Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
291/12.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO B. VOUGA – OL. BAIRRO – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º DA LEI 75/98, DE 19-11, E 3.º DO DL 164/99, DE 11-05; NAS REDACÇÕES VIGENTES ATÉ 31/12/2012 E ART. 189º DA OTM
Sumário: 1 - Uma SJ (Situação Jurídica) deve considerar-se constituída quando se verifica o último elemento – o elemento conclusivo – do seu processo de formação, quando estão preenchidos todos os elementos que integram a hipótese legal e assim se desencadeia o evento jurídico (estatuição).

2 - Assim, deve considerar-se constituída a SJ respeitante à atribuição da prestação alimentar a cargo do FGADM na data da decisão que declara o insucesso das diligências para cobrança de alimentos nos termos do art. 189º da OTM, desde que se demonstre, ainda que posteriormente, que todos os demais elementos/pressupostos estavam preenchidos/reunidos na data de tal decisão.

3 - E, em consequência, sendo tal decisão ainda do ano de 2012, não são aplicáveis (à SJ constituída na data da decisão) as alterações introduzidas pela Lei 66-B/2012, de 31-12, e pela Lei 64/2012, de 20-12, aos artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05; mas as redacções vigentes até 31/12/2012.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , com os sinais dos autos – na sequência de regulação do exercício das responsabilidades parentais que lhe confiou a menor B... à sua guarda e cuidados, de mãe, obrigando o pai, C..., a contribuir, mensalmente, a título de prestação alimentícia, com € 100,00 – veio, informar a não entrega, por parte do pai, de quaisquer valores, invocar o seu incumprimento e, uma vez verificada a inviabilidade de lançar mão dos meios do art. 189.º da OT, requerer a fixação da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM).

Foi então, em 03/12/2012, proferida decisão que decretou o incumprimento do requerido e, “face ao insucesso das diligências para cobrança de alimentos nos termos do art. 189º da OTM, foi solicitado relatório social.”

Tendo o Ministério Público promovido que, desde que reunidos os devidos pressupostos legais, fossem fixados alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos.

Após o que foi decidido “ (…) deferir o requerido e, consequentemente, fixar em 100,00€ a prestação mensal a atribuir pelo Estado Português através do Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a Menores que deverá ser paga a partir do mês seguinte ao da notificação da presente decisão”.

Decisão esta de que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social veio apelar, invocando, como resulta da sua alegação e conclusões, que o FGADM não está obrigada a pagar qualquer prestação de alimentos à menor, em virtude de, à data da prolação da sentença, não se encontrarem preenchidos todos os pressupostos necessários ao pagamento pelo FGADM (uma vez que o agregado familiar da menor detém um rendimento per capita de € 438,78, o qual é superior ao IAS).

O M.º P.º contra alegou, pronunciando-se pela bondade da decisão recorrida.
Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

Na decisão recorrida foram alinhados, como provados, os seguintes factos:

1 -A menor nasceu em 09/08/1997 e é filho da requerente e do requerido.

2 -Por sentença de 20/04/2012 proferida em sede de processo de divórcio na parte respeitante à regulação do exercício as Responsabilidades Parentais, transitada em julgado, ficou estabelecido, além do mais, que o requerido contribuiria, a título de pensão de alimentos para a menor, com a quantia mensal de € 100,00, até ao dia 10 de cada mês, com início no mês de Maio.

3 -Por decisão de 03/12/2012, foi declarado o incumprimento do requerido quanto à falta de pagamento dos alimentos devidos à menor e, “face ao insucesso das diligências para cobrança de alimentos nos termos do art. 189º da OTM, foi solicitado relatório social”.

4 -Na presente data são desconhecidos vencimentos, salários ou ordenados, rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes do requerido.

5 -O agregado familiar da menor é composto, além desta, pela requerente e pela mãe da requerente D..., nascida em 11/06/1928.

6 -Os rendimentos do agregado familiar do menor são os seguintes:

a. 485,00€ a título de subsídio de desemprego mensal auferido pela requerente;

b. 480,32€ a título das pensões de sobrevivência e velhice auferidas pela mãe da requerente.

c. 70,06€ a título de abono de família a favor da menor.

7 -Em 2012, a requerente declarou em sede de declaração de IRS ter auferido a quantia mensal de 272,97€.

