Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
363/10.0TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: CONCORRÊNCIA DESLEAL
MARCAS
REGISTO
NULIDADE
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
CAUSA DE PEDIR
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.36, 37, 269, 270, 346 A 354 CPI, 334 CC, 4, 193, 264, 460, 653, 668 CPC
Sumário: 1. A circunstância da recorrida ter cumulado na petição inicial duas pretensões a que correspondem tipos de acções diversos não integra por si qualquer erro na forma de processo, a não ser que a uma das pretensões corresponde forma de processo especial ou forma de processo comum que não se determine unicamente em função do valor do pedido.

2. Não há falta de causa de pedir se factos invocados pela recorrente para sustentar o pedido formulado têm aptidão para individualizar os fundamentos da sua pretensão.

3. Saber se os fundamentos da pretensão produzem ou não os efeitos jurídicos peticionados pela autora não é uma questão de mera forma, de falta de causa de pedir, mas antes uma questão de fundo, geradora de eventual improcedência da acção e com potencialidade para formar caso julgado material.

4. Se a Base Instrutória contiver matéria de facto conclusiva, o respectivo quesito não deve ser objecto de resposta.

5. As considerações fácticas tecidas pelo juiz aquando da elaboração da sentença que exorbitem da factualidade alegada pelas partes e que tenha sido considerada provada aquando da audiência de discussão e julgamento, que não se suportem naquelas provas que aquando da elaboração da sentença possam ser por si consideradas ou que não integrem matéria de oficioso conhecimento do tribunal (factos notórios, factos conhecidos pelo tribunal no exercício das suas funções e factos integradores de uso anormal do processo – artigo 264º, nº 2, 2ª parte, do Código de Processo Civil), traduzem-se numa ilegalidade, num erro de julgamento e não numa nulidade da sentença.

6. Não ocorre nulidade da sentença por excesso de pronúncia quando o tribunal conhece de nulidade de registo de conhecimento oficioso.

7. A preterição de formalidades imprescindíveis para a concessão do direito ou a violação de regras de ordem pública geradoras de nulidade do registo da marca têm que se verificar no procedimento em que se vem a efectivar o registo da marca afectado dessa invalidade.

8. Por constituir concorrência desleal, é anulável o registo de marca que vinha sendo usado por outra entidade para produto similar àquele para que é pretendido o registo, resultando desse registo confusão de produtos e dos consumidores e apropriação de clientela da entidade que vinha usando a marca não registada.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 06 de Dezembro de 2010, no Tribunal Judicial da Comarca de Trancoso, M (…), Unipessoal, Lda. instaurou acção declarativa sob forma ordinária contra L (…), Lda. pedindo que seja “declarada a anulação do registo da ré relativo à marca “Flor da Cardanha”, bem como ao pagamento de uma coima apropriada por ter sido realizado esse registo tendo em vista, por parte da ré, objectivos que cabem dentro da definição de concorrência desleal.”

A autora alega para fundamentar as suas pretensões que utiliza desde 2006 a marca “Flor da Cardanha” para identificar o queijo que produz e comercializa desde 1998, com nome no mercado, o qual é identificado, pelos consumidores, através das características que o individualizam, provenientes das espécies de ovelhas próprias da região – a churra e a branca – bem como pelo pasto do local e pelos meios artesanais de fabrico, e que assim logrou a sua implantação, reconhecida inclusivamente em exposições internacionais, sendo sócia da Câmara de Comércio e Indústria, fazendo parte da marca “Compre o que é nosso – Made in Portugal”, com os queijos “Flor da Cardanha” e “Vale do Sabor”; mais invoca que teve provisoriamente protegida a marca, com referência à categoria 29, queijos, mas que esse registo veio a caducar por erro contabilístico, desconhecido da empresa, que se traduziu na falta de pagamento das taxas devidas, assim permitindo que a ré registasse no dia 20 de Outubro de 2009, a seu favor, a mesma marca na mesma categoria 29; conclui afirmando que a empresa demandada, que não fabrica o queijo na região, não utiliza o leite da região, nem sequer utiliza os mesmos processos de produção, mais não pretendeu do que aproveitar-se do nome já implementado e reconhecido no mercado, para angariar a clientela pertencente à autora, a quem, enganosamente, fornece queijo de diferente qualidade, vendido a preço inferior.

A ré foi citada por carta registada com aviso de recepção e ofereceu contestação em que invocou a existência de erro na forma de processo, incompetência em razão da matéria relativamente ao pedido de condenação ao pagamento de coima, ineptidão da petição inicial por contradição do pedido com a causa de pedir, cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis e falta de causa de pedir, impugnando grande parte dos factos alegados pela autora, afirmando que tem criado variados tipos de queijo a partir de diversos tipos de leite e de origens plúrimas, que adoptou a marca “Flor da Cardanha” pensando que essa marca não existia, não tendo ainda iniciado regularmente a produção de queijo com tal nome, apenas o tendo produzido uma vez, remetendo-o para um cliente na Suíça, concluindo pela procedência das excepções invocadas ou, se assim se não entender, pela improcedência da acção.

A autora replicou pugnando pela improcedência das excepções deduzidas pela ré.

Seguidamente proferiu-se decisão no sentido de não se verificar o invocado erro na forma de processo, fixou-se o valor da causa em € 30.000,01, proferiu-se despacho saneador em que se julgou procedente a excepção de incompetência em razão da matéria relativamente ao pedido de condenação da ré ao pagamento de coima e improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, procedendo-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos integrantes da base instrutória.

A autora ofereceu as suas provas e requereu a gravação da audiência.

A ré reclamou contra a base instrutória, acusando indevida quesitação de matéria por si aceite e omissão de quesitação por si alegada na contestação e ofereceu as suas provas.

A reclamação contra a base instrutória foi julgada totalmente improcedente, foram admitidos os meios de prova oferecidos pelas partes e deferida a gravação da audiência.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, respondendo-se à matéria vertida na base instrutória e, logo de seguida, com fundamento em preterição de formalidades essenciais e, subsidiariamente, em abuso de direito, proferiu-se sentença que julgou a acção procedente, declarando a nulidade do registo da marca “Flor da Cardanha”, a favor da L (…), Lda.

Inconformada com a sentença, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões[1]:

1ª. A recorrida intitulou a presente acção de “acção declarativa de anulação de registo de marca nacional e acção de condenação por concorrência desleal com processo ordinário”; porém,

2ª. Os correspondentes pedidos formulados são manifestamente incompatíveis, daí que a recorrente, na sua contestação, tenha invocado a excepção de erro na forma de processo.

3ª. No entanto, o Tribunal, no despacho saneador, entendeu substituir-se à autora e decidir que a acção que esta pretendia fazer seguir era a primeira, não atendendo àquela excepção deduzida.

4ª. O Tribunal violou, assim, o disposto nos arts. 4º, 199º e 264º, nºs 1 e 2 do CPC, pelo que deverá ser revogado, julgada procedente a excepção, e a recorrente absolvida da instância.

Sem prescindir

5ª. No despacho saneador também, de forma errada, se decidiu pela inexistência de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, nulidade invocada pela ora recorrente na sua contestação.

                6ª. Com efeito, por um lado, está provado que está definitivamente registada a favor da recorrente desde 08.01.2010, no INPI, a marca “Flor da Cardanha”; e

                7ª. Por outro lado, a própria a autora articulou na petição que deixou caducar o registo dessa marca[2], pelo que a recorrente alegou que não há causa de pedir em relação ao pedido de anulação de registo da marca.

                8ª. Contudo, o Tribunal fez diversas considerações de carácter geral e irrelevantes[3] na página 12 do despacho saneador, não invocando sequer as normas específicas que o Código da Propriedade Industrial, arts. 34º e 266º, estipula sobre esta matéria.

                9ª. Ora, nestas normas estão contempladas as possibilidades de anulação do registo, nomeadamente quando o direito não pertencer ao titular ou o registo tiver sido concedido com preterição dos direitos previstos no referido art. 266º.  

                10ª. E nenhuma das hipóteses estabelecidas naquele diploma pode ser enquadrada no caso em apreço, pelo que existe a citada nulidade, tendo, pois, o Tribunal violado o disposto nos arts. 193, nº2, al. c) do CPC e 34º 266º do CPI, pelo que deverá ser revogado, julgada procedente a nulidade e a recorrente absolvida da instância.

Sem prescindir

                11ª. O Tribunal recorrido entendeu, por um lado, responder à generalidade dos pontos da base instrutória com um “provado apenas”, respostas essas que, no entanto, não são respostas restritivas, mas sim explicativas, e que na verdade se tornam confusas e incoerentes; e

                12ª. Por outro lado, para ainda dificultar mais a apreensão das mesmas, o Tribunal deu respostas conjuntas e em blocos sequenciais, não sendo a decisão da matéria de facto uma peça que prime pela clareza, mas bem pelo contrário.

                Adiante,

                13ª. Há erro manifesto de apreciação da matéria de facto por parte do Tribunal recorrido, no que respeita designadamente, às respostas dadas aos pontos 1 a 3, 17, 19 a 23, 25, 26 e 35 da base instrutória, não cumprindo, portanto, o disposto nos arts. 653º, nº2 e 655º, nº1do CPC.

                14ª. Assim, os recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto, nos termos do art. 690º-A do CPC, uma vez que esta decisão não cumpriu as citadas normas processuais.

                15ª. Deste modo, relativamente às respostas aos pontos 1º e 2º, o Tribunal recorrido, face ao teor do documento junto com a petição inicial sob o nº1 – certidão permanente da autora – deveria ter respondido não provado a tais pontos.

                16ª. Em relação à resposta ao ponto 3º, face aos depoimentos das testemunhas (…)[4], apreciados no seu conjunto e, atentas as suas contradições, o Tribunal deveria ter respondido não provado.

                17ª. No que concerne à resposta ao ponto 17º, o tribunal deveria ter dado uma resposta não provado, tendo em conta o que se já referiu nas conclusões 15ª e 16ª, que se reproduz, pois a resposta dada pelo Tribunal está até em contradição com as respostas  por este dadas aos pontos 2 e 3.

                18ª. Quanto à resposta ao ponto 19º, não se entende a resposta dada pelo Tribunal que fez uma evidente confusão não só do documento junto com a p.i. (não numerado e inserido entre o 5 e 6), mas também do esclarecedor depoimento do Dr. (…)com efeito,

                19ª. De tal documento resulta tão-somente que foi feito pela recorrida, em 05.04.2006, um pedido de registo de sinais distintivos do comércio do sinal “Flor da Cardanha”.

