Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4250/07.0TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
INCUMPRIMENTO
INDEMNIZAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.224, 762, 806, 808, 829-A, 1045, 1311 CC, DL Nº 354/86 DE 23/10, DL Nº 373/90 DE 27/11, DL Nº 44/92 DE 31/3, DL Nº 77/2009 DE 1/4, DL Nº 446/85 DE 21/10
Sumário: I – O devedor que deixou de pagar as prestações contratuais e mensais que vinha pagando pontualmente há mais de dois anos deve prever que o credor, no caso um banco, lhe enviará uma carta cujo conteúdo versará sobre esta situação de incumprimento.

II – Nestas circunstâncias, a falta de recepção da carta remetida pelo banco para a sua residência e o não levantamento posterior da mesma na estação de correios, têm de lhe ser imputados a título de culpa e, por isso, tem aplicação ao caso a regra do n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil, que considera eficaz a declaração quando o destinatário não a recebeu por ter agido com culpa.

III – A cláusula «A indemnização referida no artigo anterior destinada a ressarcir o Locador - que fará sempre suas todas as importâncias pagas até então nos termos deste contrato - dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento em si do contrato pelo Locatário - não sendo nunca inferior a 50% do total do valor dos alugueres referidos nas Condições Particulares», inserida num contrato de aluguer de veículo sem condutor, é nula nos termos conjugados da al. c) do artigo 19.º, 20.º, 12.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (Cláusulas Contratuais Gerais).

IV – A indemnização prevista no nº2 do art.1045 do Código Civil é aplicável ao contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel, se não tiver sido convencionada a promessa da respectiva venda ao locatário após o pagamento das prestações, em que as rendas funcionam como amortização do preço.

V – A entrega de um veículo constitui prestação de facto fungível, não havendo lugar à condenação do réu em sanção pecuniária compulsória nos termos do n.º 1 do artigo 829.º-A do Código Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrente…Banco (…) S. A., com sede (…) em Lisboa.

Recorrido…J (…) residente (…) Pombal, actualmente em parte incerta, representado pelo Ministério Público.


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I. Relatório.

a) A Autora instaurou contra o Réu e esposa a presente acção ordinária, com o fim de obter a condenação destes a pagarem-lhe as quantias que indica na petição, em virtude da resolução de um contrato de aluguer de um veículo que celebrou com o Réu marido.

Diz que, no âmbito da sua actividade, celebrou o mencionado contrato de aluguer tendo por objecto um veículo automóvel, contrato que o Réu marido deixou de cumpriu a partir da 26.ª prestação acordada, o que motivou a dita resolução, decisão que comunicou ao Réu por carta.

Porém, o Réu nem devolveu o veículo, nem pagou as quantias vencidas até à data da resolução.

Demanda a Ré mulher porque esta é também responsável, na medida em que o veículo foi adquirido para uso do casal.

Pede, pois, a condenação solidária de ambos no seguinte:

….Na quantia de €3 502,07 euros, composta por €1 346,95,00 euros resultantes das prestações vencidas até à resolução do contrato, mais €2 155,12 euros relativamente ao valor resultante (face ao disposto no n.º 2 do artigo 1045.º, do Código Civil) das diversas prestações mensais vencidas e a pagar em dobro, por cada mês decorrido desde a data da resolução do contrato até à data em que foi proposta a acção, quantias essas acrescidas de juros moratórios à taxa legal, contabilizando os vencidos €94,26 euros.

….Na indemnização prevista no contrato, a liquidar em execução de sentença, por perdas e danos, relativamente aos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do incumprimento do contrato, não inferiores a 50% do valor total dos alugueres acordados.

….Condenação do Réu a restituir-lhe o veículo, cujo valor é de €13 318,99 euros.

….Pagamento de €50,00 por dia, a título de sanção pecuniária compulsória, durante os primeiros 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado, quantitativo que passará a €100,00 por dia nos 30 dias seguintes e a €150,00 por dia, daí em diante e até integral cumprimento da respectiva condenação, ou no montante que na sentença se vier a fixar.

….Juros vincendos sobre todas as quantias.

b) Os Réus não foram citados pessoalmente por não ter sido possível entrar em contacto com eles.

Foram, por tal razão, citados editalmente.

Como não intervieram nos autos foram considerados ausentes, pelo que, nos termos do artigo 15.º do Código de Processo Civil, o Ministério Público foi citado em sua representação, o qual excepcionou a incompetência do Tribunal Judicial de Lisboa, defendendo ser competente o Tribunal da Comarca de Pombal.

Em réplica, a Autora sustentou que a acção devia correr em Lisboa, mas a excepção foi julgada procedente e o processo foi remetido para a comarca de Pombal onde decorreram os termos posteriores do processo.

A Ré veio a ser absolvida do pedido, mas o Réu foi condenado a pagar à Autora a quantia de €2 423,61 (dois mil quatrocentos e vinte e três euros e sessenta e um cêntimos), a título de rendas e seguro não pagos até à data da entrada em juízo da acção, acrescidos os juros de mora vencidos à taxa supletiva legal, estes a contabilizar sobre cada uma das prestações não pagas e desde o dia do mês correspondente, bem como, ainda, as quantias mensais que, de acordo com o contrato, se vencerem.

O Réu foi absolvido dos restantes pedidos.

c) A Autora recorre quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à solução jurídica dada ao caso, tendo em conta a alteração da matéria de facto que entende dever ser dada como provada.

Recorre apenas em relação à parte da sentença atinente ao Réu.

A sua discordância a respeito da matéria de facto vai para a circunstância de não ter sido dada como provada, face à prova documental constante do processo, a causa da devolução à Autora da carta enviada ao Réu a comunicar-lhe a resolução do contrato, constando do processo que a carta foi devolvida «por não ter sido reclamada» pelo Réu.

A Autora sustenta que, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil, a declaração de resolução tem de ser considerada eficaz quando, por culpa do destinatário, como foi o caso, a carta não foi por ele oportunamente recebida.

Em consequência desta alteração, a Autora sustenta, depois, a modificação do decidido, devendo a acção proceder na sua totalidade contra o Réu marido, condenando-se este no pedido, nos precisos termos que constam da petição inicial.

