Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
390/01.8TAVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
ESCOLHA DA PENA
PRISÃO
Data do Acordão: 04/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: 40º 50ºE 70º DO CP E ART. 3 º, N ºS 1 E 2 DO DEC. LEI N º 2/98 DE 3 DE JANEIRO.
Sumário: 1 Quando ao crime é aplicável alternativamente pena de multa ou prisão, a Constituição da República Portuguesa e a lei ordinária impõem que o tribunal dê preferência à pena de multa, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2.A pena de prisão só deve ser aplicada, nomeadamente na criminalidade menos grave, se o tribunal, no caso concreto, concluir, fundamentadamente, de acordo com os factos, que nenhuma das penas de substituição realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

3 A pena de suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada as finalidades da punição quando o agente apesar de já ter sido por diversas vezes condenado, nomeadamente em pena de suspensão da execução da pena de prisão, por conduzir veículo automóvel sem estar legalmente habilitado para tal, volta a praticar infracção de natureza semelhante.

4.Na execução da pena de prisão – aplicada pela prática de crime de condução ilegal de veículos automóveis – o programa de ressocialização do arguido deve ser orientado também para que aquele adquira competências de modo superar as suas dificuldades na prestação das provas legais necessárias à obtenção da licença de condução de veículos automóveis, dando-se assim conteúdo às finalidades da pena, maxime da pena de prisão.

Decisão Texto Integral: 21

I. RELATÓRIO.

No processo sumário n.º /09.8PTAVR.C1, J. foi condenado, por sentença de 18 de … de 2009, como autor de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º n.º 2 do Decreto lei n.º 2 /98 de 3 de Janeiro na pena de 20 meses de prisão, para além da taxa de justiça.

Não se conformando com a decisão, apenas no que respeita ao montante da pena aplicada, o arguido recorreu para este Tribunal.

Nas suas alegações, o recorrente embora requerendo a suspensão da execução da pena, conclui no entanto na sua motivação nos seguintes termos:

«1º A douta sentença recorrida ao condenar o recorrente na pena de prisão pelo período de vinte meses fez uma interpretação errónea e violou o disposto nos artigos 70º, 71º e 72º n.º 2 alínea c), todos do Código Penal.

2º Sendo a aplicação daquela pena desajustada e claramente excessiva, pelo que a mesma deverá ser revogada».

Na resposta ao recurso o Ministério Público pronunciou-se pelo não provimento do recurso, devendo a decisão proferida ser mantida na integra, sendo que o Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação, concordando com as alegações efectuadas admite, no entanto que a pena possa ser reduzida para 18 meses de prisão, não suspensa.

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II. FUNDAMENTAÇÂO

A questão que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação, embora com alguma debilidade argumentativa, permitem a conclusão de que é apenas o quantum da pena de prisão em que foi condenado bem como possibilidade de a mesma ser suspensa na sua execução que está em causa, sendo, por isso, este o objecto do recurso.

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Importa, num primeiro momento, atentar na decisão recorrida e na factualidade dada como provada pelo Tribunal, bem como na sua fundamentação apenas circunscrita à questão em discussão –a pena prisão aplicada.

« II - Fundamentação

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1 – No dia 27 … de 2009, pelas 17h 00m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ….-OG, pela rotunda do Euro 2004, em Aveiro;

2 – Nessa altura, foi interceptado por agentes da PSP de Aveiro, que ali se encontravam devidamente uniformizados em serviço de policiamento e de fiscalização ao trânsito;

3 – Tendo-se verificado que o arguido não possuía qualquer documento que o habilitasse a conduzir a viatura referida em 1;

4 – O arguido conhecia as características do veículo e do local por onde conduzia, bem sabendo que não estava legalmente habilitado a levar a cabo tal condução;

5 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei;

