Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
216/10.1TAVNO.E1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
LAY OFF
COMPENSAÇÃO
REMUNERAÇÃO
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 06/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE OURÉM, SECÇÃO CRIMINAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 205.º DO CP; ARTS. 298.º, N.º 1, 303.º E 305.º, DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I - Considerada a função da segurança social e o específico regime de lay off previsto no Código de Trabalho, a entidade patronal recebe a compensação remuneratória daquela instituição, não por direito próprio, mas antes por título não translativo da propriedade, e com obrigação de a transferir para a titularidade do trabalhador, posto que a mesma se destina ao pagamento da remuneração deste.

II - Em conformidade, comete o crime de abuso de confiança, p. e p. no artigo 295.º do CP, o legal representante de ente colectivo que afecta as compensações remuneratórias recebidas, no referido âmbito, da Segurança Social a diverso fim.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum com intervenção do tribunal singular 216/10.1TAVNO da Comarca de Leiria, Instância Local de Ourém, Secção Criminal, J1, após realização da audiência de julgamento com documentação da prova oral, foi proferida sentença em 10 de Abril de 2014 com o seguinte dispositivo:

Pelos expostos fundamentos de facto e de Direito, decide o Tribunal:

a) Absolver o arguido, A... , da prática, como co-autor material, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal.

b) Absolver o arguido, A... , da prática, como co-autor material, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), ambos do Código Penal.

c) Condenar o arguido, B..., pela prática, como co-autor material, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 900,00 (novecentos euros).

d) Condenar o arguido, B... , pela prática, como co-autor material, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros).

e) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares determinadas em c. e d., condenar o arguido, B... , na pena única de 270 (duzentos e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 1 620,00 (mil, seiscentos e vinte euros).

f) Condenar o arguido, C... , pela prática, como co-autor material, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 900,00 (novecentos euros).

g) Condenar o arguido, C... , pela prática, como co-autor material, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros).

h) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares determinadas em f. e g., condenar o arguido, C... , na pena única de 270 (duzentos e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 1 620,00 (mil, seiscentos e vinte euros).

i) Condenar os arguidos B... e C... nas custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça, (cf. artigos 513.º do Código do Processo Penal e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo), e nas demais custas do processo, nos termos do artigo 514.º do Código do Processo Penal.

Inconformado, recorreu o arguido B... , extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões:



Nos presentes autos, a Mº Juiz “a quo”, considerou o Arguido ora Recorrente, e o co-arguido C... , como autores, cada um deles, de um crime de abuso de confiança p. p. artº 205 nº 1 e, como autores materiais, cada um deles também, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205 nº1 e 4 alínea a) por referência ao artº 202 a) todos do C. Penal, na pena de 270 dias de multa à taxa de 6 € dia.



Para tanto, considerou a Mº Juiz “a quo”, que os Arguidos, enquanto Administradores e Vogal da Administração da Sociedade M... SA, receberam da S. Social determinadas importâncias ao abrigo de um acordo celebrado entre ambas as entidades, e que permitiu que 6 dos seus trabalhadores ficassem submetidos ao regime de Lay-Off.



            Tal regime iniciou-se em 01/06/2009 e terminou em 31/12/2009.



            Que a Segurança Social remeteu “os seguintes pagamentos a titulo de compensação retributiva de Lay-Off:

- em 8/11/2009 – 3.886,20 €

- em 06/12/2009 – 6.662,70 €



            Considerou ainda, que a entrega destas quantias se destinava ao pagamento da compensação devida aos trabalhadores nos meses de Novembro e Dezembro.



            E que os Arguidos afetaram tais quantias a fins diferentes daquele a que se destinavam.



            Na sua douta decisão, a Mº Juiz “a quo” fez apelo ao disposto nos artigos 298 e ss do C. Trabalho, considerando que, no regime de Lay-Off, os trabalhadores têm direito a receber uma compensação correspondente a 2/3 do salário líquido que auferiam, e contrariamente ao que decorre do citado Código,



            Que esta compensação é paga em 70% pela Segurança Social e 30% pela Entidade Empregadora.



            Considerou ainda que tais importâncias eram entregues pela Segurança Social à empresa para pagamento da quota parte de 70% da compensação devida aos trabalhadores pela Segurança Social, e


10º

            Que, não tendo a sociedade pago na sua totalidade aos trabalhadores as compensações devidas nos meses de Novembro e Dezembro de 2009, cometeram, a Sociedade e os Arguidos seus legais representantes, os crimes de abuso de confiança pelos quais vinham acusados.


11º

            Contudo, e contrariamente ao que veio a explanar em sede de fundamentação da sua douta decisão, a Mº Juiz veio a dar como provado nos factos 8 e 9, que a compensação devida pela empresa aos trabalhadores em Lay-Off (2/3 salário ilíquido) era remetida mensalmente pela Segurança Social à sociedade.

12º


            Ora, dando como provado que a Segurança Social remetia mensalmente à Sociedade a compensação salarial devida por esta aos seus trabalhadores (2/3),


13º

            Não podia, em sede de fundamentação da sua decisão, vir a considerar que a compensação devida pela Segurança Social era de 70% do montante devido pela empresa aos trabalhadores,


14º

            Nesta medida, a decisão é nula por via de contradição insanável entre os factos provados e a sua fundamentação.


15º

            Contudo, e apesar de constar da acusação e da contestação, e de constar também dos documentos juntos aos autos, a Mº Juiz, olvidou que a Segurança Social apenas fez entrega à Sociedade daquelas quantias por 4 vezes, e não mensalmente conforme deu como provado.


16º

            A Segurança Social apenas remeteu à empresa as seguintes quantias, nas seguintes datas:

- a 1ª em 23/09/2009, no montante de 11.656,00 €

- a 2ª em 15/10/2009, no montante de 3.886,20 €

- a 3ª em 08/11/2009, no montante de 3.866,20 €

- a 4ª em 06/12/2009, no montante de 6.662,70 €


17º


            Resultando da análise deste facto incontroverso e contrariamente ao decidido que a Segurança Social não remetia mensalmente à Sociedade os 2/3 da compensação devida aos trabalhadores,


18º

            Nem sequer os 70% destes 2/3 que de acordo com o invocado artº 305 nº1 a) e 5 do Código do Trabalho, são por si devidos à Entidade Empregadora ao abrigo do regime do Lay-Off.


19º

            Contudo, na modesta opinião do Recorrente, e decorrente do regime jurídico que regula o Instituto do Lay-Off, os Arguidos não cometeram os crimes de que vêm acusados.

20º

            No regime de Lay-Off, a obrigação de pagar aos trabalhadores a compensação devida (2/3 do salário ilíquido) é uma obrigação exclusiva e própria da Entidade Empregadora, tal como a Lei o define.