Não houve contra-alegações.

d) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, no seguinte:

Em primeiro lugar, cumpre verificar se a matéria de facto deve ser alterada acrescentando-se na parte final do n.º 4 dos factos provados o seguinte texto: «por não ter sido reclamada».

Em segundo lugar, apurar se esta alteração tem alguma influência sobre a decisão jurídica relativamente aos diversos pedidos feitos pela Autora.

II. Fundamentação.

a) Iniciando, então, a apreciação do recurso pela parte relativa à matéria de facto.

Afigura-se que assiste razão à recorrente.

A Autora alegou no artigo 12.º da petição que remeteu a carta ao Réu através da qual lhe comunicou a resolução do contrato, carta que veio devolvida com a indicação de «não reclamado».

Verifica-se também que a Autora juntou com a petição inicial fotocópia do envelope da carta dirigida ao Réu, bem como do talão relativo ao respectivo «aviso de recepção» (folhas 18), verificando-se que do verso do envelope consta o carimbo com os dizeres «Não Reclamado» e ao lado os dizeres manuscritos a data de «07-06-06».

Estes documentos não foram arguidos de falsos, não havendo qualquer argumento que possa ser apresentado quanto à não consideração dos mesmos como expressão documental da realidade efectivamente ocorrida.

Por outro lado, não se vislumbram regras da experiência invocáveis a propósito do caso que imponham afirmação diversa acerca da realidade histórica em apreço.

Por conseguinte, deve considerar-se tal facto como provado, isto é: «do verso do envelope consta um carimbo com os dizeres “Não Reclamado”».

Este facto deve, por conseguinte, ser aditado à matéria de facto.

Pelas mesmas razões serão aditados (sob o n.º 6), ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 659.º do Código de Processo Civil (tomada em consideração de factos provados por documentos), ex vi, n.º 3 do artigo 713.º do mesmo código, os factos relativos ao endereço do Réu que consta do contrato e ao endereço para onde foi remetida a mencionada carta que são coincidentes, isto é: «R. ...direito, Urbanização ..., ... Pombal».

 b) A matéria provada, com a introdução das alterações a que alude a alínea anterior, é esta:

1- A Autora e o Réu marido celebraram, em 18 de Novembro de 2004, referente ao veículo de marca Fiat, modelo Doblo Cargo Diesel S, versão Doblo Cargo 1.3 Mult, com a matrícula ( ...)ZD, propriedade da Autora, um contrato que denominaram de «locação operacional - aluguer de veículo n.º ( ...), cujas cláusulas particulares e gerais constam de folhas 11 a 14 dos autos, de onde consta, nomeadamente, que:

a) Nas suas condições particulares:

I - Tem a duração de 48 meses;

II - O valor do aluguer mensal é o de € 224,14, acrescido de IVA de € 42,49;

III - O valor mensal do seguro de vida é de €2,66;

IV - O valor mensal das despesas relativas à cobrança por transferência bancária é o de €1,00;

V - Nesta data o locatário entregará à locadora, como caução, a quantia de €1 997,85;

VI - Os alugueres vencem-se no dia 20 de cada mês, com inicio em 20 de Janeiro de 2005 e fim em 20 de Dezembro de 2008;

b) Das condições gerais:

I - Na cláusula 4.ª, n.º 3: Em caso de falta ou atraso em qualquer pagamento, e sem prejuízo da rescisão ou possibilidade de rescisão deste Contrato, o Locatário terá de pagar à Locadora Juros de Mora calculados à taxa máxima legalmente permitida, acrescidos de despesas administrativas, por cada aluguer em atraso;

II - Na cláusula 9.ª, alínea c): Restituir imediatamente o veículo em caso de Resolução Contratual, qualquer que seja a causa, no fim do aluguer, no estado que deriva do seu uso normal, ou em caso de impossibilidade ou inconveniência da sua parte, transmitir ao Locador a sua localização a fim de este providenciar pela sua retoma e recolha;

III - Na cláusula 10.ª:

1. O incumprimento pelo locatário de qualquer das obrigações por ele assumidas no presente contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pelo Locador, tornando-se efectiva essa resolução à data de recepção, pelo Locatário, de comunicação fundamentada nesse sentido;

2. (...).

3. A resolução por incumprimento não exime o Locatário do pagamento de quaisquer dívidas em Mora para com o locador, da reparação de danos que o veículo apresente e do pagamento de indemnização à Locadora;

4. A indemnização referida no artigo anterior destinada a ressarcir o Locador - que fará sempre suas todas as importâncias pagas até então nos termos deste contrato - dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento em si do contrato pelo Locatário - não sendo nunca inferior a 50% do total do valor dos alugueres referidos nas Condições Particulares;

5. Em caso de resolução do contrato o Locatário deverá entregar o veículo ao Locador imediatamente, no estado que deva derivar do seu uso normal e prudente;

6. O Incumprimento temporário, ou como tal reputado, quer de obrigações pecuniárias, quer de outras, tornar-se-á definitivo pelo envio pelo Locador, para o último domicílio Indicado pelo Cliente, de carta registada, intimando ao cumprimento no prazo de oito dias e pela não reposição, neste prazo, da situação que se verificaria caso o incumprimento não tivesse tido lugar;

IV - Na cláusula 11.ª seu n.º 1: Findo o contrato, ou efectuada a rescisão nos termos da cláusula 10.ª o veículo será restituído às instalações do Locador, onde será inspeccionado, determinando o valor necessário à reparação de qualquer dano no veículo da responsabilidade do Locatário, e se for caso disso à indemnização devida conforme referido na Cláusula 10.ª;

V - Na cláusula 12.ª:

1. O Locatário é obrigado a efectuar, até à data de início do contrato, um depósito de garantia ou caução no valor máximo de 15% do Preço de Venda ao Público do veículo, conforme explicitado nas Condições Particulares;

2. O depósito de caução destina-se a garantir/caucionar o bom cumprimento das cláusulas pecuniárias deste contrato;

3. No termo do contrato haverá lugar à prestação de contas respondendo a caução até à concorrência do seu montante pelo pagamento de todas as importâncias e/ou indemnizações que o Locatário, nos termos deste contrato haja de efectuar ou pagar, sendo devolvido o excesso ou pago o remanescente pelo locatário, conforme o caso;

4. Em caso de rescisão ou denúncia nos termos da Cláusula 10.ª o valor da caução reverterá na sua totalidade para a Locadora, sem prejuízo porém do n.º 4 da cláusula 10.ª (resposta aos artigos 1.º a 8.º, da petição inicial);

2. Na data da celebração do contrato referido em «1», o Réu recebeu da Autora o veículo aí mencionado, o qual passou depois a utilizar.

