Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1052/04.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: CASO JULGADO
CAMINHO PÚBLICO
ATRAVESSADOURO
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5º JUÍZO CÍVEL DO T.J. DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 16, 498 CPC, 1383 CC
Sumário: 1. – A decisão numa anterior acção sumária declarativa que condenou os aí RR. no reconhecimento do direito de propriedade dos aí AA. em relação ao prédio ajuizado, e bem assim que aqueles se deviam abster de perturbar tal direito com o fundamento de se dever considerar abolido um “atravessadouro” em que se concretizava a passagem em causa, não faz caso julgado em relação a “terceiros” aqui RR., que não foram demandados nessa acção (falta o requisito da identidade de “sujeitos”, da tríplice identidade pressuposta no art. 498º do C.P.Civil).

2 – Ademais, a decisão obtida só teria plena e irrestrita força de caso julgado se na acção tivessem sido demandados (todos) os demais proprietários/confinantes do caminho ajuizado e bem assim os “incertos” (todos os putativos beneficiários e utilizadores do caminho - cf. art. 16º do C.P.Civil), atento o litisconsórcio necessário.

3. – Já a aqui co-Ré/reconvinte “Junta de Freguesia dos Pousos”, tendo deduzido pedido reconvencional do reconhecimento do caminho público, tem legitimidade directa para tanto, pois que o que se trata aqui é precisamente da tutela por esta do direito ao reconhecimento e declaração de que o dito caminho faz parte do domínio público da “Junta de Freguesia dos Pousos”.

4. – Os atravessadouros (ou serventias públicas) são caminhos de passagem de pessoas implantados em prédios indeterminados de particulares que não constituam servidões ou caminhos públicos.

5. – Caminhos públicos são os que, desde tempos imemoriais - passado que já não consente a memória humana directa dos factos - estão no uso directo e imediato do público, envolvente de utilidade pública, caracterizada pelo destino de satisfação de interesses colectivos relevantes.

6. – Assim, apurada a existência de um tal caminho público, em parte confinante com o prédio dos aqui AA., não é legítimo por parte destes impedirem o trânsito pelo seu prédio, na parte em que ele é atravessado por aquele caminho público.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
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1 – RELATÓRIO
Nos presentes autos de acção declarativa sob a forma de processo ordinário, em que são autores JF (…), MG(…), JC (…), CM (…), e RC (…), na qualidade de “únicos e universais herdeiros” de M (…), e são réus JUNTA DE FREGUESIA DOS POUSOS, FR (…), JL (…) e AL (…) , pediram os primeiros a condenação dos segundos:
a) - A reconhecerem que o prédio identificado no artigo 5º da petição inicial é pertença da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M (…), de que são contitulares os autores;
b) - A reconhecerem que tal prédio não se encontra onerado com qualquer servidão, ónus ou encargo, especialmente qualquer direito de passagem a favor do prédio pertencente a (…) e mulher;
c) – A não mais transitarem nem entrarem no mesmo prédio, nem nele colocarem qualquer produto, especialmente, alcatrão;
d) – A pagarem aos autores a quantia de €7.239,49 e respectivos juros calculados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Alegaram, para o efeito e muito em síntese:
Que o primeiro autor e sua falecida mulher (de que os autores são únicos e universais herdeiros) eram os únicos donos de um determinado prédio rústico, que melhor identificaram; que no final do ano de 1992, (…) e mulher abriram um caminho naquele prédio, a fim de transitarem para um prédio confinante, o que levou à instauração de uma acção pelo primeiro autor e sua falecida mulher, no âmbito da qual aqueles vieram a ser condenados a não mais transitarem por aquele prédio; que com o apoio e incentivo da Junta de Freguesia de Pousos, de que os réus são, respectivamente, presidente, secretário e tesoureiro, (…) e mulher não acataram aquela decisão; que os autores colocaram, então, no terreno determinados obstáculos à passagem – nomeadamente, terra e pedras, nos termos que melhor especificaram –, que foram sendo removidos pela ré, a mando dos demais réus.
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Os réus foram devidamente citados.
A ré Junta de Freguesia de Pousos apresentou contestação e reconvenção.
Muito em síntese:
- Pugnou pela ilegitimidade dos réus, por nenhum interesse directo terem em contradizer, nomeadamente, no que ao pedido b) respeita;
- Defendeu a existência, no local e passando pelo prédio dos autores, de um caminho desde “tempos imemoriais”, que, pelos fundamentos que melhor desenvolveu, entende ser um caminho público, com as características que melhor definiu;
- Mais defendeu que esse caminho deve ser considerado do domínio público, devendo os autores abster-se da prática de quaisquer actos que possam perturbar, impedir ou limitar o exercício público do direito de qualquer pessoa por ali transitar.
Pediu, a título reconvencional, a condenação dos autores a reconhecerem que o prédio descrito sob o artigo 5º da petição inicial é atravessado por um caminho público com três metros de largura, no sentido Rua x(...), que esse caminho faz parte do domínio público da Junta de Freguesia dos Pousos e, consequentemente, que se abstenham da prática de quaisquer actos que possam perturbar, impedir ou limitar o exercício público desse direito, quer pela Junta de Freguesia, quer por qualquer pessoa que por ele transite.
