Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
294/10.3TBVNO-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
ASSEMBLEIA DE CREDORES
CRÉDITOS FISCAIS
Data do Acordão: 01/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.97, 192, 194, 197, 215, 216 CIRE, 30, 36 LGT, 196, 180 CPPT, DL Nº 411/91 DE 17/10
Sumário: 1. O regime do CIRE, que contém normas substantivas e normas adjectivas, aplica-se à generalidade dos credores, incluindo a Fazenda Pública como credora.

2. A vontade manifestada pela maioria dos credores na aprovação do plano está coberta por lei, o CIRE, aprovado por Decreto-Lei autorizado pela A.R.

3. O regime do CIRE é especial (tanto na vertente substantiva, como processual) em relação a outros regimes de direito público.

4. Atenta a especialidade do regime do CIRE, não se verificando a previsão dos artigos 215º e 216º, nº 1, do CIRE, não deve ser recusada a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores pela maioria legal, apesar de a credora Fazenda Pública ter votado contra e ter requerido a não homologação com base na ofensa de normas imperativas de direito fiscal.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I - Relatório:

Por sentença proferida aos 24.02.2010, foi a “A (…), Lda” declarada insolvente, tendo posteriormente sido apresentado pela devedora um plano de insolvência contendo medidas relativamente aos créditos do Estado (Fazenda Pública), de 103.627,27 euros, propondo o seu pagamento em 40 prestações trimestrais, com perdão de juros vincendos, bem como aos créditos da Segurança Social e aos créditos comuns.

O plano, com as alterações entretanto introduzidas pela insolvente, foi posto à votação da assembleia de credores de 15.7.2010, tendo a Segurança Social e alguns outros credores votado contra. O Ministério Público, em representação da Fazenda Pública, e o (…) requereram prazo para apresentação dos seus votos por escrito, o que lhes foi deferido.

O Ministério Público votou contra o plano e requereu a sua não homologação, nos termos do disposto no artº 215º do CIRE, por entender que o mesmo viola normas imperativas aplicáveis ao seu conteúdo (cfr. fls. 663), nomeadamente as constantes dos artigos 30º, nº 2, 36º, nº 3, da Lei Geral Tributária e artigos 196º, nº 3, e 199º do CPPT. Também o credor Instituto da Segurança Social, IP, a fls. 558, requereu a recusa da homologação do plano de insolvência, alegando que o plano não se coaduna com o regime geral de regularização de dívidas à Segurança Social e viola normas imperativas, designadamente a Lei Geral Tributária e o Decreto-Lei nº 411/91, de 17.10.

O despacho de 27.7.2010 considerou aprovado o plano, face ao quórum deliberativo.

A sentença, proferida aos 02-09-2010, indeferiu a pretensão dos credores Instituto de Solidariedade e Segurança Social e Fazenda Nacional e homologou o plano de insolvência aprovado em Assembleia de Credores, condenando «as partes» a cumpri-lo nos seus precisos termos. 

Inconformado com a sentença, recorre apenas o Ministério Público, em representação da Fazenda Pública, concluindo a sua alegação:

1ª O Ministério Público exarou voto por escrito no sentido de não ser homologado o Plano de Insolvência uma vez que, no que respeita aos créditos fiscais, esse Plano viola normas de natureza imperativa, designadamente o disposto no art. 215º do CIRE, bem como, os arts. 30º, nº2, 36º, nº3 da LGT e os artigos 196º e 199º do CPPT.

 2ª Com efeito, embora o Plano de Insolvência homologado preveja o pagamento de 100% da dívida fiscal estabelece que tal pagamento será trimestral, em prestações iguais e sucessivas, com perdão de juros vincendos, vencendo-se a primeira dessas prestações em 31/12/10, após trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência, o que implica a perda de juros e dilação no pagamento.

3ª A questão que se coloca é a de saber se as mencionadas normas entendidas como imperativas podem ou não ser postergadas pelo espírito inerente ao Código de Insolvência e pelo vertido no Plano de Insolvência, bem como, pela aprovação maioritária por parte dos credores desse plano.

4ª Na perspectiva da Fazenda Pública a injuntividade das normas em apreço é inultrapassável em virtude do que não se pode abdicar da observância das mesmas no âmbito da regularização dos créditos fiscais.

