Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1483/09.9TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3 Nº3, 668 Nº1 B), 685-B, 712 CPC
Sumário: 1. A sentença só é nula por falta de fundamentação quando seja de todo omissa relativamente à fundamentação de facto ou de direito e ainda quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial.

2. No caso de impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de primeira instância, embora o Tribunal da Relação deva apreciar a matéria impugnada efectuando uma apreciação autónoma da prova produzida, no sentido de que o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes a apreciação e valoração da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto.

3. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento

4. A valoração diferenciada dos depoimentos prestados por duas testemunhas com vínculos familiares similares relativamente às partes nos autos, tendo cada um dos depoentes diferentes características e depoimentos bem distintos, não constitui violação do princípio da igualdade, mas antes uma criteriosa aplicação do princípio da livre apreciação das provas.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 07 de Dezembro de 2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e outros encargos com o processo, bem como de nomeação e pagamento da compensação de patrono, KF (…) instaurou acção declarativa sob forma sumária contra W S (…) pedindo que seja declarada a nulidade por falta de forma de três empréstimos, nos montantes de, respectivamente, mil euros, dois mil e quinhentos euros, dois mil e quinhentos euros e a condenação do réu a restituir à autora a quantia total de cinco mil setecentos e trinta e cinco euros acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.

            Em síntese, a autora alegou para fundamentar as suas pretensões que no decurso do ano de 2006, a pedido do réu, lhe emprestou por três vezes, a quantia global de seis mil euros, acordando com o réu que este realizaria trabalhos de construção civil por conta do débito para com a autora, trabalhos que não concluiu, tendo a autora após insistência junto do réu obtido apenas o pagamento do montante de oitocentos e cinquenta euros, no ano de 2009.

            Efectuada a citação do réu, este contestou impugnando a generalidade da factualidade articulada pela autora, negando que a ré lhe tenha emprestado qualquer importância e que esta acção apenas se justifica como reacção da autora ao termo da relação amorosa que manteve com ela até 21 de Maio de 2009, que as transferências bancárias que a autora efectuou a seu favor se destinaram a pagar parte dos serviços que prestou à autora e que as transferências bancárias que efectuou a favor da autora se destinaram a ajudar os seus progenitores a cumprirem um acordo de pagamento que tinham para com a autora, pedindo a condenação da autora como litigante de má fé em multa e indemnização a liquidar ulteriormente.

            Proferiu-se despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrar a base instrutória.

            Após isso, as partes ofereceram os seus meios de prova, requerendo ambas a gravação da audiência de discussão e julgamento.

            Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e, na data designada para responder à matéria vertida na base instrutória, o tribunal a quo decidiu determinar a ampliação da base instrutória, oferecendo as partes novos meios de prova, e efectuando-se nova sessão da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida decisão sobre a matéria incluída na base instrutória.

            Proferiu-se sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo-se a autora do pedido de condenação como litigante de má fé.

            Inconformada com a sentença a autora interpôs recurso contra a mesma terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

            Não foram oferecidas contra-alegações.

            Ordenou-se a baixa dos autos a fim de ser conhecida a nulidade da sentença arguida pela recorrente.

Suprida a omissão de conhecimento da nulidade, colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da nulidade da sentença por falta de fundamentação (artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil[1]);

2.2 Da impugnação das respostas aos artigos 1º, 2º, 2º-D, 4º e 5º da base instrutória;

2.3 Da repercussão da decisão da impugnação da decisão da matéria de facto, na subsistência ou não da decisão recorrida.

3. Fundamentos

3.1 Da nulidade da sentença por falta de fundamentação (artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil)

De acordo com o previsto no artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis[2], é recorrente a afirmação de que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

No entanto, no actual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório[3].

No caso em apreço, vêm discriminados os fundamentos de facto, bem como os fundamentos de direito que estribaram a decisão recorrida. A leitura da decisão recorrida não deixa subsistir qualquer dúvida quanto às razões determinantes da improcedência da acção, facto que foi bem perceptível para a recorrente pois que bem percebeu que sem alteração da base fáctica que serviu de base à decisão sob censura, a sua pretensão estava votada ao insucesso.