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Os autores replicaram, tendo começado por pugnar pela improcedência da excepção da ilegitimidade arguida pela ré e impugnado os factos alegados por esta para defender a existência de um caminho público; invocaram, ainda, a excepção do caso julgado para se oporem à reconvenção, cuja improcedência pediram a final.
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Treplicou a ré, para defender a inexistência de caso julgado, dado os aqui réus nenhuma intervenção terem tido na anterior acção, que opôs os autores a um casal de particulares.
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Foi, de seguida, admitida a reconvenção e proferido despacho saneador, no qual foram afirmados todos os pressupostos de validade e de regularidade da instância, tendo, nomeadamente, sido julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade arguida pela ré e do caso julgado invocada pelos autores.
Quanto ao pedido dos autores constante da alínea d), foi decidido não poder ser cumulado com os anteriores, por ofender as regras da competência em razão da matéria, e, consequentemente, foram os réus absolvidos, nessa parte, da instância.
Foram seleccionados os factos assentes e elaborada base instrutória, sendo esta operação de condensação objecto de uma reclamação por parte da Ré, parcialmente atendida pelo despacho judicial atinente.
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Já o segmento do dito despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória do caso julgado foi objecto de recurso por parte dos AA., admitido como de AGRAVO, com subida diferida, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. fls. 198), relativamente ao que os AA. apresentaram oportunamente as suas alegações que finalizaram com a apresentação das seguintes conclusões:
(…)
Apresentou na sequência oportuna a Ré Junta de Freguesia de Pousos as suas contra-alegações a este recurso (cf. fls. 226-229), pugnando pela improcedência do mesmo.
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Instruída a causa, procedeu-se a audiência de julgamento a qual decorreu, em várias sessões, com observância do legal formalismo, conforme das actas elaboradas melhor consta, no final da qual se proferiu decisão sobre a matéria de facto (cf. fls. 432-442), a qual não foi objecto de qualquer reclamação.
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Na sentença, considerou-se, em suma, que se era certo não estar questionada a propriedade e posse dos AA. relativamente ao respectivo prédio por onde passa o “caminho” objecto da litígio, já com referência ao pedido reconvencional, resultaram provados os dois primeiros pressupostos, dos quais dependia a qualificação desse ajuizado caminho como pertença do domínio público, a saber, o uso directo e imediato pelo público, bem como a imemorabilidade de tal uso, estando igualmente provado o último pressuposto, o de estar tal caminho afecto a um interesse colectivo, comum à generalidade dos respectivos utilizadores, donde dever ter lugar a condenação dos AA. a tal reconhecer e respeitar, o que tudo teve lugar através da seguinte concreta “Decisão”:
Na decorrência de todo o exposto e ao abrigo dos normativos legais citados, julgam-se a presente acção parcialmente procedente e a reconvenção nela apresentada
procedente e, na medida das respectivas procedências:
A) Condenam-se os réus a reconhecer que a herança aberta por óbito de M (…), aqui representada pelos autores, é co-titular do direito de propriedade sobre o prédio rústico correspondente a terreno com pinhal no Vale, freguesia de Pousos, comarca de Leiria, inscrito na matriz sob o artigo 3 (...)e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº2 (...);
B) No mais, julgam-se improcedentes os pedidos dos autores, deles absolvendo os réus.
C) Condenam-se os autores a reconhecerem que esse seu prédio é atravessado por um caminho público com cerca de três metros de largura, no sentido Rua do Vale / Casal dos Matos, que esse caminho faz parte do domínio público da Junta de Freguesia dos Pousos e, consequentemente, a absterem-se da prática de quaisquer actos que possam perturbar, impedir ou limitar o exercício público desse direito, quer pela Junta de Freguesia, quer por qualquer pessoa que por ele transite.
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Custas da acção por autores e réus, na proporção de 80% para os primeiros e do remanescente para os segundos.
Custas da reconvenção pelos autores.»

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Inconformados com essa sentença, apresentaram os AA./Reconvindos recurso de APELAÇÃO contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
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Apresentou a Ré Junta de Freguesia de Pousos as suas contra-alegações a este recurso, das quais extraiu as seguintes conclusões:
(…)
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De referir que quanto ao recurso de Agravo, a Exma. Juíza de 1ª instância sustentou tabelarmente a decisão nesse particular.
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Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto dos recursos, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto dos recursos delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 690º, nº1, ambos do C.P.Civil na redacção aplicável), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, devendo o tribunal analisar e decidir todas as questões que lhe sejam submetidas à apreciação, exceptuando-se aquelas cuja solução fica prejudicada pela solução dada a outra (cf. art. 660º, 1ª parte, do mesmo C.P.Civil):
A) Do agravo
- acerto da decisão constante do despacho saneador no sentido da improcedência da excepção dilatória do caso julgado.