6 – O arguido tem os antecedentes criminais que constam de fls. 21 a 33, de onde ressaltam várias condenações pela prática do mesmo crime, nomeadamente:

a) - processo sumário nº /99 do Tribunal Judicial de Vagos, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de Esc.: 400$00, por factos praticados em 28/08/1999;

b) - processo nº /2000, do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, na pena de quatro meses de prisão suspensa por dois anos, por factos praticados em 08/09/2000, já declarada extinta;

c) - processo sumário nº /00, do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, na pena de 70 dias multa à taxa diária de Esc.: 1.000$00, por factos praticados em 31/01/2000, já declarada extinta por prescrição;

d) - processo comum singular nº/01.7PTAVR, do 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, na pena de 10 meses de prisão, por factos praticados em 11/02/2001, pela essa extinta pelo seu cumprimento;

e) - processo comum singular nº /01.2GDAND, do Tribunal Judicial de Anadia, na pena única de 3 anos e dois meses de prisão (crime de condução sem habilitação legal, falsidade de depoimento e desobediência);

f) - processo comum singular nº/01.0GTAVR, do 3º juízo do Tribunal Judicial de Águeda, na pena de 13 meses de prisão, por factos praticados em 29/08/2001 (crime de desobediência e crime do condução sem habilitação legal);

g) - processo abreviado nº ….9GBILH, do Tribunal Judicial de Ílhavo, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por dois anos e seis meses, por factos praticados em 28/08/2003;

h) - processo abreviado nº ….4GBILH, do Tribunal Judicial de Ílhavo, na pena de 3 meses de prisão, por factos praticados em 04/09/2003;

i) - processo comum singular nº ….7PTAVR, do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, na pena de 11 meses de prisão, por factos praticados em 16/10/2003, pela prática de um crime de desobediência em concurso real com um crime do condução sem habilitação legal), pena que foi declarada extinta pelo seu cumprimento;

j) - no processo abreviado nº...9GBILH do 2º juízo do Tribunal Judicial de Ílhavo, foi efectuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos processos referidos em f), e), i), h) e 4/03.1GAAGD, do 2º juízo de Águeda, tendo o arguido sido condenado na pena única de 6 meses de prisão, por decisão de 29/10/2007;

l) - no processo sumário nº ….0GTAVR, do 1º juízo criminal do Tribunal de Judicial de Aveiro, na pena de 18 meses de prisão suspensa pelo mesmo período, por factos praticados em 10/08/2008;

m) no processo sumário nº….0GAALB, do juízo de instância criminal de Albergaria-a-Velha, na pena 48 períodos de prisão, por factos praticados em 15/06/2009;

7 - Em 12 d… de 2008 foi concedida a liberdade condicional ao arguido, pelo prazo de duração igual ao tempo de prisão que lhe falta cumprir, a contar da data da libertação e até 19/11/2009;

8 – Tem pendentes, neste Tribunal e juízo, dois processos pela prática do mesmo crime, por factos ocorridos 8 de Maio e 4 de Outubro do corrente ano;

9 – Recebe o rendimento social de inserção no montante de €: 500,00;

10 – A sua esposa é doméstica;

11 – Tem 3 filhos menores;

12 – Paga de renda €: 100,00;

13 – Encontra-se a frequentar o 2º ano de escolaridade;

14 – Confessou de forma integral e sem reservas os factos de que vinha acusado.

III - Motivação

O tribunal assentou a sua convicção na confissão livre e espontânea, integral e sem reservas do arguido dos factos de que vinha acusada, bem como nas suas declarações quanto à sua situação sócio-económica e no certificado de registo criminal de fls. 21 a 33.

IV- Subsunção dos factos ao direito

Apurados os factos, importa, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico penal.

Para que o agente possa ser jurídico penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo.

O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos de um tipo legal de crime.

O arguido vem acusado da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. no art. 3 º, n ºs 1 e 2 do Dec. Lei n º 2/98 de 3 de Janeiro.

Dispõem as referidas normas que se o agente conduzir na via pública motociclo ou automóvel sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Resultou provado que no dia 27 de… de 2009, pelas 17h 00m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-OG, pela rotunda do Euro 2004, em Aveiro, sem possuir qualquer documento que o habilitasse a conduzir a referida viatura.