21º

            A Segurança Social, neste domínio, não assume com os trabalhadores qualquer obrigação, mormente a de lhes pagar 70% do valor desta compensação.

22º

            Esta obrigação, é própria, originária e exclusiva da Entidade Empregadora.

23º

            Apenas, a Segurança Social que estabelece com a Entidade Empregadora um acordo, ao abrigo do qual certos trabalhadores são colocados em regime de Lay-Off, assume perante a Entidade Empregadora, a obrigação de a compensar em 70% do valor devido por ela aos seus trabalhadores,

24º

            Nesta contextualidade, as entregas feitas pela Segurança Social à Entidade Empregadora, são-no como correlativo do cumprimento de uma obrigação própria por si assumida, com a Entidade Empregadora, que é assim a única beneficiária e destinatária de tais entregas.

25º

            Daí que, as entregas, não sejam mensais, nem coincidam com as datas do pagamento dos salários devidos aos trabalhadores.

26º

            Aliás, como o refere a Mº Juiz na sua douta decisão, e de acordo com o disposto no artº 303 nº 2 e 3 do C. Trabalho, no caso de violação do disposto neste normativo, a Entidade Empregadora fica obrigada a devolver à Segurança Social as importâncias recebidas, e

27º

            Se o não fizer, incorre na prática de uma contra-ordenação grave.

28º

            Ora, no caso dos autos, e quanto mais não seja por via de uma interpretação analógica, o incumprimento das obrigações assumidas pela Entidade Empregadora perante os seus trabalhadores, gerará a obrigação de devolver à Segurança Social os apoios recebidos, e

29º

            Caso não o faça, incorrerá na prática de uma contra-ordenação grave,

30º

            Em caso algum, se comina para o incumprimento, a prática de qualquer crime.

31º

            E, no nosso direito criminal, vigora o princípio da legalidade, nenhuma conduta pode constituir crime, se assim não for considerado por Lei anterior.

32º

            Assim, contrariamente ao que veio a considerar a Mº Juiz a quo”, a sociedade recebeu e apropriou-se das importâncias que lhe foram remetidas pela Segurança Social, de forma legitima e,

33º

            Por titulo translativo da propriedade, isto é, não recebeu tais importâncias a título precário como mera detentora e com a obrigação de as afectar a um fim especifico,

34º

            Antes, recebeu tais importâncias como correlativo de um direito próprio que contratualizou com a Segurança Social e,

35º

            Por parte desta no cumprimento de uma obrigação própria.

36º

            No regime do Lay-Off a Segurança Social, não assume qualquer obrigação perante os trabalhadores que sejam colocados nesse regime, e

37º

            A Segurança Social também não cometeu à Entidade Empregadora a obrigação e a tarefa de satisfazer aos trabalhadores qualquer obrigação própria que tivesse para com eles,

38º

            Antes, todas as importâncias que a Segurança Social entregou à Sociedade, foram no cumprimento de uma obrigação por si assumida com a Entidade Empregadora, e

39º

            Foram recebidas pela Sociedade por direito próprio,

40º

            Donde, não se encontrarem no caso, verificados os elementos objectivos do tipo de crime de que os Arguidos vinham acusados e pelos quais foram condenados.

            Assim, deveria a Mº Juiz “a quo” ter procedido a um correcto e adequado enquadramento jurídico dos factos, e em consequência,

            DECIDIR PELA ABSOLVIÇÃO DOS ARGUIDOS

            Não o tendo feito, violou a douta decisão, o disposto nos artigos:

                        a) 374 e 379 nº 1 alínea c) e 410 do C Penal

            b) 13, 32, 205, 207 e 208 da CRP

            c) artº 1º nºs 1 e 3; 13º; 16º; 17º e 40º do C. Penal

            PELO QUE,

            Deverá a douta decisão ora em crise ser revogada, e substituída por outra que absolva totalmente os Arguidos, ou quando tal se não entenda, declarar-se a   sua nulidade por contradição insanável entre os factos dados como provados, e a sua fundamentação.


            ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que o recurso não merece provimento.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:
a) Matéria de Facto Provada:
Realizada a audiência de discussão e julgamento, dela resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. Em 2009, o arguido B... era o Presidente do Conselho de Administração da sociedade anónima M... , S. A..
2. Por sua vez, os arguidos C... e A... eram Vogais do Conselho de Administração.
3. A referida sociedade tem por objecto social o comércio por grosso de derivados de madeira, estando matriculada na CR Comercial de Ourém e tendo o NIPC (...) .
4. A sociedade obriga-se com a assinatura do Presidente do Conselho de Administração, com a assinatura conjunta de dois administradores ou com a assinatura de um administrador delegado.
5. Em 2009 e inícios de Janeiro de 2010, eram trabalhadores da M... , S. A.:
- F... ;
- G... ;
- H... ;
- I... ;
- J... e
- L... .
6. A mencionada sociedade esteve sob o regime de lay off por motivos de mercado na sequência do que suspendeu os contratos de trabalho dos referidos trabalhadores.
7. Essa suspensão iniciou-se em 01 de Julho de 2009 e terminou em 31 de Dezembro de 2009.
8. Durante o período de lay off os citados trabalhadores tiveram direito a receber da sociedade M... , S. A. uma compensação salarial mensal igual a dois terços do seu salário normal ilíquido.
9. Tal compensação salarial era remetida mensalmente pela Segurança Social – Centro Distrital de Santarém para a sociedade em apreço.
10. Sucede que, na sequência do decidido pelo Concelho de Administração, ou seja, pelo seu Presidente e pelo seu Vogal, C... , ora arguidos, a citada sociedade apesar de ter recebido os montantes devidos aos trabalhadores em apreço no âmbito do regime de lay off referentes ao mês de Novembro de 2009 quanto aos primeiros cinco trabalhadores e em relação a todos quanto ao mês de Dezembro de 2009, não entregou os valores devidos a cada um deles nos referidos meses.
11. Ao invés, a sociedade M... S. A. depositou os esses valores na conta n.º (...) do BPN por si titulada sem de imediato afectar, como se lhe impunha, esses valores aos trabalhadores a quem eram concretamente devidos.
12. Nesse contexto, a sociedade permitiu deliberadamente que esses valores depositados bancariamente ficassem à mercê da cobrança de outras dívidas da mesma cuja cobrança entrasse no circuito bancário, desde logo, pagamento de serviços, vencimentos de outros trabalhadores, para além de outros encargos.
13. Acresce, que no dia 04 de Janeiro de 2010, após ter terminado o período de lay off os referidos trabalhadores deslocaram-se às instalações da sociedade M... , S. A. para retomarem o respectivo posto de trabalho tendo sido despedidos verbalmente pelo arguido enquanto Presidente do Conselho de Administração dessa sociedade, em conformidade com o decidido pelo Conselho de Administração, incluindo, pois o arguido C... .
14. Assim, os aludidos trabalhadores deveriam ter recebido, em tempo, as seguintes compensações salariais:
- F... – o valor de € 1 600,00 (€ 1 200,00 x 2/3= € 800,00 x 2), dos meses de Novembro e Dezembro de 2009;
- L... – o montante de € 493,33 (€ 740,00 x 2/3), relativo ao mês de Dezembro de 2009;
- G... – o montante de € 1 410,67 (€ 1 058,00 x 2/3= € 705,33 x 2), dos meses de Novembro e Dezembro de 2009;
- H... – € 1 753,28 (€ 1 300,00 + € 14,96 x 2/3 = € 876,64 x 2) respeitante aos meses de Novembro e Dezembro de 2009;
- I... – € 1 132,00 (€ 849,00 x 2/3 x 2) relativo aos meses de Novembro e Dezembro de 2009 e
- J... – € 1 960,00 (€ 1 200,00 + € 270,00 x 2/3= € 980,00 x2).
15. A Segurança Social – Centro Distrital de Segurança Social de Santarém remeteu os seguintes pagamentos a título de compensação retributiva de lay off:
- Em 08 de Novembro de 2009, no valor de € 3 886,20, através da carta-cheque n.º 590988891, 2009/10591, paga em 19 de Novembro de 2009, para o mês de Novembro de 2009, sendo o meio de pagamento o cheque n.º 7483858958 do BPI.
e
- Em 06 de Dezembro de 2009, no montante de € 6 662,70, através da carta-cheque n.º 593159707, 2009/11627, paga em 16 de Novembro de 2009, para o mês de Dezembro de 2009, sendo o meio de pagamento o cheque n.º 5784984494 do BPI.
16. O primeiro dos referidos cheques foi depositado, em 18 de Novembro de 2009, na conta n.º (...) do BPN titulada pela sociedade M... , S. A...
17. O segundo dos referidos cheques foi depositado, em 15 de Dezembro de 2009, na mesma conta bancária.
18. Na sequência do depósito desses cheques não foram emitidos nem Documentos de Tesouraria Pagamento Pessoal Via Cheque nem Documentos de Tesouraria Pagamento Pessoal Via Transferência Bancária Individual em relação aos mencionados trabalhadores para pagamento das aludidas compensações salariais devidas por conta dos meses de Novembro e Dezembro de 2009, ao contrário do sucedido nos meses anteriores.
20. Em virtude de toda esta situação os mencionados trabalhadores requereram, em 09 de Março de 2010, a insolvência da sociedade M... , S. A., a qual veio a ter o número 393/10.1TBVNO, do 2.º Juízo.
21. Sabiam os arguidos B... e C... que actuavam, em concertação de propósitos e de esforços, na qualidade de titulares dos referidos cargos sociais da sociedade M... , S. A. para com a descrita conduta depositarem os valores remetidos pela Segurança Social a essa mesma sociedade, enquanto entidade patronal dos aludidos trabalhadores, a título de compensação salarial por sujeição ao regime de lay off devida e a ser entregue/paga apenas e tão só a esses trabalhadores.
22. Mais sabiam os arguidos B... e C... que sendo a sociedade que representavam mera depositária desses valores, os quais tinham o referido fim específico, não os podia afectar a outro tipo de pagamentos de outras suas dívidas, de diferente natureza e consoante o seu interesse, por não ser titular desses valores, sabendo aqueles que ao agir como descrito dispunham daqueles como se a dita sociedade e eles próprios, titulares de cargos sociais o pudessem fazer, o que não correspondia à realidade.
23. Quiseram agir deste modo.
24. Sabiam que as suas condutas lhes estavam vedadas e eram punidas pela Lei Penal e, não obstante, actuaram livre, deliberada e conscientemente.

Da Contestação apresentada pelos arguidos B... e C... :

25. A sociedade M... , S. A. atravessou, no período dos autos, dificuldades económicas.

Da Contestação apresentada pelo arguido A... :

26. O arguido A... nunca foi gerente de facto da sociedade M... , S. A..

Mais se provou, com relevância para os presentes, que:

27. O arguido B... :

- É gestor de empresas auferindo mensalmente cerca de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros), auferindo ainda entre € 150,00 (cento e cinquenta euros) e € 200,00 (duzentos euros) de remuneração variável.

- A sua esposa encontra-se, presentemente, desempregada.

- Tem dois filhos, um com 13 e outro com 22 anos de idade, padecendo este último de doença do foro oncológico.

- Reside, com o seu agregado familiar, em casa própria.

- É licenciado em Gestão de Empresas.

28. O arguido C... :

- Encontra-se reformado, auferindo, mensalmente, juntamente com a sua esposa, cerca de € 1 800,00 (mil e oitocentos euros) de reforma, encontrando-se penhorado 1/3 desse valor.

- Reside com a sua esposa, em casa dos seus filhos.

- Tem a 4.ª classe.

29. O arguido A... :

- É fabricante de mobiliário, auferindo, mensalmente, cerca de € 1 000,00 (mil euros) a título de remuneração.

- A sua esposa trabalha consigo, auferindo, mensalmente, cerca de € 500,00 (quinhentos euros).

- Reside, com a sua esposa, em casa dos seus sogros.

- Tem o 9.º ano de escolaridade.

30. Os arguidos, B... , C... e A... não têm antecedentes criminais registados nos seus certificados do registo criminal.

b) Matéria de Facto Não Provada:

Com interesse para a boa decisão da causa não se logrou provar quaisquer outros factos, nomeadamente não se provou que:

a. Todavia, após o depósito dos aludidos cheques foram pagos salários a outros trabalhadores que não os abrangidos pelas referidas compensações salariais, não obstante, se terem verificado posteriormente depósitos de valores e em numerário na mesma conta do BPN, conforme resulta de fls. 271 a 273 e 274 a 277.

Consigna-se que não foram reconduzidos aos factos provados, nem aos factos não provados, as alegações constantes das peças apresentadas pelos sujeitos processuais que se revelam redundantes, improfícuas para a decisão da causa ou estranhas ao objecto do processo, vagas, imprecisas, repetitivas ou conclusivas, ou ainda meramente jurídicas, por não contenderem com a verificação dos elementos objectivos típicos e subjectivos dos tipos de crimes imputados aos arguidos.

c) Fundamentação da Matéria de Facto e Exame Crítico da Prova.