5ª Desde logo, nos arts. 30º, nº2 e 36º, nº3 da LGT, bem como, nos arts. 85º, nº3, 196º e 199º do CPPT consubstancia-se o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, da proibição de moratória e o da regularização prestacional.

6ª O princípio da indisponibilidade acolhido no art. 30º, nº2 da LGT é derrogado pelo perdão de juros de mora vincendos fixado no Plano de Insolvência que não observa o princípio da equiparação das renúncias estabelecido no art. 3º, nº5 do DL. nº 73/99, de 16/03.

7ªAcresce, que o Plano de Insolvência ao não prever a substituição ou destituição do gerente responsável pela constituição das dívidas viola o estabelecido no art. 196º, nº3 do CPPT.

8ª O Plano de Insolvência não prevê a constituição de garantias idóneas e suficientes para a salvaguarda dos créditos tributários, tal como não assegurou a não redução de coimas e de custas, nem o princípio da estabilização do passivo com a demonstração do pagamento integral de todas as obrigações fiscais da empresa, após a declaração de insolvência.

9ª O regime da regularização dos créditos fiscais está sujeito ao princípio da legalidade, do qual decorrem os princípios da proibição de moratórias e da indisponibilidade, pelo que, tal regime não é susceptível de negociação ou flexibilização ou, em ultima análise de afastamento.

10ª Toda a regularização dos créditos fiscais deve ser feita com observância dos aludidos princípios sob pena de não ser válida por não ser legalmente admissível.

11ª Nem a Insolvente nem a Assembleia de Credores podem alterar o regime vigente para a regularização dos créditos fiscais e apresentar um que não observe as exigências legais.

12ª Tudo isto decorre do disposto no art. 103º, nº2 da Constituição da República Portuguesa que consagra o princípio da legalidade tributária.

13ª Não só as normas de determinação da matéria colectável são estabelecidas por lei, como também as normas respeitantes à liquidação e cobrança, desde que, determinem montantes de imposto a pagar.

14ª Só por acto legislativo podem ser alteradas as circunstâncias da regularização da dívida fiscal.

15ª Essas circunstâncias não podem ser alterados pela vontade das partes quanto aos elementos essenciais da relação tributária, quer quanto aos sujeitos, quer no que tange à prestação do imposto e às garantias (arts.30º, nº2 e 36º, nº2 da LGT).

16ª Por maioria de razão, não podem os credores, no âmbito da insolvência, estranhos a essa relação, alterar os respectivos elementos.

17ª O art. 192º, nº1 do CIRE apenas permite a derrogação das normas do CIRE para efeitos da regulação do pagamento dos créditos sobre a insolvência, mas não a derrogação de outras normas, de carácter imperativo.

18ª Por não observar os arts. 36º, nº2 e 30º, nº2, ambos da LGT nem os arts. 196º e 199º, ambos do CPPT está o Plano de Insolvência concretamente aprovado a violar normas que, por um lado, não constam do CIRE e, por outro lado, são de natureza imperativa.     

19 ª Dado que a homologação do concreto Plano de Insolvência viola normas de carácter imperativo, como são as normas em apreço a consequência da violação desse tipo de normas é a da nulidade, tal como se estabelece no art. 294º do CC.

20ª Assim, também a douta sentença homologatória, chancelando um plano nulo não pode deixar de ser nula, desde logo, no que respeita aos créditos da Fazenda Pública.

21ª Com efeito, o art. 215º do CIRE dispõe que o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência, para além do mais, no caso de violação de normas aplicáveis ao seu conteúdo, estando aqui em causa normas imperativas.

 22ª Tendo na douta sentença homologatória sido violados os arts. 36º, nº2 e 30º, nº2 da LGT e os arts. 196º e 199º, ambos do CPPT por via da não observância do disposto nos arts. 215º e 192º, nº1, ambos do CIRE deve a referida sentença ser substituída por outra que não homologue o Plano de insolvência e que, por conseguinte, não seja nula.

A insolvente contra-alegou, defendendo que a aprovação do plano de insolvência e a sua posterior homologação não são nulas por não existir qualquer violação de norma imperativa, conforme defende o Recorrente, antes o plano de insolvência obedece às normas do CIRE, termos em que deverá ser negado provimento ao recurso de apelação apresentado pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida.

Correram os vistos. Nada obsta ao conhecimento do objecto da apelação.