B) Da Apelação
- incorrecta valoração da prova produzida, que levou ao incorrecto julgamento dos factos enunciados sob os nºs 20, 22, 23, 25, 27, 29, 30, 31, 35 e 37 (que não deviam ter tido considerados “provados”) e a dar resposta negativa ao quesito 15º da base instrutória (relativamente ao qual se impunha resposta positiva);
- estarem ou não verificados os requisitos cumulativos para o reconhecimento e declaração da existência de um “caminho público”.
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A) Do agravo
Excepção dilatória do caso julgado, em função daquela que foi a decisão que fez vencimento no anterior processo nº3013/1993 (acção declarativa com processo sumário do 1º Juízo Cível da Comarca de Leiria, interposta pelo aqui co-autor J (…)e a sua falecida mulher contra A (…) e mulher M (…), pedindo que fossem os réus condenados a reconhecer que os autores são exclusivos e legítimos donos do prédio ora referido no artigo 5º da petição inicial apresentada pelos ora autores, e designadamente que fossem condenados a não transitarem pelo mesmo prédio, nem por qualquer modo violarem o direito de propriedade dos autores sobre esse mesmo prédio)?
Está inquestionado que nesses segmentos do pedido houve efectivamente procedência dessa acção.
Para tanto, argumentou-se decisivamente – no acórdão que decidiu o litígio em instância de recurso – que com a abertura de um novo caminho há cerca de 10/14 anos, a satisfação do interesse colectivo relevante existente (de via de comunicação directa entre localidades) se havia transferido para a nova via e a primitiva (que é a ajuizada nos presentes autos) passou a ser um mero atalho daquela, pelo que, na medida em que se entendeu que esta utilidade de encurtamento de percurso não era relevante para justificar as restrições inerentes à dominialidade pública, sendo própria dos atravessadouros, devia como tal – atravessadouro – ser qualificada a passagem em causa (que é a ajuizada nos presentes autos), donde se considerar este (atravessadouro) abolido.
Quid iuris?”
Consabidamente, e face ao disposto no art. 498º do C.P.Civil, é através duma tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se definem os limites e a extensão do caso julgado, sendo que a identidade de sujeitos reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas acções; identidade que, porém, não é tanto a identidade física, mas antes a identidade jurídica, sendo certo que o caso julgado não se forma apenas em relação às pessoas singulares/colectivas que intervieram no processo, mas também, relativamente àquelas que, por sucessão mortis causa ou por transmissão entre vivos, assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo - quer a substituição se tenha operado no decurso da acção, quer se tenha verificado só depois de proferida a sentença - mas nunca em relação àquelas a quem a posição jurídica havia sido transmitida antes da instauração da primeira acção. Assim se sublinha no Ac. da Rel. de Coimbra de 30.01.2007, no proc. nº 437/2000.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Com a afirmação e procedência da excepção de “caso julgado”, tem-se em vista garantir a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica.
Daí bem se compreende que a decisão transitada em julgado obsta à apreciação duma nova acção!
É certo que manifestamente inexiste identidade de sujeitos com respeito à aqui co-Ré “Junta de Freguesia dos Pousos”, que não tendo sido parte naquela acção do processo nº3013/1993 não pode ver estendida em relação a si a decisão de se considerar o caminho ajuizado como atravessadouro.
Nem os AA./reconvindos/agravantes sustentam coisa diversa ou intentam a afirmação de tal…
No que os mesmos se louvam é no entendimento de que apesar de os ora recorridos não terem sido parte na Acção Sumária n°3013/1993, o certo é que essa decisão proferida tem eficácia em relação aos ora demandados, pois que se está perante uma situação em que o seu objecto e conteúdo é precisamente o mesmo que foi objecto da acção já referida.
Sendo que invocam em abono deste seu entendimento a posição do Prof. Alberto dos Reis, o qual lhe chamaria de relação jurídica concorrente ou seja, aquela em que o seu conteúdo é precisamente o mesmo que foi objecto de acção anterior (in C.P.Civil Anotado, Volume V, página 160-Coimbra Editora 1981).
Não sufragamos – e releve-se o juízo antecipatório! – uma tal linha de entendimento.
Note-se que o invocado Mestre alude para ilustrar a sua posição (“exemplo típico”) ao caso em que um dos sócios de uma sociedade por quotas propõe acção de anulação de determinada deliberação social, na medida em que a sentença proferida na acção produz efeitos em relação aos outros sócios (posto que terceiros).
Contudo, é o próprio que na mesma citada obra e local diz dever ressalvar-se/excepcionar-se uma outra solução para os casos em que se julgue “indispensável a intervenção de todos os interessados, sob pena de ilegitimidade, surgindo assim a figura do litisconsórcio necessário” .
Que é precisamente o que entendemos suceder no caso vertente.
Com efeito, no nosso ponto de vista, e “ex adversu” do sustentado pelos AA./reconvindos/agravantes, a decisão obtida só teria força de caso julgado se na acção tivessem sido demandados (todos) os demais proprietários/confinantes do caminho ajuizado e bem assim os “incertos” – aqui com referência a todos os putativos beneficiários e utilizadores do caminho (cf. art. 16º do C.P.Civil).