Também se provou que o arguido conhecia as características do veículo e do local por onde conduzia, bem sabendo que não estava legalmente habilitado a levar a cabo tal condução. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei

Desta forma, não restam dúvidas que o arguido cometeu o crime de que vem acusado, p.p. pelo art. 3 º, n ºs 1 e 2 do DL n º 2/98, em conjugação com o disposto nos arts. 121 º e 122 º do Código da Estrada.
Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

V - Da Medida Concreta da Pena

Importa, agora, determinar a medida da pena, tendo em conta que o crime imputado ao arguido é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias (tendo como limite mínimo 10 dias, nos termos do artigo 47º, nº 1 do Código Penal).

O artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, manda graduar a medida da pena em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção criminal.

Toda a pena tem como suporte axiológico - normativo uma culpa concreta. Isto significa que não há pena sem culpa e que a culpa determina a medida da pena, ou seja, a culpa é o seu pressuposto de validade e o seu limite máximo.

Nas palavras de Figueiredo Dias, in «Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão», Lisboa, Ministério da Justiça, 1993, pág. 78, «A culpa () é o ponto de referência que o julgador não pode ultrapassar; até esse limite jogam então as considerações relativas à prevenção geral e especial».

Para se determinar a medida da pena é necessário, assim, atender-se as exigências de prevenção geral e especial.

A prevenção geral positiva traduz-se na confiança que a sociedade precisa de manter na vigência da norma, é o mínimo exigível da medida da pena.

A prevenção especial traduz-se, primordialmente, na função de ressocialização. Esta é o objectivo determinante da pena segundo a política criminal vigente.

O artigo 71º, nº 2 do Código Penal enumera, exemplificadamente, algumas das circunstâncias que o julgador deve ter em conta para a determinação da pena a aplicar em concreto ao agente.

Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado nem tendo sido já atendidas para efeitos de qualificação, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção.

No que respeita aos factores concretos relativos à execução do facto importa valorar, em sentido agravante, o carácter intenso do dolo enquanto elemento subjectivo da ilicitude (o dolo-do-facto ou dolo-do-tipo), que se apresentou na sua modalidade directa, a indiciar uma culpa dolosa igualmente intensa e, como tal, passível de especial reprovação.

São consideráveis as exigências de prevenção geral, tendo em conta a frequência com que ocorrem este tipo de ilícitos.

Por outro lado, o arguido possui antecedentes criminais, tendo já sofrido inúmeras condenações pela prática do mesmo crime, algumas em pena de prisão efectiva.

Entretanto, encontram-se pendentes neste juízo dois processos pela prática, no corrente ano, do mesmo crime, onde o arguido foi condenado em prisão efectiva.

Daqui há que necessariamente concluir que o arguido tem dificuldade em manter uma conduta respeitadora e fiel ao Direito e pouco ou nenhum respeito pela comunidade que em si acreditou ao lhe ter concedido anteriores oportunidades de ressocialização. O arguido não faz qualquer esforço em reintegrar-se, não se intimidando com as condenações que já sofreu, algumas em penas efectivas de prisão.

Desta forma entendo como justo e adequado aplicar-lhe a pena de vinte meses de prisão.

VI - A suspensão da pena privativa da liberdade

Nos termos do art. 50º, nº1 do Código Penal, verificada que seja a possibilidade de se concluir por um juízo de prognose favorável ao arguido, no sentido de que, atenta a sua personalidade, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o tribunal pode suspender a execução da pena de prisão que não exceda os 5 anos.

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer “correcção” ou “melhora” – vd. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, pág. 343.

Ora, atendendo à conduta anterior aos factos em causa nos autos, nomeadamente as condenações em pena suspensa e em pena efectiva que o arguido já sofreu, não é possível ao Tribunal formular qualquer juízo de prognose favorável, havendo necessariamente que concluir que o cumprimento efectivo e sem mais da pena de prisão supra determinada impõe-se em função de tais circunstâncias, não bastando a simples censura do facto e a ameaça da pena para afastar o arguido de comportamento ilícitos.

VI- Decisão

Em face do exposto e sem outras considerações o Tribunal decide:
- Condenar o arguido J, com os demais sinais dos autos, como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. nos termos do artigo 3º, n º 2 do Decreto Lei n º 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 20 (vinte) meses de prisão.

Mais se condena o arguido no pagamento de ½ de taxa de justiça».