                20ª. Do depoimento daquela testemunha resulta seguro que a empresa “(…)” faz apenas publicidade – para figurar numa espécie de anuário comercial – e não requer ou solicita registos no INPI; e que

                21ª. O dito pedido efectuado pela recorrida deu entrada no INPI em 07.04.2006, tendo sido proferido despacho de concessão da marca em 15.02.207, que foi comunicado àquela em 19.02.2007, e foi-lhe ainda transmitido que eram devidas taxas de concessão – para ser efectuado o registo – taxas essas que não foram pagas pela recorrida.

                22ª. Daí que sugira que a resposta a este ponto seja provado com os citados esclarecimentos.

                23ª. Quanto à resposta ao ponto 20º, o Tribunal não teve em conta o depoimento da citada testemunha, Dr. (…), que refere que em 19.02.2007 o INPI avisou a recorrida da concessão da marca e para esta proceder ao pagamentos das correspondentes taxas; e

                24ª. Só após o pagamento é que o registo é efectuado, não havendo registos provisórios, pelo que deveria ser dada uma resposta negativa.

                25ª. Relativamente à resposta ao ponto 21º, face ao depoimento da mencionadas testemunhas Dr. (…)e (…), deveria ter dado como provado que por falta de pagamento das correspondentes taxas, o registo em causa caducou em 31.08.2007.

                26ª. Em relação à resposta ao ponto 22º, perante o depoimento da dita testemunha (…), que “fala” sempre em nome próprio e não em nome da recorrida ou dos seus sócios-gerentes, de modo que não se pode afirmar qual a convicção desta em relação àquele ponto 22º, pelo que o tribunal deveria ter respondido não provado.

                27ª. No que respeita à resposta ao ponto 23º, face à alteração que se sugere na conclusão anterior, face ao depoimento da cita testemunha (…), o Tribunal apenas deveria ter dado como provada a segunda parte da sua resposta.

                28ª. Quanto à resposta ao ponto 25º, o Tribunal extrai uma verdadeira conclusão, sem qualquer suporte testemunhal ou documental. Veja-se que na página 4 da decisão da matéria, se afirmou, no penúltimo parágrafo, “não é fácil fazer passar esta mensagem, seria bem mais provável que houvesse lugar à averiguação de um plágio. Por isso as respostas aos pontos “35” e “25”.

                29ª. Em relação à resposta ao ponto 26º, o depoimento da (…),[5] e os documentos juntos com a contestação sob os nºs 6 a 8, conduzem a uma resposta no sentido de que a recorrente comprou, em 2009 e 2010, leite de ovelha em Mogadouro.

                30ª. Finalmente, relativamente à resposta ao ponto 35º, a reposta que o Tribunal deveria ter dado –  face ao depoimento da testemunha Dr. (…) – , era ainda mais limitativa, no sentido de que a recorrente quando procedeu ao registo da marac em apreço tinha sido informada pelo referido agente da propriedade industrial que esta estava livre, por caducidade.

31ª. Deste modo, deverão V. Exas. alterar as respostas aos supracitados pontos da base instrutória, no sentido acima preconizado, atento o disposto no art. 712º, nº1, al. a) do CPC.

Sem prescindir

                32ª. O Tribunal recorrido na sentença[6] parte de pressupostos e fundamentos errados, erradamente julgados e, que não só estão em oposição com aquela decisão, mas também aprecia questões que não podia conhecer, por não alegadas pelas partes, não quesitadas e nem provadas.

33ª. Exemplifique-se: a afirmação da sentença na pgs. 166, último parágrafo e 167 – acerca de registo da marca “Flor da Cardanha” –  em oposição à resposta ao ponto 19º; a afirmação na sentença a fls. 160 – de que autora faz queijo com a marca “Flor da Cardanha” dese 1998 –, quando está provado que esta só foi constituída em 2006; afirma-se na sentença a fls. 162, in fine e 163, o desconhecimento do gerente da ré em matéria de queijo, quando este não prestou depoimento de parte em tribunal; e finalmente o tribunal “chega ao ponto” de afirmar que a recorrida foi vítima de um logro (enganada por uma entidade incompetente), vítima do sistema judicial (as leis são injustas), vítima da Administração (quanto ao registo da marca), isto em contraponto com a ideia que a recorrente beneficiou de ter a seu soldo um agente pago para se apropriar “para o seu empregador da pretensão que a, legal, moral e originariamente, prioridade de “a”, é prestar vassalagem não aos princípios atrás citados; é vaguear nos insondáveis e incontroláveis meandros de um processo de Franz Kafka”[7].

34ª. Assim, há nulidade da sentença, atento o disposto no arr. 668º, nº1, als. c) e d) do CPC, razão pela qual deverá ser revogada.

Sem prescindir ainda

35ª. A recorrida deu início ao processo de registo no INPI da marca em 07.04.2006, pedido que foi publicado no Boletim da Propriedade Industrial (BPI), e decorridos 2 meses, a contar dessa publicação, como não houve oposição àquele pedido, foi proferida decisão de concessão, em 15.02.2007.

                36ª. Este deferimento e bem como eram devidas taxas pela concessão foram comunicadas pelo INPI à recorrida em 19.02.2007, no entanto, esta não efectuou o pagamento das taxas dentro do prazo definido, pelo que

                37ª. O registo caducou, em 31.08.2007, caducidade esta que é automática, como estipulam as normas dos arts. 37º,nº1, al. b), 269º, 270º e 36º a a 354º do CPI.

                Ao passo que,

                38ª. A  recorrente solicitou ao seu Agente Oficial da Propriedade Industrial, Dr. (…), informação sobre a possibilidade de registar uma marca de queijo com o nome “Flor da Cardanha”.

39ª. Efectuadas as necessárias pesquisas, a recorrente foi informada por aquele Agente que podia proceder ao registo dado que o pedido efectuado pela recorrida tinha caducado, pelo que,

40ª. Então a recorrente procedeu ao respectivo registo, com obediência de todo o formalismo legal, estando a dita marca definitivamente registada a seu favor desde 08.01.2010.

41ª. Sublinhe-se que uma marca caduca é uma marca nova – o que não foi entendido pelo Tribunal recorrido – e como tal pode ser registada, e foi efectivamente registada, sendo a recorrente possuidora do titulo de registo[8] que prova o seu direito de propriedade industrial, cfr. o art. 7º do CPI.

42ª. A sentença recorrida violou, pois, todas as referidas normas do CPI, pelo deverá ser revogada, julgada improcedente a acção e a recorrente absolvida do pedido.

Sem prescindir

                43ª. Tribunal recorrido decidiu a procedência da presente acção invocando a figura do abuso de direito, por considerar que o registo da marca por parte da recorrente é abusivo, decisão que é absolutamente contra legem.

                44ª. Com efeito, uma vez que o Senhor Juiz manifestou na sentença a sua discordância em relação ao registo a favor da recorrente, tinha, antes, a obrigação de, em obediência à lei, invocar expressamente a inconstitucionalidade das supracitadas normas do CPI e, com base nela, desaplicá-las. O que, contudo, não fez.

                Mas adiante,

                45ª. O instituto do abuso de direito, de acordo com o entendimento da doutrina e da jurisprudência, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, não tendo aplicação, portanto, à presente situação.

                46ª. Na verdade, repete-se, a recorrente de boa-fé e legalmente procedeu ao registo da marca, sem lesar o direito de ninguém, e no exercício do seu direito.

                47ª. Assim, a sentença recorrida violou o disposto no art. 334º do CC, pelo que deverá ser revogada, e julgada improcedente a acção, e a recorrente absolvida do pedido.

A autora contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso interposto, respondendo, detalhadamente, a cada uma das questões suscitadas pela recorrente.

Ordenou-se a baixa dos autos à primeira instância a fim de ser conhecida a nulidade da sentença arguida pela recorrente.

Suprida a omissão de conhecimento da nulidade da sentença, colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Do erro na forma de processo;

2.2 Da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir;

2.3 Da nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão e por ter tomado conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento;

2.4 Das respostas viciadas aos artigos 2º, 6º, 29º e 31º a 34º da base instrutória;

2.5 Da impugnação das respostas aos artigos 1º a 3º, 17º, 19º a 23º, 25º, 26º e 35º, todos da base instrutória;

2.6 Da violação dos artigos 36º, 37º, nº 1, alínea b), 269º, 270º e 346º[9] a 354º, todos do Código da Propriedade Industrial;

2.7 Da inexistência de abuso de direito por parte da recorrente.

3. Fundamentos

3.1 Do erro na forma de processo

A recorrente persiste na invocação de erro na forma de processo, criticando a decisão sob censura que indeferiu esta excepção dilatória na fase do despacho saneador, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que julgue verificado o invocado erro na forma de processo, declarando-se nulo o processo e absolvendo-se a recorrente da instância. Para tanto alega que a recorrida intentou acção declarativa de anulação de marca nacional e acção de condenação por concorrência desleal com processo ordinário, cumulando, numa única petição, dois tipos de acção diversos, o que deveria ter motivado um despacho de aperfeiçoamento da petição, a fim da mesma ser corrigida e adequada à forma de processo correcta, sendo certo que a forma processual usada era imprestável para a pretensão de condenação da autora em coima.

Cumpre apreciar e decidir.

Existe erro na forma de processo sempre que é utilizada forma processual inadequada à pretensão deduzida[10].

Salvo o devido respeito, a recorrente confunde duas realidades bem distintas: a forma de processo e os tipos de acções.

A forma de processo é comum ou especial (artigo 460º, nº 1, do Código de Processo Civil), aplicando-se o processo especial aos casos expressamente designados na lei, enquanto o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial (artigo 460º, nº 2, do Código de Processo Civil). O processo comum é ordinário, sumário e sumaríssimo (artigo 461º do Código de Processo Civil).

Por seu turno, a tipologia das acções é uma categoria que se afere em função do efeito jurídico pretendido pelo autor com a instauração de uma acção (artigo 4º do Código de Processo Civil), nada obstando a que numa única petição inicial sejam cumuladas pretensões correspondentes a tipos de acções diversos, desde que a nenhuma das pretensões corresponda uma forma processual especial ou forma de processo comum que não se determine unicamente em função do valor do pedido[11] (artigos 470º e 30º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil).

Deste modo, a circunstância da recorrida ter cumulado na petição inicial duas pretensões a que correspondem tipos de acções diversos não integra por si qualquer erro na forma de processo, a não ser que a uma das pretensões corresponde forma de processo especial ou forma de processo comum que não se determine unicamente em função do valor do pedido (processo sumaríssimo).