Para apreciação da matéria de facto dada como provada e não provada, o Tribunal equacionou e ponderou o acervo de prova documental carreada para os autos, designadamente, o teor de fls. 11 a 18 (comunicações escritas efectuada pela sociedade M... , S. A., aos trabalhadores colocados em regime de lay off), fls. 49 a 108 (relativo ao processo de insolvência n.º 393/10.1TBVNO, relativo à sociedade M... ), de fls. 116 a 238 (informação prestada nos autos pelo Administrador de Insolvência da sociedade M... , relativa aos salários que se encontravam em atraso e aqueles que se mostraram pagos), 261 a 266 (informação prestada pelo Instituto de Segurança Social, I. P. acerca dos pagamentos efectuados por conta do regime de lay-off em que os id. trabalhadores se encontravam), fls. 269 a 282 (elementos bancários prestados pelo BNP), fls. 289 (informação prestada pela M... ), fls. 292 a 337 (elementos bancários facultados aos autos pelo BPN), e, bem assim, o print da matrícula da sociedade M... e a certidão do supra id. processo de insolvência desta sociedade.

Mais se atentou no teor dos documentos facultados nos autos pelos arguidos, A... e pelos arguidos B... e C... .

Por outro lado, e em segundo lugar, o Tribunal ponderou o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelos arguidos, B... e C... – D... e E... –, em concatenação com o teor das declarações prestadas pelos arguidos A... e B... , tendo o arguido C... ficado em silêncio quanto aos factos constantes da acusação.

Em primeiro lugar, anote-se que o arguido B... confirmou que, efectivamente, a sociedade M... teve trabalhadores em regime de lay-off e que receberam valores relativos à comparticipação na compensação desses trabalhadores por parte da Segurança Social.

Esclareceu as dificuldades económicas em que a sociedade se encontrava, mercê, em primeira linha, do incumprimento de pagamentos devidos por alguns dos seus clientes e subsequentes declarações de insolvência dos mesmos.

Salientou que uma das preocupações que tinham era o de nunca ultrapassarem os 3 (três) meses de salários em atraso e, bem assim, o tratamento igualitário dos trabalhadores – nessa medida, referiu que não só não pagaram os valores em causa no despacho de acusação aos trabalhadores que estavam em situação de lay-off, como também aos demais trabalhadores que ainda tinham a seu cargo.

Por outro lado, referiu que a decisão relativa à colocação de trabalhadores em regime de lay-off foi tomada pelos três – isto é, pelo próprio e pelos co-arguidos, vogais do Conselho de Administração.

Anote-se ainda ter o arguido reiterado que o valor recebido da Segurança Social se reportava a uma compensação à empresa por conta dos trabalhadores que tinham em regime de lay-off.

Por seu turno, o arguido A... salientou só ter tido conhecimento dos factos com a notificação do despacho de acusação, e, durante o inquérito, das dificuldades económicas por que a sociedade arguida passava.

Aliás, referiu ainda que tinha o cargo de vogal do Conselho de Administração em representação da sua esposa, mais sublinhando que apenas se deslocava às instalações da empresa porque se havia comprometido a assinar documentos que estavam dependentes da sua assinatura.

Concatenadas as declarações prestadas pelos arguidos com o depoimento das testemunhas D... e E... , anote-se ter a primeira das id. testemunhas confirmado as declarações do arguido B... quando esclareceu e concretizou qual a situação financeira da sociedade M... , mais tendo esclarecido ter conhecimento de que alguns dos trabalhadores daquela estiveram em regime de lay-off e, bem assim, quais as obrigações daí derivadas para a sociedade, designadamente, assegurar o pagamento da compensação devida aos trabalhadores que se encontrassem nessa situação.

Confirmou ainda não terem sido pagos, na totalidade, os salários devidos aos trabalhadores da sociedade, incluindo a compensação daqueles que se encontravam em regime de lay-off.

Referiu ter tido reuniões com os arguidos B... e C... , inclusivamente quanto à decisão de colocarem alguns trabalhadores em regime de lay-off, sendo que, quanto ao arguido A... apenas se cruzou com ele em algumas das suas deslocações às instalações da sociedade.

Por seu turno, a testemunha E... referiu que trabalhava no escritório da sociedade M... , sendo de salientar, com relevância, que não só os trabalhadores que se encontravam em regime de lay-off como também os demais tinham dois salários em atraso com referência a 31 de Dezembro de 2009, mais referindo, contudo, que a Segurança Social havia entregue todos os valores relativos ao pagamento da sua comparticipação na compensação devida àqueles trabalhadores.

Confirma igualmente que o arguido A... apenas se deslocava às instalações da sociedade para a assinatura de documentos.

Equacionados os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e, bem assim, o teor das declarações prestadas pelos arguidos B... e A... , concatenados com os documentos carreados para os autos e, bem assim, a informação prestada pelo Instituto de Segurança Social, I. P., forçoso se torna concluir que, efectivamente, a sociedade M... teve os id. trabalhadores em regime de lay-off, tendo, nesse contexto, recebido a respectiva comparticipação devida pela Segurança Social no pagamento da compensação devida àqueles trabalhadores, não tendo, contudo, e sem prejuízo desse recebimento, afectado esses valores ao pagamento desses concretos trabalhadores.

Aliás, mais se apurou que, para além daqueles trabalhadores, também os demais trabalhadores da sociedade se encontravam com os mesmos salários em atraso.

Mais se anote resultar do depoimento das testemunhas arroladas pelos arguidos B... e C... , em concatenação com as declarações do arguido A... , que o mesmo se encontrava desligado do exercício de funções de direcção da sociedade M... – com efeito, o mesmo apenas se deslocava à sociedade porquanto se havia comprometido a assinar documentação necessária. Sem prejuízo das declarações do arguido B... , o qual salientou todos terem intervenção no processo decisório da sociedade, a verdade é que a testemunha D... referiu que as reuniões que manteve na sede da sociedade tiveram sempre lugar na presença dos arguidos B... e C... , apesar de ter chegado a cruzar-se com o arguido A... naquele local.

Destarte, em face do exposto, concluiu o tribunal da forma descrita, designadamente, que o arguido A... não participou na tomada de decisões da sociedade.

Por outro lado, cumpre salientar ter-se apurado que efectivamente, os arguidos B... e C... receberam os valores em causa por parte da Segurança Social, tendo-se apurado terem conhecimento que tais valores apenas foram recebidos por conta da situação de alguns trabalhadores, os quais se encontravam em regime de lay-off.

Mais se apurou a intenção dos arguidos B... e C... ao integraram na esfera jurídica patrimonial da sociedade os valores recebidos da Segurança Social sem os afectarem ao pagamento da compensação devida aos trabalhadores em regime de lay-off, motivada, em grande parte, pela situação económica da sociedade e pela necessidade de assunção de outros compromissos societários, cf. se atesta, aliás, pela análise de fls. 271 a 273 e de fls. 274 a 277 dos autos.