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Está em causa nos presentes autos a questão do quantum da pena de prisão concreta aplicada pelo Tribunal de primeira instância e a possibilidade de a mesma ser suspensa na sua execução.

A operação jurídica de determinação da medida concreta da pena assume-se como o cuore da actividade jurisdicional de um qualquer Tribunal. É aqui, na fixação concreta da medida de uma pena estabelecida no âmbito de uma moldura abstracta que se evidencia a arte e o engenho do juiz, obedecendo no entanto a um rigoroso cumprimento da Lei, seja das normas estabelecidas no Código Penal (artigos 40º, 70º e 71º) seja dos princípios constitucionais que se evidenciam como orientadores primários da interpretação jurídico penal.

Como se sabe é na culpa do agente e nas razões preventivas (gerais e especiais) que se encontram as guias fundamentais para fixar a pena devida em determinado caso, sendo que o Código Penal estabelece um limite inequívoco e inultrapassável onde tem que assentar a medida da pena: a culpa do agente, nomeadamente a sua medida. É este o limite que nenhum razão de prevenção pode ultrapassar, de acordo com a imposição normativa estabelecida no artigo 40º n.º 2 do Código Penal. Não há pena sem culpa nem a pena pode, na sua dimensão concreta, ultrapassar a medida da culpa («limite inultrapassável», refere Gonçalves da Costa in «A Parte Geral no Projecto de Reforma do Código Penal Português», Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 3, Abril/Dezembro 1993, p. 330 e 333 e no mesmo sentido Margarida Silva Pereira in «Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias sobre a Proposta de Lei 92/VI» – que reviu o Código Penal, in Sub Judice, nº 11, p.11.)

É certo que nas finalidades da pena surge inequivocamente a necessidade de proteger bens jurídicos como elemento fundamental. O que impõe que na fixação da pena concreta se leve em consideração a dimensão da prevenção, geral e especial, como aliás decorre do artigo 71º n.º 1.

Prevenção que, no entanto, como vem sendo absolutamente assumido pela doutrina e jurisprudência de uma forma inequívoca, respeitando aliás a imposição legislativa, se assume como uma prevenção geral de integração.

E se este é o quadro geral sobre o qual assenta a referida «arte e engenho» de aplicar concretamente a pena (todas as penas, diga-se), no que respeita à pena de prisão dever referir-se que é inequívoca a assumpção legislativa (com suporte constitucional) de que a pena de prisão se assume como ultima ratio no leque de penas aplicáveis.

Ora esta dimensão de ultima ratio tem implicações em todo o sistema penal tanto na escolha da pena, como na medida concreta, nomeadamente quando estão em causa a determinação do quantum da pena de prisão já escolhida como adequada, em função da culpa, ao agente. É essa imposição que decorre do artigo 70º.

Como refere Anabela Rodrigues, «a prisão – se cumprido o programa de alargamento de margens legais no âmbito das quais se pode recorrer a penas de substituição e se a tipologia destas penas, por sua vez, também for suficientemente ampa – deve ver a sua aplicação reduzida aos casos de cometimento de crimes mais graves, em que uma reacção através de outras formas de pena não poderia assegurar o efeito essencial de prevenção geral desejado», cf. «Sistema punitivo português. Principais alterações ao Código Penal Revisto», Sub Júdice, nº 11 p. 32.

É claro, como bem se refere na posição referida, que a aplicação deste ultimo princípio deve depender do leque variado de penas alternativas à prisão, disponíveis perante o aplicador.

Importa sublinhar a afirmação de que a pena de prisão só deve ser aplicada, nomeadamente na criminalidade menos grave, se todas as outras penas disponíveis estiverem, no caso concreto, dir-se-ia, «esgotadas». É esse o sentido da lei e sobre ele os Tribunais devem cumpri-lo.

As considerações tecidas assumem, no caso concreto, uma especial acutilância.

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Como se vê da factualidade está em causa o cometimento de um crime de condução sem habilitação legal por parte de um cidadão que por idêntico crime já foi julgado e condenado 11 vezes, desde 1999, em penas tão variadas como a multa (em 1999 e 2000), a pena de prisão suspensa (2000, 2003, 2008), a prisão em dias livres (2009), a prisão efectiva (2001, 2003, 2007).