3. O Réu não pagou a partir de 20 de Janeiro de 2007, inclusive, qualquer das prestações acordadas no contrato.

4. A Autora enviou ao Réu a carta com o conteúdo de folhas 17 dos autos, datada de 1 de Junho de 2007, onde refere o valor das rendas em mora, de €1 369,35, e dos juros de mora, de €225,92, num total de €1 595,27, e que o não pagamento dessa quantia no prazo de dez dias a contar da data desta carta a levava a considerar o contrato rescindido.

Esta carta foi devolvida no destinatário. Do verso do envelope consta um carimbo com os dizeres «Não Reclamado» e ao lado os dizeres manuscritos «07-06-06».

5. O Réu não devolveu o veículo à Autora.

6. O endereço do Réu que consta do contrato é «R. ...direito, Urbanização ..., ... Pombal».

7. A carta acima mencionada foi remetida para este endereço.

2 - Passando à análise das questões jurídicas objecto do recurso.

a) Como resulta das alegações da Autora, a questão nevrálgica do recurso está em saber se as declarações da Autora constantes da carta que remeteu ao Réu, de 1 de Junho de 2006, devem ou não devem considerar-se como tendo chegado ao conhecimento do Réu e nessa medida eficazes, muito embora se saiba que o Réu não tomou conhecimento delas, pois é facto assente que a carta a ele dirigida foi devolvida à Autora.

A situação factual é esta:

(1) A Autora remeteu a carta ao Réu através do serviço de correios para o endereço «R. ...direito, Urbanização ..., ... Pombal», sendo este o endereço que consta do contrato celebrado entre as partes.

(2) O Réu não recebeu esta carta dirigida para a sua residência e não a levantou também no serviço de correios.

Este último facto resulta de constarem do verso do envelope os dizeres “Não Reclamado” colocados através de carimbo.

Isto significa que o carteiro foi a casa do Réu e, não tendo podido deixar aí a carta deixou um aviso para o réu se dirigir ao serviço de correios levantar a carta em certo prazo.

Passado o prazo, não tendo o réu ido levantar a carta, a mesma foi devolvida à Autora.

Trata-se de procedimento comum que resulta do disposto no regulamento de correios.
Com efeito, nos termos do ponto 2, da al. b), do n.º 4, do artigo 28.º do Regulamento do Serviço Público de Correios (Decreto-Lei n.º 176/88 de 18 de Maio), «A entrega das correspondências registadas é sempre comprovada por recibo e tem lugar:
a) (…); b) Nos estabelecimentos postais da localidade de destino, nos casos em que: (…); 2.º Não tenha sido possível a entrega na morada do destinatário».

Deverão, face ao exposto, considerar-se eficazes as declarações da Autora exaradas na carta remetida ao Réu e devolvida devido ao facto da mesma não ter sido nem entregue na residência do Réu a quem a pudesse receber, nem ter sido levantada, depois, nos serviços dos correios pelo Réu ou por alguém a seu mando?

Vejamos.

A questão tem a ver com a disciplina normativa do artigo 224.º do Código Civil (Eficácia da declaração negocial) que regula esta matéria e cuja redacção é a seguinte:

«1. A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada.

2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.

3. A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é ineficaz».

Sobre a interpretação destas regras transcrevem-se aqui as palavras do Prof. Pires de Lima que, pela sua clareza e concisão, se adequam aos propósitos do presente acórdão:

«O legislador consagra aqui uma teoria mista: o declaratário ficará vinculado logo que conheça o conteúdo da declaração, ainda que o texto ou documento em que esta lhe foi dirigida (por exemplo, uma carta) não lhe tenha sido entregue. Mas ficará igualmente vinculado – nos termos da teoria da recepção – logo que a declaração chegue ao seu poder, à sua esfera pessoal, ainda que não tome conhecimento dela.

O que importa, portanto, é que a declaração seja colocada ao alcance do destinatário, que este seja posto em condições de, só com a sua actividade, conhecer o seu conteúdo. Mas, se porventura o não conhecer, isso em nada afecta a perfeição ou eficácia da declaração.

Esta solução destina-se principalmente a evitar fraudes e evasivas por parte do declaratário – destina-se a evitar que ele venha alegar falsamente, sem que o declarante tenha possibilidade de refutar a alegação, que não tomou conhecimento da declaração apesar de esta haver sido posta ao seu alcance» ([1]).

Face ao que fica referido, será de concluir que, no caso dos autos, as declarações da mencionada carta devem considerar-se eficazes, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil, norma que nos diz que é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida?

É o caso.

O Réu entrou em incumprimento contratual em Janeiro de 2007.

Qualquer pessoa sabe, tratando-se de uma regra da experiência, que, quando o devedor não cumpre, caso não tome a iniciativa de explicar as razões junto do credor, este último, mais tarde ou mais cedo, entrará em contacto consigo para se informar acerca das razões do incumprimento ou para exigir a prestação.

Por conseguinte, qualquer cidadão, medianamente sagaz e agindo de acordo com a boa fé, colocado nas mesmas circunstâncias do Réu, ficaria à espera de ser contactado pelo banco credor, isto é, contaria com a ocorrência de tal facto, e, tratando-se de um banco e de um caso de incumprimento, à espera de ser contacto por escrito, através do sistema de correios, por se tratar do meio habitual que os bancos usam para comunicar com os seus clientes, inclusive em caso de incumprimento.

