Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
257/11.1GAANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA
VIOLAÇÃO GROSSEIRA
REGIME
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 291º Nº 1 B) CP
Sumário: 1.- O crime de condução perigosa de veículo é um crime de perigo concreto, em que a atuação do agente cria perigo efetivo para a vida ou integridade física;

2.- O bem jurídico protegido pelo tipo de crime é a segurança da circulação, colocando ao mesmo tempo em perigo a vida ou a integridade física ou ainda bens patrimoniais de valor elevado, sendo preponderante a tutela de bens jurídicos individuais;

3.- O crime pode ser integrado por dois tipos de condutas suscetíveis de provocar insegurança rodoviária:

- através da condução com falta de condições de segurança, por diminuição das capacidades do condutor, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo – al. a) do preceito; ou

- através da violação grosseira das regras de circulação rodoviária;

4.- Integra a violação grosseira das regras da circulação rodoviária, o condutor que conduzindo o veículo ligeiro de passageiros invade a faixa contrária, numa curva, transpondo a linha longitudinal o que fazia com a presença de uma concentração de 7 ng/ml de metabolito da marijuana no sangue, daí resultando causalmente acidente com ferimentos na condutora e passageiro do veículo que circulava em sentido contrário.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença na qual o tribunal de comarca decidiu:

- Condenar o arguido A... como autor material, na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, nºs 1, al. b) e 4, do Código Penal, na pena de 65 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco) euros, no montante total de €325,00 (trezentos e vinte e cinco euros), absolvendo-se o mesmo quando à imputação da al. a) do nº 1 do citado artigo;

– Condenar o arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 3 (três) meses.

*

Inconformado com tal sentença, dela recorre o arguido.

Na motivação do recurso são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:

A) Na situação “sub judice” não se verifica o preenchimento do tipo legal do crime previsto no artigo 291º, n.º1, al. b) e n.º4 do C. Penal.

B) Para tal crime se verificar necessário se torna que o comportamento do agente e a violação das regras estradais não seja a “normal”,

C - Mas que se traduza, antes, num comportamento grosseiro dessas mesmas regras e que se consubstancie numa actuação temerária, ousada e perigosa.

D - Ora, o comportamento do recorrente não foi qualificado como grosseiro, ostensivo ou temerário,

E - Sendo certo que foi qualificado como descuidado e desatento;

F - Tal qualificação de descuido e desatenção tem de ser interpretada como a denominada violação "normal" das regras estradais e não como sendo ostensiva, grosseira ou temerária,

G - Sendo que tal premissa resulta mais inabalável se considerarmos o depoimento da testemunha B... que descreve a condução do recorrente como normal e dentro de uma velocidade normal (cfr. fls. 7 da douta sentença 1 ° e 2° parágrafos).

H - O facto de o arguido apresentar substância psicotrópica no corpo, de "per si", não permite que se considere preenchido o tipo de crime "sub judice ".

I - Sendo certo que a MSs. Juiz "a quo", a fls. 15 da douta sentença, no último parágrafo, taxativa e indubitavelmente, afirma que não foi da presença da substância psicotrópica no corpo que resultou a criação de perigo.

J - Portanto, tem de se considerar, face à matéria provada, que o comportamento do recorrente se traduziu numa violação "normal" e não numa violação grosseira das regras estradais.

K - Assim, a Mss. Juiz devia ter absolvido o arguido da prática do crime em apreço.

L - Porque assim não decidiu violou o disposto no artigo 291º nº1 al. b) e nº 4 do C. Penal.

Nos termos expostos e nos mais de Direito aplicáveis, deve:

A - Dar-se provimento ao presente recurso e consequentemente,

R - Revogar-se a douta sentença do Tribunal "a quo",

C - Absolvendo-se o arguido da prática do crime,

D - Com todas as consequências legais.

*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido rebatendo, ponto por ponto, a motivação do recurso para concluir que deve ser mantida, na íntegra, a decisão recorrida.

No visto a que se reporta o disposto no art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual corrobora o entendimento da resposta apresentada em 1ª instância.

Corridos vistos, após julgamento, em conferência, cumpre decidir.

II.

1. Vistas as conclusões, que definem o objecto do recurso, está em causa o preenchimento, pela matéria provada, dos elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime pelo qual vem condenado - p. p. no artigo 291º nº1 al. b) e nº 4 do C. Penal.

Para proceder à apreciação das questões suscitadas, vejamos a matéria de facto provada.

