Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/19.0T8VLF-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO E COLABORAÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA, VILA NOVA DE FOZ COA, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.23, 24, 66, 68, 75, 83, 186, 235, 238 CIRE
Sumário: 1.- A actuação omissiva dos devedores, ao não indicarem a totalidade dos seus créditos e credores constitui violação culposa dos mencionados deveres de informação e colaboração, encontrando-se, por isso, comprovados os requisitos previstos na al. g), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, e justificada a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração formulado pelos devedores.

2.- A verificação das situações previstas no art.238 CIRE não é cumulativa, mas sucessiva.

Decisão Texto Integral:











            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

No requerimento de apresentação à insolvência, os devedores/apresentantes, M (…) e E (…) já identificados nos autos, requereram a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos artigos 235.º e ss. do CIRE.

Tendo sido declarados insolventes, veio a decretar-se o respectivo processo de insolvência, e tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante, O Ministério Público, em sede de assembleia de credores, disse abster-se de se pronunciar por a mesma não prejudicar os créditos do Estado.

A C (…) pronunciou-se pelo indeferimento liminar do mesmo, pelos fundamentos previstos no artigo 238.º/1, d) do CIRE.

Em sede de assembleia de credores foram pedidos aos insolventes esclarecimentos quanto ao arrolamento de bens feito pela Senhora AI, necessários para proferir o despacho liminar referente à exoneração do passivo restante, uma vez que os insolventes haviam declarado na petição inicial, que não seriam titulares de qualquer bem ou direito.

A Senhora AI pronunciou-se, por requerimento de 01-07-2019, referindo que os Insolventes dissiparam todo o seu património (cf. ainda requerimento da Senhor AI de 17-5-2019), tendo doado todos os seus bens imóveis à sua filha, o que, no seu entender, constituiu uma manobra para prejudicar os credores.

Foram notificados a Senhora AI, os credores e os Insolventes para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 238.º/1, e).

Os Insolventes disseram que não se verificam os pressupostos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Referem, em síntese, o seguinte. De acordo com o artigo 186.º/1 do CIRE «a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência». Todos os atos de disposição de antigos bens dos insolventes, ocorreram fora dos três anos anteriores ao início do respetivo processo. Concluem, assim, que a insolvência nunca poderá ser considerada culposa e que, por isso, não poderá ser indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

O credor Banco (…) S.A. pronunciou-se a favor do indeferimento liminar pelo facto de, no seu entender, os insolventes se terem despojado do seu património indiciariamente com o desígnio de prejudicar os credores.

A C (…) pronunciou-se a favor do indeferimento liminar, pelas mesmas razões.

A Senhora AI pronunciou-se no sentido do indeferimento liminar, nos termos dos artigos 238.º/1, e) e 186.º/1 a), ambos do CIRE

Refere, em síntese, que o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferido se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado, no decurso do processo, os deveres de informação, apresentação e colaboração, que para eles resultam do artigo 238.º/1, g) do CIRE. Que os devedores referiram no artigo 23.º da P.I que não são titulares de quaisquer bens moveis, imóveis ou outros direitos suscetíveis de fazer face ao seu passivo, não fazendo referência em parte alguma ao repúdio da herança, por se considerar que esse repúdio é resolúvel em benefício da massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 121.º/1 b) do CIRE. Que face a tal, conclui que houve intuito de prejudicar os credores.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz, este, cf. decisão proferida em 21 de Setembro de 2019, (aqui recorrida), decidiu o seguinte:

“Em face do todo o supraexposto, indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante requerido pelos insolventes, seja com base na alínea e), seja com base na alínea g), ambas do artigo 238.º/1 do CIRE.”.

