição, com operador; construção de redes de transporte de águas, de esgotos, de distribuição de energia, de telecomunicações e de outras redes; preparação dos locais de construção; agentes de comércio por grosso de matérias primas agrícolas e têxteis, animais vivos e produtos semi-acabados”.

14 Sendo o capital, de € 5.000,00, formado por duas quotas, uma de 1.500,00 e outra de 3.500,00, a primeira detida pelo insolvente e a segunda pela filha menor; sendo gerente designado o insolvente.

15. Em 27/01/2012, foi registada a transmissão, a favor de José Luís Figueiredo Lopes, da referida quota de 1.500,00 do aqui insolvente.

16. Em 02/02/1996, foi registada a constituição da sociedade “Tomás e Filhos; Lda,”, tendo como objecto o “fabrico de artefactos de cimento; comércio por grosso e a retalho de materiais de construção, venda de combustíveis, construção civil e obras públicas e snack-bar”.

17. Sendo o capital, de € 99.759,53, formado por 6 quotas; sendo uma, de € 9.975,85 detida pelo insolvente.

18. Em 14/02/2012, foi registada a transmissão, a favor de António Joaquim Tomás (pai da insolvente), da referida quota de 9.975,85 da aqui insolvente.

19. Os requerentes, na PI, indicaram:

 - como único património, susceptível de ser apreendido, um prédio urbano onerado com hipoteca a favor do BPI (a garantir o empréstimo hipotecário referido em 10) e já penhorado em 4 diferentes execuções;

 - como passivo global o montante de € 293.147,00;

 - estar desempregados

20 – No ano fiscal de 2011, declararam (os dois) o rendimento global de € 5.820,00.


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II b) - De Direito

Não será supérfluo começar por referir que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento[1].

“Depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor são afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por esta via, durante tal período”[2].

Antevendo-se o “sobressalto” que uma tal causa extintiva de obrigações produz sobre a liberdade contratual e a força vinculativa dos contratos[3], não pode a “exoneração” ser concedida ad libitum; devendo antes a sua concessão estar dependente da verificação de requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém[4].

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”.

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[5].

É pois uma medida (de protecção do devedor) que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor do devedor para se desresponsabilizar, uma medida cuja força atractiva/tentadora para o devedor não pode conduzir a “abusos de exoneração”; sendo antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar ou que, pelo menos, não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja:

A exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade[6].

A “exoneração” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “leviana”, que se depreende que não pensaram “duas vezes” quando se deram conta que era relativamente “fácil” obter um financiamento, que se recusaram a “fazer contas” e a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair sucessiva e continuamente; a exoneração não pode/deve servir para, contraídas avultadas dívidas[7], se pretender, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar[8].

Em poucas palavras, a “exoneração” não é certamente para quem e de quem, sem embargo das coisas lhe poderem ter objectivamente corrido mal, se sabia e diria, à partida, num juízo de prognose póstuma, que as coisas iriam, em face do montante de endividamento contraído e dos rendimentos disponíveis, segura, forçosa e inevitavelmente correr mal.

Cabe nesta situação quem, num lapso de tempo relativamente curto, contrai dívidas cujo “serviço” mensal da dívida ultrapassa a totalidade do seu rendimento líquido mensal; uma vez que não se pode dizer, de quem assim procede, que pauta a sua conduta por regras de rectidão, honestidade, transparência e boa fé. Cabe nesta situação quem entra numa espiral de insustentabilidade financeira – num ciclo vicioso de dívida – que conduz com absoluta certeza à insolvência (especialmente quando não há qualquer património para satisfazer as dívidas).

Sendo irrelevante o argumento do “critério” das instituições financeiras, que se estas emprestaram foi por que acharam, no seu “elevado critério”, que os devedores tinham condições para pagar; sabemos hoje, todos, é público e notório, o ponto a que chegou a prudência – ou a falta dela – na concessão de crédito[9].

Ademais, a imprudência, mais ou menos generalizada, das instituições financeiras na avaliação dos riscos de crédito, não apaga, nem encobre – sem prejuízo, não o ignoramos, da recorrência de ofertas agressivas de crédito – a falta de rectidão, de honestidade, de transparência e de boa fé dos devedores que contraíram dívidas cujo “serviço” mensal da dívida, só por si, consome (consumiria) mais do que o seu rendimento líquido mensal disponível.