2. A Matéria de Facto Provada é a seguinte:

a) - No dia 24 de Setembro de 2011, pelas 13h40, o arguido circulava no IC8, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) IS, no sentido de marcha Ansião – Avelar, a uma velocidade não concretamente apurada;

b) - No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, C... circulava em tal estrada, conduzindo o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (...)VI, no sentido de marcha Avelar – Ansião, a uma velocidade não concretamente apurada, transportando consigo o seu filho, D..., o qual seguia no banco ao lado do banco do condutor;

c) - Ao chegar ao km 67,100 daquela estrada, na zona de Chão de Couce – Ansião, local onde existe uma curva para a direita, tendo em conta o sentido de marcha em que seguia o arguido, este invadiu a hemifaixa de rodagem contrária àquela em que seguia e embateu com a frente do seu veículo na frente do veículo de matrícula (...)VI, tendo ambos ficado imobilizados na hemifaixa de rodagem em que seguia C... (sentido de marcha Avelar – Ansião), designadamente, junto à berma;

d) - O IC8 tem no local uma curva, apresentando a faixa de rodagem, que é de duplo sentido, um largura de 7,20 metros, estando as vias separadas por linha longitudinal contínua;

e) - Na altura em que se deu o embate o piso estava seco;

f) - Em virtude de tal embate sofreu C... as lesões melhor descritas no exame médico-legal junto a fls 50 a 52 e aditamento de fls 69, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que lhe determinaram um período de doença de 104 (cento e quatro) dias, todos com afectação da capacidade para o trabalho profissional e 60 (sessenta) dos quais com afectação da capacidade para o trabalho geral;

g) - Mais resultou para C... consequências permanentes, traduzindo-se as mesmas em cervicalgia residual;

h) - Também em virtude de tal embate sofreu D... as lesões melhor descritas no exame médico-legal junto a fls 45 a 47 e aditamento de fls. 69, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que lhe determinaram um período de doença de 14 (catorze) dias, todos com afectação da capacidade para o trabalho profissional e 7 (sete) dos quais com afectação da capacidade para o trabalho geral;

i) - Mais resultou para D... consequências permanentes, traduzindo-se as mesmas em lombalgia residual.

j) - Ao actuar da forma descrita, o arguido procedeu de forma livre, conduzindo de forma descuidada e desatenta, ao invadir a hemifaixa de rodagem àquela em que seguia, o que originou o mencionado embate no veículo de matrícula (...)VI, agindo com falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as mais elementares precauções de segurança exigidas no exercício da condução, e que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, dando, assim, causa ao acidente, de que resultaram as referidas lesões em C... e D...;

k) - Nas supra-referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conduziu o aludido veículo de matrícula (...) IS com 7 ng/ml de THC-COOH: Ácido 11-nordelta-9-tetrahidrocanabióico (metabolito da marijuana) no sangue – conforme relatório do IML – Serviço de Toxicologia Forense, junto a fls 19.

L) - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de conduzir tal veículo, bem sabendo que o não podia fazer após o consumo de estupefacientes;

M) - O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;

Mais se provou em sede de julgamento que:

O) – O arguido é estudante do ensino superior;

P) – É pessoa integrada na família, socialmente e que se preocupa com os outros;

Q) – Aquando do embate referido, demonstrou preocupação com a condutora e ocupante da outra viatura;

*

3. Como equacionado supra, sustenta o recorrente que a matéria de facto provada não preenche os elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime pelo qual vem condenado - p. p. no artigo 291º nº1 al. b) e nº 4 do C. Penal.

Como fundamento da sua pretensão alega, em suma, que “o comportamento do recorrente não foi qualificado como grosseiro, ostensivo ou temerário (…) foi qualificado como descuidado e desatento; Tal qualificação de descuido e desatenção tem de ser interpretada como a denominada violação "normal" das regras estradais”.

A condução de veículos automóveis na via pública é, por si, uma actividade intrinsecamente perigosa - pela complexidade mecânica dos veículos, velocidades que podem atingir, imprevisibilidade dos obstáculos que podem surgir na via, falta de perícia ou erro dos condutores. Sendo a perigosidade exponenciada pela conjugação dos três factores: condutor, veículo e estrada.

Apesar de perigosa, constitui uma actividade lícita desde que respeitadas certas normas destinadas a conter o perigo dentro de limites razoáveis - relativas ao veículo em si e às condições de admissão à circulação na via pública, habilitação e estado físico do condutor, regras da circulação definidas no Código da Estrada.