Que foi o que claramente não sucedeu!
Improcede assim sem necessidade de maiores considerações o agravo interposto.
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B) Da Apelação
3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.
Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:
1. Os autores / reconvindos são os únicos e universais herdeiros de M (…), falecida a 3 de Setembro de 2003. [al.A) da Matéria de Facto Assente];
2. Esta era casada com J (…), segundo o regime da comunhão geral de bens. [al.B) da Matéria de Facto Assente];
3. Por escritura de partilha de 28/04/1976, no Primeiro Cartório da Secretaria Notarial de Leiria, a que se procedeu por óbito de J (…), declarou-se que o prédio rústico correspondente a terreno com pinhal no Vale, freguesia de Pousos, comarca de Leiria, a confrontar do norte com J(...), de nascente com AJ(...), do sul com caminho (actual estrada) e do poente com AS(...), inscrito na matriz sob o artigo 3991, foi adjudicado a J (…) e mulher M (…). [al.C) da Matéria de Facto Assente];
4. Desde o referido em 3., J (…) e mulher M (…), esta última até á data da sua morte, por si e antepossuidores do prédio referido em 3., há mais de 30 anos, no mesmo roçaram mato, cortaram pinheiros e ramos, aproveitaram os ramos, pinheiros, mato e caruma. [al.D) da Matéria de Facto Assente];
5. Praticaram todos estes factos à vista da generalidade das pessoas residentes nas imediações e com possibilidade de tais factos serem vistos por quem quer que fosse. [al.E) da Matéria de Facto Assente];
6. E sempre que o desejavam, assídua e repetidamente, sem qualquer intervalo de tempo. [al.F) da Matéria de Facto Assente];
7. E sem oposição de quem quer que fosse. [al.G) da Matéria de Facto Assente];
8. E sem qualquer espécie de violência, quer no início, quer posteriormente. [al.H) da Matéria de Facto Assente];
9. Agindo na convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam qualquer direito de outrem. [al.I) da Matéria de Facto Assente];
10. O direito de propriedade sobre o prédio descrito em 3. encontra-se inscrito a favor de J (…) e mulher M (…), pela inscrição G19930216072, estando o mesmo descrito na Conservatória de Registo Predial competente sob o nº2 (...) e inscrito na matriz sob o nº3991. [al.J) da Matéria de Facto Assente];
11. O co-autor J (…) e a sua falecida mulher interpuseram contra A (…) e mulher M (…) acção declarativa com processo sumário, que correu termos como processo nº3013/1993, no 1º Juízo Cível da Comarca de Leiria, pedindo que fossem os réus condenados a reconhecer que os autores são exclusivos e legítimos donos do prédio ora referido no artigo 5º da petição inicial apresentada pelos ora autores, que fossem condenados a não transitarem pelo mesmo prédio, nem por qualquer modo violarem o direito de propriedade dos autores sobre esse mesmo prédio e fossem condenados a pagar-lhes, a título de indemnização pelos danos causados, a quantia de Esc.20.000$00. [al.K) da Matéria de Facto Assente];
12. Foi proferida decisão na qual a acção foi considerada parcialmente procedente, tendo os aí réus sido condenados a reconhecer que os aí autores eram legítimos e exclusivos donos do prédio referido no artigo 5º da petição inicial. [al.L) da Matéria de Facto Assente];
13. Desta decisão os aí autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e, por acórdão de 21/10/1997, foi decidido revogar a sentença na parte impugnada, tendo os aí réus sido condenados a não transitarem pelo prédio dos aí autores e a não violarem por qualquer modo o direito de propriedade destes sobre o referido prédio. [al.M) da Matéria de Facto Assente];
14. Os co-réus FR (…), JL (…) e AL (…),são, actual e respectivamente, presidente, secretário e tesoureiro da Junta de Freguesia de Pousos. [al.N) da Matéria de Facto Assente];
15. A ré Junta de Freguesia alcatroou uma faixa de terreno que atravessa o prédio dos autores, a mando e sob as ordens dos co-réus FR (…), JL (…) e AL (…) , e os autores, com a ajuda de uma máquina, mandaram levantar o alcatrão, deixando-o no seu prédio. [al.O) da Matéria de Facto Assente];
16. No dia 12 de Janeiro de 2004, o co-réu FR (…) compareceu no prédio referido em 3. com funcionários, um carro e uma máquina da Junta de Freguesia de Pousos, para retirar o alcatrão e reabrir o acesso até ao barracão de A (…) e mulher. [al.P) da Matéria de Facto Assente];
17. No prédio referido em 3. foi colocada terra por iniciativa, nomeadamente, do primeiro autor, de forma a impedir a passagem entre esse prédio e um prédio vizinho, em que fora implantado um barracão. [resposta ao quesito 6º da Base Instrutória];
18. Parte dessa terra foi retirada e, por esse modo, reaberta a passagem pelo prédio referido em 3., nomeadamente até ao aludido barracão. [resposta ao quesito 7º da Base Instrutória];
19. Posteriormente, os autores colocaram pedras no seu terreno. [resposta ao quesito 8º da Base Instrutória];