Inconformados com a mesma, dela interpuseram recurso, os requerentes/insolventes, E (…) e M (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 21), apresentando as seguintes conclusões:

(…)

Respondendo, o MP, em 1.ª instância, pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos nesta expendidos, designadamente, a existência de uma enorme discrepância entre os débitos declarados pelos insolventes, no requerimento inicial da insolvência, e os que vieram a ser reclamados, sendo que a existência de tais débitos não está subordinada à existência de processos executivos, que a eles respeitem, o que revela culpa grave por parte dos requerentes na omissão dos deveres de informação a que estavam obrigados.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, ora recorrentes, com base no disposto no artigo 238.º, n.º 1, al.s e) e g), do CIRE, por estes, no requerimento inicial da insolvência, apenas terem declarado serem devedores da C(…), no montante de 174.400,64 € e na sentença de verificação e graduação de créditos terem sido reconhecidos créditos, num total de 1.707.722,79 € e, por terem doado a sua filha, em 28 de Julho de 2014, 10 prédios rústicos e 4 urbanos.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

1. M (…) e E (…) apresentaram-se à insolvência no dia 01-03-2019.

2. Foi declarada a sua insolvência por sentença de 13-03-2019, já transitada em julgado;

3. Com a petição inicial juntaram os insolventes um documento onde declararam o seguinte:

«para os devidos efeitos legais, nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 24.º do CIRE, declaram os requerentes, ao dia de hoje, que não são titulares de qualquer bem móvel, imóvel ou de outro direito legal.

4. Em sede de petição inicial, os insolventes declaram ter como credores apenas a C (…)um crédito no montante de 174.400,64 EUR;

5. A AI juntou auto de arrolamento, indicando o seguinte:

a. Verbas 1 a 12: vários bens imóveis relativos a uma herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A (…) e J (…) pais do insolvente;

b. Verba 13: Conta depósitos a prazo nr. 2528820556, com saldo de 26.606,43 EUR, do Banco (…), SA;

c. Verba 14: Conta à ordem nr. 50052699177, com saldo de 2.610,80 EUR, do Banco Comercial Português, SA;

d. Verba 15: viatura automóvel com a matrícula QD (...) registada em nome do insolvente, com valor comercial a apurar;

e. Verba 16: Viatura Automóvel com a matrícula RA (...) registada em nome da insolvente, com valor comercial a apurar;

f. Verba 17: Crédito no valor de 10.730,47 EUR a receber do processo n.º 24/12.5TBVLF;

g. Verba 18: Prédio urbano constituído por casa térrea, sita em (...), freguesia e concelho de (...), descrito na Conservatória de Registo Predial de (...) com o nº 2148.

6. No relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, declarou a Senhora AI o seguinte: foram rececionadas 7 (sete) reclamações de créditos, a Autoridade Tributária e Aduaneira, o Banco (…) SA, o Banco (…), SA, , a C (…) o I (…) a N (…) o N (…) S. A..

7. Por sentença de verificação e graduação de créditos, proferida no dia 13-09-2019, foram reconhecidos os seguintes créditos num total de 1.707.722,79 EUR.

a) Créditos garantidos e privilegiados

i. Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de 54,00 EUR;

ii. Banco (…), SA, Sociedade Aberta 60.913,69 EUR;

b) Comuns

i. Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de 353.602,65 EUR;

ii. Banco (…), SA, no valor de 68.131,13 EUR;

iii. Banco (…), SA, Sociedade Aberta, no valor de 3.714,92 EUR;

iv. C (…), no valor de 558.839,33 EUR;

v. I (…), no valor de 609.931,68 EUR;

vi. N (…), SA, no valor de 35.685,95 EUR;

vii. N (…)., no valor de 16 849,44.

8. No dia 28-07-2014, os insolventes doaram à sua filha (…) um total de 14 prédios, 10 rústicos e 4 urbanos;

9. No ano de 2014, os insolventes repudiaram a herança deixada por óbito de A (…) e J (…)pais do insolvente;

10. Declararam os insolventes na sua petição inicial, que a partir do ano de 2008, com a diminuição abrupta das contratações públicas, e os bloqueios operados pelas instituições bancárias, não permitiram, por muito que fosse tentado, liquidar as dívidas contraídas com as entidades bancárias e assim estabilizar o passivo (…) Ou seja, as empresas tituladas pelos ora requerentes entraram em incumprimento generalizado das suas obrigações, levando à responsabilização solidárias dos mesmos.