É que é isto – a rectidão, a honestidade, a transparência e a boa fé dos devedores a quem, não intencional ou deliberadamente, as coisas correram mal – que aqui, na exoneração do passivo restante, é relevado e que justifica a “medida de protecção”; não é a conduta imprudente e porventura repreensível da instituição financeira (ou de quem a represente aos vários níveis de decisão) que acarreta e implica, como contrapartida “punitiva”, a medida favorável da extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

É por tudo isto, revertendo ao caso sob análise e antecipando a solução, que – concordando-se com a conclusão da decisão recorrida – consideramos verificada a causa de indeferimento liminar (do pedido de exoneração) prevista nas alínea d) do art. 238.º/1 do CIRE.

O que merece e prescreve o seguinte esclarecimento:

A sentença recorrida, como já se referiu, indeferiu liminarmente a exoneração do passivo restante por considerar verificada a alínea d) do art. 238.º/1 do CIRE; e, em face disto, os apelantes fizeram incidir a sua divergência recursiva sobre tal alínea d).

Compreende-se, mas o objecto do recurso não é apenas esta ou aquela alínea do art. 238.º/1 do CIRE; o objecto do recurso é a própria decisão de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.

É isto que está em causa e é disto que cumpre conhecer – e, para tal, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar alíneas/regras diferentes das invocadas, atribuir às alíneas/regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das alíneas/regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 664.º/1 do C. P. C.) – para confirmar ou revogar a decisão de indeferimento liminar.

Vem isto a propósito de dizer que vamos centrar a nossa análise sobre a alínea d) do 238.º/1 do CIRE por subscrevermos a conclusão da sentença recorrida e por, sendo assim, tal ser suficiente – independentemente da verificação ou não de qualquer outra alínea, designadamente, da alínea e) – para confirmar o decidido.

Debrucemo-nos pois sobre a alínea d) do art. 238.º/1 do CIRE:

Tal alínea vem causando algum debate e “divisão” na Jurisprudência.

Dispõe-se na mesma que o pedido de exoneração deve ser liminarmente indeferido se:

 - For incumprido o dever de apresentação atempada à insolvência;

 - Com prejuízo para os credores; e

 - Sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica.

Girando a controvérsia jurisprudencial à volta da articulação de tais requisitos, procurando encontrar-se, para cada um deles, um conteúdo útil próprio e autónomo; e estabelecer-se fronteiras entre eles.

Começou assim por dizer-se que o “prejuízo para os credores” é de presumir sempre que o devedor haja incumprido o dever de apresentação à insolvência, uma vez que a escassez de bens permite antever a dissipação de património e o subsequente desrespeito pela regra da igualdade entre os credores.

Ao que de imediato se objectou que, se é verdade que o atraso na apresentação à insolvência pode conduzir à desvalorização do activo e ao aumento do passivo, pelo curso dos juros, é também verdade que, assim, o “prejuízo para os credores” não é mais do que um efeito necessário – de nada servindo a sua autónoma alusão legal – da não apresentação oportuna à insolvência.

E, nesta linha de raciocínio, passou a entender-se[10] que a lei, ao exigir o “prejuízo para os credores”, visa os comportamentos do devedor geradores de novos débitos, os comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé; não integrando o conceito normativo de “prejuízo para os credores” o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo mero vencimento e acumular de juros.

Sem prejuízo, apesar dos esforços, das fronteiras dos requisitos do art. 238.º/1, d) do CIRE, continuarem necessariamente incertas, concorda-se inteiramente quanto aos juros; isto é, concorda-se que não integra o requisito do “prejuízo para os credores” o mero curso de juros em obrigações constituídas em data anterior à situação de insolvência[11] - ponto em que não se subscreve totalmente o raciocínio jurídico da sentença recorrida.

Mas também se entende que, não fazendo a letra da alínea d) qualquer restrição ao alcance da expressão “prejuízo para os credores”, qualquer prejuízo causado aos direitos dos credores pelo não cumprimento do dever de apresentação ou pela apresentação tardia à insolvência é susceptível de obstar à concessão da exoneração do passivo restante.

Na verdade[12], “havendo um conflito de interesses entre o devedor (interessado em libertar-se das dívidas) e os credores (interessados em verem satisfeitos os seus direitos), a prevalência do interesse daquele (aqui representada pela exoneração do passivo restantes) só é digna de ser atendida se lhe não for possível apontar nenhum comportamento que tenha prejudicado os interesses destes últimos.