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Tal crime é punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

Desde já se constata que o Tribunal de primeira instância, no processo de operação de determinação da escolha e medida da pena, não fez qualquer opção justificativa fundamentada pela pena de prisão que veio a aplicar, em detrimento da pena de multa que no caso é uma pena alternativa.

E, diga-se desde já, deveria tê-lo feito porque a lei a isso o impõe.

A opção pela pena de multa ou pela pena prisão não é nem pode ser uma escolha arbitrária do juiz.

A Lei (e a Constituição da República Portuguesa) impõem que o Tribunal, quando ao crime é aplicável alternativamente pena de multa ou prisão, dê preferência à pena de multa «sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Ora em toda a fundamentação da sentença elaborada na primeira instância o Tribunal omitiu esse princípio e de imediato optou sem justificação pela pena de prisão, em detrimento da pena de multa, não justificando como se lhe impõe essa opção.

Face à matéria de facto apurada importa por isso e antes de mais decidir se deve ou não aplicar-se ao arguido uma pena não privativa de liberdade, nomeadamente a pena de multa estabelecida como alternativa ao crime cometido.

O cidadão J, onze anos passados desde que foi pela primeira vez condenado por um crime de condução sem habilitação legal, onze vezes foi julgado e condenado pelo mesmo crime em várias penas diferenciadas da prisão. E a situação mantém-se. Continua recorrentemente a cometer o mesmo crime.

Assumindo este Tribunal os princípios de ultima ratio que devem condicionar a opção pela pena de prisão, nos termos em que foram referidos, o que é certo é que em função da factualidade dada como provada não se vislumbra que a pena de multa possa realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

As várias penas aplicadas ao longo dos anos ao arguido, que nenhuma eficácia tiveram quanto às exigências que estão na base das finalidades da punição só podem levar o Tribunal a decidir pela aplicação da pena de prisão, mesmo reconhecendo que a sua ratio de aplicação não é em primeira linha o tipo de criminalidade que está em causa nos autos.

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Efectuada esta opção importa num segundo momento apreciar qual a medida que a mesma pena deve assumir, face à factualidade provada, em função da moldura legal estabelecida – 1 mês a dois anos de prisão.

Certamente que o cidadão J, casado, desempregado, com três filhos e cujas habilitações literárias estão restritas ao 2º ano de escolaridade, pelo menos desde 1999 (altura em que foi condenado pela primeira vez) já teve variadíssimas oportunidades de interiorizar o carácter ilícito da sua conduta e nesse sentido ultrapassar o obstáculo que o tem levado a sofrer tais penas: em linguagem perceptível, tirar a carta de condução!

Dos factos que constam no processo nada se retira quanto a essa vontade ou eventual impossibilidade (embora se pressinta que alguns problemas relacionados com a sua débil escolaridade possam ser «a causa das coisas»).

Poder-se-ia ter tido o cuidado de apurar mais alguma circunstância factual que permitisse entender afinal o que é que se passa para isso ter acontecido. «Escavar mais fundo», porque julgar é compreender, seria uma perspectiva que o Tribunal poderia fazer, na fase de audiência, tendo em conta o disposto no artigo 340º do CPP.

Não se tendo optado por isso a simples constatação das onze condenações por crimes idênticos, não deixa de manifestar a evidência de que o grau de culpa do arguido é forte como também é evidente que as razões de prevenção, geral e especial que se verificam no caso são manifestamente elevadas.

Não se omite que o crime em causa tem uma «coloração» ílicta mais ténue em relação a outras condutas criminais na área rodoviária (como a condução perigosa de veículo rodoviário ou a condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes, p.p. pelos artigos 291º e 292º do CP). Recorde-se que tempos houve (não muito afastados) e que esta conduta constituía uma contraordenação. Também não se omite que a pena de prisão, como aliás foi referido, deve ser utilizada em primeira linha para crimes graves.