Se deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, ora recorrentes, com base no disposto no artigo 238.º, n.º 1, al.s e) e g), do CIRE, por estes, no requerimento inicial da insolvência, apenas terem declarado serem devedores da C(…), no montante de 174.400,64 € e na sentença de verificação e graduação de créditos terem sido reconhecidos créditos, num total de 1.707.722,79 € e, por terem doado a sua filha, em 28 de Julho de 2014, 10 prédios rústicos e 4 urbanos.

Como resulta do relatório que antecede e da alegação dos recorrentes, este insurgem-se contra a decisão recorrida, a qual, no seu entender, devia ter deferido liminarmente o pedido em referência, com o fundamento no facto de os insolventes não terem violado, culposamente, o dever de informação, relativamente aos créditos existentes, uma vez que identificaram a única execução que pendia contra eles, não tendo conhecimento dos demais créditos que vieram a ser reconhecidos nos autos, porque, uns, respeitavam a créditos originários das empresas por si tituladas e outros porque deles não conheciam, em virtude de nunca terem sido alvo de interpelação para pagamento.

Já no que se refere à previsão da alínea e), alegam que a mesma é de afastar porque, desde logo, não se verifica o requisito temporal de três anos referido no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, nem existem elementos nos autos que permitam concluir que os requerentes agiram com culpa, na criação ou agravamento da situação de insolvência.

Ao invés, na decisão recorrida, como resulta do relatório que antecede, considerou-se que os insolventes violaram os deveres de informação a que estavam adstritos, ao não indicarem a totalidade dos débitos que assumiram, o que se enquadra na previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. g), do CIRE e por terem feito a referida doação a sua filha, o que criou e/ou agravou a situação de insolvência, o que preenche a situação prevista na alínea e) do ora citado preceito.

Desde logo, cumpre mencionar que como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2015, a pág. 855, não é ao devedor que incumbe fazer prova dos requisitos previstos no n.º 1, cabendo aos interessados invocar e demonstrar que não se verificam, ali indicando vária jurisprudência, nesse sentido.

Para além dos Arestos ali citados, pode, ainda, exemplificativamente, ver-se, no mesmo sentido, o Acórdão do STJ, de 14 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, no qual se decidiu que “o ónus da prova dos requisitos descritos no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, incumbe aos credores”.

Resumidamente, aduziu-se na decisão recorrida, para indeferir liminarmente o requerido pedido de exoneração do passivo restante, que os requerentes ao não declarar no requerimento inicial a totalidade dos débitos, em tão grande diferença, agiram com dolo, violando os deveres de informação a que estavam obrigados, não sendo crível que os desconhecessem, assim, violando o disposto na referida alínea g).

Acrescentando-se que a “relação de todos os credores é da maior importância para decidir diversos aspectos dos autos de Insolvência – vejam-se, além do preenchimento de requisitos para a própria declaração de insolvência, a eventual nomeação de Comissão de Credores, a citação pessoal dos cinco maiores credores, a decisão sobre o pedido de exoneração do passivo restante e do incidente de qualificação da insolvência – e a lei atribui-lhes essa relevância, ao sancionar com o indeferimento liminar a sua não apresentação. E uma apresentação cujos elementos sejam exatos e completos».

(…)

«para os efeitos da pretendida exoneração do passivo, esses deveres assumem uma importância particular, na medida em que o seu cumprimento ou incumprimento são indícios da retidão da conduta do devedor, tendo em vista a avaliação sobre se é ou não merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante proporciona».