Assim, por tudo quanto precede é patente a improcedência da nulidade da sentença arguida pela recorrente.

3.2 Da impugnação das respostas aos artigos 1º, 2º, 2º-D, 4º e 5º da base instrutória

Enquanto o Supremo Tribunal de Justiça, apenas excepcionalmente conhece de matéria de facto (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), o Tribunal da Relação, é um tribunal de instância, em regra a segunda instância (artigo 210º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa) e, como tal, conhece de direito e de facto (artigo 712º do Código de Processo Civil).

            Assim, “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou” (artigo 712º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados” (artigo 712º, nº 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “A Relação pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1ª instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes” (artigo 712º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão” (artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

“Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade” (artigo 712º, nº 5, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

No recurso em que se vise a impugnação da matéria de facto, o recorrente deve “obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida” (artigo 685º-B, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

“No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto nº 2 do artigo 522º-C, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição” (artigo 685º-B, nº 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

O nº 2 do artigo 522º-C do Código de Processo Civil prescreve que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.”

Os ónus impostos ao recorrente que pretende sindicar o julgamento da matéria de facto visam combater uma indiscriminada e vaga manifestação contra o julgamento de facto, obrigando o recorrente a uma tomada de posição precisa quanto aos pontos de facto que entende mal julgados e ainda à indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, indicação que, no caso de gravação dos meios de prova, deve ser feita com referência ao assinalado na acta relativamente a cada depoimento[4]. Além disso, esses ónus processuais ajustam-se ao figurino paradigmático dos recursos no nosso sistema processual enquanto recursos de revisão ou de reponderação[5].

No entanto, afigura-se-nos que o ónus imposto ao recorrente que impugna a matéria de facto, no que tange a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, teve em vista essencialmente a situação em que a pretensão do recorrente se funda na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na decisão sob censura. De facto, essa indicação parece mais talhada para os casos em que o recorrente sustenta a existência de prova do contrário ou de contraprova daquela que na decisão sob censura foi relevada (veja-se o artigo 346º do Código Civil).

Porém, estes casos não esgotam o universo das situações passíveis de motivar inconformismo contra a decisão de facto.

Assim, o erro no julgamento da matéria de facto pode derivar simplesmente do meio de prova aduzido para fundamentar a decisão do ponto de facto impugnado não conduzir a tal resultado probatório. Por exemplo, é afirmado que se julga provado o facto X, com base no depoimento da testemunha Y, quando, analisado tal depoimento, se chega à conclusão de que efectivamente essa testemunha não produziu um depoimento que permita a prova de tal facto, não tendo feito qualquer referência directa ou indirecta ao facto dado como provado.

Outra situação que nos parece não ter sido directamente contemplada na alínea b) do nº 1, do artigo 685º-B, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos, é a da alegada falta de credibilidade de um meio de prova pessoal aduzido para fundamentar um ponto de facto objecto de impugnação pelo recorrente.

Nas situações antes enunciadas é manifesto que o ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da impugnada tem que ser adequadamente entendido, sob pena de conduzir a resultados absurdos.

Assim, na primeira situação enunciada, parece que o recorrente observará suficientemente o ónus processual previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 685º-B, do Código de Processo Civil, indicando o depoimento que afirma por si só insuficiente para conduzir ao resultado probatório que impugna, tal como quando estiver em causa a credibilidade de um certo meio de prova pessoal, bastará a remissão para os segmentos do meio de prova em causa que contenham a sua razão de ciência e a sua análise crítica ou, nos casos em que não seja indicada razão de ciência, a mera referência à ausência dessa indicação.

Afigura-se-nos bizantina a exigência de que a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada obrigue o recorrente à referência precisa das voltas da cassete ou dos minutos e segundos do CD em que é produzido o depoimento por ele invocado para confortar a decisão de facto que afirma ser a correcta.