20. Sobre o prédio referido em 3. existia um trilho que o atravessava, o qual se iniciava na Rua do Vale e se prolongava até à zona de Casal dos Matos, com o esclarecimento que esse trilho se manteve sobre aquele prédio até aos actos referidos em 17., ocorridos em data não concretamente apurada, certamente posterior ao referido em 13. e anterior ao mencionado sob 15. [resposta ao quesito 16º da Base Instrutória];
21. Esse caminho está calcado, demarcado e diferenciado quer em relação aos prédios confinantes, quer aos que atravessa (com a restrição constante de 20., no que se refere à parte em que atravessa o terreno dos autores). [resposta ao quesito 17º da Base Instrutória];
22. O aludido trilho tem entre 500 metros a 1000 metros de comprimento e, na parte em que atravessa o terreno dos autores, cerca de 3,20 metros de largura. [resposta ao quesito 18º da Base Instrutória];
23. É nítido em todo o seu traçado, à excepção, presentemente, do prédio dos autores – nos moldes explicitados em 20. – sendo diferenciado dos prédios que o marginam ou que atravessa por ser rebaixado relativamente a eles, tendo um piso diferente daqueles. [resposta ao quesito 19º da Base Instrutória];
24. Tal trilho existe, seguramente, há mais de 100 anos. [resposta aos quesitos 20º e 21º da Base Instrutória];
25. Por esse trilho passavam e ainda passam – na parte em que se encontra livremente acessível – pessoas a pé e de bicicleta, bem como, em tempos mais antigos, carros de bois e, posteriormente, tractores. [resposta ao quesito 22º da Base Instrutória];
26. Esse trilho era e é usado (com a ressalva referida 25.) livremente por quaisquer pessoas que frequentem aquela zona. [resposta ao quesito 23º da Base Instrutória];
27. E todas as pessoas quando por ele passavam estavam convictas de estarem a utilizar um caminho público, exercendo um direito de passagem por ele. [quesito 24º da Base Instrutória];
28. Nunca ninguém impediu tal passagem a quem quer que fosse e este caminho nunca sofreu qualquer interrupção, estando sempre aberto ao público e sendo sempre usado por quem queria, sempre tendo sido utilizado à vista de toda a gente e sem qualquer violência, com a ressalva que resulta de 20. [resposta aos quesitos 25º, 26º e 27º da Base Instrutória];
29. Até ao referido em 20., quer os autores quer seus antepossuidores não se opuseram à passagem pelo referido trilho, cuja existência reconheciam, nunca havendo estorvado ou questionado quem por lá passava. [resposta ao quesito 28º da Base Instrutória];
30. É um caminho que dá acesso a vários prédios, visto que atravessa, ao longo de toda a sua extensão, diversos prédios de pinhal e mato, servindo e dando acesso a esses prédios, para além do público em geral. [quesito 29º da Base Instrutória];
31. Pelo local do trilho que atravessa o prédio dos autores passou uma linha de electricidade de baixa tensão e um ramal de água. [resposta ao quesito 33º da Base Instrutória];
32. Esse trilho é anterior a qualquer outra estrada ou rua que estabeleça a ligação entre o lugar do Vale, em Pousos, e a zona de Casal dos Matos, designadamente, da Rua x(...), que foi implementada em data não concretamente apurada da década de 70 do século XX, sendo mais direito e encurtando a distância em cerca de 500 metros. [resposta ao quesito 34º da Base Instrutória];
33. Até à construção da rua referida em 32., o aludido trilho era a principal via de comunicação entre os locais aí mencionados. [resposta ao quesito 35º da Base Instrutória];
34. Durante o período de tempo referido em 24., tal caminho ostenta sinais de trânsito continuado. [resposta ao quesito 37º da Base Instrutória];
35. O aludido trilho mostra-se considerado, como arruamento, em cartas militares desde, pelo menos, 1966 e no plano director municipal de Leiria de 1995. [resposta ao quesito 38º da Base Instrutória];
36. Foi a existência da estrada x(...) que fez diminuir o trânsito pelo caminho por ser mais larga e alcatroada. [quesito 40º da Base Instrutória];
37. Pelo aludido trilho, continuam a circular pessoas a pé e de bicicleta, bem como, esporadicamente, de ciclomotor. [resposta ao quesito 41º da Base Instrutória];
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3.2 – Os AA./Reconvindos sustentam terem sido incorrectamente julgados os factos enunciados sob os nºs 20, 22, 23, 25, 27, 29, 30, 31, 35 e 37 (que não deviam ter tido considerados “provados”) e que houve incorrecta valoração da prova produzida ao dar-se resposta negativa ao quesito 15º da base instrutória (relativamente ao qual se impunha resposta positiva).
(…)
Vamos então proceder à apreciação conjunta desses ditos factos, não só porque é possível agrupar essa apreciação – já que reportada ao mesmo aspecto nuclear e fulcral para a decisão final de mérito do presente litígio – mas também por uma razão de ordem lógica e metodológica na apreciação, pois que a resposta dada aos correspondentes factos envolve afinal a apreciação dos mesmos meios de prova e, nessa medida, implica em grande parte uma mesma e única explicação racional e linha de fundamentação.