II - Fundamentos:

A 1ª instância julgou provado o seguinte:

1. Por sentença proferida a 24.02.2010, foi a A (…), Lda. declarada insolvente.

2. Pela devedora foi apresentado um Plano de Insolvência contendo, no que ora releva, as seguintes medidas:

2.1. ESTADO – Fazenda Pública: 103.627,27 euros.

Créditos Privilegiados: Plano de regularização.

Pagamento de 100%, o que corresponde a 103.627,27 euros, em 40 prestações trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no ultimo dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, com perdão de juros vincendos. Toma-se como data do primeiro pagamento 31 de Dezembro de 2010.

2.2. Instituto da Segurança Social: 419.160,13 euros.

Créditos Privilegiados: 96.803,52 euros.

Plano de regularização: pagamento da totalidade destes créditos, o que corresponde a 96.803,52 euros, em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo as primeiras 24 de metade do valor das restantes, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência com perdão de juros vincendos. Toma-se como data do primeiro pagamento 31 de Outubro de 2010.

Créditos Comuns: 322.356,61 euros.

Plano de regularização: pagamento de 50% do capital e juros em dívida, o que corresponde a 161.178,31 euros, em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo as primeiras 24 de metade do valor das restantes, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, com perdão de juros vincendos. Toma-se como data do primeiro pagamento 31 de Outubro de 2010.

2.3. Finalidade do Plano: expor as condições em que os credores e a administração da devedora definem a continuidade da empresa, sob a administração da devedora, e nomeadamente os termos em que serão feitos os reembolsos dos créditos sobre a insolvência.

2.4. A insolvente tem actualmente 27 trabalhadores.

2.5. O pagamento aos credores é feito por recurso a capitais próprios, obtidos por rendimentos gerados pela manutenção em actividade da empresa, reestruturando o seu passivo e prevenindo as rupturas de tesouraria.

3. Neste momento a A (…) Lda. tem em curso sete intervenções com o valor global de €1.200.000.

4. Foi publicada a junção do Plano de Insolvência aos autos e decorreu prazo para a apresentação do parecer a que alude o artigo 209.º do CIRE.

5. Os credores Instituto da Segurança Social e Fazenda Nacional votaram contra a aprovação do Plano de Insolvência, representando o seu voto 20,41% e 5,05% dos votos emitidos, respectivamente.

6. O Plano da Insolvência foi aprovado por 69,39% dos credores presentes e com votos emitidos.

7. A deliberação dos credores que aprovou o Plano de Insolvência foi publicada em Diário da República, 2.ª Série, n.º 149, de 03 de Agosto de 2010.

Tal como se descreveu no relatório e está patente nos autos, o Ministério Público votou contra o plano e requereu a sua não homologação, nos termos do disposto no artº 215º do CIRE, por entender que o mesmo viola normas imperativas aplicáveis ao seu conteúdo (cfr. fls. 663), nomeadamente as constantes dos artigos 30º, nº 2, 36º, nº 3, da Lei Geral Tributária e artigos 196º, nº 3, e 199º do CPPT.

O crédito do Estado – Fazenda Pública referido no ponto 2.1. é crédito fiscal. Tal é o que resulta inequivocamente da análise dos autos, bem como do teor da alegação e da contra-alegação, corroborado pelo facto de se tratar da Fazenda Pública (representada pelo Ministério Público).

Posto isto, curemos das questões objecto do recurso.

Nos autos, para tratamento jurídico do caso, foram convocadas, pelo tribunal recorrido ou pelos apelante e apelado, as seguintes disposições legais:

O art. 103º, nº2, da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da legalidade tributária: «Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».

Nos termos do estatuído no art. 165º, nº1 al. i), da CRP, constitui matéria da competência da Assembleia da República, com reserva relativa, a «criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas».

Estabelece-se no 30º, nº2, da LGT, aprovada pelo DL nº 398/98, de 17.12, que:

«O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.»

E prescreve o art. 36º, nº3:

«A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei

No artigo 196º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) consta que «as dívidas exigíveis em processo executivo poderão ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, no prazo da oposição, ao órgão da execução fiscal» e no nº 5 que «nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, pode ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos».

Nos termos do art. 196º, nºs 1, 4 e 5, do CPPT:

1 – As dívidas exigíveis em processo executivo poderão ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, no prazo de oposição, ao órgão da execução fiscal.

4 – O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.

5 – Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.

