Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1465/08.8TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: ERCURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 256º CP
Sumário: I - Aqueles que, perante o notário em escritura pública de dissolução de sociedade, declaram inverídicamente que todo o passivo da sociedade fora já liquidado, não cometem o crime de falsificação de documento;

2.- Trata-se de um documento que não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado. É um documento exacto (regular) que contém uma declaração inverídica.

Decisão Texto Integral: No processo comum singular supra identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que absolveu os arguidos A..., N... e D... da prática do crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, al d) e 3 do Código Penal.

Deste acórdão interpôs recurso a assistente, ”W... – Lda”, sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso:


1. A ora Recorrente apresenta as suas alegações de recurso, por a mesma não se conformar com a aplicação do direito em relação à matéria dada como provada.

2. Na verdade, o Tribunal “a quo”,e com interesse para o aqui alegado, deu como provado os seguintes factos:

a) Os arguidos eram sócios de uma sociedade por quotas que tinha por objecto a exploração agrícola e pecuária de gado denominada TS... & Filhos, lda., sendo sua única sócia gerente a Arguida A....
b) Em 30/06/99 TS... & Filhos, lda., era devedora de um valor global de 6.149.908$00 à assistente W..., proveniente de vários suínos à referida sociedade.
c) O arguido N...entabulou negociações com a W... tendo sido outorgados dois contratos de cessão de créditos em 14/01/2000.
d) Verificando C..., gerente da assistente que nada conseguia cobrar, no que tange ao segundo dos créditos cedidos, dirigindo-se então a TS... & Filhos, Lda. e entre 2001 e 2005 contactando sobretudo com N....
e) Tais contactos eram feitos, em regra, via telefone.
f) O arguido Nelson, na sequência de tais contactos manteve conversas com os serviços de cobrança da assistente.
g) Os arguidos dirigiram-se ao primeiro cartório notarial de Leiria e no dia 25 de Agosto de 2004 declararam perante notário deliberar dissolver TS... & Filhos., declarando também que tal sociedade “ já cessou a sua actividade”, tendo já sido liquidado todo o activo e passivo e ainda que “não existiram quaisquer bens a partilhar, tendo as respectivas contas sido encerradas e aprovadas em 31 de Dezembro de 1999”.
h) O arguido N...sabia que tais declarações não correspondiam à verdade, já que sabia que a sociedade mantinha passivo, consubstanciando na divida de €22.495,27 para com a W..., lda., bem como a sociedade não tinha encerrado as contas em 1999, pois em Janeiro de 2000 a empresa celebrou dois contratos de cessão de créditos.
i) Os arguidos em 22 de Setembro de 2004 vieram a registar a dissolução e encerramento da sociedade TS... & Filhos, lda., na 1ª Conservatória do Registo Comercial de Leiria.
j) O arguido N...agiu tendo em vista a extinção da sociedade, deixando deste modo a credora sem possibilidade de ver cobrado o seu crédito
3. No entanto, e perante a evidencia dos factos, considerou o Tribunal “a quo”, que os mesmos não permitem o preenchimento dos elementos do tipo do crime de falsificação de documentos.
4. Já que, por um lado, e de acordo com a douta decisão, o bem jurídico tutelado pelo art. 256º do CP não sofreu qualquer dano, uma vez que, o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém integra a finalidade e o potencial probatório a que se destina,
5. E, por outro lado, o documento não apresenta qualquer desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado, assim como, não se não verificou ser alvo de forja ou alteração.
6. Contudo, os factos dados como provados, permitem uma melhor aplicação do Direito em relação ao caso em apreço, sendo por isso, notório o erro na aplicação do Direito.
7. Se por um lado, se está perante, o preenchimento do elemento objectivo do crime de falsificação de documentos, já que, o que está em causa é uma manifesta falsificação intelectual, uma vez que, foi emitida uma declaração inveridica através de um documento verdadeiro, que integra um facto juridicamente relevante.
8. Ou seja, através de tal declaração lograram os arguidos cessar a actividade da sociedade TS... & Filhos, Lda., declarando também, que todo o activo e passivo da referida sociedade se encontrava já liquidado.
9. Tal declaração, teve como efeito imediato a perda de personalidade jurídica da referida sociedade, pelo que, a mesma se encontrava já extinta.
10. Desta forma, sabendo os Arguidos que a sociedade, cuja actividade cessaram, era devedora de €22.495,27 à aqui Recorrente, fecharam todas as portas para que se operasse á cobrança da referida divida pela via judicial.
11. Com efeito, tal declaração inveridica alterou a relação jurídica existente entre ao Arguidos e a aqui Recorrente, na medida do qual, esta passou a estar impossibilitada de cobrar os seus créditos judicialmente
12. O que é demonstrativo que tal declaração inveridica integra um facto juridicamente relevante, pelo que, sua emissão e utilização alterou, modificou uma relação que se regia pelo Mundo do Direito.
13. Neste sentido, se encontra o elemento objectivo do crime de falsificação de documento preenchido, verificada e provada que está a conduta ilícita dos arguidos, susceptível de enquadrar a configuração jurídica patente na al. d) do nº 1 do art. 256º do CP.
14. Sendo que, importa alertar, que para a verificação deste tipo de ilícito, é bastante observar um crime formal, um crime de perigo abstracto, não sendo necessário a concreta violação do bem jurídico tutelado pelo crime.
15. De qualquer forma, sempre se dirá, que in casu, para além da verificação formal do crime de falsificação de documento, ocorre uma brusca violação do bem jurídico tutelado pelo art. 256º do CP, ou seja, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.
16. Na verdade, nunca é de aceitar que esse bem jurídico, se encontra bem tutelado, não sofrendo qualquer dano no caso em apreço, já que, a declaração inveridica utilizada pelos arguidos, permite-lhes uma fuga ao pagamento do seu passivo para com a Recorrente.
17. Tal situação, revela-se insustentável, pois é inadmissível, que alguém use e abuse de um documento verdadeiro, dotado de uma desconformidade com a realidade bem conhecida, para que possa assim exonerar-se do cumprimento das suas obrigações e prestações.
18. Assim sendo, nunca o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório pode estar salvaguardado.
19. Por outro lado, e ao contrário do tomado por certo na decisão ora recorrida, também o elemento subjectivo se preenche, já que, havia nos arguidos uma plena intenção em obterem para a sociedade TS... & Filhos, Lda., um beneficio ilegítimo.
20. Como ficou e se deu por provado, os arguidos directamente ou indirectamente conheciam que o que ficou declarado perante notário não correspondia à verdade, sendo que, tais falsidades tinham como objectivo cessar a actividade daquela empresa e assim não permitir a cobrança da divida pela Recorrente pela via Judicial.
21. Ou seja, há, na conduta dos arguidos, uma intenção em prejudicar a Recorrente, no sentido de conhecerem que tal conduta a impossibilitava de cobrar os seus créditos.
22. Acresce que, os arguidos conheciam perfeitamente que tais declarações em nada correspondiam á verdade da empresa, mas no entanto, tal não os impediu de as prestarem perante notário.
23. E não se diga, que o facto de serem prestadas perante notário é fundamento suficiente para atestar a sua não ilegalidade, pois, como se vem referindo, a falsidade intelectual, abrange as situações em que apesar de existir um documento verdadeiro (declaração emitida por notário), as declarações que lhe são apostas são inveridicas, já que, não correspondem à verdade.
24. Portanto, o conhecimento da falsidade de tais declarações é notório e foi dado como provado na sentença de que se recorre,
25. Não se percebe por isso, a posição adoptada pelo Tribunal “a quo”!
26. Toda a prova produzida e dada como provada demonstra que a conduta dos agentes consubstancia a prática de um crime de falsificação de documento.
27. Que os arguidos agiram de forma livre, consciente, e voluntária, bem sabendo que tais declarações lhes trariam um beneficio ilegítimo assim como prejuízo para a Recorrente.
28. Pelo que deve, por provado, o presente recurso ser julgado procedente,
29. Assim como deve proceder na parte que diz respeito ao PIC, já que, tal como se demonstra existe a prática de um facto ilícito por parte dos arguidos, violador de normas legais e causador de danos e prejuízos à Recorrente.
30. Efectivamente da prática do crime de falsificação de documento, nos termos supra expostos, só pode haver a conclusão de que os arguidos são responsáveis pelo facto de à recorrente lhe ter sido vedada a possibilidade de cobrar um crédito pela via judicial, uma vez que, os arguidos através de falsificação de documento conseguiram extinguir uma sociedade e consequentemente a sua personalidade jurídica.
31. Nestes termos também o Pedido de Indemnização Civil deve proceder por provado que está.