Em todo o caso – afigura-se-nos indiscutível – “o prejuízo para os credores” (com o incumprimento do dever de apresentação, com o atraso na apresentação à insolvência), ainda que de pequena monta ou expressão, é algo que tem que ficar “identificado/demonstrado” nos autos.

É por tudo isto que a argumentação exposta no recurso, a propósito de tal alínea d), não colhe.

Em 1.º lugar – e sobre o incumprimento do dever de apresentação atempada à insolvência – o prazo de 6 meses na apresentação à insolvência (a que alude a alínea em causa), conta-se desde a verificação da situação de insolvência; ou seja, desde que o devedor deixou de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3.º/1 do CIRE).

“Incumprimento” este que fica preenchido com a verificação de algum dos factos indiciadores da situação de insolvência previstos no art. 20.º/1 do CIRE, factos estes que funcionam como requisito indispensável e pressuposto da insolvência e que, simultaneamente, constituem presunções, embora ilidíveis, da insolvência; isto é, a situação de insolvência, definida no art. 3.º do CIRE, dá-se por preenchida quando ocorre algum dos factos enumerados no n.º 1 do art. 20.º do CIRE, factos estes que asseguram a seriedade e verosimilhança da insolvência.

O que significa que, ao apresentarem-se à insolvência tão só em 24/01/2013, o fizeram os requerentes/recorrentes muito para além do decurso de 6 meses sobre a ocorrência das suas insolvências.

Com os elementos factuais disponíveis – e sem necessidade de mandar ampliar a recolha de factos – entendemos que a situação de insolvência dos requerentes/recorrentes ocorreu em data necessariamente anterior ao final de 2010.

Pelo seguinte:

Uma parte significativa do seu passivo (de quase 600 mil euros, isto é, de quase o dobro do que indicaram na PI) vem de garantias pessoais prestadas à firma de que eram sócios, porém, não é alegado que tal firma (obrigada principal em tal passivo) possuísse quaisquer meios para satisfazer tais dívida e, inclusivamente, tendo sido já declarada insolvente (em 25/01/2012), não se alude à satisfação de qualquer percentagem do seu passivo a partir dos bens que lhe foram apreendidos.

Depois, ainda a propósito das garantias pessoais assumidas pelos insolventes, é pertinente lembrar que se trata no geral de avales em livranças, o que significa – representando as obrigações cartulares assumidas nas livranças meios de assegurar o pagamento das relações/obrigações fundamentais e subjacentes – que o preenchimento das livranças (por certo emitidas em branco, como os respectivos montantes o indiciam fortemente) e a data de vencimento que lhes foi aposta ocorreu após mais ou menos prolongadas situações de incumprimento.

O que se acaba de dizer – do incumprimento das obrigações principais ser anterior à data de vencimento das livranças – é facilmente demonstrável pela solicitação a cada uma das instituições financeiras do histórico da relação fundamental (que a livrança consolida no momento do preenchimento) e só não ordenamos que seja feito – anulando o decidido e mandando ampliar a matéria de facto[13] – por, a partir dos elementos factuais disponíveis, lograrmos chegar à mesma conclusão (preenchimento da alínea d)).

Efectivamente, nos factos 12 e 11 temos duas execuções intentadas contra os requerentes/recorrentes nos anos de 2009 e 2010, o que significa que está demonstrado, em tais datas, o incumprimento de obrigações vencidas (obrigações, nas duas referidas execuções, em que os insolventes não o são na qualidade de garantes); por outro lado, em face da ausência de significativo património livre e desonerado e da escassez dos rendimentos (como resulta do facto 20), não pode deixar de considerar-se a dívida executada pela Caja Salamanca Y Soria como reveladora da impossibilidade dos insolventes satisfazerem pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Daí que, repete-se, com os poucos elementos factuais (exactos) disponíveis – sem necessidade de mandar ampliar/obter a acessível informação sobre as dívidas – entendemos que a situação de insolvência dos requerentes/recorrentes ocorreu em data necessariamente anterior ao final de 2010[14].

Preencheram pois o 1.º requisito do art. 238.º/1/d) do CIRE, ou seja, não se apresentaram atempadamente à insolvência ao apresentarem-se à insolvência tão só em 24/01/2013.