Como factualidade provada que permite a este Tribunal, face ao disposto no artigo 71º do CP, concretizar a medida da pena, temos que o arguido confessou integralmente e sem reservas a sua conduta, encontra-se a frequentar o 2º ano de escolaridade (o que faz presumir alguns défices cognitivos em função da sua idade – tem 34 anos), é casado e tem três filhos menores, encontrando-se a receber o rendimento social de inserção. Além disso paga €100,00 de renda mensal.

É, assim, com base nesta factualidade, que na sua fundamentação da pena concreta o tribunal deveria ter salientado e não fez, limitando-se a salientar as suas anteriores condenações para concluir que «o arguido tem dificuldade em manter uma conduta respeitadora e fiel ao Direito e pouco ou nenhum respeito pela comunidade que em si acreditou ao lhe ter concedido anteriores oportunidades de ressocialização», que importa atentar para se fixar o quantum da pena, que repete-se não pode ultrapassar o limite da culpa.

Ora não há dúvida que a culpa do arguido é objectivamente intensa em relação ao tipo de crime em causa (e apenas quanto a este crime). No entanto as restantes circunstâncias apuradas evidenciam um cidadão com uma situação social frágil – três filhos vivendo do rendimento social e com baixíssima capacidade cognitiva. Circunstâncias que não podem ser omitidas na apreciação do limite máximo da culpa.

Assim sendo e com base nestes fundamentos entende este Tribunal que a pena concreta não pode ultrapassar os quatorze (14) meses de prisão.

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Da suspensão da pena de prisão

«O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» - artigo 50º n.º 1 do CP.

A suspensão da execução da pena de prisão, como pena de substituição, não deixa de estar vinculada às finalidades que o artigo 40º do Código Penal estabelece como critério fundamental na aplicação das penas.

O que está em causa, na opção de aplicar uma pena de substituição é a protecção de bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (n.º 1 do art. 40º C.P.), sendo que a opção sobre a suspensão da execução da pena privativa de liberdade radica na concretização de um juízo de prognose efectuado no sentido de apurar se face ao circunstancialismo provado relativo à personalidade do arguido é possível evidenciar-se que as finalidades subjacentes à aplicação da pena não necessitam da efectivação da pena de prisão.

Relativamente ao juízo de prognose que importa efectuar – e é só esse que neste momento importa fazer – há que ponderar toda a factualidade que envolve: (i) a personalidade do arguido; (ii) as condições da sua vida; (iii) a sua conduta anterior e posterior ao crime; (iv) as circunstâncias do crime.

Ora no caso em apreço, o passado do arguido, onze vezes condenado pelo mesmo crime noutros tantos anos em variadíssimas penas, entre elas a pena de suspensão da execução da pena de prisão é objectivamente indicador de que não pode fazer-se um juízo positivo de prognose em relação à sua conduta futura no sentido de não voltar a cometer o mesmo crime.

Os itens referentes à sua condição de vida e às circunstâncias do crime não assumem uma relevância significativa que anule a prognose negativa decorrente do seu passado. Por outras palavras. É impossível confiar numa não reincidência, num caso destes.

Daí que não faça sentido, no caso suspender a pena de prisão do arguido.

Questão diferente é a nível da execução da pena de prisão – e será, no caso muito importante salientar isto – os serviços penitenciários providenciarem pela criação de condições de ressocialização do arguido em função dos seus défices cognitivos, de modo a que sejam superados para conseguir superar o problema – ter condições para realizar a prova que lhe permita aceder à licença de condução. E isso passará, certamente por uma aposta na sua formação educativa intensa e adequada ao que se pretende evitar – a prática de novos crimes de condução sem habilitação legal.

Ou seja, será importante que a execução da pena de prisão que agora se aplica seja orientada no sentido de o programa de ressocialização do arguido ser orientado para suprir as suas dificuldades e permitir-lhe conseguir as condições para «tirar a carta de condução» dando assim conteúdo às finalidades da pena, máxime da pena de prisão.

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III. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, alterando a decisão recorrida quanto à pena aplicada que se fixa em quatorze (14) meses de prisão efectiva, devendo, na execução da pena de prisão levar-se em consideração o que é dito na fundamentação.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 3 Ucs.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 14 de Abril de 2010

Mouraz Lopes


Félix de Almeida