Contudo, antes de o fazer, entendemos vincar alguns conceitos.
Consabidamente, as possibilidades deste tribunal de recurso modificar a matéria de facto fixada em 1ª instância, encontram-se orientadas e condicionadas pelo princípio da livre apreciação da prova, enunciado no art. 655º do C.P.Civil.
Mas para melhor compreender o sentido e exacto alcance desta afirmação, convém historiar um pouco esta matéria.
Começou por se entender que se os factos provados lograssem suporte nos elementos probatórios, a fundamentação fosse devidamente estruturada e o raciocínio do julgador assentasse em bases sólidas, reveladoras de um percurso lógica e racionalmente convincente, não havia como alterar a decisão proferida.
Isto porque a regra seria a estabilidade e a excepção a modificabilidade.
Invocava-se para tanto que importava dar ao princípio da “prova livre” o significado de “prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade (…) com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental Assim ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado, Livro III, 4ª edição-reimpressão, Coimbra Editora, 1985, a pags. 245., face ao que não se vislumbrava como alterar o decidido, se a solução encontrada reflectia, com razoabilidade, uma convicção fundada em provas credíveis, à luz dos dados da experiência, da ciência e da razão.
Dito de forma breve: em rigor, só o erro notório, clamoroso, flagrantemente desconforme entre os elementos de prova e a decisão de facto, poderia permitir que a Relação tomasse decisão diferente da do tribunal a quo. Tratava-se de jurisprudência absolutamente uniforme durante muito tempo, como se pode ver, entre muitos outros, nos acórdãos da Relação de Coimbra, de 03.06.2003 e de 24.09.2003 (in C.J., Ano XXVIII, tomo III, a pags. 26 e tomo IV, a pags. 17) e no acórdão da Relação de Lisboa, de 15.01.2004, in C.J., Ano XXIX, tomo I, a pags. 65).
Simplesmente, a partir de determinada altura, sobretudo desde o ano de 2006, a Jurisprudência, mormente do S.T.J., foi evoluindo num sentido bem mais amplo, sendo, em síntese, considerado "IV - Valendo na 2.ª instância, com amplitude idêntica à da 1.ª, o princípio fundamental da livre apreciação das provas fixado no art. 655.º, n.º 1, do CPC, nada impede que a Relação possa – e até deva, segundo a lei – expressar a convicção a que chegue acerca da matéria de facto impugnada no recurso, mesmo que, por qualquer razão de natureza formal, se revele inviável a reapreciação de todas as provas para o efeito indicado pelo recorrente, designadamente da prova gravada" Cf. o Ac. do STJ de 05-06-2012, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira, no processo nº5534/04.5 TVLSB.L1, acessível em www.dgsi.pt, no qual são citados outros doutos acórdãos..
Consagrou-se, enfim, o entendimento de que a efectiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 712º do C.P.Civil), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido.
É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento fixado no art.º 655º do C.P.Civil.
(…)
*
4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1– Cumpre agora entrar na apreciação da questão igualmente supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, ter havido incorrecto julgamento de direito, na medida em que não estariam verificados os requisitos cumulativos para o reconhecimento e declaração da existência de um “caminho público”:
Se bem captamos o sentido do alegado pelos AA./Recorrentes, este seu fundamento tinha como pressuposto lógico e jurídico necessário a alteração da matéria de facto nos termos propugnados pelos mesmos, designadamente o deixar de ter lugar uma passagem diária, desde tempos imemoriais, pela generalidade das pessoas, servindo desde a década de 70/80 do Séc. XX essa passagem apenas para encurtar caminho entre arruamentos públicos.
O que não ocorreu, como flui do que antecede. De referir, aliás, que os AA./reconvindos fazem apelo nas suas alegações recursórias e como fundamento das mesmas a factos e argumentos que só se compreendem enquanto reportados e atinentes ao anterior processo nº 3013/1993…
Pelo que entendemos estar só por aí fatalmente votado ao insucesso o sustentado neste enquadramento.
Em todo o caso vamos apreciar – com brevidade – os requisitos cumulativos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: a) o uso directo e imediato do mesmo pelo público; b) a imemorialidade desse uso; c) e a afectação a utilidade pública.
Pois que o bom alcance e sentido do ora vindo de afirmar, passa pela real interpretação e compreensão de tais conceitos.
Na verdade, no quadro de divergência jurisprudencial sobre o conceito de caminho público – uma no sentido de o ser sempre que estivesse no uso directo e imediato do público e a outra no sentido de também se exigir para o efeito que tenha sido administrado pelo Estado ou por outra pessoa de direito público e se encontrasse sob a sua jurisdição Cf. também sobre esta distinção entre atravessadouros e caminhos públicos o que consta da anotação de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, Coimbra Editora Limitada, 1987, a pags. 281-282. – foi proferido, no dia 19 de Abril de 1989, pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, um Assento no sentido de serem públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.