Quanto às condições sócio-económicas e familiares dos arguidos, o Tribunal ponderou o teor das declarações prestadas pelos próprios, as quais se afiguraram coerentes e credíveis.

No que à ausência de antecedentes criminais dos arguidos importa, o tribunal analisou e ponderou o teor dos respectivos certificados do registo criminal dos mesmos, juntos aos autos.

Destarte, em face do exposto, o tribunal concluiu da forma plasmada supra no que tange à factualidade dada como provada e não provada, mais se salientando, designadamente, que os arguidos B... e C... sabiam que estavam a afectar a outras obrigações societárias os valores recebidos da Segurança Social, por conta dos trabalhadores que tinham em regime de lay-off e apenas por esse concreto motivo.

III. Enquadramento jurídico-penal:

Os arguidos vêm acusados pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal, com referência ao artigo 26.º do mesmo diploma legal e de 1 (um) crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), com referência aos artigos 26.º e 202.º, alínea a), ambos do mesmo diploma legal.

Apreciando.

Prescreve o citado artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal que «1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. (…) 4. Se a coisa referida no n.º 1 for: a) de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias. (…).

O bem jurídico tutelado por via da citada incriminação é a propriedade.

Assim, o crime de abuso de confiança constitui, «… segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma (…), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, “apropriação indevida”). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.» (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 94).

Conforme resulta da própria formulação legal do crime de abuso de confiança, a conduta típica consubstancia-se na apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que haja sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade.

Assim sendo, são os seguintes os elementos objectivos típicos do ilícito jurídico-penal sob apreciação:

a) Apropriação ilegítima;

b) De coisa móvel alheia;

c) Que haja sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade.

Para efeito de imputação objectiva dos factos ao arguido cumpre, pois, proceder à análise de cada um dos citados elementos típicos.

Assim, e em primeiro lugar, e quanto à noção de apropriação ilegítima, explicam Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel Carrilho de Simas Santos (in Código Penal, 2.ª edição, Volume II, Rei dos Livros, pág. 460), que «[a]propriar-se é fazer sua coisa alheia. Mas diversamente do furto – em que a apropriação acompanha a posse ou detenção da coisa – aqui a apropriação sucede a essa posse ou detenção.

Inicialmente o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus. Então deixa de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer.

Mas deve ter-se em atenção que a inversão do título tem de resultar de actos objectivos, susceptíveis de revelarem que o agente já está a dispor da coisa como se fosse sua

Por seu lado, clarifica Jorge de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 103) que, no crime de abuso de confiança, a apropriação se traduz sempre «(…) na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (…): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e consuma a apropriação.».

Em segundo lugar, e no que respeita à ilegitimidade da apropriação, no tipo de crime sob análise, reporta-se a mesma directamente à apropriação. Concretizando, a ilegitimidade consubstancia um dos elementos objectivos do tipo criminal e, por isso, não constitui uma «mera menção redundante» da ilicitude da conduta, autonomizando-se dessa ilicitude (ao contrário do que sucede no crime de furto em que a ilegitimidade se refere à intenção do agente, isto é, ao tipo subjectivo de ilícito) – neste sentido, vide Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, págs. 105-106.

Assim, a apropriação é ilegítima sempre que represente uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade. Dito de outro modo, a apropriação não reveste carácter ilegítimo quando o agente «(…) detém sobre o desapropriado uma pretensão jurídico-civilmente válida, já vencida e incondicional.» (Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 105).

De entre os actos susceptíveis de materializar a apropriação indevida podemos integrar a venda, a doação, o consumo, a dissipação, a cessão, o penhor, a retenção sem causa legítima, inter alia.

Por outro lado, e quanto ao conceito de coisa móvel alheia, cumpre, por um lado, atentar no conceito jurídico de coisa. Com efeito, explica José de Faria Costa (in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 34) que «(…) coisa deve ser valorada mais no sentido que o comum das pessoas (a esfera do valor de uso das palavras referidas a um leigo) empresta a tal vocábulo do que expressão daquilo que o art.º 202.º do Código Civil [CC] define como coisa.».

E acrescenta o mesmo autor que “o tipo legal de furto e, por extensão, os crimes contra a propriedade determinam materialmente a noção jurídico-penal de coisa”, sendo que a norma contida no artigo 1302.º do Código Civil, ao determinar que «só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade», concorre para a sustentação do princípio da corporeidade e contribui para a adequação jurídico-penal do “… valor dogmático dos conceitos ao seu valor de uso comunitariamente aceite.” (Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 35).

Por outro lado e para o que releva ao nível da imputação objectiva do tipo de ilícito jurídico-penal sob apreciação, a apropriação há-de referir-se apenas a coisas móveis e não também a coisas imóveis.

No que respeita ao carácter alheio da coisa, mostra-se, numa primeira abordagem, evidente, que não podem constituir objecto do crime de abuso de confiança coisas que não pertençam a outrem. Nesta conformidade e por regra, assumem a qualidade de alheias as coisas que não são próprias do agente. Contudo, nem todas as coisas que não são próprias assumem por inerência o carácter de alheias. Conforme explica neste particular José de Faria Costa (in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 41), «[e]stão indubitavelmente neste campo todas as communes omnium ou aquelas que não pertençam a ninguém (res nullius). (…) É alheia, por conseguinte, toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção.».

Finalmente, cumpre atentar no último dos elencados requisitos – é necessário que a coisa, alheia, haja sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade.

No que concerne à delimitação deste este último elemento objectivo típico do crime de abuso de confiança, argumentam Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel Carrilho de Simas Santos (in Código Penal, 2.ª edição, Volume II, Rei dos Livros, pág. 461) que o citado ilícito jurídico-penal «(…) supõe uma entrega válida de coisa móvel, entrega feita por título não translativo da propriedade (que não implique transferência de propriedade – cf. art. 1316.º do Código Civil) e que não justifique a apropriação, antes se constituindo a obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou de restituição.

Para que se verifique este elemento basta que o agente esteja investido de um poder sobre a coisa que lhe dê a possibilidade de o desencaminhar ou dissipar, não sendo necessário um prévio acto material de entrega do objecto.

Só quando a detenção da coisa ocorre sem a vigilância do proprietário é que pode haver apropriação indevida, pois que, quando tal detenção tem lugar sob a vigilância do dominus, o que pode haver é furto. Neste último caso inexiste o livre poder de facto sobre a coisa, toda a vez que o detentor não passa de um instrumento do dominus a actuar sob as vistas deste. Ora a apropriação indevida impõe que o poder de facto do agente não esteja sob tutela de quem lho conferiu.».

