Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
191/17.1GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO
PERÍCIA
PROVA VINCULADA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 01/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REENVIO (PARCIAL) DO PROCESSO
Legislação Nacional: ARTS. 127.º, 163.º E 165.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: I - O “relatório técnico-científico sobre um acidente de viação”, elaborado por um Prof. Doutor integrado no Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico, não constituindo uma perícia em técnico-jurídico, não está abrangido pelo particular regime previsto no artigo 163.º do CPP, donde se segue que as conclusões nele alcançadas não se presumem subtraídas à livre apreciação do julgador.

II – De facto, o que aquele documento verdadeiramente traduz é uma acessoria técnica ao tribunal, mobilizando conhecimentos de natureza técnico-científica e simulações computacionais efectuadas em programa adequado para o efeito, que permitem ao julgador formular as suas conclusões sobre a prova de uma forma cientificamente estruturada, devendo ser encarado como um parecer técnico (artigo 165.º, n.º 3, do CPP), incidindo sobre matéria de prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum (tribunal singular) supra referenciados, que correram termos pelo Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Velho, após julgamento com documentação da prova produzida foi proferida sentença decidindo nos seguintes termos:

(...)

Pelo supra exposto e ao abrigo das citadas disposições legais:

7.1. Quanto à acção Penal:

7.1.1. Decide-se absolver o arguido M. da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo, 137.º, n.º 1, do Código Penal, de que vinha acusado;

7.1.2. Decide-se absolver o arguido M. da pratica da contraordenação grave prevista e punida pelos artigos 31.º, n.ºs 1, alínea a), e n.º 2, 138.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea f), e 147.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada

7.1.3 Sem custas criminais, nos termos do disposto nos artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela III;

7.2. Quanto à acção Cível Enxertada:

7.2.1. Absolve-se da instância o demandado M. do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante P. (artigos 577.º, al e) e 278.º, n.º 1 al. d) do Código Processo Civil, “ex vi” artigo 4.º do Código de Processo Penal);

7.2.2. Julga-se totalmente improcedente, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante A. e, em consequência, dele absolvo a demandada MS, S.A. quanto a esse pedido;

7.2.3. Julga-se totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante P. e, em consequência absolvo a demandada MS, S.A. do pedido;

7.2.4. Julga-se totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS, I.P. e, em consequência, decide-se absolver a demandada MS, S.A. do pedido;

7.2.5 Custas dos pedidos de indemnização civil pelos respectivos demandantes civis, conforme artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil “ex vi” 523.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam aos demandantes (fls. 208 a 209 e 479 a 480).

            (…).

Recorre a assistente P., retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A. O Tribunal a quo ancora a convicção de que o arguido não tinha a obrigação de se ter apercebido da presença do motociclo, pelo menos a uma distância de 100m, com base, nomeadamente, nos depoimentos das testemunhas presenciais e das declarações do arguido,

B. Ora, não poderia nunca esse Tribunal a quo chegar a essa conclusão não fora ter ajuizado erroneamente na apreciação da prova, violando assim o disposto no artigo 410.º n.º 2 al. c) do CPP.

C. As testemunhas presenciais não referiram nos seus depoimentos que não viram a moto senão no momento do embate, antes pelo contrário, declararam tanto num caso como no outro que embora estivessem concentrados na manobra perigosa do arguido, viram a mota, sendo que, num caso ainda pensou em apitar e no outro pensar: já foste!

D. As próprias declarações do arguido apontam nesse sentido: apesar de se encontrar encadeado pelo sol rasante empreendeu a sua marcha devagar, sendo o principal responsável pelo acidente.

E. O Tribunal a quo, erra assim na apreciação da prova,

F. Dando como provado que a vítima poderia ter detectado a presença do arguido a pelo menos 100m (2.1.16 dos factos provados), mas o arguido não (2.1.2 dos factos não provados).

G. Independentemente da teoria da velocidade excessiva, um condutor como o arguido colocado naquelas condições de estrada, para circular sem colocar em risco a vida dos outros, tem de se aperceber de todos os veículos que podem circular na estrada que pretende atravessar.

H. Uma moto é menos perceptível na estrada que um automóvel ligeiro, camião, etc. sendo por essa razão que dispõe de um sistema de iluminação permanente que não se desliga nem pela vontade do condutor, porém, e ainda assim, só pode ser realizada aquela manobra perigosa se o condutor tiver esta consciência.

I. É essa a razão essencial do atravessamento de qualquer via ser considerada uma manobra perigosa, ainda assim o Tribunal a quo tentou mitigar esta evidência, este facto, chamando à manobra do arguido “legítima” e que este entrou na faixa de rodagem com “cautela” e efectuou a manobra de “forma lenta”.

J. Para ofuscar esta perspectiva do acidente, aquela que resulta do cruzamento dos depoimentos, de quem viu e interveio no acidente, o Tribunal a quo empenhou-se em elevar até aos píncaros a simulação computacional do IST e a reconstituição analítica encomendada pela demandada civil.