Estas circunstâncias impunham ao devedor, no caso ao Réu, o dever de observar o cuidado devido para receber eventuais cartas do credor.

Quer fornecendo-lhe novo endereço se tivesse mudado de endereço após o contrato, quer recebendo as cartas que o banco lhe enviasse para o endereço constante do contrato, indo ao serviço de correios levantá-las se o carteiro não encontrou em sua casa quem as recebesse, como foi o caso.

Isto que se afirma resulta do dever que onera qualquer uma das partes no sentido de agir, durante a execução do contrato, segundo as regras da boa fé que caibam ao caso.
É isto que o legislador pretende dos cidadãos quando prescreve no artigo n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil, que «No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé».
Proceder de boa fé, nestes casos e em outros semelhantes, tem a ver com uma conduta objectiva do sujeito, isto é, com a execução de acções ou omissão impostas pelo dever de cooperar, com boa fé, com a outra parte.
A boa fé, como critério de acção, determina a execução das acções de forma honesta, correcta, leal ([2]).

Por conseguinte, face ao dever das partes agirem de boa fé durante o cumprimento do contrato, as circunstâncias no caso concreto impunham ao Réu o dever de programar a realidade por forma a receber a carta, quer, como se disse, avisando o banco Autor de que tinha mudado de residência, quer diligenciando no sentido de receber a carta, pois era de ter como certo, como se disse, a partir do momento que entrou em incumprimento, que o banco Autor lhe iria endereçar uma carta.

Como o Réu não observou os deveres de cuidado adequados a receber a carta, caso contrário teria sido recebida ou levantada na estação de correios, a sua falta de recepção tem de lhe ser imputada, isto é, tem de se considerar que o Réu agiu culposamente e, por isso, tem plena aplicação a regra do n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil, que considera eficaz a declaração quando o destinatário não a recebeu por ter agido com culpa.

É o caso, como se acaba de ver.

Não se concorda, face ao exposto, com a orientação seguida na sentença sob recurso quando considera que «…no caso que se analisa a verdade é que se ignoram as razões por que a carta não foi recebida pelo Réu, o que, nos termos expostos, afasta a possibilidade de a relação contratual se ter extinguido, por esse meio, através de resolução (veja-se, entre outros, o Ac. STJ de 8/06/2006, disponível no mesmo Site; ainda, no mesmo Site, Ac. STJ de 27/05/2008), precisamente por dessa não ter tido conhecimento o Réu (não se trata sequer de domicílio convencionado)».

Com efeito, afigura-se não ser necessário saber as razões do não recebimento.

Repete-se:

Entre as partes existia um contrato em execução.

Nesse contrato o Réu deu a conhecer à Autora que a sua morada era no local que aí indicou.

Se se indica uma morada é porque existe uma finalidade nisso e uma delas, sem dúvida, é a de permitir futuros contactos.

Todos os meses o Réu tinha de pagar uma prestação pecuniária.

Em Janeiro de 2007 deixou de pagar e não pôde deixar de saber que não pagou.

Tinha o dever de prever que, ao deixar de pagar, a Autora o contactaria por escrito, logo, por carta, cujo conteúdo versaria tal situação, por ser a forma mais simples, eficaz, habitual e adequada de o fazer.

O princípio geral da boa fé impunha-lhe que adoptasse a conduta leal que ao caso coubesse e tal conduta era a de levar a cabo as acções adequadas a receber cartas remetidas pelo banco Autor, recebendo ou incumbindo outrem de receber as cartas que o banco lhe remetesse, fosse na residência ou, mais tarde, na estação de correios.

Daí que tenha de se concluir que a boa fé lhe impunha este tipo de acção; que esta conduta era adequada a receber a carta e que, não a tendo recebido, como sucedeu, tem de se concluir que tal se ficou a dever a negligência sua, isto é, a culpa sua.

Antes de prosseguir, cumpre levar em consideração uma possível objecção ao que fica referido, que consiste no seguinte: a carta pode não ter sido recebida por o destinatário se ter ausentado, por exemplo, em viagem de negócios, em férias, etc., justificando-se que perante uma hipótese destas a Autora tivesse voltado a remeter nova carta, com o mesmo conteúdo, 15 ou 30 dias depois de ter recebido de volta a primeira carta.

Procedendo assim é certo que evitaria a objecção em questão, pois uma segunda carta aumentava as hipóteses do Réu ser contactado.

Porém, a questão que se coloca é a de saber se tinha obrigatoriamente de o fazer para poder beneficiar do regime constante do n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil.

Vejamos, elucidando o tema com as palavras de Vaz Serra:

«…como há-de o declarante saber se o destinatário tomou conhecimento da declaração, no caso de declaração potestativas unilaterais recipiendas, como a de que se resolve o contrato, a de que se compensam dois créditos, uma notificação? Aqui o declarante exerce um direito, não parecendo que esse exercício deva ser dificultado com a exigência de que a declaração seja conhecida do destinatário.

(…) No entanto também os interesses do destinatário, que não pôde, sem culpa sua, tomar conhecimento da declaração, merecem protecção. Mas a conciliação é impossível no caso de haver culpa de qualquer das partes: se o declarante fez o que lhe cumpria para que a declaração chegasse ao poder do destinatário e este não pôde, sem culpa sua, ter conhecimento dela, ou se entende que a declaração não é eficaz, sacrificando-se os interesses do declarante, ou que o é, sacrificando-se os interesses do destinatário. Neste conflito de interesses, parece melhor dar preferência aos do declarante, já porque, de outro modo, se lhe tolheria ou dificultaria gravemente o exercício dos seus direitos, já porque se torna mais seguro o comércio jurídico, já porque a admissibilidade da prova de que o destinatário não pôde, sem culpa sua, ter notícia da declaração favorece as evasivas do destinatário, já porque são raros os casos em que o destinatário não pode tomar conhecimento da declaração.

Mas afigura-se que dever aceitar-se um correctivo: o declarante deve proceder de acordo com a boa fé, e, portanto, se sabe que a declaração não chegou ao conhecimento do destinatário, deve repeti-la. Provando-se que o soube e não repetiu a declaração, esta seria ineficaz» ([3]).

