Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
271/21.9GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: ACUSAÇÃO POR CRIME PÚBLICO E CONDENAÇÃO POR CRIME SEMI-PÚBLICO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA INICIAR E PROMOVER A ACÇÃO PENAL
QUEIXA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 48.º E 49.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – A convolação ou degradação do crime de violência doméstica em crime de ofensas à integridade física simples, operada na sentença, não gera a ilegitimidade do Ministério Público relativamente ao procedimento decorrido, porque aquando do seu início a apresentação de queixa não era exigível para que exercesse a acção penal; de outro modo, seria agora a apresentada à ofendida/assistente uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade que não poderia anteriormente considerar, porque então inexistente.

II - A exigência de queixa ou de acusação particular não se destinam a proteger algum interesse do suspeito da prática de algum ilícito, mas sim a possibilidade de aferição, por parte do ofendido, da melhor forma de tutela dos seus interesses, que pode não passar pelo procedimento criminal e eventual punição do autor do acto ilícito, colocando a lei na disponibilidade dos ofendidos – enquanto portadores concretos do bem jurídico violado - a decisão relativamente à instauração e prosseguimento do procedimento criminal.

II – Esta doutrina só não será aplicável quando resulte dos autos que o ofendido não pretende que o procedimento criminal, iniciado relativamente a um crime que se supunha revestir natureza pública, se mantenha após a alteração da sua natureza para um crime de natureza semi-pública ou particular.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:
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      1.1 … apresentou recurso da sentença … que o absolveu pela prática  de um crime de violência doméstica,  mas procedendo à convolação do mesmo crime de violência doméstica para um crime de ofensa à integridade física simples …, o condenou pela prática deste crime, …
       A mesma decisão julgou ainda parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela Demandante …

 
       1.2. No recurso em apreciação o arguido apresentou as seguintes conclusões:

k) Em audiência de julgamento não foi feita prova clara e inequívoca de que o recorrente praticou os factos criminalmente puníveis que lhe são imputados, não tendo sido levada em consideração a prova produzida que comprova a versão do recorrente, e efetuado um correto exame crítico da prova produzida, condenando-o, por isso, infundadamente.

      

       1.3 O Ministério Público junto do tribunal a quo, respondeu ao recurso, …

      1.4. A assistente respondeu ao recurso, …

        1.4. …, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer …

***

       II -  Fundamentação de Facto


 (…)

      III – Fundamentação de Direito

      Apreciando e decidindo

      a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).   

      b)  As questões principais a abordar, são as seguintes

s) Resta apreciar a segunda questão suscitada que se prende com a caducidade da queixa apresentada pela assistente.

  Compulsados os autos, constata-se que no dia 30-10-2021, foi elaborado um documento intitulado “auto de notícia (violência doméstica)” (original a fls. 46), no qual o seu autor, militar da GNR, descreve que na sequência de uma comunicação telefónica, se deslocaram a uma residência por ter sido informado que uma pessoa do sexo feminino teria sido vítima de ameaças e de uma tentativa de agressão.

É então na sequência dessa deslocação, que o militar da GNR , “em diálogo com a vítima” recolhe as declarações da ora assistente, nas quais esta se refere à sua relação com o ora arguido, descrevendo vários episódios, entre os quais agressões por parte do arguido que motivaram assistência médica.

Na mesma ocasião foram foi ainda ouvido o arguido, que reconhecendo que a relação com a assistente como não estando a funcionar bem (dormindo em quartos separados, com constantes discussões), relatou episódios em que imputa à sua mulher comportamentos provocatórios.

Foi este auto de notícia, ao qual se juntou uma ficha de avaliação de risco de violência doméstica enviado ao Ministério Público.

Após, em 3-11-2021 (fls. 60), foi a mesma assistente inquirida pela GNR, tendo nessa inquirição confirmado o teor do auto de notícia, fazendo novamente referência a um episódio ocorrido em Janeiro de 2020, no qual teria sido agredida pelo arguido com “pancadas na cabeça, caindo no chão” o que a levou a procurar assistência médica., para além de descrever outras situações diferentes, considerando que o arguido “a diminuiu diariamente impondo a sua vontade”.

Posteriormente (em 10-12-2021), foi ainda elaborado um novo auto de notícia (fls. 105 e ss) relativo a um novo episódio, igualmente configurando como integrando uma situação de violência doméstica.

Ainda em momento subsequente do inquérito, em requerimento dirigido ao Ministério Público a ofendida juntou informações ao processo, descrevendo de forma mais pormenorizada diversos episódios ocorridos no decurso da sua relação com o arguido, que considerou como integradores de violência doméstica, arrolando ainda testemunhas e juntando diversos documentos.