8 -O agregado da menor indicou ter despesas mensais médias no valor de € 737,79 e ter despesas com a menor no valor mensal de € 114,21.

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III – Fundamentação de Direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do Fundo/apelante, coloca-nos perante a questão de saber em que termos e a que casos são aplicáveis as alterações introduzidas pela Lei 66-B/2012, de 31-12, e pela Lei 64/2012, de 20-12, aos artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05, respectivamente.

Em face do rendimento per capita, de € 438,78, do agregado familiar da menor estabelecido na sentença recorrida – rendimento per capita este de que o Fundo/apelante não diverge – caso se entenda ser de aplicar a nova redacção dos referidos art. 1.º e 3.º, a menor beneficia dum rendimento de outrem que é superior ao valor do IAS (que, em 2013, é de € 419,22), pelo que, sendo assim, falhará um dos pressupostos para a atribuição duma prestação de alimentos a favor da menor e, em consequência, a apelação será procedente.

Tudo está pois em saber, repete-se, se ao caso é aplicável a Lei Antiga (os artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05, nas redacções vigentes até 31/12/2012) ou a Lei Nova (as redacções que os artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05, passaram a ter a partir de 01/01/2013)[1].

E, que dizer?

Em 1.º lugar, que a regra angular da aplicabilidade duma qualquer lei é a de essa mesma lei só dispor para o futuro (art. 12.º/1/1.ª parte do C. Civil); de tal modo que, mesmo na hipótese (que não é a sub judice) do legislador lhe atribuir eficácia retroactiva, se presumem ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (art. 12.º/1/2.ª parte do C. Civil).

Em 2.º lugar, que o art. 12.º/2 do C. Civil acrescenta a distinção entre dois tipos de leis ou de normas:

 - As leis que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos – 1.ª parte – que só se aplicam aos factos novos.

 - As leis que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem – 2.ª parte – que se aplicam a relações jurídicas (situações jurídicas) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência (o que deixa antever a possibilidade de leis que regulam o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos factos que lhes deram origem).

Assim, percorrido todo o art. 12.º do C. Civil, diremos que o caso sub judice cai quer na primeira e angular regra quer na regra que afasta a aplicação da LN aos efeitos dos factos passados, isto é, as novas redacções dos artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05, só se aplicam às situações jurídicas constituídas a partir de 01/01/2013.

E – é o ponto – uma SJ (Situação Jurídica) deve considerar-se constituída quando se verifica o último elemento – o elemento conclusivo – do seu processo de formação, quando estão preenchidos todos os elementos que integram a hipótese legal e assim se desencadeia o evento jurídico (estatuição) – a alteração do mundo do direito (constituição, modificação ou extinção duma relação ou SJ).

Ora, no caso, a SJ invocada constituiu-se – ficou perfeita e concluída – no dia 03/12/2012, data em que ficaram preenchidos todos os elementos à época exigidos pela hipótese legal:

1 - Residir a menor em território nacional;

2 - Estar o progenitor obrigado a alimentos;

3 - Estar o mesmo em incumprimento;

4 - Estar declarada a impossibilidade de cobrar as prestações em dívida nos termos do art. 189.º da OTM; e

5 - Não ter a menor (o seu agregado familiar) um rendimento líquido per capita superior ao SMN (que, em 2012, era de € 485,00).

O que significa que não estava a SJ concluída – aspecto em que não concordamos com a sentença recorrida – na data da petição inicial, uma vez que só com a decisão, de 03/12/2012, foi declarado o insucesso das diligências para cobrança de alimentos nos termos do art. 189º da OTM.

Mas que também significa que não é a data da prolação da sentença – ponto em que divergimos da alegação recursiva – o momento da conclusão da SJ; uma vez que a sentença se limita a apreciar/reconhecer/confirmar a verificação de elementos/pressupostos pré-existentes.

Tudo isto sem prejuízo de, em 03/12/2012, momento em que foi declarado o insucesso das diligências para cobrança de alimentos nos termos do art. 189º da OTM, não estar ainda reunida nos autos a prova de todos os referidos elementos/pressupostos, uma vez que o que conta, o que releva, é que se demonstrou que todos aqueles elementos/pressupostos estavam preenchidos/reunidos na referida data de 03/12/2012.