Aceita-se facilmente que sabendo o declarante não ter sido recebida a carta pelo declaratário a envie de novo, mas isso só é válido quando a situação de facto seja clara no sentido do declarante saber que o declaratário não só não recebeu a carta como não esteve em condições de a ter recebido, isto é, não omitiu qualquer dever de cuidado que, observado, teria conduzido ao recebimento da carta.

Ora, no caso dos autos, apenas sabemos que o declaratário tinha entrado em incumprimento contratual em relação ao declarante; que tal situação se mantinha de modo permanente há seis meses, tantos quantas as prestações mensais não pagas e que a carta foi devolvida à posse do declarante com a informação exarada pelo serviço de correios de que a carta não tinha sido reclamada.

Nestas condições factuais a Autora não tinha motivos, para, em boa fé, formar a convicção de que a carta não chegou às mãos do Réu por razões fortuitas e que este nada podia ter feito, nas circunstâncias, para evitar tal desenlace.

Com efeito, a Autora também podia pensar que, nestas circunstâncias factuais, a carta não foi recebida pelo Réu porque este, estando, como estava, em incumprimento perante a Autora há seis meses, devendo já seis prestações, não tinha qualquer vontade de saber o teor da carta, preferindo ignorá-la.

Aliás, se a Autora tivesse repetido o envio da carta continuava a ser possível a mesma objecção, pois podia dar-se o caso do Réu ter voltado a ausentar-se de casa.

Ora, o que importa para efeitos do disposto no artigo 224.º do Código Civil é que o declarante faça o que deve fazer, isto é, envie a declaração por forma a haver a certeza de que chega à esfera de domínio do declaratário, só tendo de repetir a emissão da declaração se as circunstâncias de facto mostrarem ao declarante que a declaração não foi recebida e que o declaratário, mesmo procedendo com a normal diligência do bonus pater famílias, nada podia ter feito para a receber.

Não é esse o caso dos autos.

Como acaba de se ver, não há qualquer indício, face aos factos, que leve a supor que o Réu não recebeu a carta nem poderia ter feito o que quer que fosse para a receber.

Com efeito, cumpre ter em consideração que o Réu é casado e que não é corrente, habitual, alguém ausentar-se sem deixar outrem na sua casa de habitação que zele pelo recebimento de cartas, quer recebendo-as, quer indo às estações de correios levantá-las quando o funcionário dos correios não a pôde entregar, por não se encontrar ninguém em casa e deixa, por isso, aviso para poder ser reclamada e levantada na estação de correios.

Perante esta conclusão verificamos que a decisão do Tribunal de Pombal não se poderá manter, pois partiu de pressuposto incompatível com a conclusão a que acaba de se chegar.

Porém, cumpre ainda verificar se, no caso, ocorreu a resolução do contrato.

Em 1.ª instância julgou-se em sentido negativo.

Diz-se na sentença que «…sendo inegável que o Réu entrou em mora ao não ter realizado as prestações das datas acordadas, impunha-se que essa tivesse sido convertida em incumprimento definitivo, com a interpelação admonitória a que se refere o artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil».

Afigura-se, porém, que existiu declaração válida de resolução.

Com efeito, provou-se que «A Autora enviou ao Réu a carta com o conteúdo de folhas 17 dos autos, datada de 1 de Junho de 2007, onde refere o valor das rendas em mora, de €1 369,35, e dos juros de mora, de €225,92, num total de €1 595,27, e que o não pagamento dessa quantia no prazo de dez dias a contar da data desta carta a levava a considerar o contrato rescindido».

O texto da carta, na parte que interessa agora é este:

«O não pagamento da quantia referida leva-nos a considerar, no prazo de 10 dias a contar da data desta carta, o contrato em referência como RESCINDIDO nos termos das cláusulas 10.ª e 11.ª, o que implica a obrigação de proceder à ENTREGA IMEDIATA do veículo objecto do contrato nas nossas instalações.

A não restituição do veículo (…).

Nesta data entregamos o assunto ao nosso advogado para procedimento judicial».

Vejamos o que nos diz a lei quanto à figura jurídica da resolução no caso do contrato que se encontra em execução.

Dispõe o n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil que «Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação».

Por conseguinte, se o devedor entra em incumprimento, a lei faculta ao credor a possibilidade de fazer terminar o contrato dirigindo ao devedor uma declaração indicando-lhe um prazo razoável para cumprir, advertindo-o que caso não o faça o contrato termina.

Como escreveu João Baptista Machado «A interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808.º é, pois, uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo. Assim, através da fixação de um prazo peremptório, obtém-se uma clarificação definitiva de posições.

A interpelação admonitória deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento, c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro  daquele prazo» ([4]).

Ora, lendo o teor da carta, o que aconteceu no caso dos autos foi isto:

Intimação para cumprimento: «O não pagamento da quantia referida leva-nos a considerar…».

Fixação do prazo: «…no prazo de 10 dias a contar da data desta carta…»;

Cominação: «…considerar…o contrato em referência como RESCINDIDO nos termos das cláusulas 10.ª e 11.ª, …».

Verifica-se, pois que a declaração é apta a desencadear a resolução tendo esta ocorrido.

Resta apenas considerar que o argumento da sentença no sentido de que a Autora estava na posse de uma caução que lhe permitia pagar-se do montante das rendas e juros em falta não tem a relevância que lhe é dada.

É que a existência de uma caução não impede a ocorrência dos factos que geram o incumprimento contratual e são estes que relevam para efeitos da resolução do contrato.

Aliás, como decorre da própria noção de caução, esta garantia destina-se precisamente a reparar danos decorrentes do incumprimento ([5]).

Por outro lado, o que consta do contrato é o seguinte: «Nesta data o locatário entregará à locadora, como caução, a quantia de €1 997,85».

Declarou-se «entregará» e não «entregou», pelo que, face ao que consta dos autos, não se pode ter como facto certo que a garantia foi efectivamente prestada.

Conclui-se, por conseguinte, no sentido de que houve resolução contratual.

Passando à segunda questão.

b) Vejamos agora as consequências da solução a que se chegou.