Em 2.º lugar – quanto ao prejuízo para os credores – não obstante a indeterminação dos factos alegados[15] e recolhidos, dá para perceber, em face do que se provou[16], a verificação de tal requisito.

Por não termos o “privilégio” de saber a data de constituição dum único dos inúmeros créditos contraídos, não conseguimos fazer aquele raciocínio, muito fácil e elementar, que consiste em dizer que os requerentes já estariam em dificuldades em cumprir e/ou em incumprimento com as suas obrigações e, ainda assim, continuavam a recorrer/contrair novos financiamentos[17].

De todo o modo, como supra se referiu, a lei, ao exigir o “prejuízo para os credores”, visa os comportamentos do devedor (em incumprimento no dever de apresentação atempada à insolvência) geradores de novos débitos, mas também visa os comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé; é que, repete-se, é a rectidão, honestidade, transparência e boa fé dos devedores (a quem, não intencional ou deliberadamente, as coisas correram mal) que justifica a “medida de protecção” em que a exoneração do passivo restante se traduz.

Ora – é o ponto – é o contrário disto que os factos 13 a 18 espelham.

Constituiu (em 22/07/2010) o insolvente marido (com a filha menor) uma sociedade por quotas com um objecto não dissonante do da sociedade que então detinha com a insolvente e que cerca de 1 ano depois (da constituição da nova sociedade) foi declarada insolvente.

Passados dois dias desta declaração de insolvência, o insolvente registou a transmissão a terceiro da sua quota (na sociedade constituída com a filha menor) e, passados 20 dias, a insolvente registou a transmissão duma quota, noutra e diversa sociedade, ao seu próprio pai.

Entretanto, decorrido cerca de 1 ano, apresentam-se à insolvência, indicando como único património, susceptível de ser apreendido, um prédio urbano onerado com hipoteca a favor do BPI (a garantir o empréstimo hipotecário referido em 10) e já penhorado em 4 diferentes e anteriores execuções.

Fica pois demonstrado/identificado, tendo ocorrido as transmissões das quotas no período de incumprimento no dever de apresentação atempada à insolvência (situação em que se encontravam, lembra-se, pelo menos desde o final de 2010), “o prejuízo para os credores”.

Quem é recto, honesto, transparente e está de boa fé – estando há muito em situação de insolvência – não se desfaz dos bens de que se pode desfazer[18] antes de se apresentar à insolvência.

Em 3.º lugar – quanto a saberem ou não poderem ignorar sem culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria das situações económicas – não foi invocada qualquer perspectiva, séria ou quimérica, susceptível de inverter a sua situação económica; ao invés, foi até dito que, no ano de 2011, tiveram um rendimento global inferior a € 6.000,00, que estão desempregados e que não têm qualquer fonte de rendimento, razão pela qual não podiam ignorar, num plano de normalidade, ser impossível, com tais réditos, fazer face ao seu sustento, vestuário e habitação e, além disso, satisfazer o serviço dum endividamento global de várias centenas de milhares de euros.

Concluindo pois, o pedido de exoneração foi bem indeferido com fundamento na alínea d) do art. 238.º/2 do CIRE.

Efectivamente – acrescenta-se ainda – as hipóteses de indeferimento mencionadas no art. 238.º do CIRE conduzem, na prática, a nosso ver e com o devido respeito por opinião diversa, à contenção na concessão da exoneração.

Duma leitura articulada das várias alíneas do art. 238.º do CIRE pode/deve dizer-se que a exoneração é para quem, sem culpa, caiu na situação de insolvência; é para quem contraiu crédito que era suposto e previsível – num plano de normalidade, razoabilidade, honestidade, prudência, num pensar de bonus pater familias, com os elementos e as circunstâncias (rendimentos/possibilidades) à época da contracção do crédito disponíveis – poder vir a restituir.

Dito doutro modo, para haver exoneração tem que ter acontecido alguma coisa – que fuja de algum modo ao controlo do devedor, que ele não domine – que o tenha feito cair na situação de incumprimento e de insolvência.

E essa “alguma coisa” é do ónus da alegação do requerente; essa “alguma coisa” tem, no pedido de exoneração, que ser factualmente explicitada, não bastando meras referências vagas, genéricas e conclusivas; para que, evidentemente, possa haver algum controlo e para que o tribunal possa efectuar alguma apreciação jurídica.