K. O Tribunal a quo acabou por proferir decisão sem atender à prova testemunhal presencial, por se encontrar imbuído pelos resultados desses estudos.

L. Também não atendeu a uma característica básica de qualquer condutor preventivo naquelas condições de estrada: a manobra de cruzamento de via de trânsito, neste caso, com duas hemifaixas de rodagem, deve ser realizado com cautela na aproximação e rápida na execução. Ora foi exactamente o contrário o que fez o arguido!

M. É entendimento da Recorrente, que, face ao acabado de referir, foram indevidamente considerados como provados os factos n.º 2.1.2, 2.1.4, 2.1.33, 2.1.16,

N. E dados como não provados, também indevidamente, os factos n.º 2.2.1., 2.1.2, 2.1.4., 2.2.5, 2.2.6.

O. A matéria dada como provada e não provada, atrás mencionada, além de não ter sustentação, face aos depoimentos das testemunhas citados, impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da sentença recorrida, considerando que o arguido praticou os factos imputados na acusação pública, os quais foram indevidamente dados com provados e não provados como atrás se enuncia.

P. No presente caso, as provas concretas sobre o comportamento delituoso imputado ao arguido, foram erroneamente apreciadas.

Q. Desta forma, o Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 97.º n.º 5, 127.º, 340.º, 374.º n.º 2 todos do Código do Processo Penal.

R. Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência ser a decisão recorrida substituída por outra que condene o arguido pelo crime de que vem acusado na acusação pública e da assistente.

S. E concomitantemente, seja dado provimento ao pedido de indemnização civil da recorrente, julgando-o procedente por provado.

T. Na opinião da Recorrente estamos perante uma situação de erro notório na apreciação da prova para a decisão da matéria de facto provada e não provada. Art. 410.º n.º 1 e 2 al. a) a c) do Código do Processo Penal.

Termos em que e nos melhores de direito deverá o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra revogar a sentença recorrida, substituindo-a por outra que condene o arguido do crime de que vem acusado e em consequência, dar como provado o pedido de indemnização civil da Recorrente fazendo-se a costumada, justiça!

O M.P. respondeu, concluindo pela forma seguinte:

(…).

A demandada MS, SA, por seu turno, respondeu pronunciando-se pela improcedência do recurso com a manutenção da sentença recorrida nos seus exactos termos.

Nesta instância, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e emitiu douto  parecer pronunciando-se pela procedência do recurso interposto pela assistente, a implicar a revogação da sentença recorrida por erro de julgamento e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, com a consequente condenação do arguido M. pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art.º 137º.1 do Cód. Penal; ou, se assim não se entender, ser o processo reenviado à 1ª instância, nos termos do art.º 426º, nº1, do CPP, a fim de ser proferida nova sentença, que tenha como assente que o arguido podia e devia ter-se apercebido da aproximação do motociclo conduzido por B., abstendo-se de continuar a manobra de entrada na EN 111 até que o mesmo ultrapassasse o ponto da via em que o veículo por si conduzido se encontrava imobilizado.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte:

- Impugnação do julgamento de facto;

- Vícios do art. 410º, nº 2, do CPP;

- Condenação do arguido pelo crime de homicídio negligente;

- Procedência do pedido cível.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

[Factos da Acusação Pública, da Acusação da Assistente, da Contestação da Demandada e resultantes da Discussão da Causa]

2.1.1. No dia 23 de Maio de 2017, pelas 20h10, B. circulava no motociclo de passageiros, de matrícula (….), sensivelmente ao quilómetro 26 da (E.N) Estrada Nacional 111, no sentido Figueira da Foz/Coimbra, pela metade direito a da faixa de rodagem, atento este sentido.

2.1.2. Imprimia ao motociclo uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 127 km/h.

2.1.3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido M., conduzindo o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula (…), saía de uma propriedade privada (oficina), situada do lado direito da referida estrada, atento o sentido Figueira da Foz/Coimbra e pretendia aceder à Estrada Nacional 111, para nela passar a circular no sentido Coimbra/Figueira da Foz.

2.1.4. Para o efeito, imprimindo velocidade não concretamente apurada, mas entre 4,5 e 6,5 km/h, ao veículo (…), o arguido atravessou a berma da estrada que, no local, tem cerca de 3,50 metros e entrou na faixa de rodagem direita, atento o sentido Figueira da Foz/Coimbra, perpendicularmente ao eixo da via.

2.1.5. Quando ocupava cerca de 1,30 metros da faixa de rodagem direita, atento a sentido Figueira da Foz/Coimbra, foi embatido pelo motociclo (….), colisão que ocorreu a 25,40 metros do ponto fixo de referência auxiliar (PFRA) e a 6,20 metros da linha guia (marca M19) mais afastada.