Mas esse mesmo Tribunal, em acórdãos subsequentes, passou a interpretar restritivamente o referido acórdão do Pleno, agora com o valor de acórdão de uniformização de jurisprudência, com base no considerando do seu texto essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública, no sentido de a publicidade dos caminhos também depender da sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância (Acs. de 10.11.93 e de 15.6.2000, BMJ nºs 431, páginas 300 a 307, e 498, páginas 226 a 232).
Sendo que o referido uso directo e imediato do caminho pelo público envolve, como é natural, a sua utilidade pública, ou seja, a sua afectação a utilidade pública, isto é, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos.
Assim, é essa característica de afectação do caminho à utilidade pública, isto é à satisfação de interesses colectivos relevantes, que distingue os caminhos públicos dos atravessadouros.
Pois que os atravessadouros, numa definição breve, “são caminhos de passagem de pessoas implantados em prédios indeterminados de particulares que não constituam servidões ou caminhos públicos”. Citámos o já supra referido Ac. do S.T.J. de 18-05-2006, no proc nº 06B1468, acessível in www.dgsi.pt/jstj.
Nesta linha de entendimento, face ao conspecto fáctico amplamente apurado, e que mais concretamente consta dos factos 20. a 30., 32., 33. e 35. a 37., designadamente ao ter resultado apurada uma imemorialidade desse uso e bem assim que o uso do “trilho” durante o período temporal por que subsistiu com grande número de utilizadores, teve em vista a satisfação por estes de um interesse colectivo relevante dos mesmos, entendemos que bem se decidiu na sentença recorrida quando se concluiu que importava dar acolhimento à pretensão da co-Ré/Reconvinte.
Para o que doutamente se aduziu o seguinte quadro argumentativo:
“(…)
Visam, seguidamente, os autores - conforme acima se deixou dito – a condenação dos réus a reconhecerem que tal prédio não se encontra onerado com qualquer servidão, ónus ou encargo, especialmente qualquer direito de passagem a favor do prédio pertencente a A (…) e mulher.
Ora, para se conhecer da procedência ou não desse pedido – na parte referente aos réus, por serem estes que aqui são demandados – há que conhecer do mérito do pedido reconvencional, mais precisamente, da existência ou não do caminho público invocado pela ré Junta de Freguesia de Pousos.
Dispunha o artigo 380º do Código de Seabra que são públicas as cousas naturaes ou artificiaes apropriadas ou produzidas pelo estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quaes é lícito a todos individual ou collectivamente, utilisar-se com as restrições impostas pela lei, ou pelos regulamentos administrativos. Pertencem a esta categoria: 1º As estradas, pontes e viadutos construídos e mantidos a expensas publicas, municipaes ou parochiaes; 2º As aguas salgadas das costas (…).
O Código Civil de 1966 não tem qualquer disposição semelhante, limitando-se a referir, no artigo 202º, nº 2, que se consideram fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público (…).
A propósito da caracterização de um caminho como sendo caminho público e na ausência de norma idêntica ao citado artigo 380º, debatiam-se a nível jurisprudencial duas posições. Uma defendia que se deveriam considerar caminhos públicos aqueles que estivessem no uso directo e imediato do público. Outra mais exigente entendia que só deviam considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso directo e imediato do público, fossem administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrassem sob sua jurisdição.
O Assento 19.04.1989 (Publicado no DR, Série I de 02.06.1989), actualmente com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, veio pôr termo a tal divergência decidindo que são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.
Assim o carácter público de um caminho ficaria dependente da verificação cumulativa de dois requisitos: o seu uso directo e imediato pelo público e que tal uso fosse imemorial.
No entanto, posteriormente reconheceu o próprio Supremo Tribunal de Justiça (Cf. AC.STJ.10.11.1993, BMJ 431-300 ss) a necessidade de interpretar restritivamente este Assento, uma vez que caso fosse interpretado e seguido à letra conduziria à conclusão de que todos os atravessadouros com posse imemorial teriam que ser qualificados como caminhos públicos ao arrepio do disposto no artigo 1383º do Código Civil.
A este propósito referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, III, pg 281) que traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem de ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artigos 1383º e 1384º, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade.
Entende-se, por isso que a qualificação de um caminho como público exige, para além da verificação daqueles requisitos, isto é o uso directo e imediato pelo público e que tal uso seja imemorial, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, o uso do caminho tem de visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.
Por sua vez, como se refere no AC.STJ. 13.01.2004 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) para se decidir da relevância dos interesses públicos a satisfazer por meio de utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado, como público, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação e, por outro lado, a importância que o fim em visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições (…).
(…) o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir á classificação de caminho ou terreno público, se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não uma soma de utilidades individuais.
Volvendo ao caso dos autos, encontra-se provado que:
(…)
Perante esta factualidade, podemos concluir que o caminho em questão é utilizado desde tempos imemoriais (ou seja e porquanto existe há mais de 100 anos, desde tempos de que ninguém vivo se recorda), por uma generalidade de pessoas, só tendo deixado de o ser, em determinado local, após os autores terem vedado o troço do mesmo caminho e de se haver suscitado um litígio, nomeadamente (e para o que aqui importa) entre eles e a Junta de Freguesia, acerca da utilização do mesmo caminho, tudo nos moldes que emergem da leitura conjugada dos números 15. a 19. dos factos provados.