No limite determinados comportamentos mais perigosos/danosos são sancionadas penalmente pelo legislador, atendendo à sua especial danosidade social, quando se verifique um desrespeito grosseiro daquelas normas de conduta, nomeadamente quando existe a criação, em concreto, dum perigo para a vida, para a integridade física ou para bens patrimoniais de valor elevado, pertencentes aos demais utentes da via.

Assim, sob a epígrafe “condução perigosa de veículo rodoviário”, postula o mencionado artigo 291º do C. Penal:

1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

a) Não estando em condições de o fazer com segurança por se encontrar em estado de embriagues ou sob influência do álcool, estupefacientes ou substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou.

b) Violando grosseiramente as regras da condução rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estrada ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 

(…)

4. Se a conduta prevista no nº1 for praticada por negligência o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

Além da condução perigosa exige-se o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a violação concreta das normas de circulação rodoviária definidas nas duas alienas do preceito, às quais se liga objectiva e tipicamente a criação abstracta de perigo, e a verificação do perigo concreto (previsto como elemento do tipo de crime), como resulta da parte final do n.º3, abrangendo as situações previstas nas duas alíneas. Ou seja, o perigo concreto terá que resultar da acção proibida pela norma do ponto de vista da causalidade adequada.

Trata-se de um crime de perigo concreto, em que a actuação do agente cria perigo efectivo para a vida ou integridade física, tal como resulta claramente da parte final do tipo de crime: "e criar deste modo perigo".

O bem jurídico protegido pelo tipo de crime é a segurança da circulação, colocando ao mesmo tempo em perigo a vida ou a integridade física ou ainda bens patrimoniais de valor elevado, sendo preponderante a tutela de bens jurídicos individuais - cfr. PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricence, p. 1080, Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, pág. 342. Ainda que a tutela de bens jurídicos individuais é, no entanto, especialmente assegurada pelos crimes dos artigos 137° e 142° que visam especificamente a defesa dos bens vida e integridade física.

Trata-se de um tipo legal de crime introduzido pelo DL 48/95 de 15.03, sem correspondência na versão original do C. Penal.

A alínea b) suscitou polémica na Comissão de Revisão, tendo-se manifestado alguns dos seus membros no sentido de que devia ser eliminada, ou, pelo menos, haver uma enumeração mais explícita das situações mais merecedoras de tutela - cfr. PAULA R. FARIA, COMENTÁRIO CONIMBRICENCE AO C. PENAL, p. 1079.

Na verdade o Projecto de Revisão continha uma enumeração exemplificativa do que devia entender-se por violação grosseira das regras de circulação. Mas acabou por ser aprovada pela Comissão a substituição de uma tal enumeração pela cláusula geral susceptível de abranger todas as violações às quais se liga tipicamente o perigo - cfr. PAULA R. FARIA, ob. cit. p. 1083.

Talvez por isso este normativo tenha sido alterado pela Lei 77/01, de 13-07, no sentido de “voltar” ao Projecto, procedendo à enumeração mais explícita das concretas situações merecedoras de tutela. Dando então a Lei 77/01 a actual redacção ás alíneas a) e b) do n.º 1 – redacção supra reproduzida.

Conforme se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 69NIII, a alteração visou a introdução de um elenco de manobras perigosas, solução semelhante àquela que se encontra no Código Penal alemão (§ 315 do StGB). Justificando-se a alteração no sentido de tornar mais segura a interpretação do tipo de crime, através da caracterização das manobras consideradas perigosas, também conhecidas como as violações capitais das regras estradais.

O preceito em causa foi ainda objecto de alteração pela Lei 59/207 de 04.09 que aditou o n.º2, passando os anteriores nºs 2 e 3 a constituir os nºs 3 e 4.

O crime em apreço pode assim ser integrado por dois tipos de condutas susceptíveis de provocar insegurança rodoviária:

- através da condução com falta de condições de segurança, por diminuição das capacidades do condutor, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo – al. a) do preceito; ou

- através da violação grosseira das regras de circulação rodoviária – normas agora especificadas na al. b), após a entrada em vigor da redacção da Lei 77/2001 de 13.7.

Com a actual definição, na línea al. b), do elenco das “regras violadas”, perdeu sentido o “conceito aberto” relativo à “violação grosseira” das regras – que permanece, todavia, da redacção originária do preceito (onde o conceito tinha que ser preenchido, caso a caso, ope judice) como exigência de “violação grosseira” das concretas normas a que se refere a parte final do preceito.

Faz por isso sentido apelar ao conceito de “negligência grosseira” no tratamento que vem da primitiva redacção do preceito e subjacente a outros crimes cometidos no âmbito da condução automóvel.