Face à matéria de facto provada verifica-se que entre as partes foi celebrado um contrato que se encontra identificado no cabeçalho relativo às respectivas «Condições Gerais», como tratando-se de um «Contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor».

Não raro este tipo de contrato tem como causa a necessidade do locatário dispor de um veículo, vendo-se, porém, incapacitado de conseguir tal finalidade por não possuir meios financeiros para o adquirir.

Para satisfazer este tipo de necessidade, o comércio jurídico, usando da liberdade contratual que lhe é reconhecida pelo direito, utiliza, entre outros meios, o designado vulgarmente por contrato de aluguer de longa duração, nos termos do qual o locador proporciona ao locatário a disponibilidade do veículo de que este necessita mediante uma renda mensal.

Acoplado a este contrato pode existir, ou não, um contrato-promessa de compra e venda do veículo, destinado a proporcionar ao locatário a aquisição do veículo no termo previsto para o contrato de aluguer, altura em que o preço do veículo estará praticamente amortizado através das rendas que foram sendo pagas.

Nestes casos, estamos face a um «…contrato atípico, com a natureza de um negócio indirecto, sendo o tipo de referência o aluguer e o fim indirecto a venda a prestações com reserva de propriedade, ao qual se aplicam as regras do DL n.º 354/86, de 23-01, que disciplina o aluguer de veículos automóveis sem condutor – rent a car –, bem como as da locação em geral, em tudo o que não contrarie o dito diploma legal, bem como as cláusulas contratuais estipuladas ao abrigo do princípio da liberdade contratual» ([6]).

No presente caso não há indícios de que as partes tenham celebrado um contrato-promessa de compra e venda do veículo (se foi celebrado não foi alegado, nem pela Autora, nem pelos réus, estes, aliás, ausentes).

Estamos, por conseguinte, fundamentalmente face a um contrato de aluguer, pelo que, na linha da argumentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2009, devem aplicar-se ao contrato de aluguer de longa duração (ALD), de acordo com um entendimento que é praticamente consensual, «…as disposições do DL. 354/86, de 23.10 (com as alterações introduzidas pelo DL. 373/90, de 27.11 e pelo DL. 44/92, de 31.03.), bem como as normas gerais do contrato de locação, e as disposições gerais dos contratos, e as cláusulas estabelecidas pelos contraentes, desde que não violem preceitos cogentes» ([7]), sendo de assinalar que este diploma sofreu novas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 77/2009, de 1 de Abril.

Vejamos, então, face ao contrato e às normas legais aplicáveis, se a Autora tem direito às quantias que pede.

Verifica-se que o Réu não procedeu ao pagamento da renda que se venceu em 20 de Janeiro de 2007 e também não o fez em relação às seguintes, não obstante ter sido interpelado pelo banco Autor para pagar as quantias em dívida sob pena de resolução do contrato.

Com efeito, a Autora enviou ao Réu uma carta onde referiu o valor das rendas em mora, que totalizavam nessa ocasião €1 369,35 euros, mais os juros de mora que contabilizou em €225,92 euros, num total de €1 595,27 euros, e declarou-lhe que o não pagamento dessa quantia no prazo de dez dias, a contar da data da carta, a levava a considerar o contrato rescindido.

Esta carta, como resulta dos factos provados, foi remetida para a residência do Réu, mas, por não ter sido entregue na residência deste devido ao facto de não ter sido encontrada aí pessoa para a receber, nem ter sido levantada pelo Réu, mais tarde, na estação de correios, foi devolvida ao banco Autor.

Do verso do envelope consta um carimbo com os dizeres «Não Reclamado» e ao lado do carimbo figura a data manuscrita «07-06-06», pelo que, face a esta anotação, os apontados 10 dias assinalados na carta decorreram antes do vencimento previsto contratualmente para a prestação que se vencia em 20 de Junho de 2007, ou seja, a resolução ocorreu antes do vencimento desta prestação.

Recapitulando, o banco Autor pede do Réu:

Um: a quantia de €3 502,07 euros, composta por €1 346,95,00 euros resultantes das prestações vencidas até à resolução do contrato, mais €2 155,12 euros relativamente ao valor resultante (face ao disposto no n.º 2 do artigo 1045.º, do Código Civil) das diversas prestações mensais, a pagar em dobro, por cada mês decorrido desde a data da resolução do contrato até à data em que foi proposta a acção, quantias essas acrescidas de juros moratórios à taxa legal, contabilizando os vencidos €94,26 euros.

Quanto a este pedido verifica-se que as prestações vencidas até 20 de Junho de 2007, excluindo esta, foram em número de cinco, as quais, sendo como são de €269,39 euros, perfazem os €1 346, 95 euros pedidos.

As prestações devidas após esta data, vencidas de 20 de Junho de 2007, inclusive, até 20 de Setembro desse ano, somam mais 4 prestações.

O Réu foi já condenado em 1.ª instância a pagar à Autora os montantes das prestações até à data da entrada da petição em juízo, no total de €2 423,61 euros, ou seja, 9 prestações, mas foi absolvido do resto pedido.

O banco Autor pede o pagamento em dobro destas prestações que se venceram após a resolução, invocando a aplicação da norma do n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil, onde se prescreve que «1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.

2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro».

A aplicação da norma constante deste n.º 2, que prevê o pagamento do montante da renda em dobro, devido à mora, tem sido afastada nos casos dos contratos de aluguer de longa duração, nos quais as partes prevêem a compra e venda após o pagamento das prestações convencionadas, com o fundamento no facto das rendas funcionarem como amortização do preço do veículo, tratando-se mais de um contrato de financiamento do que de um contrato de aluguer, situação esta que coloca o contrato em questão fora do tipo contratual genuíno do aluguer e, daí, se entender que o n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil não foi pensado pelo legislador e para estes casos e por isso não lhe é aplicável ([8]).

Porém, no caso dos autos, não temos qualquer indício no sentido de que as partes tiveram em vista com o aluguer um esquema destinado ao financiamento e aquisição do veículo pelo Réu no termo do contrato.