2.1.6. Ao aperceber-se da presença do veículo (…) ocupando parcialmente a faixa de rodagem por onde circulava (sentido Figueira da Foz/Coimbra), o condutor do motociclo (…), ainda travou e desviou-se para a esquerda, tentando evitar a colisão, o que não conseguiu.

2.1.7. A força principal do impacto ocorreu entre o guarda-lamas esquerdo frente do veículo conduzido pelo arguido (….) e a parte superior do depósito de combustível do motociclo (….);

2.1.8. Após a colisão, o veículo conduzido pelo arguido (….) imobilizou-se na berma direita, considerando o sentido Figueira da Foz/Coimbra, com a frente orientada no sentido de Coimbra, com o eixo da roda da frente esquerda a 7,50m da linha guia (marca M19) mais afastada e com o eixo da roda traseira esquerda a 7,80m da linha guia (marca M19) mais afastada, sendo que dali ao PFRA distavam, em relação ao eixo das rodas traseira e dianteira, 30,50m e 33,00m, respectivamente.

2.1.9. O motociclo (….), depois da colisão, ficou imobilizado fora da estrada, do lado esquerdo, numa ribanceira, a cerca de 78,00m do PRFA.

2.1.10. Com a colisão, B. foi projectado, ficando imobilizado no limite interior da linha guia (marca M19) da via esquerda da E.N111, considerando o sentido de marcha do motociclo (....), perpendicular à via, com a cabeça virada para norte, a cerca de 49,70m do PFRA.

2.1.11. O motociclo conduzido por aquele deixou uma marca de travagem com 18,50m de comprimento, com início a 3,80 do PFRA e a 6,80 da linha guia (marca M19) mais afastada e termo a 22,30m do PFRA e a 5,80 da linha guia (marca M19) mais afastada;

2.1.12. O motociclo (….) também deixou uma marca de derrapagem com 1,30m de comprimento, com início a 24,10m do PFRA e 6,25m da linha guia (marca M19) mais afastada e termo a 25,40m do PFRA e 6,15m da linha guia (marca M19) mais afastada.

2.1.13. O motociclo (….) também deixou uma marca de fricção, produzida pelas suas partes metálicas, com 11m de comprimento, com início a 51,00m do PFRA, em cima da linha guia (marca M19) no limite esquerdo da berma do lado esquerdo da estrada, considerando o seu sentido de marcha do motociclo (….).

            2.1.14. O veículo conduzido pelo arguido deixou uma marca de fricção com 1,20m de comprimento, provocada pelo pneu esquerdo da frente, com início a 25,40m do PRFA e 6,45m da linha guia (marca M19) mais afastada e com o fim a 26,60m do PRFA e a 6,20m da linha guia (marca M19) mais afastada.

2.1.15. Foram encontrados vidros, plásticos e outros componentes de ambos os veículos, com maior incidência, na via da direita daquela faixa de rodagem e fora da estrada do lado direito, considerando o sentido de marcha do motociclo (….).

2.1.16. B. poderia ter detectado a presença do arguido, pelo menos a uma distância de 100m.

2.1.17. No local, a estrada configura uma recta, com uma suave inclinação descendente, atento o sentido Figueira da Foz/Coimbra e com boa visibilidade.

2.1.18. O piso era betuminoso flexível, apresentando algum desgaste e algumas fissuras, mas em razoável estado de conservação, sendo que a superfície estava seca e limpa.

2.1.19. Não havia obstáculos na via, o sol estava baixo (crepúsculo), estando bom tempo.

2.1.20. Na berma do lado direito da estrada, considerando o sentido de marcha do motociclo (….), junto à propriedade privada de onde saía o arguido mas antes do local onde ocorreu o embate, estava estacionado, pelo menos, um veículo automóvel.

2.1.21. A velocidade máxima permitida no local era de 50km/h.

2.1.22. A faixa de rodagem era composta por uma via de trânsito para cada sentido de marcha, medindo 7,50m, sendo que a via da direita, considerando o sentido de marcha do motociclo (….), media 3,90 e a da esquerda media 3,60m.

2.1.23. A berma do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do motociclo (LJ), tinha a largura total de 3,50 metros, sendo 2,00m com pavimento betuminoso e 1,50m em terra e a berma do lado esquerdo media 2,00 com pavimento betuminoso.

2.1.24. No local, considerando sempre o sentido de marcha do motociclo (….), Figueira da Foz/Coimbra, havia a seguinte sinalização:

Vertical – Sinal D3a – Obrigação de contornar a placa ou obstáculo; Sinal C20c – Fim da proibição de ultrapassar.

Horizontal – Marcas M19 (guias que delimitam a faixa de rodagem apresentavam-se sumidas). Numa primeira fase marcas Ml (duas linhas longitudinais contínuas adjacentes para separação dos sentidos de trânsito – apresentava-se sumida). No Ponto de Conflito há a transição da marca Ml, para a marca M2 (linha descontínua – apresentava-se sumida).