Temos, pois, provados os dois primeiros pressupostos, dos quais depende a qualificação de um caminho como pertença do domínio público, a saber o uso directo e imediato pelo público, bem como a imemoriabilidade de tal uso.
Como supra se disse, face à interpretação restritiva que deve ser dada ao Assento 19.04.1989, torna-se ainda necessário que o fim visado com a utilização de tal caminho não seja a soma de um conjunto de interesses individuais, mas que o mesmo seja relevante e seja comum à generalidade dos seus utilizadores, de modo a que se possa concluir pela sua afectação pública.
A este respeito, resulta do factualismo provado que o aludido caminho não era apenas utilizado pelos proprietários dos prédios que com o mesmo confinam, mas que era utilizado por qualquer pessoa, habitante do lugar ou não, servindo para ligar duas zonas da povoação de Pousos. Dado estar em causa um caminho (e não, ao que se julga, em face dos factos provados, um mero atravessadouro) que permite encurtar em cerca de 500 metros a ligação entre Casal dos Matos e o lugar do Vale, tal caminho é uma ligação com interesse local, destinado ao trânsito de pessoas e máquinas e incorporado no sistema viário da zona (vide facto 35.).
Perante tais factos, concluímos também que o caminho em causa está afecto a um interesse colectivo, comum à generalidade dos respectivos utilizadores, qual seja a ligação entre aqueles lugares.
Deste modo, conclui-se que o caminho aludido, com as características e localização referidas nos factos 20. a 23. é pertença do domínio público.
Mais se conclui – decorrentemente – que não é legítimo, aos autores, impedirem o trânsito pelo seu prédio, na parte em que ele é atravessado por aquele caminho público – assim improcedendo os demais pedidos dos autores (supra referidos sob b) e c) e procedendo o pedido reconvencional da ré Junta de Freguesia.
Assim, sem necessidade de maiores considerações De referir apenas como argumento final e tendo por referência o que supra se deixou dito na decisão do recurso de Agravo, que entendemos não ser sequer de questionar oficiosamente a legitimidade da aqui co-Ré/reconvinte “Junta de Freguesia dos Pousos” na dedução precisamente desse seu pedido reconvencional do reconhecimento do “caminho público”, pois que o que se trata aqui é precisamente da tutela por esta do direito ao reconhecimento e declaração de que o dito caminho faz parte do domínio público da “Junta de Freguesia dos Pousos”, e nessa medida tem ela legitimidade directa para tanto.
, igualmente improcede o suscitado nesta via de enquadramento pelos AA./Recorrentes.
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA
I – A decisão numa anterior acção sumária declarativa que condenou os aí RR. no reconhecimento do direito de propriedade dos aí AA. em relação ao prédio ajuizado, e bem assim que aqueles se deviam abster de perturbar tal direito com o fundamento de se dever considerar abolido um “atravessadouro” em que se concretizava a passagem em causa, não faz caso julgado em relação a “terceiros” aqui RR., que não foram demandados nessa acção (falta o requisito da identidade de “sujeitos”, da tríplice identidade pressuposta no art. 498º do C.P.Civil).
II – Ademais, a decisão obtida só teria plena e irrestrita força de caso julgado se na acção tivessem sido demandados (todos) os demais proprietários/confinantes do caminho ajuizado e bem assim os “incertos” (todos os putativos beneficiários e utilizadores do caminho - cf. art. 16º do C.P.Civil), atento o litisconsórcio necessário.
III – Já a aqui co-Ré/reconvinte “Junta de Freguesia dos Pousos”, tendo deduzido pedido reconvencional do reconhecimento do caminho público, tem legitimidade directa para tanto, pois que o que se trata aqui é precisamente da tutela por esta do direito ao reconhecimento e declaração de que o dito caminho faz parte do domínio público da “Junta de Freguesia dos Pousos”.
IV – Os atravessadouros (ou serventias públicas) são caminhos de passagem de pessoas implantados em prédios indeterminados de particulares que não constituam servidões ou caminhos públicos.
V – Caminhos públicos são os que, desde tempos imemoriais - passado que já não consente a memória humana directa dos factos - estão no uso directo e imediato do público, envolvente de utilidade pública, caracterizada pelo destino de satisfação de interesses colectivos relevantes.
VI – Assim, apurada a existência de um tal caminho público, em parte confinante com o prédio dos aqui AA., não é legítimo por parte destes impedirem o trânsito pelo seu prédio, na parte em que ele é atravessado por aquele caminho público.
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6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência do agravo e da apelação, mantendo os respectivos despacho saneador e a sentença recorridos, nos seus precisos termos.
Custas nesta instância pelo AA./Reconvindos/Recorrentes.

Coimbra, 18 de Dezembro de 2013

Luís Filipe Cravo ( Relator)
Maria José Guerra
António Carvalho Martins