O que, aliás, é comum nos processos, ou seja, há sempre alguma dilação entre a data da verificação dos elementos/pressupostos invocados e o momento da sua demonstração; a qual, porém, é sempre efectuada por reporte à data, passada, da sua verificação.

Foi/é o caso.

Embora os relatórios sociais não primem pela clareza informativa, percebe-se suficientemente – e tal nem sequer é factualmente contestado pelo apelante/Fundo – que, no final do ano de 2012, os rendimentos do agregado familiar da menor eram os referidos no facto 6[2], o que, nos termos dos artigos 3º, nº1, e) e f) e nº 3, 4, 5, 6 e 12º do DL nº70/2010, de 16/06, dá um rendimento per capita de € 438,78€ [485,00€+480,32€: (1 + 0,7 + 0,5)], inferior ao valor da SMN, fixado em 485,00€.

Não estávamos pois, quando do início de vigência da LN (em 01/01/2013), perante uma SJ a constituir ou perante uma SJ em vias de constituição; mas sim perante uma SJ já constituída e subsistente à data da entrada em vigor da LN. E, segundo a “teoria do facto passado” – acolhida no art. 12.º/2/1.ª parte do C. Civil – aos factos passados e aos seus efeitos não se aplica a LN.

Nem sempre é fácil, é certo, determinar o que deve entender-se por “efeitos” – o que deve considerar-se como verdadeiros “efeitos” dos factos e que, portanto, devem ser regidos pela LA – razão porque, para ajudar a responder a esta dificuldade, se distingue entre normas relativas à constituição e normas relativas ao conteúdo das Ss Js; estabelecendo-se a aplicação imediata da LN ao conteúdo das Ss Js preexistente e reservando a aplicação da lei do tempo da verificação do facto quando se está perante o próprio efeito constitutivo do facto passado.

Ora, indiscutivelmente, a nosso ver, os artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05, contêm normas que dizem quais são os factos que, para efeitos da atribuição da prestação alimentar a cargo do FGADM, são relevantes; que dizem quais são os factos susceptíveis de operar a produção dum evento jurídico; sendo-lhes assim aplicável a lei do tempo da sua verificação.

Pelo que, estando em causa normas sobre a constituição duma SJ (em que se aplica a lei do momento em que essa constituição se verifica) e tendo os 5 factos constitutivos/causais supra alinhados ocorrido na vigência da LA, significa, em síntese e em conclusão, a aplicação dos artigos 1.º da Lei 75/98, de 19-11, e 3.º do DL 164/99, de 11-05, nas redacções vigentes até 31/12/2012 (Lei Antiga – LA)[3].

O que, consequentemente, traduz a improcedência do recurso.

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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.

Custas em ambas as instâncias pelo Fundo/Apelante[4]-

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Coimbra, 03/12/2013

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)

[1] No que aqui releva, são fundamentalmente 3 – todas com o mesmo objectivo – as diferenças entre as duas redacções:

A LA estabelecia como pressuposto negativo para a atribuição da prestação não ter o agregado familiar do menor uma capitação superior ao SMN; a lei nova passa a exigir como pressuposto negativo para a atribuição da prestação não ter uma capitação superior ao IAS.

A LA aludia a tal pressuposto negativo em termos de rendimento líquido; a LN alude a tal pressuposto negativo em termos de rendimento ilíquido;

A LA não vedava, para efeitos do cálculo da capitação, que o menor fosse considerado o requerente; a LN veda-o, ao dizer que, para tais efeitos, se considera requerente o representante legal ou a pessoa a cuja guarda se encontre.
[2] O primeiro relatório social, em vez de dar os rendimentos do momento temporal relevante, deu os rendimentos declarados no IRS de 2011; embora também haja referido – como veio a ser corroborado no segundo relatório – que “actualmente a requerente recebe € 485,00 de subsídio de desemprego”.

[3] Assim como, quando estiver em causa a manutenção/renovação anual da prestação (a que alude o art. 9.º do DL 164/99), se há-de aplicar a lei vigente no momento em que essa manutenção/renovação se colocar, isto é, a LN.
[4] Aqui se incluindo as custas do incidente de reforma da sentença recorrida, em que o Fundo ficou vencido e em cuja invocação não se mostra recortado o “manifesto lapso” da sentença recorrida (em que explicitamente se havia aludido à aplicação da lei no tempo e à opção pela aplicação da LA)