Ora tal conceito tem sido interpretado como uma forma qualificada de negligência, ligando-se, no entendimento predominante na doutrina e jurisprudência, à ideia de «culpa temerária», particularmente censurável, em que a culpa é agravada pelo elevado grau de imprevisão, de falta de cuidados elementares que importam grave desrespeito do dever de representação ou da justa representação da possibilidade de ocorrência do resultado proibido – cfr. Ac. STJ de 03.04.2003, disponível, em texto integral, em htt://www.dgsi/jstj, com o n.º de documento SJ200304030008535, citando a doutrina e a jurisprudência mais relevantes sobre este ponto.

Na doutrina de Figueiredo Dias, na esteira de Roxin, de que a negligência grosseira constitui um grau aumentado de negligência, não só ao nível do ilícito, mas também ao nível da culpa. Ao nível da ilicitude, pressupondo um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada. E ao nível da culpa, revelando uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal, evidenciando no facto qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez – cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 380-381 e 358 e no Comentário Conimbricence, I, 113. 

Esta dupla relevância, ao nível da ilicitude e da culpa, permite que possa falar-se em negligência grosseira mesmo ao nível da negligência inconsciente, quando (apesar da negligência inconsciente) se assiste a uma conduta particularmente censurável ao nível da ilicitude, envolvendo uma conduta particularmente perigosa, tomando-se como ponto de referência a precaução ou a previsão do cidadão normal, homem médio, suposto pela ordem jurídica.

Em qualquer dos casos previstos na al. a) do n.º3 do art. 291º, a capacidade de concentração do condutor, os reflexos de manobra, a percepção da realidade, a capacidade de reacção a obstáculos, necessários ao exercício da condução automóvel, encontra-se afectada por factores que a perturbam, não estando por isso em condições de exercer a actividade da condução de veículos automóveis na via pública, dada a perícia mínima exigida para o efeito e o perigo inerente a essa actividade.

Já nos casos previstos na al. b) a ilicitude da conduta tem como fundamento a violação das regras da condução rodoviária em si.

A conjugação de factores aumenta o risco, de forma exponencial. Constituindo a soma de factores um critério muito relevante de orientação do intérprete na caracterização da chamada negligência grosseira.

No caso dos autos, sustenta o recorrente que o facto de o arguido apresentar substância psicotrópica no corpo, de "per si", não permite que se considere preenchido o tipo de crime "sub judice " (…) a douta sentença, no último parágrafo, taxativa e indubitavelmente, afirma que não foi da presença da substância psicotrópica no corpo que resultou a criação de perigo.

Na verdade a sentença recorrida conclui que o arguido não cometeu o crime previsto na al. a) do n.º1 do artigo 291º. Daí que seja clara, no respectivo dispositivo, ao absolver o arguido “quanto à imputação da al. a) do nº 1 do citado artigo”.

Para tal absolvição, ponderou, além do mais:

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Quanto à condução sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, diga-se que a tipificação do crime de condução sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas ocorreu com a alteração legislativa aos artigos 291º e 292º introduzida pelo art. único da Lei nº 77/01.

No entanto e como contra-ordenação já a versão original do C. da Estrada, DL n.º

114/94, de 03 de Maio, no art. 87 previa e punia a “Condução sob o efeito do álcool ou de estupefacientes”, embora remetendo para diploma próprio a regulamentação do que era conduzir naqueles termos.

Também agora e no que respeita ao crime em causa temos de recorrer a diplomas próprios donde se possa retirar se o condutor se encontra sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas e, se está em condições de exercer a condução com segurança ou não.

Assim, que a Lei 18/2007 de 17 de Maio aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas e, a Portaria

902-B/2007 de 13 de Agosto regula o material a utilizar na recolha e transporte de amostras biológicas destinadas a determinar a presença de substâncias psicotrópicas e os procedimentos a aplicar na realização das análises e os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou por substância psicotrópica.

A Lei 18/2007, nos seus artigos 10 a 13, inseridos no capítulo “avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas” prevê um exame prévio de rastreio e em caso de resultado positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.

Postulando o nº 5 do art. 12 que “só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação”.

Por sua vez a Portaria 902-B/2007 no Capitulo II regulamenta a avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas.

O exame de confirmação considera-se positivo sempre que revele a presença de qualquer substância psicotrópica prevista no quadro 1 do anexo V, ou qualquer outra com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança.

O quadro 2 prevê os valores de concentração para exame de rastreio de urina.