É que, por um lado, a contagem dessas voltas, por razões diversas, pode variar de gravador para gravador, existindo mesmo gravadores que não indicam essas voltas. No caso da gravação digital em CD apenas pode ser indicada a duração total de cada depoimento[6], sendo que esse tipo de gravação permite a identificação individualizada de cada uma das gravações efectuadas. Por outro lado, a localização precisa dos segmentos probatórios que sustentam a pretensão do recorrente não dispensa o tribunal de recurso de analisar a generalidade da prova, pois que o Tribunal da Relação deverá oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto (artigo 712º, nº 2, parte final, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), podendo mesmo ter em conta outros elementos que não sejam indicados como fundamento da decisão de facto (artigo 515º do Código de Processo Civil), desta feita ao abrigo dos poderes de reapreciação oficiosa da matéria de facto, com base no previsto na primeira parte da alínea a), do nº 1, do artigo 712º do Código de Processo Civil, reapreciação que, quando necessária, deverá ter em atenção o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil[7].

Salvo melhor opinião, o que será absolutamente necessário para que o recurso relativo à matéria de facto possa ser apreciado é que os pontos do julgamento da matéria de facto postos em crise, bem como as razões da discordância do recorrente quanto ao julgamento da matéria de facto se compreendam, de forma inequívoca. Nalgumas situações, deverá convidar-se o recorrente a proceder aos necessários aperfeiçoamentos, desde que tal não implique a apresentação de novas alegações[8].

Importa ainda referir que no caso de impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de primeira instância, embora o Tribunal da Relação deva apreciar a matéria impugnada efectuando uma apreciação autónoma da prova produzida, no sentido de que o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes a apreciação e valoração da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento[9]. Se assim não fosse, a impugnação da matéria de facto não constituiria um verdadeiro recurso, como sucede no nosso direito constituído, mas antes um meio processual de provocar uma repetição, ainda que parcial, do julgamento da matéria de facto.

Expostas as considerações genéricas que antecedem sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, recordemos o teor dos artigos da base instrutória cujas respostas são impugnadas pela recorrente.

No artigo 1º da base instrutória perguntou-se “O réu comprometeu-se a devolver as importâncias referidas em A)[10]?”, pergunta que teve resposta negativa.

No artigo 2º da base instrutória perguntou-se “Em princípios de 2007 a autora solicitou ao réu a devolução daquelas importâncias?”, pergunta que teve resposta negativa.

No artigo 2º-D da base instrutória perguntou-se “Face à inércia da devolução das quantias mutuadas a autora continuou a insistir com o réu para que este lhe pagasse?”, pergunta que teve resposta negativa.

No artigo 4º da base instrutória perguntou-se “Tal transferência foi feita pelo réu por conta do compromisso de devolver as importâncias referidas em A)?”, pergunta que teve resposta negativa.

No artigo 5º da base instrutória perguntou-se “A transferência bancária referida em B)[11] foi feita pelo réu por conta do compromisso de devolver as importâncias referidas em A)?”, pergunta que teve resposta negativa.

  A recorrente firma a sua pretensão de respostas positivas aos artigos da base instrutória que impugnou no depoimento produzido por J (…) filho da autora, com quinze anos de idade na altura em que prestou depoimento (09 de Dezembro de 2010)[12]. A recorrente insurge-se contra a valoração deste depoimento efectuada pelo tribunal a quo, alegando que foi dada credibilidade ao depoimento prestado pelo pai do réu, sem que se tenha relevado negativamente o parentesco de tal depoente com o réu.

Apreciemos.

Os empréstimos alegadamente efectuados pela autora terão ocorrido no primeiro, segundo e terceiro trimestre do ano de 2006, momento em que J (…) teria onze ou doze anos. Uma criança com uma idade destas não terá grande apetência para se fixar em pormenores da vida financeira da sua progenitora, sendo certo, além disso que J (…) revelou grandes dificuldades em localizar temporalmente os factos que foi relatando, não se coibindo de assumir essa incapacidade.

Independentemente destas notas gerais passíveis de per si de retirar credibilidade ao depoimento prestado por J (…), certo é que nunca esta testemunha afirmou que alguma vez tenha presenciado qualquer acordo da mãe e do réu no sentido da primeira emprestar ao segundo quaisquer quantias e, pelo contrário, afirmou o contrário.

O acompanhamento da mãe na efectivação das transferências bancárias que a autora afirma constituírem empréstimos a favor do réu nenhum relevo tem porquanto esse acto bancário é compatível com uma multiplicidade de causas.