2.1.25. Em consequência do embate, o veículo (….) ficou com a parte lateral esquerda da frente, entre o pára-choques e a roda, bem como a porta do lado esquerdo amolgadas, o compartimento do motor danificado e a grelha e pára-choques da frente completamente destruídos.

2.1.26. No capot do veículo conduzido pelo arguido (….) eram visíveis vestígios de sangue da vítima.

2.1.27. O motociclo conduzido por B. apresentava marcas do impacto na parte superior do depósito de combustível e marcas de arrasto na parte lateral direita.

2.1.28. O motociclo circulava com a luz de cruzamento ligada.

2.1.29. Por força da colisão, B. sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, toraco-abdominais e dos membros direitos que foram causa adequada da sua morte.

2.1.30. O seu óbito foi verificado no local pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM);

2.1.31. O resultado das análises toxicológicas feitas ao sangue de B. revelou uma taxa de alcoolemia que reportada ao momento da morte era de pelo menos, 0,75g/l.

2.1.32. O arguido foi submetido, no local, a teste de alcoolemia tendo apresentado uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,00g/l.

2.1.33. Se o motociclo circulasse a velocidade até 83 Km/h o acidente não teria ocorrido.

[Factos dos pedidos de indemnização civil]

(…).

[Outros factos relevantes]

(…).

[Das condições pessoais do arguido]

(…)

[Dos antecedentes criminais do arguido]

2.1.83. O arguido não tem antecedentes criminais.

Relativamente ao não provado foi consignado na sentença recorrida o seguinte:

Resultaram não provados todos os restantes factos, com relevo para a decisão da causa, nomeadamente:

[Da acusação pública]

2.2.1. O arguido, nas circunstâncias referidas em 2.1.4, invadiu a faixa de rodagem direita.

2.1.2. O arguido poderia ter-se apercebido da presença do motociclo, pelo menos a uma distância de cerca de 100 m.

2.2.3. A taxa de álcool no sangue do condutor do motociclo era, na altura do acidente, de 0,86 gramas/litro.

2.2.4. Ao conduzir da forma descrita, o arguido actuou violando os mais elementares deveres objectivos de cuidado a que bem sabia estar obrigado, sendo certo que tinha capacidade e podia prever os resultados descritos, nomeadamente a morte de B..

2.2.5. Ao actuar daquela forma, invadindo a via de trânsito em que seguia B., sem lhe ceder passagem, o arguido agiu de forma temerária, imprudente e descuidada, vindo a causar um resultado que podia e devia prever.

2.2.6. Agiu ainda o arguido com a maior falta de consideração pelas normas legais que regem a circulação automóvel e, ao tripular o veículo do modo e nas condições descritas não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estava ao seu alcance, omitindo as precauções exigidas pela condução automóvel.

2.2.7. Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

[Dos pedidos de indeminização civil e contestações aos mesmos]

(…)


*

(…).
O julgamento de facto foi fundamentado nos seguintes termos:
(…).

Apreciemos, pois, as questões suscitadas no recurso.

A recorrente alega terem sido indevidamente considerados como provados os factos n.º 2.1.2, 2.1.4, 2.1.33, 2.1.16 e também indevidamente não provados os factos n.º 2.2.1., 2.1.2, 2.1.4., 2.2.5, 2.2.6. estribando-se para o efeito no disposto no art. 410º, nº 2, al. c), do CPP. Logo no início das suas alegações afirma que «versa o presente recurso, não só matéria de direito, mas também matéria de facto, atento ao disposto no artigo 410.º n.º 2, al. c) do Código do Processo Penal, porquanto, consideramos ter existido erro notório na apreciação da prova, que resulta do texto da decisão recorrida e das declarações e depoimentos transcrito». Evidencia-se assim como manifesta a confusão entre duas formas de impugnação previstas no Código de Processo Penal, a saber, a impugnação ampla da matéria de facto e a revista alargada. Ambas visam o conhecimento da matéria de facto pelo tribunal ad quem, mas não se confundem nem se sobrepõem, sendo distinto o respectivo objecto, pressupondo metodologias distintas de impugnação. Na verdade, a impugnação da matéria de facto com recurso à prova produzida em audiência tem como objecto o julgamento, enquanto a revista alargada recai sobre a decisão tal como resulta do texto em que foi formalizada.