Neste domínio da conformação do elemento típico da entrega / recebimento por título não translativo da propriedade acrescenta Jorge de Figueiredo Dias que o mesmo só se verifica quando no momento da apropriação ilegítima o agente já tenha a posse ou a mera detenção da coisa móvel alheia, mas não a titularidade do direito de propriedade sobre a mesma. Esclarece ainda que a alusão à posse e à detenção não visa a remissão para as noções civilísticas de tais institutos, devendo antes ser entendidos de uma forma mais abrangente e equivalente ao «recebimento de uma coisa móvel constitutivo de uma relação fáctica de domínio sobre ela» (Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 99).

Anote-se ainda, no que tange ao disposto no artigo 205.º, n.º 4, alínea a) do Código Penal, que para o conceito de valor elevado, há que equacionar o disposto no artigo 202.º, alínea a) do Código Penal, o qual prescreve ser valor elevado aquele que exceda as 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto – in casu, sendo a unidade de conta, à data dos factos, de €102,00 (cento e dois euros), valor elevado será correspondente a € 5 100,00 (cinco mil e cem euros).

No que se refere ao elemento subjectivo do tipo, o crime de abuso de confiança está previsto apenas na forma dolosa (em qualquer uma das modalidades de dolo: directo, necessário ou eventual), de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 205.º, 13.º e 14.º, todos do Código Penal.

Antes do mais e equacionando os factos apurados nos autos, cumpre, em primeiro lugar, analisar o regime jurídico do lay-off e qual a sua natureza, devendo, para o efeito, atentar-se no disposto nos artigos 298.º e ss. do Código do Trabalho.

O lay off consiste na redução temporária dos períodos normais de trabalho ou na suspensão dos contratos de trabalho, por motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos ou outros, que tenham afectado gravemente a actividade normal da empresa desde que tal seja indispensável para assegurar a sua viabilidade e a manutenção dos postos de trabalho (vide artigo 298.º, n.º 1 do Código do Trabalho).

Consigna o artigo 303.º do aludido diploma legal quais as obrigações do empregador para com os trabalhadores sujeitos a regime de lay off, sendo de destacar, entre as elencadas no id. artigo, a de efectuar pontualmente o pagamento da compensação retributiva.

Para a noção de compensação retributiva, cumpre atentar no disposto no artigo 305.º do Código do Trabalho, segundo o qual a mesma consiste em montante mínimo igual a dois terços da sua retribuição normal ilíquida, ou o valor da retribuição mínima mensal garantida, correspondente ao seu período normal de trabalho, consoante o que for mais elevado, sendo a mesma paga em 30% pelo empregador e em 70% pela Segurança Social (vide artigo 305.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código do Trabalho).

De salientar que resulta da análise do regime plasmado nos artigos 298.º e ss. do Código do Trabalho que a comparticipação entregue pela Segurança Social à entidade empregadora apenas é devida na medida em que a mesma tenha trabalhadores em regime de lay off, mais se anotando que caso aquela entidade infrinja as obrigações legais que lhe são determinadas incorre na obrigação de devolução das aludidas quantias recebidas – saliente-se a este propósito, o disposto no artigo 303.º, n.ºs 2 e 3 do Código do Trabalho, segundo o qual a entidade empregadora terá que proceder a essa devolução caso faça cessar o contrato de trabalho do trabalhador que tenha estado em regime de lay off  nos 30 ou 60 dias seguintes à aplicação das medidas.

Anote-se ainda que, sem prejuízo de uma parte dos valores recebidos da Segurança Social o terem sido ao fim de alguns meses, em face do início da situação de lay-off (reportada a 01 de Julho de 2009), não se pode olvidar que nos dois aludidos meses – Novembro e Dezembro de 2009 – a sociedade recebeu os valores em causa, tempestivamente, não tendo, ainda assim, procedido à sua entrega aos trabalhadores que se encontravam naquela situação.

Ainda assim tal não obsta a que, em face da análise do regime jurídico do lay off, se conclua que a compensação paga pela Segurança Social é divida, apenas e tão-só, aos trabalhadores, e não à sociedade, sendo esta mera depositária da mesma.

Por conseguinte, em face do exposto, forçoso se torna concluir que o valor entregue pela Segurança Social à entidade empregadora não assume natureza de compensação devida á mesma por conta dos trabalhares que tenha em regime de lay off, antes sendo valores que a mesma recebe com a obrigação de entrega dos mesmos aos trabalhadores que se encontrem nesse regime.

Fazendo corresponder todas as antecedentes noções legais e doutrinárias concorrentes para a circunscrição dos elementos objectivos típicos e do elemento subjectivo do crime de abuso de confiança, impõe-se apreciá-las à luz da matéria factual provada e não provada nos autos.

De salientar que os arguidos B... e C... , na qualidade de membros do conselho de administração da sociedade M... decidiram colocar alguns dos trabalhadores daquela em regime de lay-off, tendo, nessa medida, sido enviado e entregue àquela sociedade, por parte da Segurança Social, os valores correspondentes a 70% do valor da compensação retributiva devida aos trabalhadores que se encontravam nesse regime relativo aos meses de Novembro e Dezembro de 2009, no valor de € 3 886,20 e de € 6 662,70, respectivamente.

Tais valores foram recebidos pela sociedade a cuja administração pertenciam os arguidos B... e C... , tendo os mesmos decido não proceder à entrega dos aludidos valores aos trabalhadores que a eles tinham direito, antes os tendo integrado no património da sociedade, com consequente afectação a outras obrigações daquela.

Os arguidos B... e C... sabiam que apenas recebiam aqueles valores por conta de terem trabalhadores em regime de lay off e que estavam obrigados à sua entrega àqueles, não tendo qualquer direito aos valores em causa, designadamente, mediante a sua integração no património da sociedade. Com efeito, a sociedade era mera depositária daqueles valores, incumbindo-lhes a obrigação de entrega dos mesmos aos trabalhadores que a ele tinham, direito.

Agiram, por conseguinte, com dolo directo (cf. artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal).

No que tange ao arguido A... , nenhuma prova foi apurada no sentido da sua participação nos factos em análise e demonstrados nos autos, impondo-se, por conseguinte, a sua absolvição.

Destarte, em face do exposto, mister é concluir pelo preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime por cuja prática vêm os arguidos B... e C... acusados em co-autoria, impondo-se a absolvição do arguido A... .

IV. Da Medida Concreta da Pena

(…)


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Vistas as conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

- Se a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável de fundamentação sendo nula;

- Se a apropriação por parte da entidade patronal de quantias recebidas da segurança social destinadas ao pagamento de parte dos salários dos trabalhadores durante período de lay off não constitui crime de abuso de confiança, devendo o recorrente ser absolvido.