E 1 dia depois (15-12-2021) pediu a sua constituição como assistente, juntando procuração forense.          

       s) Assim: a  GNR comunicou ao Ministério Público a notícia do crime configurado como de violência doméstica (art. 248º do C.P.P.); adquirida a notícia do crime (art. 241º do C.P.P.) o Ministério Público iniciou o respetivo procedimento criminal (artigos 48º e 49º do C.P.P. ), que conduziu à dedução, no final do inquérito, de acusação pública (art. 283º C.P.P.) pela prática do crime de violência doméstica;  a ofendida constituiu-se  assistente, e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido.

       t) Constata-se assim que não ocorre propriamente a caducidade da queixa, como defendido pelo  ora recorrente e pelo Ministério Público junto a este tribunal da Relação; o que ocorre é ausência de queixa. Ora atento o carácter público atribuído pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio ao crime de violência doméstica (art. 152º do Cód. Penal), não era  necessária apresentação de queixa por parte do ofendido;  a denúncia sobre os factos poderia provir de um familiar ou de um órgão  de polícia criminal que tivesse constatado a sua ocorrência, pelo que nenhumas dúvidas podem subsistir relativamente à legitimidade do procedimento levado a cabo pelo Ministério Público que conduziu a dedução da referida acusação.

       u) Proferido despacho de acusação imputando ao arguido daqueles factos enquanto integradores de um crime de violência doméstica, realizou-se julgamento, produzindo-se a prova, tendo em sede de sentença, o tribunal recorrido considerado não provados boa parte dos factos constantes da acusação pública, acabando por considerar que o comportamento do arguido manifestado nos factos provados não traduzia a prática de um crime de violência doméstica, mas concluindo que o arguido tinha praticado um crime de ofensa corporal simples, condenando-o em pena de multa pela prática daquele crime, e absolvendo-o da prática do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado.

          v) A questão está então em saber se a mudança da natureza do crime (no caso de crime público para crime semi-público), poderá colocar em causa a legitimidade do Ministério Público para iniciar e promover a acção penal, e ainda se essa mesma alteração da natureza do crime implicará  ab initio a verificação dos requisitos exigidos para a verificação do novo crime com essa diferente natureza, designadamente a apresentação tempestiva de queixa-crime relativamente aos  factos considerados como provados, dos quais resultou a condenação pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples.

        x) A resposta deve ser negativa.

        Citamos a este propósito o acórdão desta Relação de Coimbra,  que sintetiza esta questão de uma forma que merece a nossa total concordância:

        “Sem divergências que hoje se conheçam, a queixa - traduzida na declaração de vontade, manifestada pelo titular do direito respectivo, de que seja instaurado um processo por facto susceptível de integrar um crime - constitui um pressuposto processual positivo, querendo isto significar que, sem a sua apresentação, o Ministério Público carece de legitimidade para a promoção do procedimento criminal. Porém, daqui não se retira sem mais que a referida figura jurídica assuma uma natureza meramente processual. Contra a posição tradicional que considera as normas correntemente integradas no direito processual penal de natureza processual estrita, vêm ganhando nos últimos anos cada vez maior peso as correntes de doutrina e de jurisprudência que partilham uma perspectiva de índole material ou substantiva do direito de queixa, porquanto as normas que lhe são aplicáveis condicionam a punição, a aplicação da pena, contendendo, por isso, directamente com os direitos dos arguidos.
Dispõe o art. 48.º do CPP: (…) E, por sua vez, o artigo 49.º:

«Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».

Assim, o princípio da oficialidade do processo penal está limitado pelas restrições constantes do artigo supra citado e bem assim do normativo do art. 50.º do CPP, que se refere à legitimidade em procedimento dependente de acusação particular. A punição efectiva de um facto que consubstancie crime semi-público ou particular depende não apenas da verificação dos pressupostos de natureza substantiva, mas também da verificação das condições de natureza processual vertidas nos referidos arts. 49.º e 50.º do CPP, para que o processo penal possa iniciar-se e prosseguir.

No caso dos autos, nenhuma patologia se verifica no surgimento e promoção do processo penal até à fase de julgamento: naquela altura, os elementos disponíveis sugeriam, claramente, a prática de um crime de furto qualificado, cuja natureza pública dispensava o Ministério Público de aguardar qualquer actividade de terceiros para a promoção do processo.

Sucedeu, tão só, que, na fase do julgamento, perante a prova produzida em audiência, o tribunal a quo veio a entender não se verificar a circunstância qualificativa do crime de furto.

Sendo a queixa uma condição de procedibilidade, mas não de prosseguibilidade, uma vez iniciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em que o crime indiciado e imputado ao arguido era público, é desnecessária a apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se produziram, quando o crime público se degradou em crime(s) semi-público(s). O curso normal do processo só poderá ser impedido pelo surgimento de um obstáculo - desistência de queixa -, legalmente reconhecido. «Ou seja, por outras palavras: não é a declaração do ofendido no sentido de que o processo prossiga que vai conferir ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir o processo que validamente iniciou; é, sim, a eventual vontade do ofendido de que o processo seja extinto o que retira ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir com a acção penal» - Taipa de Carvalho, obra cit., pág. 390.