Sendo assim, o contrato em causa nos autos é um contrato de aluguer como qualquer outro, não existindo as razões apontadas na aludida jurisprudência para excluir a aplicação ao caso da regra constante do n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil.

Aplicando a regra do n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil, a quantia devida relativamente a estas 4 prestações é de €2 155,12 euros [(€269,39 euros x 4) x 2].

O banco Autor pede ainda as quantias devidas, a liquidar posteriormente até que seja feita a entrega do veículo, pedido que procede, como se acabou de referir, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil.

Este valor é desconhecido, por ser desconhecido o momento da entrega.

Será, pois, proferida decisão a remeter para ulterior liquidação com vista a apurar tal valor.

Dois: A Autora pede ainda a indemnização prevista no contrato, a liquidar em execução de sentença, por perdas e danos, relativamente aos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do incumprimento do contrato, não inferiores a 50% do valor total dos alugueres acordados.

Esta indemnização embora prevista no contrato não deve ser atribuída.

Com efeito, trata-se de uma cláusula contratual geral proibida, como se irá procurar demonstrar.

Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, «1 - As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.

2 - O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.

3 - O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo» ([9]).

O mero exame do presente contrato, na parte relativa às «condições gerais» mostra que estamos perante o formulário de um contrato tipo elaborado previamente pelo banco Autor, igual para todos os casos, que este apresenta a quem o contacta e negoceia consigo, não tendo o cliente oportunidade de o alterar, pelo que, ou o subscreve e fecha o contrato ou o rejeita e não há contrato.

Estamos, pois, sem dúvida perante um contrato cujas cláusulas se enquadram na definição do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Este diploma prevê na al. c) do seu artigo 19.º a proibição (relativa) das normas contratuais que, no caso concreto, «Consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir», norma esta que se aplica nas «relações com os consumidores finais» por força do disposto no artigo 20.º do mesmo diploma.

Ora, nos termos do artigo 12.º deste diploma «As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos», sendo estas nulidades, como dispõe o seu artigo 24.º, «…invocáveis nos termos gerais».

Estamos perante casos de nulidades que, nos termos da regra do artigo 286.º do Código Civil, são invocáveis a todo o tempo por qualquer interessado e podem ser declaradas oficiosamente pelo tribunal ([10]).

Resta averiguar se estamos, porém, face a uma norma contratual que preveja uma cláusula penal desproporcionada aos danos a ressarcir.

A norma contratual na qual o banco Autor se estriba para fazer este pedido, tem o seguinte teor:

«3. A resolução por incumprimento não exime o Locatário do pagamento de quaisquer dívidas em Mora para com o locador, da reparação de danos que o veículo apresente e do pagamento de indemnização à Locadora;

4. A indemnização referida no artigo anterior destinada a ressarcir o Locador - que fará sempre suas todas as importâncias pagas até então nos termos deste contrato - dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento em si do contrato pelo Locatário - não sendo nunca inferior a 50% do total do valor dos alugueres referidos nas Condições Particulares».

Ou seja, o total dos alugueres foi de 48, os quais, à razão de €269,39 euros cada um, totalizaram a quantia de €12 930,72 euros.

Como a indemnização não pode ser inferior a 50% deste valor, a mesma teria como mínimo a quantia de €6 379,36 euros e máximo o valor do dano efectivo se fosse superior a estes €6 379,36 euros.

Afigura-se, pois, que se trata de cláusula indemnizatória desproporcionada.

Repare-se que esta indemnização é a que vem referida no n.º 3 da cláusula 10.ª, nestes termos «3. A resolução por incumprimento não exime o Locatário do pagamento de quaisquer dívidas em Mora para com o locador, da reparação de danos que o veículo apresente e do pagamento de indemnização à Locadora»,

Trata-se, pois, de uma indemnização que acresce às prestações contratuais em mora e aos danos que o veículo apresente.

Sabendo-se que o banco Autor tem direito às prestações em mora e aos valores das prestações nos termos previstos no n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil, até à entrega do veículo, os danos que ainda haja a ressarcir, que no presente caso, não existem (pelo menos no sentido de que não estão alegados), mostram que esta indemnização mínima de €6 379,36 euros não tem fundamento, pelo que, carecendo de justificação é, sem dúvida, desproporcionada, e, por isso, nula.

Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de uma acção inibitória instaurada pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no art. 22.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, já se pronunciou pela nulidade da seguinte cláusula relativa a um contrato de aluguer de veículo sem condutor, com o seguinte teor:

«A indemnização referida no artigo anterior destinada a ressarcir o Locador – que fará sempre suas todas as importâncias pagas até então nos termos deste contrato – dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento em si do contrato pelo Locatário – não sendo nunca inferior a 50% do total do valor dos alugueres referidos nas Condições Particulares» ([11]).

Trata-se de uma cláusula igual à que consta do presente contrato.

Por ser nula, não se aplica, improcedendo este pedido do banco Autor.

Três: Condenação do Réu a restituir-lhe o veículo, cujo valor é de €13 318,99 euros.

Sem dúvida que o pedido de restituição do veículo procede.

O contrato encontra-se validamente resolvido.

Nos termos do artigo 1311.º do Código Civil, «1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».

Face ao exposto, o Réu será condenado a entregar o veículo ao banco Autor.

Quatro: Pagamento de €50,00 por dia, a título de sanção pecuniária compulsória, durante os primeiros 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado, quantitativo que passará a €100,00 por dia nos 30 dias seguintes e a €150,00 por dia, daí em diante e até integral cumprimento da respectiva condenação, ou no montante que na sentença se vier a fixar.

Este pedido não procede.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 829.º-A do Código Civil, «Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso».

Face a esta norma só as prestações de facto infungível, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, é que são susceptíveis de serem complementadas com uma sanção pecuniária destinada a obrigar o devedor a cumprir.

A prestação é fungível quando pode ser executada quer pelo devedor quer por terceiro e infungível quando só possa ser prestada pelo devedor, quando não for, portanto, substituível.

A sanção pecuniária compulsória só se justifica nestes casos, pois em todos os outros é possível recorrer ao processo executivo para obter a prestação através da acção de outrem, à custa do devedor.