Apreciando:

Do vício de contradição

Alega o recorrente a existência de vício de contradição insanável (factos provados 8 e 9) porque na sentença recorrida se dá como provado que a Segurança Social remetia mensalmente à Sociedade a compensação salarial devida por esta aos seus trabalhadores (2/3) e em sede de fundamentação considera que a compensação devida pela Segurança Social era de 70% do montante devido pela empresa aos trabalhadores.

Entende que a ocorrência desse vício torna a sentença nula.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.

Do que o próprio recorrente alega resulta desde logo que a contradição apontada é perfeitamente vencível através do texto da decisão recorrida.

Os factos provados em causa são os seguintes:

8. Durante o período de lay off os citados trabalhadores tiveram direito a receber da sociedade M... , S. A. uma compensação salarial mensal igual a dois terços do seu salário normal ilíquido.

9. Tal compensação salarial era remetida mensalmente pela Segurança Social – Centro Distrital de Santarém para a sociedade em apreço.

Na fundamentação de direito, mencionando o disposto no artigo 305º, nº 4 do Código do Trabalho o Mmº Juiz a quo refere que a compensação retributiva era paga em 70% pela segurança social o que significa que a redacção do ponto 9 dos factos provados contém incorrecção mas não uma contradição insanável porque apenas aparente. Está bem patente que no espírito do julgador esteve sempre a realidade legal reflectida no citado preceito é não outra.

Ora, o que se revela na realidade é um erro material de redacção do referido facto provado que deve ser corrigido nos termos do artigo 380º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Penal.

Embora não impugnando a decisão proferida sobre matéria de facto nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal e não configurando a existência de vício do artigo 410º, nº 2 do mesmo diploma, insurge-se o recorrente por se ter consignado que as remessas da segurança social foram mensais.

Do próprio texto da decisão recorrida resulta que as remessas da segurança social ocorreram por quatro vezes, o que não coincide com o período de suspensão dos contratos de trabalho. Mas os factos provados 8 e 9 referem-se a Novembro e Dezembro de 2009 e nesses meses as remessas foram efectivamente mensais, podendo também neste aspecto colher-se na fundamentação de direito o que esteve na mente do julgador “Anote-se ainda que, sem prejuízo de uma parte dos valores recebidos da Segurança Social o terem sido ao fim de alguns meses, em face do início da situação de lay-off (reportada a 01 de Julho de2009), não se pode olvidar que nos dois aludidos meses - Novembro e Dezembro de 2009 - a sociedade recebeu os valores em causa, tempestivamente, não tendo, ainda assim, procedido à sua entrega aos trabalhadores que se encontravam naquela situação.”

Também neste caso se não divisa a existência de qualquer vício e nem mesmo a necessidade de correcção da redacção do ponto 9 dos factos provados.

Assim, o facto provado nº 9 passará a ter a seguinte redacção:

9. 70% de tal compensação salarial era remetida mensalmente pela Segurança Social – Centro Distrital de Santarém para a sociedade em apreço.

Em suma, a sentença recorrida não padece do vício de contradição insanável de fundamentação ou de qualquer dos outros vícios consignados no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, devendo a matéria de facto ter-se como definitivamente fixada com a correcção consignada.

Sempre se diga que os vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal não seguem o regime das nulidades como decorre do disposto no artigo 426º do Código de Processo Penal.

Da qualificação jurídica dos factos

Sustenta o recorrente que:

- No regime de Lay-Off, a obrigação de pagar aos trabalhadores a compensação devida (2/3 do salário ilíquido) é uma obrigação exclusiva e própria da Entidade Empregadora, tal como a Lei o define;

- A Segurança Social, neste domínio, não assume com os trabalhadores qualquer obrigação, mormente a de lhes pagar 70% do valor desta compensação;

- Esta obrigação, é própria, originária e exclusiva da Entidade Empregadora;

- Apenas, a Segurança Social que estabelece com a Entidade Empregadora um acordo, ao abrigo do qual certos trabalhadores são colocados em regime de Lay-Off, assume perante a Entidade Empregadora, a obrigação de a compensar em 70% do valor devido por ela aos seus trabalhadores;

- Nesta contextualidade, as entregas feitas pela Segurança Social à Entidade Empregadora, são-no como correlativo do cumprimento de uma obrigação própria por si assumida, com a Entidade Empregadora, que é assim a única beneficiária e destinatária de tais entregas;

- Daí que, as entregas, não sejam mensais, nem coincidam com as datas do pagamento dos salários devidos aos trabalhadores;

- Aliás, como o refere a Mº Juiz na sua douta decisão, e de acordo com o disposto no artº 303 nº 2 e 3 do C. Trabalho, no caso de violação do disposto neste normativo, a Entidade Empregadora fica obrigada a devolver à Segurança Social as importâncias recebidas, e

- Se o não fizer, incorre na prática de uma contra-ordenação grave;

- Ora, no caso dos autos, e quanto mais não seja por via de uma interpretação analógica, o incumprimento das obrigações assumidas pela Entidade Empregadora perante os seus trabalhadores, gerará a obrigação de devolver à Segurança Social os apoios recebidos, e, caso não o faça, incorrerá na prática de uma contra-ordenação grave;

- Em caso algum, se comina para o incumprimento, a prática de qualquer crime.

- E, no nosso direito criminal, vigora o princípio da legalidade, nenhuma conduta pode constituir crime, se assim não for considerado por Lei anterior;

- Assim, contrariamente ao que veio a considerar a Mº Juiz “a quo”, a sociedade recebeu e apropriou-se das importâncias que lhe foram remetidas pela Segurança Social, de forma legitima e por título translativo da propriedade, isto é, não recebeu tais importâncias a título precário como mera detentora e com a obrigação de as afectar a um fim especifico;

- Antes, recebeu tais importâncias como correlativo de um direito próprio que contratualizou com a Segurança Social e, por parte desta, no cumprimento de uma obrigação própria.

- Donde, não se encontrarem no caso, verificados os elementos objectivos do tipo de crime de que os Arguidos vinham acusados e pelos quais foram condenados.

Vejamos.

Na sequência do alegado importa em primeiro lugar verificar a que título recebe a entidade patronal a comparticipação de 70% da segurança social que se destina a integrar a retribuição do trabalhador no regime de lay-off.

E são as disposições legais sobre a matéria que nos podem fornecer a resposta.

O artigo 305º do Código do Trabalho preceitua:

Direitos do trabalhador no período de redução ou suspensão

1 - Durante o período de redução ou suspensão, o trabalhador tem direito:

a) A auferir mensalmente um montante mínimo igual a dois terços da sua retribuição normal ilíquida, ou o valor da retribuição mínima mensal garantida correspondente ao seu período normal de trabalho, consoante o que for mais elevado;

b) A manter as regalias sociais ou prestações da segurança social a que tenha direito e a que a respectiva base de cálculo não seja alterada por efeito da redução ou suspensão;

c) A exercer outra actividade remunerada.