O episódio relatado por J (…) em que o réu teria confessado dever dinheiro à autora e lhe teria pedido para interceder junto da autora a fim desta se retirar da casa dos progenitores do réu, onde se achava para pressionar a efectivação do pagamento daquilo a que se achava com direito, não tem o relevo probatório que a recorrente lhe dá, pois é também compatível com a assunção por parte do réu da obrigação de solver parte ou a totalidade da dívida que a mãe do réu tinha para com a autora. Assim se pode entender a transferência bancária efectuada pelo réu a 26 de Maio de 2009, valoração que aliás foi efectuada no âmbito do processo nº 1245/09.3TBTMR, pois aí se deu como provado que essa operação bancária se destinou a amortizar a dívida que a mãe do réu tinha para com a autora (veja-se a certidão junta de folhas 81 a 90)[13]. Atente-se ainda que de acordo com a testemunha J (…), o episódio em que o réu teria confessado dever dinheiro à autora ocorreu de noite, num momento em que o depoente estava já com sono, circunstâncias que potenciam alguma confusão mental, retirando credibilidade ao depoimento prestado pelo filha da autora.

 Finalmente, a recorrente insurge-se contra a valoração que o tribunal a quo fez do depoimento do pai do réu, sustentando que a proximidade familiar que tem com o réu é similar àquela que o filho da autora tem para com esta, pelo que a aceitar-se a desvalorização do depoimento do filho da autora com base nesse relacionamento familiar, pelas mesmas razões, igual descrédito deveria merecer o depoimento do pai do réu. Afirma a recorrente que a valoração diferenciada destes depoimentos e adoptada pelo tribunal a quo constitui violação do princípio da igualdade vazado no artigo 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Se bem se atentar nesta argumentação da recorrente logo se vê que a mesma é de nulo préstimo para a sua tese, pois nunca será com base em dois depoimentos sem credibilidade que qualquer realidade fáctica se pode dar como provada. Assim, ainda que o depoimento do pai do réu houvesse de ser descredibilizado pelas mesmas razões por que o foi o depoimento do filho da autora, nunca isso poderia firmar qualquer convicção positiva do tribunal a quo relativamente à realidade dos factos sobre os quais incidiram esses dois depoimentos descredibilizados pelas aludidas relações familiares.

Porém, ouvindo a gravação dos dois depoimentos prestados em audiência pelo pai do réu verifica-se que os depoimentos prestados por este parecem bastante objectivos e serenos, sendo de realçar que o mesmo nunca afirmou a inexistência de qualquer empréstimo da autora ao réu, mas apenas que nunca ouviu falar de qualquer empréstimo da autora ao réu. Por outro lado, o pai do réu não tem o “handicap” da idade que o filho da autora tem, pois é um homem adulto, que revela alguma familiaridade no uso de meios informáticos, pois efectua todas as suas operações bancárias em “home banking”. Assim, estas razões bem justificam que maior credibilidade fosse conferida pelo tribunal a quo ao pai do réu em detrimento do filho da autora.

A maior credibilidade conferida ao depoimento prestado pelo progenitor do réu face ao depoimento prestado pelo filho da autora não se traduz numa qualquer violação do princípio da igualdade, pois estão face a face depoentes com características e depoimentos bem distintos[14], ainda que com vínculos familiares similares relativamente às partes nestes autos, decorrendo essa valoração diferenciada de tais provas pessoais de uma criteriosa utilização do princípio da livre apreciação das provas, assentando em fundamentos racionais que este tribunal de recurso também subscreve.

Assim, analisada criticamente a prova pessoal indicada pela recorrente, a restante prova pessoal produzida em audiência (depoimento de (…) com conhecimento indirecto dos factos e fundado apenas naquilo que a autora lhe contou e o depoimento de (…), sem qualquer conhecimento dos factos) e a prova documental junta aos autos de folhas 9 a 14 e 81 a 90, constata-se que não houve qualquer erro de apreciação e valoração da prova nas respostas negativas dadas aos artigos 1º, 2º, 2º-D, 4º e 5º da base instrutória, pelo que se devem manter as respostas impugnadas pela recorrente.