Ora, no caso em apreço, para qualquer das pretensões formuladas pela recorrida não corresponde forma de processo especial ou o processo comum sumaríssimo.

O que sucede é que uma das pretensões formuladas pela recorrida não cabe na jurisdição do tribunal comum (apenas lhe poderá caber em via de impugnação judicial da decisão administrativa que venha a decidir pela aplicação de uma coima), sendo da competência de uma entidade administrativa (artigo 344º do Código da Propriedade Industrial), facto que levou à prolação de decisão a declarar a incompetência em razão da matéria do tribunal, no que tange a pretensão de condenação da recorrente em coima, decisão que transitou em julgado, pois não foi impugnada por quem tinha legitimidade para tanto.

No mínimo, seria insólito se, como pretende a recorrente, se viesse agora a declarar existente um erro na forma de processo por causa de uma cumulação de pretensões para cujo conhecimento são competentes entidades distintas, quando essa cumulação nem sequer subsiste por força da decisão que declarou a incompetência em razão da matéria do tribunal comum para conhecimento da pretensão cuja cognição cabe, em primeira instância, à entidade administrativa. Mas, além de insólito, seria errado, já que o problema não é de erro na forma de processo, como cremos que resulta do que antes se expôs, mas antes de falta de jurisdição para uma das pretensões em concurso, vício mais radical e prioritário que acabou por ser conhecido e decidido pelo tribunal a quo, por decisão transitada em julgado.

            Assim, por tudo quanto precede, conclui-se pela inverificação de erro na forma de processo e pelo acerto da decisão sob censura.

3.2 Da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir

A recorrente pugna pela revogação da decisão proferida em sede de despacho saneador e que julgou inverificada a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir. Em síntese, a recorrente alega que a situação de facto exposta nos autos não tem qualquer arrimo legal, o que, na sua perspectiva, determina a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 193º, do Código de Processo Civil é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

Entre outros casos, é fundamento de ineptidão da petição inicial a falta de causa de pedir (artigo 193º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil).

A causa de pedir é o facto jurídico em que se fundamenta a pretensão do autor, sendo que nas acções reais é constituída pelo facto jurídico de que deriva o direito real e nas acções constitutivas e de anulação é constituída pelo facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito jurídico peticionado (artigo 498º, nº 4, do Código de Processo Civil).

A causa de pedir é constituída pelo complexo de factos produtores de efeitos jurídicos que servem de suporte à pretensão, ao efeito jurídico peticionado pelo autor.

A identificação clara e inequívoca de tal complexo fáctico constitui um ónus do autor (artigo 264º, nº 1, do Código de Processo Civil) imprescindível para a delimitação do âmbito dos poderes de cognição do tribunal (artigo 264º, nº 2, do Código de Processo Civil), para um eficaz contraditório pela parte contrária e para a delimitação do âmbito objectivo do caso julgado (artigos 497º, nº 1 e 498º, nºs 1 e 4, ambos do Código de Processo Civil).

No entanto, há que distinguir a situação de falta de causa de pedir consistente na falta de descrição de factos a que a parte associa a produção dos efeitos jurídicos peticionados, da insuficiência de causa de pedir resultante do complexo fáctico descrito não ser bastante para determinar a procedência da pretensão deduzida em juízo[12] e ainda da causa de pedir improcedente quando os factos aduzidos não têm de todo a aptidão para sustentar o efeito jurídico peticionado.

No caso em apreço, o que a recorrente suscita e enquadra no instituto da falta de causa de pedir, não integra esta excepção dilatória, mas antes, se a recorrente tiver razão, um caso de improcedência da pretensão da recorrida.

Os factos invocados pela recorrente para sustentar o pedido formulado têm aptidão para individualizar os fundamentos da sua pretensão. Saber se tais fundamentos produzem ou não os efeitos jurídicos peticionados pela recorrida não é uma questão de mera forma, de falta de causa de pedir, mas antes uma questão de fundo, geradora de eventual improcedência da acção e com potencialidade para formar caso julgado material.

Assim, por tudo quanto precede, deve manter-se a decisão recorrida no que respeita a inverificação de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

3.3 Da nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão e por ter tomado conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento

De acordo com o disposto no artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

O vício em apreço verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.           

Nos termos do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infracção do disposto no artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil.

As questões a decidir são algo de diverso dos argumentos aduzidos pelas partes para sustentar as posições que vão assumindo ao longo do desenvolvimento da lide[13]. As questões a decidir reconduzem-se aos concretos problemas jurídicos que o tribunal tem que necessariamente solver em função da causa de pedir e do pedido formulado, das excepções e contra-excepções invocadas.

No caso em apreço, a recorrente imputa a nulidade da decisão recorrida ao facto de na fundamentação jurídica serem feitas referências fácticas que não constam da factualidade provada, que não foram sequer alegadas ou submetidas à prova e algumas delas até em contradição com a factualidade provada.

Nos termos do disposto no artigo 659º, nº 3, na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer. Neste exame crítico das provas, na fase da elaboração da sentença, não estão em causa provas sujeitas à livre apreciação[14], mas antes provas apreciadas de acordo com critérios legais[15]. No entanto, porque se trata de provas, sempre visam a demonstração de realidades que hajam sido alegadas pelas partes (artigos 341º do Código Civil e 264º, nº 1, do Código de Processo Civil)[16].

Ora, salvo melhor opinião, as considerações fácticas tecidas pelo juiz aquando da elaboração da sentença que exorbitem da factualidade alegada pelas partes e que tenha sido considerada provada aquando da audiência de discussão e julgamento, que não se suportem naquelas provas que aquando da elaboração da sentença possam ser por si consideradas ou que não integrem matéria de oficioso conhecimento do tribunal (factos notórios, factos conhecidos pelo tribunal no exercício das suas funções e factos integradores de uso anormal do processo – artigo 264º, nº 2, 2ª parte, do Código de Processo Civil), traduzem-se numa ilegalidade, num erro de julgamento e não numa nulidade da sentença, conforme vem suscitado pela recorrente. Por identidade de razão com o que tem vindo a ser defendido relativamente às respostas excessivas, deverão considerar-se não escritas tais considerações fácticas emitidas em sede de fundamentação de direito, na medida em que se não contenham dentro da factualidade articulada pelas partes e submetida à prova[17].

A ilegal consideração de certos factos como provados não integra qualquer fundamento de nulidade da sentença, sendo certo que a contradição entre factos provados pode integrar o vício previsto no nº 4, do artigo 712º do Código de Processo Civil.

No caso em apreço não se detecta na sentença recorrida qualquer vício lógico entre os fundamentos e o dispositivo.

A recorrente não identifica as questões de que o tribunal a quo tomou conhecimento indevidamente com a clareza que seria desejável. Porém, o ponto 4 das suas alegações de recurso permite concluir que fundamenta esta arguição na circunstância da sentença sob censura ter declarado na nulidade do registo da marca por preterição de formalidades imprescindíveis para a concessão do direito.

Na verdade, os factos invocados pela recorrida para estribar a sua pretensão de anulação do registo da marca a favor da ré consistiram na prática por parte da ré de actos de concorrência desleal e na circunstância da ré não ser a titular do direito registado. Deste ponto de vista, dir-se-ia que efectivamente a sentença recorrida incorreu em nulidade por excesso de pronúncia, ao ter tomado conhecimento de causa de pedir não invocada pela autora. Porém, importa não perder de vista que a nulidade do registo da marca é de conhecimento oficioso pelo que, mesmo sem invocação do interessado em se prevalecer de tal vício, o tribunal tem o poder-dever de conhecer de tal vício[18]. Por esta razão, não procede esta arguição de nulidade da sentença.

Assim, por tudo quanto precede, conclui-se pela improcedência da arguição de nulidade da sentença sob censura com base no disposto no artigo 668º, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.

3.4 Das respostas viciadas aos artigos 2º, 6º, 29º e 31º a 34º da base instrutória

A recorrente insurge-se contra as respostas aos artigos 2º, 6º, 29º e 31º a 34º da base instrutória, alegando, para tanto, em síntese, que dada a forma como tais respostas foram dadas as mesmas são confusas, incoerentes e obscuras.

Na nossa perspectiva, esta arguição da recorrente pode, a comprovar-se, integrar a previsão do nº 4, do artigo 712º, do Código de Processo Civil, caso em que caberá a este tribunal suprir os vícios que venham eventualmente a ser detectados, já que tem ao seu dispor toda a prova que foi produzida perante o tribunal a quo.

Antes de aferir da existência de vícios das mencionadas respostas, recordemos o teor destas, bem como das perguntas que as originaram.

A resposta ao artigo 2º da base instrutória[19] foi: “Provado apenas que o queijo da Cardanha é comercializado, pelo menos desde 1998, pela organização de meios materiais e humanos que veio a ser adquirida pela empresa autora em 2006.

A resposta ao artigo 6º da base instrutória[20] foi: “Provado apenas o a esse respeito já constante da resposta ao ponto anterior[21].

A resposta ao artigo 29º da base instrutória[22] foi: “Provado apenas o a esse respeito constante da resposta aos pontos 4 a 10 27 e 28[23]

A resposta ao artigo 31º da base instrutória[24] foi: “Provado apenas o a esse respeito constante da resposta aos pontos 4 a 10, 27, 28 e 30.

Ao artigo 32º da base instrutória[25] respondeu-se “Provado apenas o a esse respeito já constante da resposta ao ponto anterior.

O artigo 33º da base instrutória[26] obteve a seguinte resposta: “Provado apenas o a esse respeito já constante da resposta ao ponto 31, e ainda que o queijo que a ré já comercializou, em Portugal, com a marca “Flor da Cardanha”, era vendido a preço inferior ao que a autora produz e comercializa sob a mesma marca.

Finalmente, respondeu-se ao artigo 34º da base instrutória[27]Provado apenas o a esse respeito já constante da resposta aos pontos “31” e “33”.

As respostas à matéria incluída na base instrutória podem ser simplesmente respostas positivas e negativas, restritivas ou explicativas, sendo que neste último caso importa que a explicação se contenha dentro do círculo factual articulado pelas partes, sob pena de, caso contrário, se violar o disposto no artigo 264º, nº 1, do Código de Processo Civil[28], proferindo-se uma resposta excessiva.

No caso em apreço, suscita-se a dúvida sobre a legalidade da resposta ao artigo 2º da base instrutória, por conter matéria de facto não alegada pelas partes e verifica-se que as respostas aos artigos 6º, 29º e 31º a 34º da base instrutória são de uma enorme complexidade dadas as sucessivas remissões nelas exaradas, não sendo deste modo auto-suficientes e deixando dúvidas sobre o exacto alcance das respostas dadas.

Antes de mais, apreciemos a legalidade da resposta ao artigo 2º da base instrutória.

A autora alegou que a autora comercializa o queijo da Cardanha desde 1998, alegação que foi quesitada, sendo certo que logo face aos documentos autênticos oferecidos pela autora (certidão permanente da matrícula da autora junta de folhas 18 a 20), era manifesto que esse facto era impossível porquanto a autora apenas foi constituída a 20 de Fevereiro de 2006.

O tribunal a quo, fiel à prova pessoal produzida na audiência de discussão e julgamento, respondeu “Provado apenas que o queijo da Cardanha é comercializado, pelo menos desde 1998, pela organização de meios materiais e humanos que veio a ser adquirida pela empresa autora em 2006.

Porém, ninguém alegou que antes da constituição da sociedade autora existiu uma outra unidade empresarial, ao que parece de natureza individual, que produzia e comercializava o queijo da Cardanha, unidade que terá sido adquirida ou pela autora ou pelo único sócio desta. Embora tenha sido produzida alguma prova pessoal sobre esta factualidade no decurso da audiência de discussão e julgamento, nenhuma das partes se prevaleceu do mecanismo previsto no nº 3, do artigo 264º do Código de Processo Civil, requerendo que tal factualidade fosse relevada.

A despeito da redacção dada à resposta ao artigo 2º da base instrutória, a mesma não constitui qualquer restrição à factualidade que nela estava contida, antes inclui matéria nova e diversa daquela que foi alegada pela autora na petição inicial. Por isso, esta matéria, que integra factos essenciais, pois está em causa a continuidade da comercialização de um certo queijo desde 1998, não se tratando de factos meramente probatórios ou instrumentais, não podia ser considerada pelo tribunal a quo na resposta que foi dada ao artigo 2º da base instrutória, devendo ser considerada não escrita na parte em que excede a matéria de facto alegada pela autora. Uma vez que a resposta a este artigo foi também objecto de impugnação pela recorrente, definir-se-á aquando da análise desta impugnação a resposta que ficará a subsistir.

Apreciemos agora a legalidade da resposta remissiva ao artigo 6º da base instrutória.

Na nossa perspectiva, não sendo a resposta ao artigo 6º da base instrutória modelar, dado que a sua completa inteligibilidade envolve uma remissão dupla, padecendo de falta de auto-suficiência, percebe-se que é efectivamente restritiva porquanto em vez de discriminar as espécies vegetais integrantes dos pastos da Cardanha em função das estações do ano, limita-se a uma referência genérica ao “pasto natural da região envolvente da aldeia da Cardanha”. Assim, afigura-se-nos que esta resposta não enferma de qualquer vício que determine a necessidade da sua anulação ou que seja considerada não escrita.

No que respeita as respostas remissivas aos artigos 29º e 31º a 32º da base instrutória, cremos que as mesmas terão como justificação a circunstância da matéria contida em tais artigos ser de natureza conclusiva, razão pela qual se entendeu remeter as respostas a tais artigos para as que foram dadas à matéria de facto que poderia firmar tais conclusões. É uma postura compreensível em face da divergência doutrinal e jurisprudencial quanto ao tratamento a dar aos factos conclusivos que hajam sido indevidamente incluídos na base instrutória[29].

Pela nossa parte, afigura-se-nos que não devendo ser incluída matéria conclusiva na base instrutória[30], se acaso é indevidamente aí incluída, não deve ser objecto de resposta, sob pena de se deixar sem sanção um procedimento incorrecto[31]. Quesitar-se e responder-se a matéria conclusiva, quando não se trate de juízos periciais de facto[32] é violar o disposto no artigo 513º do Código de Processo Civil, admitindo-se que a instrução exorbite da matéria de facto, bem como o disposto no artigo 638º, nº 1, do Código de Processo Civil, pedindo-se às testemunhas que emitam juízos de valor, sem que em muitos casos o tribunal tenha ao seu dispor os pressupostos factuais sobre os quais assentam tais juízos.

No caso em apreço, no artigo 29º da base instrutória perguntou-se, com alguma impropriedade de expressão[33], se o queijo fabricado pela ré se transformava num queijo diferente do da autora, mas com um mesmo nome. Ora, a afirmação da diferença ou da semelhança entre duas coisas é sempre produto de um juízo assente em diversos dados de facto, podendo duas coisas diferir com referência a certos dados de facto e ser semelhantes relativamente a outros dados de facto.

No caso em apreço, a autora situou a diferença entre o queijo por si produzido e o queijo produzido pela ré na qualidade e proveniência da matéria-prima usada no fabrico do seu queijo e nos processos de fabricação do mesmo. Nada foi alegado quanto à textura e consistência, à coloração, ao cheiro, ao sabor, ao teor de gordura e à composição química dos dois produtos em confronto, elementos de facto que seriam certamente relevantes para um juízo mais fundamentado sobre as características de um e outro produto e para a emissão de um juízo seguro sobre as semelhanças e diferenças entre os dois produtos. Por isso se vê que admitir uma resposta positiva ou negativa à matéria vertida no artigo 29º da base instrutória é permitir uma eventual e subreptícia introdução de dados de facto que não foram oportunamente alegados pelas partes, sobre os quais não houve adequado contraditório[34], sendo certo que se a diferença entre os produtos resultar apenas daquilo que foi alegado e provado, esse juízo será oportunamente feito pelo tribunal quando analisar e interpretar a matéria de facto provada.

Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que o artigo 29º da base instrutória deve quedar sem resposta, por se tratar de matéria conclusiva, aplicando-se, por analogia, o regime previsto no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil.

Apreciemos agora a resposta ao artigo 31º da base instrutória.

Perguntava-se neste artigo “O que faz surgir no consumidor uma ideia errada sobre o produto que esta [está?] a adquirir”, em directa conexão com o artigo anterior, onde se perguntava se “A marca “Flor da Cardanha” referida em C) (trata-se da marca registada pela ré), faz referência ao local de origem das matérias-primas utilizadas no fabrico dos queijos”. É objecto desta pergunta a confusão em que o consumidor pode incorrer sobre a exacta proveniência do queijo fabricado pela ré e comercializado sob o nome “Flor da Cardanha”. Está em causa a emissão de um juízo de valor em face de certos dados de facto: saber se dois produtos da mesma natureza, comercializados sob o mesmo nome, nome que contém uma referência geográfica, podem ser tidos pelo consumidor como provenientes, ambos, da mesma região. Pelas razões já enunciadas para justificar a não-resposta ao artigo 29º da base instrutória, não deve responder-se ao artigo 31º da base instrutória, considerando-se não escrita a resposta que foi dada pelo tribunal a quo.

Vejamos agora a resposta ao artigo 32º da base instrutória que é mera consequência da pergunta anterior, referindo-se, uma vez mais à confusão em que incorreria o consumidor, por pensar estar a adquirir o produto da autora quando adquiria o produto da ré.

Uma vez mais está em causa um juízo de valor, redundante, atento o já constante do anterior artigo e que, à semelhança deste, deve ter a mesma terapêutica, isto é, deve declarar-se não escrita a resposta dada ao artigo 32º da base instrutória, não se respondendo a tal artigo.

Apreciemos agora a resposta ao artigo 33º da base instrutória.

Este artigo contém matéria de facto passível de ser percepcionada por testemunhas, merecendo por isso tratamento diverso daquele que se entendeu adequado para os artigos 29º, 31º e 32º da base instrutória.

Na resposta dada pelo tribunal a quo, saiu-se fora da matéria contida na pergunta, na parte em que se remeteu para as respostas aos artigos 4º a 10º, 27º, 28º e 30º da base instrutória. Do que se tratava neste artigo era tão-só de saber se a “ré contacta os clientes da Autora e oferece um produto, com um rótulo idêntico ao usado pela autora, a preço mais baixos, garantindo a mesma qualidade”. Por isso, deve considerar-se não escrito o segmento da resposta em que se remeteu para as respostas aos artigos 4º a 10º, 27º, 28º e 30º da base instrutória, mantendo-se a parte restante da resposta.

Finalmente, apreciemos a resposta ao artigo 34º da base instrutória.

Neste artigo, num registo em certa medida redundante relativamente ao anterior artigo, cura-se novamente de determinar se a “ré contactou comerciantes, que anteriormente adquiriam o queijo à autora, feiras e certames, oferecendo-o mais barato, afirmando que se trata do mesmo produto”. Trata-se de matéria de facto passível de percepção directa por testemunhas merecendo por isso tratamento diverso daquele que se entendeu adequado para os artigos 29º, 31º e 32º da base instrutória.

À semelhança do que se sustentou relativamente à resposta ao artigo 33º da base instrutória, verifica-se que na resposta dada pelo tribunal a quo, saiu-se fora da matéria contida na pergunta, na parte em que se remeteu para as respostas aos artigos 4º a 10º, 27º, 28º e 30º da base instrutória. Por isso, deve considerar-se não escrito o segmento da resposta em que se remeteu para as respostas aos artigos 4º a 10º, 27º, 28º e 30º da base instrutória, mantendo-se a parte restante da resposta.

Assim, em conclusão, devem considerar-se não escritas as respostas aos artigos 29º, 31º e 32º da base instrutória, merecendo igual tratamento as respostas aos artigos 33º e 34º da base instrutória, apenas na parte em que remetem para as respostas aos artigos 4º a 10º, 27º, 28º e 30º da base instrutória, mantendo-se o segmento restante destas duas últimas respostas, devendo ainda considerar-se não escrita a resposta ao artigo 2º da base instrutória, na parte em que excede a matéria de facto alegada pela autora.

3.5 Da impugnação das respostas aos artigos 1º a 3º, 17º, 19º a 23º, 25º, 26º e 35º, todos da base instrutória

(…)

3.6 Fundamentos de facto enumerados na sentença sob censura na parte em que não foram afectados pela procedência da impugnação da recorrente, bem como os resultantes do acordo das partes, não impondo os elementos do processo decisão diversa, impassível de ser destruída por outras provas, nem tendo sido oferecido qualquer documento superveniente que por si só seja suficiente para destruir a prova em que a decisão recorrida assentou (artigo 712º, nº 1, do Código de Processo Civil)


3.6.1

            A autora é uma empresa fabricante de queijos, cuja sede está situada junto ao Rio Sabor, no planalto de Vilariça, na aldeia da Cardanha (alínea A dos factos assentes).

3.6.2

A ré é uma sociedade comercial que se dedica, desde 1990, à produção e fabrico de queijos (alínea B dos factos assentes).

3.6.3

A 20 de Outubro de 2009, foi efectuado pela ré, ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o pedido de protecção de marca Flor da Cardanha, que deu origem à marca 456076, a qual se encontra actualmente registada na categoria 29 – queijos (alínea C dos factos assentes).

3.6.4

A ré não fabrica o seu queijo na região da Cardanha (alínea D dos factos assentes).

3.6.5

A autora comercializa queijo da Cardanha desde 20 de Fevereiro de 2006 (resposta ao artigo 2º da base instrutória).

3.6.6

A partir de 20 de Fevereiro de 2006 a autora comercializou queijo sob o nome “Flor da Cardanha” (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

3.6.7

Tal queijo é produzido por recurso a leite de ovelhas que consomem o pasto natural da região envolvente da aldeia da Cardanha (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

3.6.8

O queijo da Cardanha, incluindo o que a autora designa por “Flor da Cardanha”, é produzido com recurso a leite de ovelhas locais, designadamente as churras (resposta ao artigo 7º da base instrutória).

3.6.9

A ovelha churra é uma espécie existente na região envolvente da aldeia de Cardanha (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

3.6.10

No fabrico do queijo da Cardanha pela autora, o leite é espremido à mão e posteriormente pasteurizado e higienizado (resposta ao artigo 9º da base instrutória)[35].

3.6.11

E cada queijo é salgado individualmente, em salga artesanal (resposta ao artigo 10º da base instrutória).

3.6.12

Fruto do leite com que é produzido, e do seu processo de fabrico, o queijo da região tem um sabor que o diferencia dos restantes queijos (resposta ao artigo 11º da base instrutória).

3.6.13

Parte dos clientes da autora procura o queijo da região, que sabe diferenciar dos restantes queijos (resposta ao artigo 12º da base instrutória).

3.6.14

A autora tem clientes por quase todo o território nacional e países estrangeiros mais próximos, mas essencialmente nos concelhos vizinhos de Moncorvo (resposta ao artigo 13º da base instrutória).

3.6.15

O queijo por ela fabricado e comercializado originou convites, à autora, para participar em feiras e certames a nível nacional, como a Fatacil, em Lagoa, em Lisboa e Vila do Conde (resposta ao artigo 14º da base instrutória).

3.6.16

O queijo “Flor da Cardanha” já foi convidado para estar presente na apresentação de produtos regionais na Casa de Trás-os-Montes de Lisboa, e em programas de televisão (resposta ao artigo 15º da base instrutória).

3.6.17

A autora foi convidada a expor o queijo “Flor da Cardanha” em Itália, Espanha e França (resposta ao artigo 16º da base instrutória).

3.6.18

A autora é sócia da AEP e da Câmara de Comércio e Indústria, fazendo parte da marca “Compre o que é nosso – Made in Portugal”, com os queijos “Flor da Cardanha” e “Vale do Sabor” (resposta ao artigo 17º da base instrutória).

3.6.19

Tendo, no âmbito da AEP, sido convidada a apresentar tais produtos e a empresa, na TVI e em jornais locais (informativo) e nacionais (Jornal de Notícias) (resposta ao artigo 18º da base instrutória).

3.6.20

A 7 de Abril de 2006, a autora efectuou ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o pedido de protecção da marca “Flor da Cardanha”, referente à categoria 29, queijos, que recebeu o nº 20830 e a marca nº 400707, que foi publicada no nº 6, de 2006 do Boletim da Propriedade Industrial (factos admitidos por acordo das partes).

3.6.21

Tal pedido ficou a aguardar o pagamento das taxas devidas (factos admitidos por acordo das partes).

3.6.22

Na falta de pagamento das taxas, tal pedido caducou (factos admitidos por acordo das partes).

3.6.23

A autora tomou conhecimento da caducidade do pedido de registo em momento que não foi possível fixar (resposta ao artigo 23º da base instrutória).

3.6.24

Altura em que também tomou conhecimento de que a ré já havia registado a mesma marca, entretanto (resposta ao artigo 24º da base instrutória).

3.6.25

A ré procedeu ao registo da marca “Flor da Cardanha” para, quando pretendesse comercializar queijo de ovelha da região, o poder fazer beneficiando do nome no mercado e da clientela angariada pela autora (resposta ao artigo 25º da base instrutória).

3.6.26

A ré não utiliza os mesmos processos de produção do queijo “Flor da Cardanha” que a autora (resposta ao artigo 27º da base instrutória).

3.6.27

Se a ré produzir queijo com recurso a outro leite que não o da região, e fazendo-o – como o faz – com processos de produção diferentes dos utilizados pela autora, obtém um queijo com sabor e demais características diferentes (resposta ao artigo 28º da base instrutória).

3.6.28

A marca “Flor da Cardanha” faz referência ao local de origem das matérias-primas utilizadas no fabrico dos queijos (resposta ao artigo 30º da base instrutória).

3.6.29

O queijo que a ré já comercializou, em Portugal, com a marca “Flor da Cardanha”, era vendido a preço inferior ao que a autora produz e comercializa sob a mesma marca (resposta ao artigo 33º da base instrutória).

3.6.30

Quando procedeu ao registo da marca “Flor da Cardanha”, a ré sabia que a autora fabricava e comercializava um produto com esse nome, conhecido, pelo menos, nos concelhos vizinhos de Moncorvo (resposta ao artigo 35º da base instrutória).

4. Fundamentos de direito

4.1 Da violação dos artigos 36º, 37º, nº 1, alínea b), 269º, 270º e 346º a 354º, todos do Código da Propriedade Industrial

A recorrente pugna pela revogação da decisão sob censura por alegadamente violar o disposto nos artigos 36º, 37º, nº 1, alínea b), 269º, 270º e 354º, todos do Código da Propriedade Industrial.

Apreciemos.

Na decisão recorrida concluiu-se pela procedência da acção, não exactamente pelos fundamentos invocados pela autora, mas antes por se ter entendido que na concessão do registo da marca a favor da ré houve preterição de procedimento ou formalidades imprescindíveis para a concessão do direito e ainda por se entender que o registo da marca a favor da ré configurava um exercício abusivo do seu direito, constituindo ambas as situações fundamento de nulidade do registo da marca a favor da ré, vício de conhecimento oficioso.

A decisão recorrida não prima pela clareza na identificação dos fundamentos do vício a final declarado pois, após uma longa exposição de utilidade mais do que discutível na economia de uma decisão judicial sobre a validade de um registo de marca (vejam-se as folhas 150 a 163)[36], alude à anulabilidade do registo da marca em virtude de, alegadamente, a ré ter procedido ao registo de uma marca que não lhe pertence (artigo 34º, alínea a), do Código da Propriedade Industrial - página 164)[37], mas sem daí retirar consequências jurídicas; depois, anunciando a análise do preenchimento dos fundamentos de nulidade do registo da marca previstos no artigo 33º, nº 1, alíneas b) e c), do Código da Propriedade Industrial, afirma no decurso dessa análise ter ocorrido omissão de notificação à autora de que o registo de marca a seu favor estava a ser promovido por entidade incompetente para o efeito e ainda que, não se demonstrando que a autora foi notificada de que a falta de pagamento das taxas devidas importava a caducidade do registo da marca por si requerido, tal integrava a violação de regras de ordem pública, assim concluindo, se bem interpretamos o texto da decisão recorrida, pelo preenchimento daquelas duas previsões legais. Finalmente, afirma-se na decisão recorrida que, a existir o direito de utilizar a marca “Flor da Cardanha” a favor da ré, hipótese que o Sr. juiz autor da decisão sob censura não admite, o registo da marca a favor da ré sempre seria abusivo, quer à luz da figura da supressio, quer ainda porque isso se traduziria num exercício de um direito em contrariedade às exigências da boa fé, dos bons costumes e ainda contra o fim social e económico do direito em causa, o que determinaria as consequências jurídicas da inexistência do direito abusivamente exercido.

Antes de mais, analisemos os invocados fundamentos de nulidade do registo da marca a favor da ré.

Na decisão sob censura considera-se nulo o registo da marca “Flor da Cardanha” a favor da ré em virtude do Instituto Nacional da Propriedade Industrial não ter advertido a autora de que procedia ao registo da marca por meio de entidade incompetente e ainda por não estar comprovado que a autora foi notificada da necessidade de proceder ao pagamento das taxas, sob pena de caducidade do registo da aludida marca.

Este entendimento do tribunal a quo é deveras singular pois com base em alegados vícios procedimentais no registo da marca promovido pela autora, alguns anos antes do registo implementado pela ré, imputa uma nulidade no registo a favor da ré por força dessas alegadas violações ocorridas fora do procedimento em que veio a processar-se o registo da marca “Flor da Cardanha” a favor da ré. Ora, salvo melhor opinião, a nulidade do registo decorre de no procedimento do registo da marca afectado por tal vício, ocorrerem as aludidas violações, o que manifestamente não é o que sucede no caso dos autos, pois as alegadas violações, a terem-se verificado, foi no procedimento de registo da marca promovido pela autora.

Além desta objecção de ordem formal, outros óbices existem ao alegado vício de nulidade do registo da marca a favor da ré. Em primeiro lugar, como resulta da alteração da decisão da matéria de facto (alteração da resposta ao artigo 19º da base instrutória), não está de modo nenhum comprovado que o registo da marca a favor da autora tenha sido promovido por entidade incompetente. Em segundo lugar, não resulta da matéria de facto provada que tenha havido qualquer preterição das notificações legalmente exigidas no âmbito do procedimento do registo da marca a favor da autora, tal como não resulta da mesma matéria e ao invés daquilo que é alegado pela ré, que tenham sido efectuadas todas as notificações legalmente exigidas. Ora, a verificação do aludido vício de nulidade do registo da marca implica a demonstração da preterição de formalidades imprescindíveis para a concessão do direito. Por isso, ainda que à construção jurídica efectuada pelo tribunal a quo não se opusesse a objecção de ordem formal supra assinalada, certo é também que, face à factualidade provada, não se acha preenchida nenhuma das previsões legais que o tribunal a quo considerou perfectibilizadas, pelo que também sob este prisma, não se detecta qualquer nulidade do registo da marca efectuado a favor da ré[38].

Assim, por tudo quanto precede, conclui-se pela procedência do recurso de apelação no que respeita as nulidades do registo da marca “Flor da Cardanha” identificadas pelo tribunal a quo, inexistindo quaisquer dados de facto que suportem essa afirmada nulidade, pelo que neste segmento a decisão sob censura não se pode manter.  

4.2 Da inexistência de abuso de direito por parte da recorrente

Na decisão sob censura, afirma-se que ainda que por hipótese o registo da marca a favor da ré fosse válido, sempre se colocaria a questão de saber se não teria sido usado em condições abusivas. Prosseguindo nesta linha argumentativa, invoca-se a figura da supressio e cita-se uma espécie jurisprudencial[39], pretensamente similar ao caso dos autos quando, se não erramos, se trata de um caso sem qualquer parentesco, ainda que remoto, com o caso dos autos.

Na verdade, no caso invocado na decisão sob censura e pretensamente similar aos destes autos sancionou-se negativamente a acção intentada por uma sociedade que pretendia reagir contra o uso de uma marca similar à sua por parte da ré, depois de durante pelo menos onze anos nada ter feito para obstar a tal uso, com recurso ao instituto do abuso de direito, na modalidade de supressio.

Ora, é patente que no caso em apreço, a realidade fáctica é bem diversa pois, desde logo, a autora não é titular de qualquer marca registada, apenas tendo encetado diligências para proceder a esse registo cerca de quatro anos antes da instauração da acção, diligências que porém não foram frutíferas. Neste quadro factual, a invocação da figura da supressio contra o registo da marca efectuado pela ré é no mínimo deslocada, pois não se vê que tenha havido qualquer passividade por parte da ré face ao uso dessa marca por parte da autora, por um período tão significativo que não fosse de esperar qualquer reacção por parte da ré.

Seguidamente, afirma-se na decisão recorrida, em registo interrogativo, que a conduta da ré, ao apropriar-se de um rótulo criado pela autora, bem como do nome de um produto também por esta criado viola as exigências da boa fé, dos bons costumes e o fim social e económico do direito.

A recorrente insurge-se contra este enquadramento jurídico, pugnando pela inverificação dos pressupostos fácticos necessários ao preenchimento da figura do abuso de direito.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

Tem-se entendido que o termo direito tem de ser entendido em sentido amplo, abrangendo toda e qualquer prerrogativa jurídica subjectiva[40], não se cingindo ao simples exercício de direitos subjectivos.

O abuso de direito requer um excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito, no sentido de tal excesso tem que ser patente, ostensivo, qualificado em razão da sua intensidade e ou extensão, não bastando um simples excesso.

O instituto do abuso de direito visa reagir contra tais excessos manifestos, a fim de que o exercício de um direito ou de uma faculdade jurídica se mantenha dentro dos limites impostos pelas exigências da boa fé, dos bons costumes e do fim social e económico do direito. É um instituto implicitamente subsidiário porquanto só é chamado à liça quando a patologia existente não é passível de ser debelada por uma outra via positivamente estabelecida[41].

No caso em apreço, os factos que o tribunal relevou para apelar ao instituto do abuso de direito são essencialmente aqueles que a autora invocou para requerer a anulação do registo da marca a favor da ré. Por isso, tendo em conta a liberdade de que goza o tribunal na qualificação jurídica dos factos (artigo 664º do Código de Processo Civil) e que as partes já foram confrontadas ao longo de todos os autos com as diversas qualificações jurídicas possíveis, deve, antes de mais, verificar-se se os aludidos factos integram ou não o fundamento de anulabilidade da marca registada pela autora.

Nos termos do disposto no artigo 266º, nº 1, do Código da Propriedade Industrial, “Para além do que se dispõe no artigo 34º, o registo da marca é anulável quando, na sua concessão, tenha sido infringido o previsto nos artigos 239º a 242º”, ou seja, o registo da marca é anulável sempre que tenha sido deferido ocorrendo motivo de recusa do registo da marca previsto nos artigos 239º a 242º do Código da Propriedade Industrial.

Ora, nos termos do disposto no artigo 239º, nº 1, alínea e), do Código da Propriedade Industrial, constitui também fundamento de recusa do registo da marca o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal ou de que esta é possível independentemente da sua intenção.

Este fundamento de recusa do registo da marca remete-nos para as previsões legais que tipificam a concorrência desleal, no artigo 317º, do Código da Propriedade Industrial.

No nº 1 deste artigo define-se a concorrência desleal com recurso a uma cláusula geral como todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo económico.

Na alínea a) do nº 1, do mesmo artigo dão-se como exemplos de actos de concorrência contrários às normas e usos honestos de qualquer ramo económico aqueles que são susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue.

No caso em apreço provou-se:

- que a autora comercializa queijo da Cardanha desde 20 de Fevereiro de 2006 (resposta ao artigo 2º da base instrutória);

- que a partir de 20 de Fevereiro de 2006 a autora comercializou queijo sob o nome “Flor da Cardanha” (resposta ao artigo 3º da base instrutória);

- que tal queijo é produzido por recurso a leite de ovelhas que consomem o pasto natural da região envolvente da aldeia da Cardanha (resposta ao artigo 4º da base instrutória);

- que o queijo da Cardanha, incluindo o que a autora designa por “Flor da Cardanha”, é produzido com recurso a leite de ovelhas locais, designadamente as churras (resposta ao artigo 7º da base instrutória);

- que a ovelha churra é uma espécie existente na região envolvente da aldeia de Cardanha (resposta ao artigo 8º da base instrutória);

- que no fabrico do queijo da Cardanha pela autora, o leite é espremido à mão e posteriormente pasteurizado e higienizado (resposta ao artigo 9º da base instrutória);

- que cada queijo é salgado individualmente, em salga artesanal (resposta ao artigo 10º da base instrutória);

- que fruto do leite com que é produzido, e do seu processo de fabrico, o queijo da região tem um sabor que o diferencia dos restantes queijos (resposta ao artigo 11º da base instrutória);

- que parte dos clientes da autora procura o queijo da região, que sabe diferenciar dos restantes queijos (resposta ao artigo 12º da base instrutória);

- que a autora tem clientes por quase todo o território nacional e países estrangeiros mais próximos, mas essencialmente nos concelhos vizinhos de Moncorvo (resposta ao artigo 13º da base instrutória);

- que o queijo por ela fabricado e comercializado originou convites, à autora, para participar em feiras e certames a nível nacional, como a Fatacil, em Lagoa, em Lisboa e Vila do Conde (resposta ao artigo 14º da base instrutória);

- que o queijo “Flor da Cardanha” já foi convidado para estar presente na apresentação de produtos regionais na Casa de Trás-os-Montes de Lisboa, e em programas de televisão (resposta ao artigo 15º da base instrutória);

- que a autora foi convidada a expor o queijo “Flor da Cardanha” em Itália, Espanha e França (resposta ao artigo 16º da base instrutória);

- que a autora é sócia da AEP e da Câmara de Comércio e Indústria, fazendo parte da marca “Compre o que é nosso – Made in Portugal”, com os queijos “Flor da Cardanha” e “Vale do Sabor” (resposta ao artigo 17º da base instrutória);

- que, no âmbito da AEP, foi convidada a apresentar tais produtos e a empresa, na TVI e em jornais locais (informativo) e nacionais (Jornal de Notícias) (resposta ao artigo 18º da base instrutória);

- que a ré procedeu ao registo da marca “Flor da Cardanha” para, quando pretendesse comercializar queijo de ovelha da região, o poder fazer beneficiando do nome no mercado e da clientela angariada pela autora (resposta ao artigo 25º da base instrutória);

- que a ré não fabrica o seu queijo na região da Cardanha (alínea D dos factos assentes);

- que a ré não utiliza os mesmos processos de produção do queijo “Flor da Cardanha” que a autora (resposta ao artigo 27º da base instrutória);

- que se a ré produzir queijo com recurso a outro leite que não o da região, e fazendo-o – como o faz – com processos de produção diferentes dos utilizados pela autora, obtém um queijo com sabor e demais características diferentes (resposta ao artigo 28º da base instrutória);

- que a marca “Flor da Cardanha” faz referência ao local de origem das matérias-primas utilizadas no fabrico dos queijos (resposta ao artigo 30º da base instrutória);

- que o queijo que a ré já comercializou, em Portugal, com a marca “Flor da Cardanha”, era vendido a preço inferior ao que a autora produz e comercializa sob a mesma marca (resposta ao artigo 33º da base instrutória);

- que quando procedeu ao registo da marca “Flor da Cardanha”, a ré sabia que a autora fabricava e comercializava um produto com esse nome, conhecido, pelo menos, nos concelhos vizinhos de Moncorvo (resposta ao artigo 35º da base instrutória).

A matéria de facto que se rememorou permite concluir que a ré procedeu ao registo de uma marca para um certo produto sabendo que essa marca, embora livre porque não registada, era usada pela autora em produto similar àquele para que pretendia obter o registo da marca. Além disso, da mesma matéria de facto resulta que a ré produzia um produto diferente do da autora, a preço mais baixo e que pretendeu fazer o registo da marca que vinha sendo usada pela autora para quando pretendesse comercializar queijo de ovelha da região, o poder fazer beneficiando do nome no mercado e da clientela angariada pela autora.

Na nossa perspectiva, esta factualidade caracteriza de forma suficiente um procedimento incorrecto por parte da ré e a intenção de se apoderar do potencial distintivo da marca que vinha sendo usada pela autora, enganando parte dos consumidores quanto às reais características dos seus produtos e atraindo a clientela que a autora foi fidelizando. A nosso ver, tal procedimento da ré preenche a previsão da alínea a), do nº 1, do artigo 317º do Código da Propriedade Industrial, não obstando a isso a circunstância da marca usada pela autora não se achar registada[42], sendo assim uma mera marca de facto.

A circunstância da marca usada pela autora não se achar registada e ser por isso uma marca livre, não conferia o direito à ré de registando essa marca lograr a confusão de produtos e dos consumidores, bem como a inerente atracção de clientela da autora para a sua esfera, atracção conseguida com um produto com características diversas do produto da autora, pois tal constitui um procedimento incorrecto integrador de concorrência desleal. A inexistência de obstáculo ao registo da marca que vinha sendo usada pela autora a favor da ré apenas lhe facultava o registo da marca, desde que isso não envolvesse a prática de actos de concorrência desleal, ou seja, designadamente, desde que esse registo não tivesse aptidão a gerar a confusão de produtos e de consumidores, bem como o desvio de clientela da autora para a ré, bastando para tanto que esse registo se destinasse a produto totalmente distinto do produto comercializado pela autora.

A intenção da ré de se aproveitar do nome da autora no mercado, bem como da clientela por esta angariada com a marca que registou a seu favor afectam o acto de registo da marca de invalidade sob forma de anulabilidade e, se acaso essa intenção tem sido detectada aquando do processo de registo da marca a favor da ré, tal registo deveria ter sido recusado ex vi artigo 239º, nº 1, alínea e), do Código da Propriedade Industrial.

Assim, pelo que precede, conclui-se que por fundamentos jurídicos diversos dos acolhidos na decisão sob censura, embora coincidentes com os que foram invocados pela autora na petição inicial, o recurso de apelação não merece provimento, devendo anular-se a marca “Flor da Cardanha” referente à categoria 29, queijos, que recebeu o nº nº 456076, ex vi artigos 266º, nº 1, 239º, nº 1, alínea e) e 317º, nº 1, alínea a), todos do Código da Propriedade Industrial.

A apreciação da existência de abuso de direito por parte da ré, ao requerer a seu favor o registo da marca que a autora vinha usando, fica prejudicada pela conclusão a que se chegou na análise precedente.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam:

a) em confirmar as decisões proferidas em sede de despacho saneador relativamente às invocadas excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial e de erro na forma de processo, nos segmentos em que foram impugnadas por via de recurso;

b) em julgar improcedente a arguição de nulidade da sentença recorrida por oposição dos fundamentos com a decisão e por ter tomado conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento;

c) em considerar não escritas as respostas aos artigos 29º, 31º e 32º da base instrutória, merecendo igual tratamento as respostas aos artigos 33º e 34º da base instrutória, estas duas apenas na parte em que remetem para as respostas aos artigos 4º a 10º, 27º, 28º e 30º da base instrutória, mantendo-se o segmento restante destas duas respostas, devendo ainda considerar-se não escrita a resposta ao artigo 2º da base instrutória, na parte em que excede a matéria de facto alegada pela autora, nos termos constantes da fundamentação deste acórdão;

d) em julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão da matéria de facto no que tange as respostas dadas aos artigos 1º, 2º, 22º e 23º, todos da base instrutória, nos termos precedentemente expostos, considerando-se assente por acordo das partes o conteúdo do requerimento de registo da marca a favor da autor, bem como a matéria vertida no artigo 20º da base instrutória e na primeira parte do artigo 21º da mesma peça processual, improcedendo no mais a impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente;

e) no mais, em confirmar a decisão sob censura, embora com base em fundamentos jurídicos diversos e, consequentemente, ao abrigo do disposto nos artigos 266º, nº 1, 239º, nº 1, alínea e) e 317º, nº 1, alínea a), todos do Código da Propriedade Industrial, decidem anular o registo da marca “Flor da Cardanha”, que deu origem à marca 456076, actualmente registada na categoria 29 – queijos;

f) custas do recurso de apelação a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] A numeração das notas de rodapé das conclusões não corresponde à numeração do original das conclusões, havendo uma diferença de setenta números, para menos, entre a numeração que fica a constar nesta decisão e a que figura nas conclusões originais.
[2] De que, aliás, com adiante se verá, nunca sequer chegou a ser titular.
[3] Salvo melhor opinião.
[4] Depoimento gravado de 10:54:13 a 11:01:09.
[5] Depoimento gravado de 12:05:04 a 12:14:05.
[6] Como sucede na decisão da matéria de facto de facto e respectiva fundamentação.
[7] Fls. 168, in fine.
[8] Cfr. doc. nº1 junto com a contestação.
[9] Na trigésima sétima conclusão a recorrente alude à violação dos artigos “36º a a 354º do CPI”. Porém, das alegações resulta que se trata de uma menção errónea e que a recorrente imputa à decisão recorrida a violação dos artigos 346º a 354º do Código da Propriedade Industrial (veja-se a página 68 das alegações de recurso).
[10] Neste sentido veja-se Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora 1985, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, página 390.
[11] O obstáculo à cumulação nestes casos só existe se se pretender a cumulação na forma processual comum menos solene (processo sumaríssimo) e quando para uma dessas pretensões cumuladas não seja adequada essa forma processual (por exemplo se se visar a entrega de uma coisa imóvel de reduzido valor). Se se usar uma forma de processo comum mais solene do que a do processo sumaríssimo, uma tal cumulação já será viável, ainda que a uma das pretensões, isoladamente, fosse aplicável a forma sumaríssima.
[12] Para a distinção das duas figuras, ainda com toda a actualidade, veja-se o Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Coimbra Editora 1945, Professor José Alberto dos Reis, páginas 371 a 377.
[13] Sobre esta questão veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, páginas 679 a 681.
[14] Estas foram produzidas na audiência de discussão e julgamento e foram apreciadas aquando da efectivação do julgamento da matéria de facto.
[15] Sobre esta questão vejam-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora 1984, Professor José Alberto dos Reis, página 33 e Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, página 677, anotação 3.
[16] Importa sublinhar que a consideração oficiosa dos factos instrumentais prevista na parte final do nº 2, do artigo 264º do Código de Processo Civil não se traduz verdadeiramente numa excepção ao ónus de alegação das partes, porquanto se trata de factos com relevância meramente probatória de factos principais que tenham sido alegados pelas partes.
[17] Sobre a questão das respostas excessivas vejam-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, página 639, anotação 4 e Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª ed. revista e actualizada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 238 e 239 e nota 356 desta última página. Cremos porém que a sanção para a resposta excessiva não consistirá apenas e sempre em considerar não escrita a resposta, na medida em que se assim se proceder, a pergunta em causa poderá ficar sem resposta, sendo que nalguns dos casos previstos no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil estão em causa provas plenas que serão consideradas em sede de sentença nos termos previstos no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil. Por isso, nalguns casos, além de se considerar não escrita a resposta excessiva, na parte em que se verifique o excesso, há que, nos termos gerais, responder ao quesito formulado de acordo com a prova produzida e que seja legalmente valorável, face à matéria probanda em apreço.
[18] Neste sentido, além do nº 2, do artigo 33º do Código da Propriedade Industrial, que não tem a clareza do artigo 286º do Código Civil, porquanto omite a expressa referência à possibilidade do tribunal conhecer oficiosamente da nulidade, o Código da Propriedade Industrial Anotado, com a coordenação geral de António Campinos e a coordenação científica de Luís Couto Gonçalves, Almedina 2010, página 148, anotação II.
[19] Perguntava-se no artigo 2º da base instrutória: “E comercializa o queijo da Cardanha desde 1998?”. O sujeito subentendido é a autora.
[20] Perguntava-se no artigo 6º da base instrutória: “E no Verão, fruto da região montanhosa em que está inserida a Aldeia da Cardanha, as pastagens secas e flor da amendoeira?” Esta pergunta só se percebe em conjugação com as perguntas constantes dos artigos 4º e 5º da base instrutória onde se questionou, respectivamente, Tal queijo tem por base a giesta negral, cevada, nabiças, ferranheiro, centeio, flor da oliveira, carrasco, figos, folha de figueira e folha de videira”, “Características decorrentes do pasto da região referida em A)”. Sublinhe-se que o artigo 5º da base instrutória foi infiel ao que havia sido alegado na petição inicial, porquanto se alegou no artigo 3º desta peça que “Tal queijo tem características próprias decorrentes do pasto da região, o qual tem por base a giesta negral, cevada e nabiças o chamado ferranheiro, centeio, flor da oliveira e carrasco, figos, folha de figueira, folha de videira, e,”, resultando o citado artigo 5º ininteligível, pois não se percebe a que características se refere. Também é certo que a autora se absteve de indicar quais eram concretamente as características próprias do queijo da Cardanha.
[21] A resposta ao artigo 5º da base instrutória foi: “Provado apenas o a esse respeito já constante de “A” dos factos assentes e da resposta ao ponto anterior.” Por seu turno, a resposta ao artigo 4º da base instrutória foi: “Provado apenas que tal queijo é produzido por recurso a leite de ovelhas que consomem o pasto natural da região envolvente da aldeia da Cardanha.” Na alínea A dos factos assentes ficou consignado: “A Autora é uma empresa fabricante de queijos, cuja sede está situada junto ao Rio Sabor, no planalto de Vilariça, na aldeia da Cardanha, (cfr. doc. junto a fls. 18 a 20).
[22] No artigo 29º da base instrutória perguntava-se: “Transformando-o num queijo diferente do da Autora, mas com o mesmo nome?”. Esta pergunta só se percebe articulando-a com as perguntas formuladas nos artigos 26º a 28º da base instrutória que eram do seguinte teor: “A ré não utiliza o leite da região da Cardanha?” (artigo 26º da base instrutória, que obteve resposta negativa); “Nem utiliza os mesmos processos de produção do queijo Flor da Cardanha que a autora utiliza?” (artigo 27º da base instrutória); “O que implica uma alteração de sabor e qualidade do queijo?” (artigo 28º da base instrutória).

[23] As respostas aos artigos 4º a 10º, 27º e 28º da base instrutória foram do seguinte teor: “Provado apenas que tal queijo é produzido por recurso a leite de ovelhas que consomem o pasto natural da região envolvente da aldeia da Cardanha” (resposta ao artigo 4º da base instrutória onde se perguntava “Tal queijo tem por base a giesta negral, cevada, nabiças, ferranheiro, centeio, flor da oliveira, carrasco, figos, folha de figueira e folha de videira?”); “Provado apenas o a esse respeito já constante de “A” dos factos assentes e da resposta ao ponto anterior” (resposta ao artigo 5º da base instrutória onde se perguntava “Características decorrentes do pasto da região referida em A)?”, sendo que na alínea A se deu como assente que “A Autora é uma empresa fabricante de queijos, cuja sede está situada junto ao Rio Sabor, no planalto de Vilariça, na aldeia da Cardanha, (cfr. doc. junto a fls. 18 a 20)”); “Provado apenas o a esse respeito já constante da resposta ao ponto anterior” (resposta ao artigo 6º da base instrutória onde se perguntava “E no Verão, fruto da região montanhosa em que está inserida a Aldeia da Cardanha, as pastagens secas e flor da amendoeira?”); “Provado apenas que o queijo da Cardanha, incluindo o que a autora designa por “Flor da Cardanha”, é produzido com recurso a leite de ovelhas locais, designadamente as churras” (resposta ao artigo 7º da base instrutória onde se perguntava “Ao que acresce as raças próprias, denominada raça churra e branca?”); “Provado apenas que a ovelha churra é uma espécie existente na região envolvente da aldeia de Cardanha” (resposta ao artigo 8º da base instrutória onde se perguntava “Sendo a primeira uma raça autóctone da região de Trás-os-Montes e da terra quente e do planalto da Vilariça, onde se insere a freguesia da Cardanha?”); “Provado” (respostas aos artigos 9º, 10º e 27º da base instrutória, artigos onde se perguntava, respectivamente “No fabrico do queijo da Cardanha pela autora, o leite é espremido à mão e posteriormente pasteurizado e higienizado” (artigo 9º da base instrutória); “E cada queijo é salgado individualmente, em salga artesanal” (artigo 10º da base instrutória); “Nem utiliza os mesmos processos de produção do queijo “Flor da Cardanha” que a autora utiliza?” (artigo 27º da base instrutória)); “Provado apenas que, se a ré produzir queijo com recurso a outro leite que não o da região, e fazendo-o – como o faz – com processos de produção diferentes dos utilizados pela autora, obtém um queijo com sabor e demais características diferentes” (resposta ao artigo 28º da base instrutória onde se perguntava “O que implica uma alteração de sabor e qualidade do queijo?).
[24] No artigo 31º da base perguntava-se: “O que faz surgir no consumidor uma ideia errada sobre o produto que esta [está?] a adquirir?”. Esta pergunta está ligada à anterior pergunta que obteve resposta positiva e que era do seguinte teor: “A marca “Flor da Cardanha” referida em C), faz referência ao local de origem das matérias-primas utilizadas no fabrico dos queijos?”. Na alínea C da factualidade assente exarou-se: “Em 20.10.2009, foi efectuado pela ré, ao Instituto Nacional de Propriedade, Industrial (INPI) o pedido de protecção de marca “Flor da Cardanha”, que deu origem à marca 456076, a qual se encontra actualmente registada na categoria 29 – queijos.

[25] No artigo 32º da base instrutória perguntava-se: “Pois o consumidor pensa que está a adquirir o produto da autora?
[26] Perguntava-se no artigo 33º da base instrutória: “A ré contacta os clientes da Autora e oferece um produto, com um rótulo idêntico ao usado pela autora, a preço mais baixos, garantindo a mesma qualidade?
[27] No artigo 34º da base instrutória perguntou-se: “A ré contactou comerciantes, que anteriormente adquiriam o queijo à autora, feiras e certames, oferecendo-o mais barato, afirmando que se trata do mesmo produto?
[28] Sobre as diversas modalidades que as respostas à base instrutória podem assumir veja-se, por todos, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª ed. revista e actualizada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 222 a 230.
[29] Sobre esta questão vejam-se, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª ed. revista e actualizada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 243 a 244, que se inclina no sentido de se dever responder à matéria conclusiva e Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122, nº 3784, anotação do Sr. Professor Antunes Varela ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Novembro de 1984, página 222, que afirma que sendo incluídos, indevidamente, juízos de valor sobre os factos no questionário, deve o tribunal que procede ao julgamento da matéria de facto responder a essa matéria, por não se tratar de matéria de direito; em sentido inverso, que merece a nossa preferência, veja-se Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, páginas 637 e 638, anotação 4.
[30] Salvo se se tratar de matéria que consista em juízos de valor sobre factos emitidos por peritos e que são designados pelo Professor Antunes Varela como juízos periciais de facto. Como exemplos destes juízos periciais de facto podem referir-se a incapacidade para o trabalho e o perigo de ruína (artigo 1226º nº 1 do Código Civil). Acerca destes juízos de facto periciais veja-se, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122, n.º 3784, página 219, coluna da direita, nota 1 e, páginas 221 a 223, anotação do Sr. Professor Antunes Varela ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Novembro de 1984. Nesta anotação, contrariamente ao que parece sustentar nas páginas 408 e 409, maxime na nota 1 desta última página da 2ª edição do Manual de Processo Civil de que é coautor conjuntamente com J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, o Sr. Professor Antunes Varela sustenta que os juízos valorativos de facto não devem ser incluídos no questionário (leia-se actualmente na base instrutória). Porém, afirma que se acaso aí forem indevidamente incluídos, a resposta que sobre eles recair não poderá ser tida por não escrita por aplicação do disposto no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil, visto não se tratar de verdadeiras questões de direito. Pela nossa parte, temos alguma dificuldade em aceitar que uma das finalidades precípuas da prova pericial, a emissão de juízos de valor, não integre a peça fundamental do processo e que delimita o objecto da instrução. Não integrando esta peça, não vemos que utilização poderá ser feita pelo julgador de tais valorações. Por um lado, tal procedimento inviabiliza que, aquando da decisão da matéria de facto, sejam tidas em conta tais valorações. Por outro lado, não vemos como poderá o julgador na fase da sentença tomar em consideração tais juízos de valor. De facto, o artigo 659º, nº 3, do Código de processo Civil refere que, “na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.” (sobre a interpretação do normativo homólogo do Código de Processo Civil de 1939, com toda a actualidade, veja-se o Código de Processo Civil anotado do Sr. Professor Alberto dos Reis, Coimbra Editora, reimpressão de 1984, volume V, páginas 32 a 34). Ora, não vemos como, à sombra deste normativo, pode o julgador na fase da elaboração da sentença tomar em consideração as apreciações efectuadas pelos peritos. Também a simples referência a tais conclusões periciais eventualmente feita na fundamentação da decisão de facto não nos parece permitir uma verdadeira apropriação processual delas. E, se assim é, não se vê que aproveitamento se pode fazer processualmente de tais juízos periciais de facto, se não forem incluídos na base instrutória. Contra esta nossa visão dir-se-á que, na fase da elaboração da base instrutória não é viável a identificação destes juízos periciais de facto, que tais juízos só serão identificáveis no desenvolvimento da instrução. Rebatendo esta observação diremos que, se é de admitir que nalguns casos, esta dificuldade de identificação exista no momento de organização da base instrutória, em muitos casos, tais dificuldades não se colocam. De todo o modo, nas situações em que tais juízos de facto periciais só sejam identificáveis após a organização da base instrutória, desde que se cinjam à matéria articulada pelas partes e relevem para a decisão da causa, sempre poderão e deverão aí ser incluídos graças ao expediente da ampliação da base instrutória previsto no artigo 650º, nº 2, alínea f), do Código de Processo Civil. O Professor Anselmo de Castro no volume III do seu Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, páginas 272, 273 e 277, quando admite a quesitação de conclusões de facto, parece admitir a quesitação destes juízos periciais de facto.
[31] Esta é a razão pela qual não aderimos à posição sustentada pelo Sr. Professor Antunes Varela na anotação antes citada em que pugna pela não inclusão em nenhum caso de juízos de valor na factualidade probanda mas que, depois, sustenta que se acaso isso tiver sucedido, deve o tribunal a ela responder por não se mostrar preenchida a previsão do nº 4, do artigo 646º do Código de Processo Civil.
[32] Recorde-se que, nos termos legais, os peritos não se limitam à percepção de factos quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial, mas devem também, reunidas que estejam as condições antes enunciadas, apreciar os factos, emitir juízos de valor sobre os factos (veja-se o artigo 388º do Código Civil).
[33] A impropriedade de expressão resulta do uso do substantivo transformar, pois não se trata de uma transformação de um qualquer produto preexistente, mas antes do fabrico, ex novo, de um produto.
[34] Na verdade, as testemunhas que deponham sobre um tal quesito podem fazer derivar o seu juízo da matéria que foi relevada pela autora, mas também de outros elementos que não foram articulados, como seja, por exemplo, a textura, o sabor e o cheiro de um e outro queijo.
[35] A matéria contida neste artigo tem algumas incongruências, algumas delas debatidas em sede de audiência de discussão e julgamento. Porém, esta resposta não foi impugnada e não estão reunidas as condições legais para a sua alteração oficiosa. Ainda assim, dir-se-á que só com grande incorrecção se poderá falar em espremer o leite; com tal expressão certamente se quererá aludir ao espremer da coalhada, à retirada do soro do leite já coalhado. Por outro lado, resultou patente da prova produzida que a pasteurização precede a operação de “coalhagem” do leite.
[36] A essa falta de pertinência associam-se variadas incorrecções de ordem fáctica que vão sendo introduzidas no discurso, como sucede, por exemplo, na referência à ovelha branca (folha 149), ou na referência ao alegado desconhecimento do queijo da ovelha churra por parte do gerente da ré e do presidente da associação de produtores de queijo (folha 163), quando nenhuma matéria de facto provada existe sobre esta factualidade, nem sequer foi ouvido o gerente da ré ou qualquer presidente de uma qualquer associação de produtores de queijo, pois foi ouvido sim o Presidente da Associação dos Industriais de Lacticínios (ANIL), o Sr. (…), ou ainda quando repetidamente se alude ao fabrico pela autora do queijo da Cardanha quando esse facto é impossível pois a autora apenas se constituiu em começos de 2006.
[37] Trata-se de uma causa de pedir que não foi invocada pela autora e de que o tribunal não devia conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista na alínea d), do nº 1, do artigo 668º do Código de Processo Civil.
[38] Saliente-se que os obstáculos processuais à invocação pela autora de uma putativa anulabilidade do registo da marca referidos na sentença sob censura (folha 165) não procedem, pois existe um prazo especial para a propositura da acção de anulação do registo da marca, prazo que é de dez anos (artigo 266º, nº 4, do Código da Propriedade Industrial). Ainda que assim não fosse, e não o é por força da norma que se acaba de citar, certo é que não foi invocada a caducidade do direito de pedir a anulação do registo da marca a favor da ré, tratando-se de matéria na disponibilidade das partes, pelo que mesmo que se se verificasse essa caducidade, nunca seria de conhecimento oficioso. O que é certo é que a causa de pedir da acção, que deveria estar sempre na mira do tribunal a quo, sem prejuízo do conhecimento oficioso das matérias legalmente previstas, mas mesmo nesses casos sempre com prévio contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil), era tão-só a anulabilidade do registo da marca a favor da ré em virtude desta com tal registo pretender fazer concorrência desleal à autora.
[39] Trata-se do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Julho de 2010, proferido no processo nº 3/05.9TYLSB.P1.S1, acessível no site da DGSI. Porém, neste acórdão não constam as passagens que lhe são imputadas. Na verdade, as citações da sentença não se referem a este acórdão, mas antes ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2011, proferido no processo nº 627/06.7TBAMT.P1, acessível no site da DGSI, misturando-se na citação passagens do texto com passagens do sumário.
[40] Neste sentido veja-se, Do Abuso de Direito, Almedina 1983, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, páginas 67 e 68.
[41] Nas expressivas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Fevereiro de 2008, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Santos Bernardino, no processo nº 07B3934, acessível no site do ITIJ, “A figura do abuso de direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como uma válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
[42] Neste sentido veja-se, Propriedade Industrial, Volume I, Sinais Distintivos do Comércio, Concorrência Desleal, Almedina 2005, Carlos Olavo, página 280.