2 - Durante o período de redução, a retribuição do trabalhador é calculada em proporção das horas de trabalho.

3 - Durante o período de redução ou suspensão, o trabalhador tem direito a compensação retributiva na medida do necessário  para, conjuntamente com a retribuição de trabalho prestado na empresa ou fora dela, assegurar o montante mensal referido na alínea a) do n.º 1, até ao triplo da retribuição mínima mensal garantida, sem prejuízo do disposto no n.º 5.

4 - A compensação retributiva é paga em 30 % do seu montante pelo empregador e em 70 % pelo serviço público competente da área da segurança social.

5 - Quando, durante o período de redução ou suspensão, os trabalhadores frequentem cursos de formação profissional adequados ao desenvolvimento da qualificação profissional que aumente a sua empregabilidade ou à viabilização da empresa e manutenção dos postos de trabalho, em conformidade com um plano de formação aprovado pelo serviço público competente na área do emprego e formação profissional, este paga o valor correspondente a 30 % do indexante dos apoios sociais destinado, em partes iguais, ao empregador e ao trabalhador, acrescendo, relativamente a este, à compensação retributiva prevista nos n.os 3 e 4.

6 - Os serviços públicos competentes nas áreas da segurança social e do emprego e formação profissional devem entregar a parte que lhes compete ao empregador, DE modo que este possa pagar pontualmente ao trabalhador a compensação retributiva, bem como o acréscimo a que haja lugar.

7 - O subsídio de doença da segurança social não é atribuído relativamente a período de doença que ocorra durante a suspensão do contrato, mantendo o trabalhador direito à compensação retributiva.

8 - Em caso de não pagamento pontual do montante previsto na alínea a) do n.º 1 durante o período de redução, o trabalhador tem direito a suspender o contrato nos termos do artigo 325.º

9 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto na alínea b) do n.º 1”.

Como verificamos o nº 4 do preceito é expresso no sentido de que 70% da compensação retributiva é paga pela segurança social e não que a entidade patronal é subsidiada nesse valor para fazer face ao pagamento da mesma. Isto significará a existência de uma obrigação da segurança social perante o trabalhador e não perante a entidade patronal.

E para reforçar esta conclusão temos o preceituado no nº 6 no sentido de que a segurança social entrega a parte que lhe compete à entidade patronal para que esta possa pagar pontualmente ao trabalhador a compensação retributiva, tornando claro mais uma vez que essa comparticipação está adstrita, tem como única finalidade, o pagamento do salário.

Se a esta formulação legal juntarmos a função social da segurança social e a finalidade que no caso se visa prosseguir de manutenção dos postos de trabalho afectados pelo regime de lay-off, o que dita o pagamento de parte substancial da compensação salarial devida, para garantir que o trabalhador receba o mínimo essencial e básico à sua dignidade e condição, durante esse período, mais se reforça a tese da sentença recorrida no sentido de que esta comparticipação da segurança social se destina efectivamente ao trabalhador, sendo a entidade patronal mero intermediário a quem compete efectuar o pagamento ao trabalhador. E existe razão evidente para que assim seja. É a entidade patronal que legalmente compete proceder aos legais descontos incidentes sobre a remuneração ilíquida.

Considerando assim a função da segurança social e o específico regime de lay off consignado no Código de Trabalho em confronto com a letra da lei, outra conclusão não se pode extrair senão no sentido de que a entidade patronal recebe a compensação remuneratória da segurança social não por direito próprio como é tese dos recorrentes, mas antes por título não translativo da propriedade e com a obrigação da respectiva transferência vinculada para a titularidade do trabalhador, posto que se destina ao pagamento da sua remuneração.

A tese de que a apropriação de tais quantias constituiria contraordenação também não pode colher.

Em primeiro lugar será importante considerar o disposto no artigo 20º do RGCO no sentido de que “se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, será o agente sempre punido a título de crime (…)”.

Mas por outro lado, vejamos o disposto no artigo 303º do Código do Trabalho sob a epígrafe “Deveres do empregador no período de redução ou suspensão”:

1 - Durante o período de redução ou suspensão, o empregador deve:

a) Efetuar pontualmente o pagamento da compensação retributiva, bem como o acréscimo a que haja lugar em caso de formação profissional;

b) Pagar pontualmente as contribuições para a segurança social sobre a retribuição auferida pelos trabalhadores;

c) Não distribuir lucros, sob qualquer forma, nomeadamente a título de levantamento por conta;

d) Não aumentar a retribuição ou outra prestação patrimonial atribuída a membro de corpos sociais, enquanto a segurança social comparticipar na compensação retributiva atribuída aos trabalhadores;

e) Não proceder a admissão ou renovação de contrato de trabalho para preenchimento de posto de trabalho susceptível de ser assegurado por trabalhador em situação de redução ou suspensão.

2 - Durante o período de redução ou suspensão, bem como nos 30 ou 60 dias seguintes à aplicação das medidas, consoante a duração da respetiva aplicação não exceda ou seja superior a seis meses, o empregador não pode fazer cessar o contrato de trabalho de trabalhador abrangido por aquelas medidas, exceto se se tratar de cessação da comissão de serviço, cessação de contrato de trabalho a termo ou despedimento por facto imputável ao trabalhador.

3 - Em caso de violação do disposto no número anterior, o empregador procede à devolução dos apoios recebidos, previstos nos n.ºs 4 e 5 do artigo 305.º, em relação ao trabalhador cujo contrato tenha cessado.

4 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto neste artigo.

Como facilmente se verifica o que vem previsto como infracção de natureza contra-ordenacional é a falta de pagamento pontual da retribuição, não a falta de pagamento porque a entidade patronal se apropriou da contribuição da segurança social destinando-a a outra fim que não o legalmente consignado. E esta é a situação que o processo revela.

Por outro lado a obrigação de devolução do valor recebido da segurança social que em determinados casos a lei prevê e que o recorrente convoca, igualmente apenas se compreende porque as quantias se destinam ao pagamento de salários, havendo que as devolver quando cessou a obrigação de pagamento por cessação do contrato de trabalho. É o que vem previsto no nº 3 acima transcrito.

Assim pelas razões que vêm expressas na decisão recorrida a descrita conduta do recorrente integra efectivamente os crimes de abuso de confiança que lhe foram imputados, devendo manter-se a sua condenação.


***

IV. Decisão

Nestes termos acordam em:

- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido;

- Corrigir o ponto 9 dos factos provados da sentença recorrida nos termos acima consignados, mantendo-a em tudo o mais.

Pelo seu decaimento em recurso vai o arguido condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC de acordo com a previsão do artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal.


***

Coimbra, 23 de Junho de 2015

(Texto elaborado e revisto pela relatora; a primeira signatária)


(Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)