Na feliz expressão do já referido Ac. do STJ de 05-04-2001, «o que já se iniciou legitimamente, iniciado está e permanece» (…) – in Ac. desta Relação de Coimbra de 11-5-2016, processo n.º 771/13.4GCVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt. Cfr. ainda, neste sentido,  o Ac. desta mesma Rel. de Coimbra, de 22-1-2014,  processo n.º 973/12.0PBLRA.C1

        w) Daqui se conclui  - aplicando mutatis mutandis essa doutrina ao caso concreto – que a degradação do crime de violência doméstica em crime de ofensas à integridade física simples, operada no momento da prolação da sentença, não implica a ilegitimidade do Ministério Público para promover o processo relativamente a um crime que assumia até àquele momento natureza pública, não se exigindo assim, supervenientemente, a apresentação de queixa, nem  - forçosamente – que essa inexistente queixa se processasse 6 meses após a ocorrência dos factos;  de outro modo, seria agora a apresentada à ofendida uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade que não poderia anteriormente considerar, porque então inexistente  - cfr., ainda neste sentido, João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, ed. Almedina, p. 516,  e Ac. do Tribunal Constitucional n.º 523/99, D.R. n.º 55/2000, Série II de 2000-03-06, neste último caso colocando-se a situação de um crime público  ter passado a assumir a natureza semi-pública em consequência de alteração legislativa, não se considerando inconstitucional  a condenação do arguido pela prática deste crime apesar de não ter ocorrido queixa crime; e o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2015, processo n.º. 48/13.5PFPLD.L1-3, que considerou situação semelhante à apreciada nestes autos; degradação do crime de violência doméstica para crime de injúrias, sem que tenha ocorrido qualquer queixa-crime, nem no caso ali apreciado, sequer a apresentação de qualquer acusação particular.

          y) Note-se ainda que a previsão de institutos jurídicos como a queixa e a acusação particular, surgem invariavelmente relacionados com crimes de menor gravidade, em que o interesse público na reacção criminal ao ilícito (de forma a garantir manutenção da paz social e a confiança na ordem jurídica) não surge com a mesma premência relativamente a crimes mais graves. Coloca-se assim na disponibilidade do ofendido a decisão sobre o procedimento criminal contra o responsável pelo ilícito, assim se protegendo de alguma forma o interesse da própria vítima (v.g. que poderá não ter interesse na tutela do seu direito, por considerar que o acto ilícito não o ofende especialmente, ou por não pretender a publicidade de acontecimentos relacionados com a sua vida privada que o julgamento em alguma medida normalmente pressupõe); evita-se ainda a proliferação de processos e julgamentos por ilícitos que não revestem uma gravidade que torne imperiosa a intervenção da justiça criminal.

            z)  Estes institutos não se destinam por isso a proteger  algum interesse do suspeito da prática de algum ilícito,  mas sim a possibilidade de aferição, por parte do ofendido, da melhor forma de tutela dos seus interesses, que pode não passar pelo procedimento criminal e eventual punição do autor do acto ilícito, colocando  a lei na disponibilidade dos ofendidos – enquanto portadores concretos do bem jurídico violado - a decisão relativamente à instauração e prosseguimento do procedimento criminal.

            Daqui resulta que a doutrina acima exposta apenas não será aplicável quando resulte dos autos que o ofendido não pretende que o procedimento criminal – iniciado relativamente a um crime que se supunha revestir natureza pública -  se mantenha após a alteração da sua natureza para um crime de natureza semi-pública ou particular.

           aa) Não é manifestamente o caso dos autos; a notícia do crime relativamente aos factos inicialmente integradores de um crime de violência doméstica partiu da ofendida (que ligou à GNR), e não por exemplo de um vizinho, de um familiar próximo ou de um OPC.

           Posteriormente, a mesma ofendida revelou ao longo de todo o processo, de forma reiterada e inequívoca, vontade no sentido de ser desencadeado procedimento criminal contra o arguido quanto aos factos denunciados:

           …

        bb) A partir desta constatação,  falecem todos os argumentos do recorrente, que se prendem com a apresentação ou não regular ou tempestiva da queixa, a qual concluímos não ser necessária; é assim irrelevante a não apresentação de queixa relativamente a alguns dos factos, e por maioria de razão que a queixa apresentada apenas pudesse abranger a actividade desenvolvida nos seis meses anteriores à data da inquirição;  não se pode concluir pela extinção, por caducidade de um direito de queixa que não era então exigível.

            

IV- Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso interposto …

       Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC´s.

                             Coimbra, 13 de Dezembro de 2023


João Novais

Rui Pedro Lima


                         

Cristina Branco