No que se refere à previsão da alínea e), considerou-se que os insolventes se desfizeram do seu património imobiliário numa altura em que, face aos factos que narram na petição inicial, sabiam que já não conseguiriam liquidar as suas obrigações.

Vejamos, então, face à factualidade dada como provada (e não questionada nesta sede, não obstante as referências genéricas feitas pelos recorrentes a “erro notório na apreciação da prova; erro de interpretação dos factos”, o que não equivale a um recurso de facto, tal como previsto no artigo 640.º do CPC); se existem, ou não, razões para ser, como o foi, liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelos ora recorrentes.

Constam do artigo 237.º do CIRE, os pressupostos da efectiva concessão da exoneração do passivo restante.

Sem esquecer que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”.

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e tem como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[1].

É assim uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade”[2].

Por outro lado, constam do disposto no artigo 238.º, n.º 1, os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Como referem Carvalho Fernandes e Luís Labareda, in ob. cit., pág.854/5, as suas alíneas b) a g) “definem, embora pela negativa, requisitos de cuja verificação depende a exoneração, podendo reconduzir-se a três grupos diferentes.

Respeita um deles a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram [als. b), d) e e)]; outro compreende situações ligadas ao passado do insolvente [als. c) e f)]; finalmente a al. g) configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência”.

Ora, dispõe-se no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE (no que ao presente recurso interessa) o seguinte.

“1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

(…)

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;

(…)

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

Assim, resulta desta alínea g) que a mesma pressupõe, para a verificação da situação nela prevista, que o devedor tenha violado os deveres de informação e que esta lhe seja imputável a título de dolo ou culpa grave.

Referem os recorrentes que não actuaram nem com dolo, nem com culpa grave, porquanto indicaram a única execução que pendia contra eles e que desconheciam a existência dos demais créditos posteriormente reconhecidos, por serem de responsabilidade originária das empresas que detinham e, relativamente aos quais, não tinham sido interpelados para o respectivo pagamento.

Como se refere no Acórdão desta Relação e Secção, de 20 de Março de 2018, Processo n.º 4694/15.4T8VIS-D.C1, disponível no respectivo sítio do itij, dada a omissão do CIRE na indicação do critério da apreciação da culpa, deverá aplicar-se, analogicamente, o critério do artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, segundo o qual a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.

Citando Assunção Cristas (Exoneração do passivo restante, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 171) “a culpa grave corresponde à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso”.

Citando, ainda, no mesmo sentido, Inocêncio Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Reimpressão, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, pág. 354, que ali refere que “a culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira”.

Como resulta da factualidade provada – e só esta releva – na petição inicial os devedores indicaram como único credor a CGD, relacionando um crédito com o montante de 174.400,64 € (cf. item 4.º).

Todavia, cf. itens 6,º e 7.º, foram reclamados e reconhecidos créditos, no valor total de 1.707.722,79 €, relativamente a oito credores.

Ora, quer a diferença de montantes dos referidos créditos, quer o número de credores, é de grande monta.

Não é crível que os devedores ao indicarem, na petição inicial, um único credor, não soubessem que omitiram os demais, dada a grande discrepância quer relativamente ao montante dos débitos que assumiram, quer ao número de credores.

A única explicação adiantada é que se tratava de créditos originários das empresas que detiveram e não tinham sido interpelados para o seu pagamento.

Com o devido respeito, tal não colhe. Como é óbvio, a existência dos créditos não depende da interpelação para pagamento. Aliás, esta só se impõe quando o devedor não cumpre o atempado pagamento, nas condições e termos acordados. Por outro lado, o facto de alguns de tais créditos serem originariamente das suas empresas também não releva. As empresas precisam de quem as gira e são os seus gerentes que as representam, pelo que, necessariamente, têm de saber da existência de tais créditos, para mais, de grande monta, não se podendo justificar a referida omissão, com tais fundamentos.