Efectuado o exame, indicando a secção III como deve ser feito, o médico deve preencher o relatório do exame modelo do anexo VII, sendo que do resultado desse exame, respondendo aos itens de: Observação geral; Estado mental; Provas de equilíbrio; Coordenação dos movimentos; Provas oculares; Reflexos; Sensibilidade e quaisquer outros dados que possam ter interesse para comprovar o estado do observado.

Só o relatório médico com esses itens preenchidos permitirá ao tribunal concluir se o examinado estava em condições de fazer o exercício da condução em segurança.

Para além da questão quantitativa e constante dos factos dados como provados, tais requisitos essenciais não constam do competente relatório pericial (cfr. fls.3 e 19).

Que o arguido não estava “em condições de o fazer em segurança”, (relativamente ao exercício da condução) este exercício da condução, tem de ser facto apurado e, por conseguinte, constar da matéria de facto da acusação e ser dado como provado.

Ora, entende-se que aquela factualidade tem que ser “cirurgicamente” alegada e provada, sob pena de a acusação não poder vingar nesta parte.

Tal não ocorre no caso “sub-judice”. Com efeito, apesar de constar da acusação não resultou provada tal factualidade.

Assim, também entendemos que a presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, a mesma tem de ser “perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica” para a condução.

Não se apurando tal facto, apenas fica demonstrado que o arguido se encontra sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o que não preenche o tipo de crime do art. 292, nº 2 do CP, nem o art. 291º, nº 1, al. a), do mesmo Código, mas apenas os elementos da contra-ordenação prevista no art. 81º do C. Estrada, porque, para tal, basta conduzir sob a influência de produtos psicotrópicos, “É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas”.

Para a al. a), do nº 1, do artigo 291º, do C. Penal, não basta a presença de substância psicotrópica no corpo, é necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz no caso concreto - e com o devido respaldo pericial -, de conduzir com segurança (e também independente do resultado danoso que possa haver).

Diferente é a previsão do nº 1 do artigo 292º, em que basta a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, independentemente da influência que essa taxa de álcool exerça no condutor, ou mesmo que não afecte as condições de condução com segurança.»»»»

Assim a sentença recorrida não valorou a presença de substância psicotrópica no corpo do recorrente como fundamento do crime – pelo contrário, na motivação arredou tal circunstância e em decorrência, no dispositivo, absolveu o arguido da imputação prevista na al. a) do preceito.

No que toca à subsunção da conduta na previsão da aliena b) do preceito (violando grosseiramente as regras da condução) alega o recorrente que “o comportamento do (…) tem de ser interpretado como violação "normal" das regras estradais”.

O inusitado conceito de “normalidade” do recorrente, além de repousar no apontado equívoco de que a presença de produtos estupefacientes tivesse sido relevada (que não foi) como fundamento autónomo do crime (como se viu foi afastada a integração na alínea a) do preceito, a construção do recorrente esquece a conjugação, no caso, da violação de múltiplas regras de cuidado específicas da condução automóvel.

Com efeito, resulta da matéria provada:

c) – (…) local onde existe uma curva para a direita, tendo em conta o sentido de marcha em que seguia o arguido, este invadiu a hemifaixa de rodagem contrária àquela em que seguia (…);

d) O IC8 tem no local uma curva, apresentando a faixa de rodagem, que é de duplo sentido, um largura de 7,20 metros, estando as vias separadas por linha longitudinal contínua.

(…)

k) O arguido conduzia o veículo “com 7 ng/ml de THC-COOH: Ácido 11-nordelta-9-tetrahidrocanabióico (metabolito da marijuana) no sangue – conforme relatório do IML – Serviço de Toxicologia Forense, junto a fls. 19”.

Ora, em face da aludida factualidade provada, sendo o risco multiplicado pela conjugação de múltiplos factores [invasão da faixa contrária, numa curva, transpondo a linha longitudinal contínua - circunstâncias ignoradas, diga-se, na motivação do recurso – a que acresce a presença de uma concentração de 7 ng/ml de metabolito da marijuana no sangue] daí resultando causalmente o perigo concreto para a vida e integridade física da condutora da viatura e ocupante (mais do que o perigo deu casa a acidente com ferimentos na condutora e passageiro do veículo que circulava em sentido contrário) constitui violação grosseira das regras de circulação rodoviária – designadamente da “obrigatoriedade de circular na faixa da direita, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do art. 291º do C. Penal.

Assim, caindo por terra a crítica dirigida à sentença recorrida, impõe-se a improcedência do recurso.

III.

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso. ---

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC

Belmiro Andrade (Relator)

Abílio Ramalho