Apesar do apelo que faz ao art. 410º, nº 2, c), resulta do alegado que a recorrente discorda da forma como o tribunal valorou a prova produzida e fixou a matéria de facto, o que vem a traduzir-se em impugnação da matéria de facto. Contudo, configurou o recurso sem atentar verdadeiramente nos requisitos da impugnação ampla que, para ser atendível, pressupõe a efectiva impugnação dos factos provados ou não provados por recurso aos meios de prova de que o tribunal se serviu ou a que deixou de atender para cada um dos factos questionados. O respectivo regime legal, segundo o pacífico entendimento sedimentado na jurisprudência, não dispensa a visão de conjunto do processo penal, pressupondo a conjugação de toas as normas relevantes. Vejamos:

A acta da audiência contém, por força do estipulado no nº 1, al. d), do art. 362º, “(...) a indicação de todas as provas produzidas ou examinadas em audiência”. Complementarmente, dispõe o art. 363º que “as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”. O nº 2 do art. 364º acrescenta que “além das declarações prestadas oralmente em audiência, são objeto do registo áudio ou audiovisual as informações, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais”. O nº 3 do mesmo artigo estatui que “quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número anterior”.

Este conjunto de normas foi gizado, além do mais, para salvaguardar o recurso amplo da matéria de facto, garantindo assim o duplo grau de jurisdição também em matéria de facto. Pretendendo o recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, deverá indicar “os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados”, bem como “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”. Do mesmo modo, pretendendo a renovação da prova, deverá indicar “as provas que devem ser renovadas” [art. 412º, als. a), b) e c)].

As especificações previstas nas citadas alíneas b) e c) fazem-se “(…) por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”, conforme se prevê no nº 4 do art. 412º, o que não significa que apenas os segmentos indicados pelo recorrente venham a ser ouvidos, já que nos termos do nº 6, o tribunal de recurso procederá à audição “(…) das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa”.

Assim, impugnando um determinado ponto de facto, que concretizará, o recorrente terá que indicar as provas que fundamentam a impugnação, identificando os depoentes ou declarantes cujas afirmações corroboram a posição sustentada, indicando, por referência ao consignado na ata, as passagens concretas que fundamentam a discordância relativamente ao aspeto em análise. A referência da lei à concretização das passagens em que o recorrente funda a impugnação implica a indicação dos correspondentes segmentos através da menção do respetivo momento de gravação, como claramente se infere da conjugação dos nºs 4 e 6 do art. 412º.

Subjacente a estas exigências legais estão razões de ordem prática: garantir que o recorrente não reduz a sua impugnação a considerandos genéricos sobre o sentido da prova e a credibilidade dos depoimentos, responsabilizando-o pela indicação precisa dos elementos que em sua opinião impõem uma decisão diversa da recorrida, indicando o trecho do depoimento que pretende invocar e a sua exacta localização na gravação; e, simultaneamente, assegurar um acesso simples e preciso ao segmento do depoimento que o recorrente entende sustentar a sua posição, garantindo que o tribunal superior não será colocado na contingência de ter que ouvir todo um depoimento, porventura extensíssimo, para aceder a um segmento que poderá não exceder escassos minutos.

Tenha-se ainda presente que a reapreciação da prova gravada não visa a realização de um novo julgamento em sede de recurso, mas apenas a apreciação de concretos erros de julgamento na apreciação da prova, visando a alteração da correspondente matéria de facto pelo tribunal de recurso, seja por inexistência de prova que suporte os factos provados, seja por existência de elementos que imponham uma leitura diversa da prova, seja ainda por violação de incontornáveis regras decorrentes do senso comum. Não é admissível uma impugnação genérica, fundada na generalidade de um ou mais depoimentos, nem basta, para que o tribunal superior proceda à alteração da matéria de facto, que a prova consinta uma diferente leitura, exigindo-se que a prova verdadeiramente imponha a conclusão pretendida pelo recorrente.

A recorrente concretizou os factos que considera incorretamente julgados e as provas que no seu entendimento sustentam a posição que assumiu relativamente à matéria que impugna, nomeadamente, os depoimentos que entende apontarem para um resultado diverso daquele que se teve como provado. Limitou-se, no entanto, a indicar os tempos de gravação de cada um desses depoimentos – o início e o fim de cada um deles – omitindo a menção dos segmentos relevantes, que substituiu por uma síntese dos depoimentos. Esta indicação genérica, reportada à totalidade da gravação de cada um dos depoimentos, de nada serve, não suprindo a necessidade de indicação dos segmentos relevantes, essencial para que o tribunal de recurso possa conhecer com exatidão os fundamentos da impugnação e aceder às passagens relevantes.

Sendo a possibilidade de correcção do recurso limitada às respectivas conclusões e não podendo o aperfeiçoamento modificar o âmbito do recurso fixado na motivação (art.º. 417º, nº 4), a ausência de indicação dos elementos em falta na motivação torna inoperante e, consequentemente, inútil, a formulação de convite de correcção.

Constitui jurisprudência pacífica deste tribunal, na esteira, aliás, do que vem sendo decidido pelo STJ, que não dando o recorrente cumprimento ao legalmente estipulado não pode o tribunal de recurso suprir a sua omissão por a sua intervenção na apreciação do julgamento de facto se cingir à apreciação de erros de julgamento inequivocamente identificados pelo recorrente.