Por isso, consequentemente, inexiste explicação plausível e justificativa para que os devedores não tenham relacionado todos os créditos nem tenham identificado todos os seus credores.

Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, al. b), do CIRE, na petição inicial da insolvência, o devedor tem que identificar os seus cinco maiores credores, que tem, forçosamente de conhecer “e deve fornecê-los” – cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 215.

Para além disso, cf. artigo 24.º, n.º 1, al. a), do CIRE, o devedor, quando seja o requerente, como se verifica in casu, junta relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios, montantes dos créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem.

Como referem os autores e ob. ora cit., a pág. 220, a relação da alínea a), tem como objectivo “facilitar a actividade do administrador (…) e por outro lado e complementarmente, a tornar mais expedita a reclamação de créditos”.

Ainda de considerar que nos termos do artigo 66.º, n.º 1, do CIRE, a indicação dos credores, tem efeitos na nomeação da comissão de credores e no exercício dos poderes que lhes faculta o seu artigo 68.º, n.º 1. De igual modo, a omissão dos devedores, impediria os seus restantes credores de participar na assembleia de credores, direito conferido pelo artigo 72.º do CIRE, sem esquecer que, relativamente aos cinco maiores, o artigo 75.º, n.º 3, do CIRE, exige um tratamento diferenciado no que toca à convocação para a assembleia de credores.

Por último, de referir que, cf. artigo 236.º, n.º 4, do CIRE, é conferido aos credores o direito a pronunciarem-se sobre o pedido de concessão da exoneração do passivo restante, constituindo matéria que cabe na competência da assembleia de credores.

Ainda de apelar ao disposto no artigo 83.º, n.º1, do CIRE, que impõe ao devedor a obrigação do cumprimento de um dever genérico de colaboração e de prestação de todas as informações relevantes para o processo, nos termos ali melhor explicitados.

A actuação omissiva dos devedores, ao não indicarem a totalidade dos seus créditos e credores, nos termos expostos, constitui, assim, violação culposa dos mencionados deveres de informação e colaboração, encontrando-se, por isso, verificados os requisitos previstos na al. g), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, encontrando-se justificada a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração formulado pelos devedores.

Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Fevereiro de 2014, Processo n.º 757/13.9TJLSB.L1-8, disponível no respectivo sítio do itij (citado na decisão recorrida), os citados deveres de informação e colaboração impostos ao devedor “assumem uma importância particular, na medida em que o seu cumprimento ou incumprimento são indícios da retidão da conduta do devedor, tendo em vista a avaliação sobre se é ou não merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante proporciona”.

Em suma, a omissão da indicação/relacionação de todos os créditos e credores dos devedores, é de lhes imputar a título de culpa grave, verificando-se os pressupostos exigidos no artigo 238.º, n.º 1, al.. g), do CIRE e que justificam a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores e ora recorrentes, pelo que se impõe, nesta parte, a manutenção da decisão recorrida.

No que se refere à al. e), do n.º 1, deste preceito, têm razão os recorrentes, porque desde logo, não se verifica o requisito temporal a que se alude no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, uma vez que a insolvência dos devedores foi requerida em 01 de Março de 2019 (cf. item 1.º) e doação em que se fundamenta a decisão recorrida, ocorreu em 28 de Julho de 2014 – cf. item 8.º.

Assim, sem necessidade de outras considerações, não tem aplicação, no caso em apreço, a alínea ora em referência.

Como a verificação das várias situações previstas no citado artigo 238.º, não é cumulativa, mas sim “sucessiva” – cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 854 – o que, aliás, resulta da redacção preceito em causa, a aplicação do disposto na sua al. g), basta para que tenha o recurso de improceder, em face do que, reitera-se, é de manter a decisão recorrida.

Consequentemente, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, a cargo dos apelantes.

Coimbra, 10 de Dezembro de 2019.

Arlindo Oliveira ( Relator)

Emídio Santos

Catarina Gonçalves


[1]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[2] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.