E caso tal “alguma coisa” seja uma diminuição de rendimentos e/ou um aumento de encargos, têm que ser factualmente alegadas pelo requerente da exoneração; uma vez que é fazendo a conexão/encadeamento entre o concreto “antes” e o concreto “depois”[19] que o tribunal pode constatar e confirmar o que seria suposto e previsível à época da contracção do crédito e o que, em face e por causa da alteração das circunstâncias, deixou de o ser.

Como é evidente, nada disto foi invocado; ignora-se, de todo, quais eram os rendimentos dos requerentes/recorrentes nos anos da contracção do endividamento – impondo-se porventura até raciocinar como se fossem semelhantes aos invocados para 2011 – pelo que não se pode afirmar e concluir que tenha sido algo de alheio e fora do controlo dos devedores/recorrentes a provocar a sua situação de insustentabilidade financeira; bem ao invés.

Enfim, começámos por dizer que nos íamos concentrar sobre a alínea d) do n.º 1 do art. 238.º – que no fundo sanciona condutas ocorridas após a verificação da situação de insolvência – mas as multíplices irradiações das circunstâncias factuais tornam difícil analisar o “depois” sem estar a ver o que conduziu à situação de insolvência; remetem-nos fatalmente para a alínea e) e para a existência de “elementos que indiciam com toda a probabilidade a existência de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência”.

Como supra se referiu e aqui se repete, a “exoneração” não é para quem e de quem, sem embargo das coisas lhe poderem ter objectivamente corrido mal, se sabia e diria, à partida, num juízo de prognose póstuma, que as coisas iriam, em face do montante de endividamento contraído e dos rendimentos disponíveis, segura, forçosa e inevitavelmente correr mal.

E se a “exoneração” – ou a possibilidade do recurso a ela, com a entrada em vigor em 2004 do CIRE – também tem em vista evitar as situações de imprudência das instituições financeiras, também existe para provocar contracção no crédito e produzir impacto positivo na economia (para impor exigência e responsabilidade a quem concede crédito, uma vez que, se assim se proceder, menor será o risco de sobreendividamento e menos serão as insolvências dos consumidores), a verdade é que não estamos perante uma situação – até por serem várias (mais de dez) as instituições financeiras envolvidas – em que o “desmerecimento” dos apelantes/devedores é “descaracterizado” pela excessiva ligeireza duma ou duas instituições financeiras.

Estamos perante um ciclo vicioso e censurável de dívida; e quem se endivida excessivamente, conduzindo-se inevitavelmente a uma situação de insolvência, prossegue em termos de pessoa singular uma “exploração deficitária” e preenche a alínea g) do art. 186.º/2 do CIRE – aplicado com as necessárias adaptações à actuação de pessoas singulares (cfr. 186.º/4 do CIRE)[20].


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Enfim, em remate, improcede o que os devedores/recorrentes concluíram na sua alegação recursiva, o que determina o completo naufrágio do recurso e a confirmação do decidido na 1ª instância.

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III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela massa.


(Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Segue-se de perto o que temos vindo a escrever, a propósito do instituto da “exoneração do passivo restante”, designadamente, nos acórdãos proferidos nas apelações n.º 131/11.1T2AVR-D, n.º 776/10 7BLSA, n.º 4316/11 2TBLRA-B.C1, n.º 918/11 5T2AVR-C.C1 e n.º 706/11.9TBCNT-B.C1.
[2] Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133
[3] Tendo presente o que no C. Civil se dispõe sobre as “causas” que podem extinguir obrigações.
[4] Carvalho Fernandes, Estudos sobre a Insolvência, pág. 276.
[5]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[6] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[7] Em relação ao rendimento e património de quem contrai tais dívidas.

[8] A exoneração não pode representar um incentivo a uma actuação descuidada; o que acontecerá se, passado algum tempo, quem assim procedeu tiver como certa a extinção das suas dívidas. Como se escreveu no Acórdão desta Relação, proferido no Proc. nº 575/10.6TBSRT-E.C1, “aquele que sabe não estar integralmente exposto a todas as consequências desvaliosas de um risco decorrente do incumprimento contratual não interioriza os valores virtuosos – porque expressam valores eticamente relevantes – associados ao cumprimento das suas obrigações e, mais do que isso, não adopta, em muitos casos, uma atitude cautelosa e diligente na gestão da sua vida patrimonial, podendo interiorizar a perspectiva do incumprimento e de uma insolvência, a partir de determinado momento, como “custos” ainda assim suportáveis”..