Nos termos do artº 180º do mesmo diploma:

«1 -Proferido o despacho judicial de prosseguimento da acção de recuperação da empresa ou declarada falência, serão sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que de novo vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração.

2 -O tribunal judicial competente avocará os processos de execução fiscal pendentes, os quais serão apensados ao processo de recuperação ou ao processo de falência, onde o Ministério Público reclamará o pagamento dos respectivos créditos pelos meios aí previstos, se não estiver constituído mandatário especial».

O artigo 192º, nº 1, do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) estabelece no seu nº 1 que o pagamento dos créditos sobre a insolvência «pode ser regulado num plano de insolvência em derrogação das normas do presente código» e no seu nº 2 que «o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados (…) na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título [IX] ou consentido pelos visados».

Dispõe o artigo 194.º do CIRE que: «1. O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. 2. O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso do voto favorável.»

O artigo 195º do CIRE versa sobre o conteúdo do plano de insolvência, assim:

1 - O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.

2 - O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:

a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;

b) A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade;

c) No caso de se prever a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do activo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respectivos valores;

d) O impacte expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência;

e) A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação.

O artigo 196º do CIRE, sobre as providências com incidência no passivo, estabelece que «1. O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor: a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula “salvo regresso de melhor fortuna”; b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor; c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos; d) A constituição de garantias; e) cessão de bens aos credores. 2. O plano de insolvência não pode afectar as garantias reais e os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos detidos pelo Banco Central Europeu, por bancos centrais de um Estado membro da União Europeia (…)».

Prescreve o artigo 197º do CIRE que: «Na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência: a) Os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afectados pelo plano; b) Os créditos subordinados consideram-se objecto de perdão total; c) O cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes».

O art. 215º do CIRE, epigrafado “Não homologação oficiosa”, dispõe que:

«O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza (…)». 

A questão essencial consiste em saber em que medida é que os créditos fis­cais não podem resultar afectados por um plano de insolvência (no qual se prevê o respectivo pagamento diferido, em 40 prestações trimestrais, além do perdão dos juros vincendos), que foi aprovado segundo o quorum legal mas apesar do voto contrário da administração fiscal, de modo que a homologação deva ser recusada.

Não consta do provado, nem temos elementos no processo que nos permita dar como provado, que os ditos créditos fiscais beneficiam de garantia real e/ou de privilégio creditório. E nem todos os créditos fiscais têm tais benefícios nos processos de insolvência, conforme art. 97º do CIRE.

A jurisprudência das Relações tem orientações diversificadas sobre questões idênticas à acima explicitada, mas a jurisprudência conhecida do Supremo Tribunal de Justiça vai, sem discrepância, no sentido da solução negativa para a pretensão da Fazenda Pública, devendo notar-se que os respectivos casos analisados não se subsumiam, ainda que configuradamente, ao disposto no art. 216º nº 1 do CIRE. Referimo-nos aos acórdãos do STJ de 13.01.2009 (relator Fonseca Ramos), de 4.6.2009 (relator Álvaro Rodrigues) e de 2.3.2010 (relator Silva Salazar), acessíveis em www.dgsi.pt.

A fundamentação dessa solução negativa centra-se essencialmente no seguinte:

- Na primazia da vontade dos credores, no âmbito do CIRE, conforme itens 5 e 6 do preâmbulo do diploma que o aprovou;

- No princípio da igualdade dos credores, como consta consagrado no art. 194º do CIRE;

- No disposto nos art. 195º e 196º do CIRE, sobre o conteúdo do plano;

- Num argumento «a contrario sensu» retirado do disposto no art. 197º al. a) e b) do CIRE: «a expressão ali contida, «na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência», atribui cariz supletivo ao preceito, o que implicita que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas als. a) e b), o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento de que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente»;

- Na circunstância de que nada nesse art. 197º fundamenta a imperiosidade do acordo de todos os afectados para que as garantias possam ser atingidas;

- Nos art. 202º e 203º que requerem o consentimento dos afectados pelo plano mas são omissos quanto à hipótese de se tratar de créditos fiscais;

- Na especialidade do regime do CIRE ou do respectivo processo que afasta a aplicação das normas tributárias invocadas e a actuação do princípio da legalidade fiscal.

O referido acórdão do STJ de 13.01.2009 acrescentou um fundamento: o de não ter sido pedida pela Fazenda Nacional (recorrente) a não homologação com base no art. 216º nº 1 do CIRE.