Ora, é manifesto que a entrega do veículo é uma prestação fungível, isto é, é possível ser realizada por outrem, mesmo sem ou contra a vontade do devedor.

Improcede, pois, este pedido.

 Cinco: Juros vencidos e vincendos sobre todas as quantias.

Nos termos dos n.º 1 e 2 do artigo 806.º do Código Civil, «1 - Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.

2 - Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.

O banco Autor tem, pois, direito a juros de mora sobre as quantias a partir do momento em que o devedor entrou em mora e à medida do respectivo vencimento.

O banco Autor não indicou a taxa de juros, tendo-se referido apenas à «taxa legal».

Porém, tendo indicado o montante de €94,26 de juros vencidos até 25 de Setembro de 2007, para a quantia de €3 502,07 euros, tal montante de juros só se atinge se os juros forem comerciais, isto é, os previstos nos termos do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial, onde se prescreve que «Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça».

O banco Autor tem, pois, direito a juros à taxa dos juros comerciais.

Os juros incidem sobre cada uma das fracções pecuniárias que se venceram na data prevista para o pagamento das prestações mensais e depois de esgotadas estas as devidas mensalmente até se atingir o valor do veículo.


*

No que respeita a custas da acção serão repartidas na proporção de 1/3 para a Autora e 2/3 para o Réu por não haver forma de quantificar em termos mais precisos o vencimento e o decaimento, mas se afigurar ser sensivelmente nesta proporção.

III. Decisão.

Considerando o exposto:

1 – Julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida, salvo na parte em que condena o Réu a pagar à Autora as prestações vencidas e não pagas entre 20 de Janeiro de 2007 e a data da instauração da acção, no montante de €2 423,61 euros.

2 – Condena-se o Réu a favor da Autora nos seguintes termos:

a) A pagar-lhe uma indemnização equivalente ao dobro do valor das prestações vencidas desde 20 de Junho de 2007 até à instauração da acção, em número de quatro, no montante total de €1 077,56 euros, que acresce à quantia já atribuída em 1.ª instância (anterior n.º 1) para o mesmo período.

A pagar-lhe as quantias mensais de €538,78 euros a partir da data da instauração da acção até à entrega do veículo, a respeito da mesma indemnização, valor este a determinar em futura liquidação.

c) Nos juros à taxa dos juros legais comerciais sobre cada uma das fracções (prestações e quantias equivalentes às prestações mensais após a resolução do contrato) que compõem estas quantias.

d) A entrega-lhe o veículo.

3 – Julga-se a acção improcedente quanto aos restantes pedidos, dos quais se absolve o Réu.

4 – Fixam-se as custas do recurso a cargo do Réu e as relativas à acção a cargo de Autora na proporção de 1/3 e do Réu na proporção de 2/3.


*

Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil

[1] Anotação ao acórdão da Relação do Porto, de 26 de Junho de 1969, na R.L.J. Ano 102, pág. 143/144.

No mesmo sentido, com o Prof. Antunes Varela, no Código Civil Anotado:

«No n.º 2, como medida de protecção do declarante, considera-se eficaz a declaração que não foi recebida por culpa do declaratário. É o caso, por exemplo, de este se ausentar para parte incerta ou de se recusar a receber a carta, ou de a não ir levantar à posta-restante como o fazia usualmente» - Vol. I, pág. 213, 3.ª Edição.
[2] Cf. Prof. Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, pág. 339/346, Almedina/1982, a propósito dos deveres laterais orientados para o interesse no cumprimento do dever principal de prestação.

[3] Perfeição da Declaração de Vontade – Eficácia da Emissão da Declaração – Requisitos Especiais da Conclusão do Contrato, Boletim do Ministério da Justiça n.º 103, pág. 14 a 16.

[4] João Baptista Machado - Obra Dispersa, Vol. I, pág. 164 (Pressupostos da Resolução por Incumprimento).
[5] «No seu sentido corrente, a caução designa a entrega feita por uma das partes à outra de certa quantidade de coisas móveis (fungíveis algumas vezes – como o dinheiro, mercadorias, títulos ao portador; não fungíveis outras vezes – como jóias, títulos nominativos, etc.), para garantia da cobertura do dano proveniente do não cumprimento de determinada obrigação» - Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª ed., pág. 471).
[6]  Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12-10-2010, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 67/07.OTCGMR.
[7]   Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 08P4096.

[8] Cf. por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Outubro de 2003, C.J. (S.T.J.), ano IX, tomo III, pág. 119: «I - A indemnização prevista no art. 1045.º do C.C. visa compensar o locador pela falta de restituição da coisa locada, correspondendo o prejuízo ao seu valor de uso. II – Tal preceito é inaplicável ao contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel cujo valor é objecto de amortização enquanto o contrato perdura».

No mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Abril de 2010, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 3501/06.3TVLSB: «A indemnização a que alude o nº2 do art. 1045º do CC é inaplicável à hipótese de falta de pontual restituição do veículo no termo do contrato de ALD a que vai acoplada a promessa da respectiva venda ao locatário, no termo da relação contratual».

[9] Alterado pelos Decretos-Lei n.º 220/95, de 31/08 (e Rect. n.º 114-B/95, de 31/08), n.º 249/99, de 07/07 e n.º 323/2001, de 17/12.

[10] Neste sentido, Mário Júlio de Almeida e Costa e A. Menezes Cordeiro, Cláusulas Contratuais Gerais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro, pág. 55, Almedina/1987.

Por outro lado, como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de 7-01-1993, Boletim do Ministério da Justiça n.º 423, pág. 539 e seguintes: «Os recursos visam o reestudo, por um Tribunal Superior, de questões já vistas e resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do Tribunal a quem sobre questões novas. Esta regra, que decorre, e designadamente, dos artigos 676º, nº 1 e, e 684º, nº 3 do Código de Processo Civil, comporta duas excepções: 1º - situações em que a lei expressamente determina o contrário; 2º- situações em que em causa está matéria de conhecimento oficioso».

Ora, as nulidades, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, são de conhecimento oficioso, isto é, não carecem de ser alegadas.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 3062/05.0TMSNT.L1.S1.