Excluída a possibilidade de conhecimento da matéria de facto por via da impugnação ampla, subsiste a possibilidade de esta Relação conhecer de facto nos estritos limites consentidos pela revista alargada, ou seja, conhecendo dos vícios previstos nas alíneas do art. 410º, nº 2, desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, excluindo-se a possibilidade da sua verificação por recurso a elementos externos, nomeadamente, por recurso a meios de prova produzidos em audiência, como resulta do proémio desse nº 2. Estes vícios são, aliás, de conhecimento oficioso pela instância de recurso e a sua verificação dará lugar ao reenvio do processo para novo julgamento sempre que o tribunal não possa modificar a decisão sobre matéria de facto, nomeadamente, por não ter havido renovação da prova nem válida impugnação da matéria de facto, ou se não constarem dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão [1].

É à luz deste enquadramento que há que apreciar o texto da decisão em crise, ponderando, desde logo, a argumentação expendida pela recorrente.

Para a apreciação da coerência da decisão de facto relevam de sobremaneira três pontos, que em função da prova produzida foram considerados assentes e que a recorrente, aliás, não questiona:

- B. circulava, por ocasião do evento que o vitimou, na EN nº 111, no sentido Figueira da Foz – Coimbra, pela metade direita da via, atento o seu sentido de marcha, tripulando um motociclo de passageiros (LJ);

- Na mesma ocasião o arguido M. conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias (…), saindo de uma propriedade privada situada do lado direito daquela estrada, atento o sentido de marcha do motociclo;

- O arguido pretendia atravessar a metade direita da faixa de rodagem daquela via para passar a circular no sentido Coimbra – Figueira da Foz, portanto, no sentido oposto àquele em que circulava o motociclo.

Fornecendo este enquadramento um “ponto de partida” seguro para o desenvolvimento do acidente que ocorreu instantes depois, vejamos se são passíveis de censura os factos que geram a discordância da recorrente.

Relativamente ao provado questiona a recorrente, recorde-se, o que veio a ser vertido sob os nºs 2.1.2, 2.1.4, 2.1.33 e 2.1.16. e quanto ao não provado, os factos n.º 2.2.1., 2.1.2, 2.1.4., 2.2.5, 2.2.6.

Vista a decisão recorrida à luz dos considerandos antes enunciados, no que concerne à velocidade de cada um dos veículos a motivação de facto proporciona coerente fundamentação, estribada em análise de natureza técnico-científica. É certo que o relatório invocado na motivação, elaborado por solicitação do tribunal na sequência de promoção do M.P. nesse sentido, não constitui uma perícia em sentido técnico-jurídico. Nessa medida, o seu conteúdo não está abrangido pelo particular regime previsto no art. 163º do CPP, donde se segue que as conclusões nele alcançadas não se presumem subtraídas à livre apreciação do julgador, contrariamente ao estatuído para o regime das perícias pelo nº 1 do art. 163º. O que este documento verdadeiramente traduz é uma assessoria técnica ao tribunal, mobilizando conhecimentos de natureza técnico-científica e simulações computacionais efectuadas em programa adequado para o efeito, que permitem ao julgador formular as suas conclusões sobre a prova de uma forma cientificamente estruturada. Deve, pois, ser encarado como um parecer técnico (cfr. art. 165º, nº 3) incidindo sobre matéria de prova, elaborado com recurso a especiais conhecimentos de natureza técnica e a métodos cientificamente comprovados, e como tal submetido ao crivo do julgador no âmbito da livre apreciação da prova como coadjuvante da decisão, posto que este tipo de parecer, em bom rigor, não constitui um meio de prova [2].

De todo o modo, o tribunal recorrido analisou e atribuiu particular valor à análise e conclusões constantes desse documento, em sede de recurso não vem expendida argumentação de natureza técnico-científica que permita questionar as conclusões alcançadas pelo Mº Juiz com recurso àquele documento nem este tribunal de recurso encontra na fundamentação exarada, relativamente aos factos 2.1.2 e 2.1.4., fundamento que, em confronto com a restante matéria de facto ou com a motivação, ainda que por recurso às regras da experiência comum, permita concluir pela verificação de insuficiência, erro notório, ou contradição insanável.