Para nós, os fundamentos essenciais da solução da questão encontram-se na especialidade do regime do CIRE (seja na vertente substantiva, seja na vertente processual), bem como no disposto nos artigos 215º (já citado) e 216º do CIRE, ambos respeitantes à homologação ou não do plano de insolvência. A regra da especialidade na aplicação do CIRE afasta a aplicabilidade da LGT ou do CPPT, independentemente da natureza imperativa das normas destes diplomas (imperatividade que assim irreleva aqui). Pelo art. 215º do CIRE temos em conta que no caso não estão em crise quaisquer normas procedimentais. Nem se mostra ofendida qualquer norma respeitante ao conteúdo do plano, que se rege sobretudo pelos art. 195º e 196º do CIRE. Consequentemente, não havia lugar à recusa oficiosa de homologação do plano, à qual se refere tal art. 215º.

Assim, a solução só poderia ser favorável ao credor apelante com base na aplicação do art. 216º do CIRE.

O art. 216º do CIRE, alterado pelo DL nº 282/2007 de 7.8, sob a epígrafe “Não homologação a solicitação dos interessados”, preceitua nos nºs 1 e 3:

1 — O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que: a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

(…) 3 - Cessa o disposto no nº 1 caso o oponente seja o devedor, um seu sócio, associado ou membro, ou um credor comum ou subordinado, se o plano de insolvência previr, cumulativamente:

a) A extinção integral dos créditos garantidos e privilegiados por conversão em capital da sociedade devedora ou de uma nova sociedade ou sociedades, na proporção dos respectivos valores nominais;

b) A extinção de todos os demais créditos por contrapartida da atribuição de opções de compra conformes com o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 203º relativamente à totalidade das acções assim emitidas;

c) A concessão ao devedor ou, se for o caso, aos respectivos sócios, associados ou membros, na proporção das respectivas participações, de opções de compra da totalidade das acções emitidas, contanto que o seu exercício determine a caducidade das opções atribuídas aos credores e pressuponha o pagamento do valor nominal dos créditos extintos por contrapartida da atribuição das opções caducadas.

Para o credor apelante beneficiar do disposto no nº 1 desse artigo, e sem prejuízo do disposto nos demais nºs, tinha o ónus de, cumulativamente:

1º- Comunicar a sua oposição ao plano antes de este ter sido considerado aprovado, como comunicou;

2º- Ter solicitado a recusa da homologação do plano, como solicitou;

3º- Com tal solicitação, ter demonstrado em termos plausíveis, em alternativa, que: a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

Este 3º componente do ónus do apelante não foi cumprido: ele não demonstrou, nem sequer esboçou a demonstração, de que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano. Só se tivesse cumprido o seu ónus, e na hipótese de não se verificar o restante previsto no nº 3 citado, poderia o apelante ver proceder a sua pretensão de não homologação.  

Não tendo cumprido o ónus que sobre si impendia, sofre a desvantagem correspondente (a não recusa da homologação por sua solicitação).

Inexiste qualquer ofensa às invocadas regras ou princípios da Constituição, nem ao princípio da legalidade, dado que o referido regime do CIRE aplica-se à generalidade dos credores (logo também à Fazenda Pública) e, por outro lado, a vontade manifestada pela maioria dos credores na aprovação do plano está coberta por lei -- o CIRE aprovado por Decreto-Lei autorizado (a matéria dos impostos cabe na reserva relativa da A.R.).

Em síntese final:

1. O regime do CIRE, que contém normas substantivas e normas adjectivas, aplica-se à generalidade dos credores, incluindo a Fazenda Pública como credora.

2. A vontade manifestada pela maioria dos credores na aprovação do plano está coberta por lei, o CIRE, aprovado por Decreto-Lei autorizado pela A.R.

3. O regime do CIRE é especial (seja na vertente substantiva, seja na vertente processual) em relação a outros regimes de direito público.

4. Atenta a especialidade do regime do CIRE, não se verificando a previsão dos artigos 215º e 216º, nº 1, do CIRE, não deve ser recusada a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores pela maioria legal, apesar de a credora Fazenda Pública ter votado contra e ter requerido a não homologação com base na ofensa de normas imperativas de direito fiscal.

III - Decisão:

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão impugnada.

Sem custas, atendendo à isenção do apelante (art. 4º nº 1 al. a) do RCP).


Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira