Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17/22.4GAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: CRIME DE FURTO QUALIFICADO
FAZER DA PRÁTICA DE FURTOS MODO DE VIDA
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Recurso: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Criminal de Pombal
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 204.º, N.º 1, ALÍNEA H), DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
I – O agente que, ao longo de cerca de 25 anos, durante os quais esteve vários anos preso, cometeu dezenas de crimes de furto como forma de angariar rendimentos para fazer face às suas despesas, nomeadamente para a compra de droga, faz da prática destes crimes modo de vida.

II – Cada uma das condenações constitui um reforço da proibição legal resultando, ainda, que de cada condenação pelo mesmo tipo de crime a ilicitude na vertente subjectiva vai sendo maior, uma vez que revela uma intensidade da vontade criminal que é imune não só à proibição legal, como ao reforço que constitui cada uma dessas condenações.

Decisão Texto Integral:
Relator: João Abrunhosa
1.ª Adjunta: Maria Teresa Coimbra
2.ª Adjunta: Maria José Guerra

por sentença de 20/09/2023, foi o Arg.[1] , condenado nos seguintes termos:

5.1. …, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 1, alínea h), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão efetiva.


*

Não se conformando, o Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, que concluiu da seguinte forma:

“… 1. ª )         … objecto o recurso que, nos presentes autos, consiste na discordância e não conformação do arguido recorrente com a sentença proferida em primeira instância e que “condena o arguido, …, pela prática, …, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, 204º, n.º 1 al. h) ambos do Código Penal, na pena se um ano e oito meses de prisão efectiva”.

2. ª )    Para tal decisão, o Tribunal “a quo” convocou, em termos de qualificação do crime de furto , a prática de ilícitos pelo arguido recorrente, de forma tal que essa prática consiste num modo de vida daquele. Ora,

6. ª )    … o arguido entende não haver lugar à qualificação do crime de furto (como qualificado) p.e p. pelo artigo 204º/1 al. h) do Código Penal, porquanto …

7. ª )    confessando a prática da factualidade constante de 2.1.3 a 2.1.7 da fundamentação de facto, certo é que também ficou assente e provado que “entre Novembro de 2021 e Novembro de 2022 exerceu funções junto da Câmara Municipal …, no âmbito de um programa de oportunidade de emprego, tendo anteriormente, exercido funções de motorista e, ainda, na área da construção civil, embora tenham sido empregos de curta duração” …

8. ª )    Consta ainda do acervo considerado provado que “Actualmente … exerce funções de servente de pedreiro e está a trabalhar na área da construção civil, por conta de outrem, auferindo 35,00€ por dia; …

9. ª )    é legítimo concretizar e concluir que o arguido recursante faz do trabalho (p. ex. na construção civil) por conta de outrem , o seu modo de vida, porquanto foram mais (em maior número) os dias e o tempo em que se dedicou ao trabalho e à angariação de réditos normativos, do que o número de ilícitos, criminalmente relevantes, que terá praticado.


*

[2]

*


*

É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Tipificação da conduta do Arg.;

II – Medida da pena;

III - Suspensão da execução da pena de prisão.


*

Cumpre decidir.

[5][6].


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I – Entende o Arg. que a sua conduta deveria ser tipificada como furto simples.

O tribunal recorrido tipificou-a como furto qualificado, com, para além do mais, os seguintes fundamentos:

“... De acordo com o artigo 204.º, n.º 1, alínea h, do Código Penal, a circunstância que aqui qualifica o crime de furto consiste na prática de furtos enquanto modo de vida (“quem furtar coisa móvel ou animal alheios, fazendo da prática de furtos modo de vida”).

A propósito desta circunstância qualificativa cumpre destacar a necessidade de verificação de dois pressupostos fundamentais para o seu preenchimento típico: (i) por um lado, a prática de furtos [que implica uma série mínima de atos da mesma natureza] e (ii) por outro, a prática de furtos enquanto modo de vida [i.e., quando a prática de furtos se encontre envolvida numa intencionalidade que possa dar substância, em termos de apreciação pelo comum dos cidadãos, a um modo de vida – cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Vol. I, 2.ª Edição, Gestlegal, p. 84].

Quanto a este último requisito impõem-se convocar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.09.2021, Proc. n.º 184/18.1PBCVL.C2.S1 …


*

Concordamos, inteiramente, com esta tipificação da conduta do Arg. e com os seus fundamentos.

Na verdade, atenta a matéria de facto apurada, que não vem posta em causa no presente recurso, deve considerar-se que o agente que, ao longo de cerca de 25 anos (e há que ter em conta que, durante este período, esteve vários anos preso), comete dezenas de crimes de furto, além doutros, como forma de angariar rendimentos que lhe permitam fazer face às suas despesas, entre as quais avultam as de compra de droga, faz da prática de furtos modo de vida.

Para além de que, do ponto de vista da pena a aplicar, a tipificação do crime como furto simples ou qualificado é pouco relevante, uma vez que, por um lado, dentro do tipo do art.º 204º/1 do CP, a actuação da Recorrente se situa no patamar não muito elevado de gravidade, o que, aliás, levou a que lhe fosse aplicada uma pena ligeiramente superior a 1/3 do intervalo entre os limites mínimo e máximo aplicáveis.

Por outro lado, se esta conduta fosse tipificada como um crime do tipo do art.º 203º do CP, ela situar-se-ia num patamar muito elevado de gravidade, por causa do elevadíssimo grau de ilicitude.

Na verdade, cada uma das condenações anteriores constituiu um reforço da proibição legal relativamente ao Arg. (ilicitude objectiva)[7]. Para além disso, a ilicitude na vertente subjectiva vai sendo maior, por cada condenação pelo mesmo tipo de crime, uma vez que revela uma intensidade da vontade criminal que é imune, não só à proibição legal, como ao reforço que constitui cada uma dessas condenações.

Ora, a pena aplicada situa-se, exactamente, na zona de intersecção das penas aplicáveis a um e outro dos tipos aqui em causa, pelo que, quer com uma, quer com outra, tipificação, a pena aplicada poderia ser a mesma.

É, pois, improcedente, nesta parte o recurso.


*

II – Entende o Arg. que, em qualquer dos casos, a pena que lhe foi aplicada é excessiva e deve ser reduzida.

A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada[8],[9], ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares[10].

Como já referimos, a pena aplicada ao Recorrente é ligeiramente superior a 1/3 do intervalo entre os limites mínimo e máximo aplicáveis.

Entendemos que não estamos perante qualquer desproporção da quantificação da pena, nem face a violação de regras da experiência comum, pelo que não se justifica intervenção correctiva deste Tribunal.


*

III - …

[11].

[12].

……[13]

 … [14].

É, pois, improcedente o recurso.


*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos inteiramente a decisão recorrida.

Condenamos o Recorrente nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.


*

Notifique.

D.N..


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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Arguido
[2] Ministério Público.
[3] Supremo Tribunal de Justiça.
[4]
[5]
[6]
[7] Como afirma Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português II”, Verbo, 2005, … (pág. 47).
[8] Entendemos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência exposta, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do mesmo Tribunal de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, …
No mesmo sentido se pronunciou, antes, o acórdão do STJ de 29/01/2004, relatado por Pereira Madeira, no processo 03P1874, …

No mesmo sentido, cf. Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197, e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis: …
[9] Neste sentido, ver ainda o acórdão de RP de 02/10/2013, relatado por Joaquim Gomes, no proc. 180/11.0GAVLP.P1, …
[10] Relevantes nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: …

[11]
[12]
[13]
[14]
No mesmo sentido, cf. os acórdãos da RC de 01/04/2009, relatado por Jorge Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 476/04.7TAPBL.C1; da RG de 18/05/2009, relatado por Fernando Monterroso, in www.gde.mj.pt,, processo 318/07.1PBVCT.G1, e da RG de 25/01/2010, relatado por Maria Augusta Fernandes, in JusNet 526/2010.