Observa-se, quanto à matéria assente sob o nº 2.1.33, “Se o motociclo circulasse a velocidade até 83 Km/h o acidente não teria ocorrido”, que excede a conclusão de facto consentida pelas premissas em que assenta, entrando no domínio do hipotético ou conjectural. Trata-se de afirmação conclusiva, retirada do parecer técnico e que a sentença acolheu, se bem que em termos de facto apenas seja possível afirmar que se o motociclo circulasse a uma velocidade que não excedesse os 83 Km/h, no momento em que atingisse o ponto onde ocorreu o embate a via já não se encontraria obstruída pelo veículo tripulado pelo arguido (desde que, ainda assim, o condutor do motociclo efectuasse uma travagem), o que não significa necessariamente que o acidente não teria ocorrido, mas apenas que não teria ocorrido a colisão do motociclo com o veículo tripulado pelo arguido (subsistindo a possibilidade de uma travagem e queda da vítima por força do atravessamento da via pelo arguido. O exercício da condução de veículos motorizados, pelos riscos que comporta, tende a incutir particulares mecanismos de defesa no subconsciente do condutor, que desencadeiam actuações reflexas ou mecanizadas, sendo o exemplo mais evidente a tendência dos condutores para travarem quando surge um obstáculo inopinado; donde se segue que a dinâmica dos acidentes de viação, extremamente dependente de uma vertente do comportamento humano que excede o âmbito do racional, não permite afirmar que um acidente não teria ocorrido se a vítima circulasse a uma velocidade não superior a 83 Km/h, ainda que a sua ocorrência fosse consideravelmente menos provável).

Quanto ao facto 2.1.16., “B. poderia ter detectado a presença do arguido, pelo menos a uma distância de 100m”, a motivação explicou coerentemente por recurso a um pensamento lógico-dedutivo e racional a conclusão alcançada. Relembremos o correspondente trecho da motivação: “A factualidade vertida no ponto 2.1.16 (visibilidade por parte do condutor do motociclo) resultou da prova acima mencionada, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas presenciais (BS e GC) e das declarações do arguido, que declararam, em uníssono, a visibilidade que tinham e descreveram o local, bem como no teor do relatório técnico-científico já referido e nos demais elementos que já constavam do inquérito, nomeadamente auto de noticia e participação de acidente de fls. 115 a 120, croquis de fls. 83, auto de exame ao local de fls. 84 a 87 e do relatório fotográfico, nomeadamente de fls. 95”. Nada se detecta no texto da decisão recorrida que permita questionar o vertido neste facto.

Já se poderá oferecer como menos linear e com aparência de contradição o consignado como não provado sob o nº 2.2.1, “O arguido, nas circunstâncias referidas em 2.1.4, invadiu a faixa de rodagem direita”, se analisado a par dos segmentos dos factos provados 2.1.4. “(…) o arguido (…) entrou na faixa de rodagem direita, atento o sentido Figueira da Foz/Coimbra, perpendicularmente ao eixo da via”, 2.1.5., “Quando ocupava cerca de 1,30 metros da faixa de rodagem direita, atento a sentido Figueira da Foz/Coimbra…” e 2.1.6, “Ao aperceber-se da presença do veículo (…) ocupando parcialmente a faixa de rodagem por onde circulava (…)”. No entanto, a análise atenta da motivação revela que foram acautelados os riscos de  contradição entre o provado e o não provado, posto que aí se refere que “O consignado no ponto 2.2.1 como não provado, ou seja, que o arguido tenha “invadido” a faixa de rodagem direita, advém da fundamentação já exposta, uma vez que se provou que o arguido vinha a uma velocidade entre 4,5 km/ e 6,5 km/h, pois que invadir significa “entrar pela força; irromper; penetrar de forma hostil ou intrusiva em” (conforme https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/invadir, dicionário digital da Porto Editora, consultado em 27/10/2020). Ora, resultou mais que provado, quer por força do relatório do Instituto Técnico, quer por força do depoimento das testemunhas presenciais (BS e GC) que o arguido entrou na faixa de rodagem com cautela e a efectuou a manobra de uma forma lenta, pelo que jamais poderia invadir, no sentido de “entrar pela força”. Assim, apenas se consignou no ponto 2.1.4 que o arguido “entrou na faixa de rodagem da direita”. Tratar-se-á, verdadeiramente, de um preciosismo de linguagem, mas teve em vista explicitar, com rigor, sublinhe-se, o ponto de vista do julgador relativamente à forma como ocorreu a entrada do arguido na EN nº 111, por onde pretendia passar a circular.

Outro ponto polémico e contra o qual a recorrente se insurge reside na circunstância de ter sido considerado não provado sob o nº 2.1.2., que “O arguido poderia ter-se apercebido da presença do motociclo, pelo menos a uma distância de cerca de 100 m”, nomeadamente, se visto em contraponto com o facto provado 2.1.16., “B. poderia ter detectado a presença do arguido, pelo menos a uma distância de 100m”.