3.3 Fundamentos de facto enumerados na sentença sob censura e que se mantêm, por a impugnação dessa decisão pela recorrente ter sido indeferida e os elementos do processo não imporem decisão diversa, impassível de ser destruída por outras provas e ainda por não ter sido oferecido qualquer documento superveniente que por si só seja suficiente para destruir a prova em que a decisão recorrida assentou


3.3.1

A autora entregou ao réu nas datas a seguir mencionadas, e através de transferência bancária para a conta bancária n.º 277939048-066423821, as seguintes importâncias:

a) em 20.03.2006, a importância de 1.000,00 euros;

b) em 19.04.2006, a importância de 2.500 euros;

c) em 11.07.2006, a importância de 2.500 euros (alínea A dos factos assentes).


3.3.2

Em 26 de Maio de 2009 o Réu fez uma transferência bancária a favor da autora no valor de 800,00 euros (alínea B dos factos assentes).

3.3.3

Em Agosto de 2009, em data não concretamente apurada, o réu fez uma transferência bancária a favor da autora no valor de 50 euros (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

4. Fundamentos de direito

4.1 Da repercussão da decisão da impugnação da decisão da matéria de facto, na subsistência ou não da decisão recorrida

A recorrente estribou o sucesso da sua pretensão recursória exclusivamente no deferimento da alteração das respostas negativas aos artigos 1º, 2º, 2º-D, 4º, e 5º, todos da base instrutória, não aduzindo qualquer argumento estritamente jurídico para infirmar a decisão recorrida em face dos factos que lhe serviram de base.

Neste circunstancialismo, na falta de quaisquer outros fundamentos aduzidos para revogação da decisão sob censura e não se divisando quaisquer motivos para isso de conhecimento oficioso deste tribunal, dada a vinculação deste tribunal na sua esfera de cognição à delimitação objectiva resultante das conclusões do recurso, deve concluir-se, sem mais, pela total improcedência do recurso.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em indeferir a arguição de nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação e em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por KF (…), confirmando-se, consequentemente, a sentença proferida nestes autos a 05 de Outubro de 2011. Custas do recurso de apelação a cargo da recorrente, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com a tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


***

Carlos Gil ( Relator)