[9] De pouco vale argumentar com as elevadas taxas dos empréstimos, uma vez que as mesmas são bem conhecidas dos devedores quando os contraíram.

[10] Cfr. v. g. Ac Relação do Porto de 7/10/2010 e de 21/10/2010, in CJ Online, Ref. 5911/2010 e 7270/2010.

[11] Aliás, pode/deve até dizer-se que o atraso na apresentação à insolvência não causa sequer qualquer aumento no montante dos juros; uma vez que, com a apresentação, continuam a vencer-se juros, sendo tais juros, vencidos/constituídos após a declaração de insolvência, considerados créditos subordinados (cfr. artigo 48º, alínea b), do CIRE).
[12] Como se defendeu no Ac. desta Relação de 04/10/2011, proferido no recurso n.º 1784/10.

[13] Em todo o caso, observa-se o seguinte:

Quer o incidente de exoneração quer o incidente de qualificação, colocam-nos, invariavelmente, perante claras insuficiências na alegação e recolha de factos. Os requerentes, compreensivelmente, tentam não ser precisos nos elementos factuais desfavoráveis, não sendo detalhados e exactos na cronologia/incidentes dos inúmeros créditos (nas datas da contracção de cada um deles e nas datas das entradas em incumprimento). As instituições financeiras, colocadas em situação privilegiada para fazer o contraditório e para dar contributos factuais, alheiam-se não raras vezes do desfecho dos incidentes. O Administrador emite umas “opiniões” e “conclusões”, mas não vai ao fundo dos factos (no caso dos autos, a título de exemplo, da lista e explicação sobre os créditos reconhecidos, nunca se diz quando foram contraídos e/ou quando se entrou em incumprimento em cada um deles). Enfim, no final, olhando para os contributos dos vários intervenientes processuais – em que cada um parece seguir um caminho próprio e em que não se vê uma linha convergente sobre o objecto do processo – é difícil não sentir um certo desamparo, a que se segue a sensação de estarmos num procedimento processual que não é totalmente “a sério”.

Seja como for – admitindo estar errados (posição sempre sensata e prudente, quando à nossa volta tudo tem uma visão diferente) – uma vez que apenas a partir de factos concretos e exactos conseguimos fazer facilmente raciocínios convincentes e retirar conclusões jurídicas, quer-nos parecer que o histórico detalhado e exacto (com datas, uma vez que todos os factos têm datas) dos créditos e incumprimentos não pode/deve deixar de ser alegado e obtido.

[14] Repare-se, na lógica do que atrás se referiu sobre o preenchimento das livranças, que a livrança executada com a data de vencimento de 27/09/2010 até dirá respeito – e terá subjacente – um incumprimento da relação fundamental (empréstimo) bem anterior.
[15] Falamos, já se referiu, em indeterminação, uma vez que os requerentes/recorrentes omitiram a colocação das datas, dos exactos montantes dos créditos concedidos e das prestações mensais na generalidade dos factos que invocaram; do que não devem retirar benefícios.
[16] Sem necessidade de mandar averiguar melhor os factos, para, por exemplo, apurar qual era, nos anos de 2009/10/11/12, o montante agregado das prestações dos diversos empréstimos contraídos.

[17] Do facto 10 consta um crédito pessoal junto do Barclays no montante de € 35.687,63; seria interessante verificar a data da sua constituição, uma vez que, no final de 2010, já os requerentes estavam a ser executados por outro empréstimo pessoal.
[18] O prédio urbano estava já “onerado” com uma hipoteca e 4 penhoras, pelo que, certamente, já não tinha qualquer valor residual para os insolventes.

[19] Até porque, como é evidente, pode haver diminuição de rendimentos e aumento de encargos e, ainda assim, ser ab initio imprudente e irrazoável contrair determinado e concreto nível de endividamento; hipótese em que a alteração de circunstâncias apenas poderá precipitar/antecipar uma situação, certa, de insolvência.

[20] E nem se diga que, assim vistas as coisas, estamos a censurar um determinado estilo de vida; a confundir a moral com o direito. As considerações acabadas de fazer visaram tão só apreciar, em termos instrumentais, se os devedores são ou não “credores” da por si requerida exoneração do passivo restante; tem-se apenas em vista, em termos instrumentais, apurar se são “credores” do direito que reclamam.