No que a este particular aspecto concerne adiantarmos desde já que a decisão é contraditória com as premissas de que parte, na medida em que por apelo aos pressupostos considerados no relatório técnico constante dos autos menciona que “no inicio da manobra do veículo ligeiro o motociclo estaria no seu campo de visão”, para mais tarde adiantar que “não se provou que o arguido tivesse sido encadeado pelo sol ou até que eventuais veículos estacionados na berma (provou-se efectivamente que pelo um estava estacionado, no entanto não se provou que tal afectasse a visibilidade) tenham interferido na visibilidade deste”. Conclui, não obstante, pela ausência de prova do facto 2.2.2 nos seguintes termos: “(…), ,teve que se considerar como não provado o facto do arguido ter a obrigação de se ter apercebido da presença do motociclo, pelo menos a uma distância de cerca de 100 m (ponto 2.2.2), uma vez que, conforme já exposto, face à velocidade a que circulava o referido motociclo (conforme resulta do relatório técnico-científico elaborado pelo Instituto Técnico de Lisboa) e considerando os depoimentos das testemunhas presenciais (BS e GC) e as declarações do arguido, não era exigível que o arguido se apercebesse de tal motociclo, pois também dele não se aperceberam as referidas testemunhas (só viram o motociclo no momento do embate, não obstante a respectiva posição privilegiada em termos de visibilidade pois circulavam na faixa contrária e com grande visibilidade), presume-se pela velocidade a que este circulava. (…)”.

Ressalta com cristalina evidência deste trecho da motivação que o julgador se desviou da fundamentação do facto objectivo, arredando a consideração da possibilidade de o arguido se aperceber da presença do motociclo – e era isso que estava em causa – para se centrar na exigibilidade de o arguido dele se aperceber, confundindo possibilidade com exigibilidade, como, aliás, bem notou o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer. O facto objectivo descrito na acusação e sobre o qual o tribunal a quo tinha que se pronunciar em sede de matéria de facto, considerando-o como provado ou como não provado, fundamentando depois a sua resposta, consistia apenas e tão-só em saber se o arguido se poderia ter apercebido da presença do motociclo pelo menos a uma distância de cem metros. A questão de saber se lhe era exigível que dele se apercebesse já não constitui questão de facto, a exigir pronúncia nessa sede, mas questão que haveria que discutir na abordagem jurídica da decisão, valorando a matéria de facto no seu conjunto e retirando todas as ilações com relevância jurídica consentidas pelas premissas. Dito de outro modo, a discussão em torno da velocidade de cada um dos veículos, visibilidade da via e demais elementos assentes poderia eventualmente admitir a conclusão de que naquelas concretas circunstâncias não era exigível que o arguido se tivesse apercebido da presença do motociclo. Contudo, ao antecipar a discussão deste tema para a motivação do provado, o tribunal acabou por se afastar da linha de raciocínio que lhe era imposta pela matéria de facto balizada pela acusação, para decidir em sede de fundamentação de facto uma questão que aí não tinha cabimento, descurando a possibilidade de o arguido se aperceber do motociclo e pronunciando-se sobre a exigibilidade de dele se aperceber. Como consequência, acabou por exarar uma fundamentação que contradiz o facto não provado, na medida em que as considerações sopesadas fundamentariam a resposta contrária. Incorreu assim em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Este vício, com sede legal no art. 410º, nº 2, al. b), do Código de Processo Penal, e gerador de nulidade, é verificável por exclusivo recurso ao texto da decisão recorrida e decorre da insuperável oposição entre a realidade afirmada como não provada no facto nº 2.2.2, facto com relevo para a apreciação do thema decidendum, e a correspondente fundamentação, que aponta precisamente no sentido oposto. A incongruência apontada, que não pode, no caso, ser suprida pelo tribunal de recurso, uma vez que não houve válida impugnação da matéria de facto, obsta à decisão do recurso, obrigando ao reenvio do processo para novo julgamento relativo à questão geradora da contradição, nos termos previstos no art. 426º, nº1, do CPP, ficando salva a possibilidade de o tribunal a quo alterar a matéria de facto que porventura conflitue com a nova decisão a proferir para sanar aquele vício, decidindo depois de direito em conformidade com a matéria que tiver como assente.

Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativo à questão de facto supra identificada – o arguido poderia ter-se apercebido da presença do motociclo, pelo menos a uma distância de cerca de 100 m – suprindo a contradição que se apontou, ficando salva a possibilidade de o tribunal a quo alterar a matéria de facto que porventura conflitue com a nova decisão a proferir, decidindo depois de direito em conformidade com a matéria que tiver como assente.

Sem taxa de justiça.


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Coimbra, 19 de Janeiro de 2022

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira - adjunta)


[1] - Ainda que constem dos autos todos os elementos de prova em que assentou a decisão recorrida, se não tiver havido válida impugnação de facto nos termos previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, o Tribunal da Relação não poderá alterar a matéria de facto. Note-se que a faculdade conferida pela al. a) do art. 431º tem aplicação limitada aos casos em que a prova de julgamento é exclusivamente documental ou pericial, não implicando a produção de depoimentos em audiência e a respectiva documentação da prova. Sobre o tema, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Ed., anot. ao art. 431º, pág. 1172; Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30/01/2002, CJ, ano XXVII, tomo 1, pág. 44.
[2] - Para desenvolvimento do tema, cfr. António Latas, in «Comentário Judiciário do Código de Processo Penal», tomo II, pág. 393, §§ 21 e 22.