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Embora na sua última conclusão a recorrente aluda à nulidade prevista na alínea c), do nº 1, do artigo 668º do Código de Processo Civil, na antepenúltima conclusão bem como nas páginas 10 e 11 das alegações é patente que se pretende referir à falta de fundamentação da sentença recorrida prevista na alínea b), do nº 1, do artigo 668º do Código de Processo Civil, chegando a citar este normativo. Daí que se tenha desconsiderado a indicação normativa constante da alínea Z) das conclusões do recurso, relevando-se as outras indicações antes enunciadas.
[2] Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, reimpressão, Volume V, página 140.
[3] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Março de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Sérgio Poças, no processo nº 161/05.2TBPRD.P1.S1 e acessível no site da DGSI.
[4] Repare-se que a lei não indica em que segmento das alegações devem ser observados os referidos ónus. Na nossa perspectiva, essas especificações devem decorrer quer do corpo das alegações propriamente ditas, local onde de modo desenvolvido se exporão os pontos de facto impugnados bem como as razões dessa impugnação, quer das conclusões das alegações, segmento do recurso que de forma resumida, precisa e incisiva delimitará o objecto do recurso. Dada a função das conclusões das alegações, a indicação dos pontos de facto impugnados é o que aí se nos afigura imprescindível.
[5] Sobre esta classificação veja-se, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora 2009, Armindo Ribeiro Mendes, páginas 50 a 51.
[6] Ou de cada parte do depoimento. No caso de gravação digital, poderá ser indicado na acta a hora do início e do termo de cada depoimento, mas essa indicação não permitirá localizar segmentos desse depoimento, na medida em que, nesse caso, relativamente a cada depoimento ou segmento de depoimento gravado de modo autónomo, existe uma contagem independente com referência à duração de cada gravação efectuada e não uma contagem global referente à sessão da audiência de discussão e julgamento.
[7] A este propósito veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 346/2009, de 08 de Julho de 2009, relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes, acessível no site do Tribunal Constitucional.
[8] Neste sentido, que nos parece mais conforme com as exigências de prevalência do fundo sobre a forma visadas pela Reforma do Processo Civil operada pelo decreto-lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro e pelo decreto-lei nº 180/96, de 25 de Setembro, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09 de Outubro de 2008, relatado pela Sra. Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no processo nº 07B3011. Esta interpretação é também a que conduz a uma congruência dos poderes de actuação do tribunal em primeira e em segunda instância, evitando-se o contubérnio de um processo civil em primeira instância que dá prevalência ao fundo sobre a forma com um outro processo civil em segunda instância hiperformalista que se desinteressa pela finalidade última que corresponde à instrumentalidade do processo e que é a resolução substancial do litígio que opõe as partes. Nos recursos a que se aplique o regime introduzido pelo decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, como é o caso do recurso objecto destes autos, face à estatuição de imediata rejeição do recurso sobre a matéria de facto no caso de inobservância do disposto no nº 1, alínea b), do artigo 685º-B, do Código de Processo Civil (artigo 685º-B, nº 2, do Código de Processo Civil), este procedimento não será viável. Ainda assim, mesmo neste novo regime, cremos que nos casos de recurso que vise impugnação da matéria de facto, quando se detectem vícios nas conclusões do recurso, no que respeita essa impugnação, será viável o aperfeiçoamento das conclusões por força do disposto no artigo 685º-A, nº 3, do Código de Processo Civil. Além disso, é de questionar a conformidade constitucional da estatuição de imediata rejeição do recurso que vise a impugnação da matéria de facto nos termos previstos no nº 2, do artigo 685º-B, por poder configurar-se como um ónus excessivo e desproporcionado atentatório do direito fundamental de acesso ao direito (sobre esta questão veja-se com pertinência, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2010, 2ª edição Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 439 e 440).
[9] Sobre esta questão veja-se, António Santos Abrantes Geraldes in Julgar, nº 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76. Porém, bastará a detecção de um erro de julgamento, não tendo que se constatar um erro notório na apreciação e valoração da prova (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 241/05.4TTSNT.L1.S1, acessível no site da DGSI).
[10] Especificou-se na alínea A dos factos assentes: “A autora entregou ao réu nas datas a seguir mencionadas, e através de transferência bancária para a conta bancária nº 277939048-066423821, as seguintes importâncias:
                a) em 20.03.2006, a importância de 1.000,00 euros;
                b) em 19.04.2006, a importância de 2.500 euros;
                c) em 11.07.2006, a importância de 2.500 euros.
[11] Especificou-se na alínea B dos factos assentes: “Em 26 de Maio de 2009 o réu fez uma transferência bancária a favor da autora no valor de 800,00 euros.
[12] A Senhora Juíza a quo, quiçá pensando no disposto no artigo 91º, nº 6, alínea a), do Código de Processo Penal, não tomou juramento a esta testemunha. Embora a questão não seja isenta de dúvida, afigura-se-nos que este procedimento é destituído de base legal em sede de processo civil, já que a obrigatoriedade de prestação de juramento resulta da conjugação dos artigos 635º, nº 1 e 559º, ambos do Código de Processo Civil. A inimputabilidade penal do depoente, em razão da idade, não obsta a que uma sua eventual conduta desconforme com as exigências legais do estatuto de testemunha possa ser apreciada em sede de Lei Tutelar Educativa.
[13] Não se desconhece que essa valoração não forma caso julgado, pois que este instituto opera sobre a decisão (artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil). Quando muito, poderiam as provas produzidas no processo nº 1245/09.3TBTMR serem invocadas nestes autos por força do disposto no artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Civil. Porém, dada a forma sumaríssima do processo nº 1245/09.3TBTMR e o consequente não registo da prova aí produzida, essa invocação não teria viabilidade. Apesar de tudo, relativamente a este pagamento, não deixa de ser significativo que a autora nestes autos não tenha respondido no âmbito do processo nº 1245/09.3TBTMR à excepção peremptória de pagamento parcial nos termos previstos no artigo 3º, nº 4, do Código de Processo Civil e que pretenda nestes autos dar um sentido diferente a esse acto, quando não curou de o fazer naqueles outros autos.
[14] O princípio da igualdade obriga a que o igual seja igualmente tratado e o desigual seja desigualmente tratado.