Em obediência ao estatuído no art. 412º do Código de Processo Penal, cumpre indicar:


- As normas jurídicas violadas

Arts. 1º, 13º/1, 32º/1 da Constituição da República Portuguesa;
Art. 256º nº 1 al. d) e nº 3 do Código Penal
Arts. 127º, 374º nº 2 do Código de Processo Penal

- Os Princípios Jurídicos violados

Princípio da Legalidade, Princípio do Estado de Direito democrático e Social, Princípio da Igualdade, Principio da Livre Apreciação da Prova


- O sentido em que o Tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada

Vide Conclusões 1. a final


No contexto enunciado, deve ser concedido provimento ao Recurso nos termos e com os fundamentos alegados, revogando-se a decisão proferida em Primeira Instância e substituindo-se por outra que condene os Arguidos pelo crime que lhes foi imputado e ainda, que julgue procedente, por provado, o Pedido de Indemnização Civil deduzido.


Por essa forma fazendo VV. Exas. COSTUMADA JUSTIÇA!


O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência parcial do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito sem prejuízo do conhecimento dos vícios constantes do artº 410 nº 2 do CPP.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

1. Os arguidos eram sócios de uma sociedade por quotas que tinha por objecto a exploração agrícola e pecuária de gado denominada TS... & Filhos, lda. sendo sua única sócia gerente a arguida A....
2. Em 30/06/99 TS... & Filhos, lda. era deveD...de um valor global de 6 149 908$00 à assistente W..., proveniente de vários suínos à referida sociedade.
3. O arguido N.. .entabulou negociações com a W... tendo sido outorgados dois contratos de cessão de créditos em 14/01/2000.
4. Pelo primeiro dos referidos contratos, a empresa TS... & Filhos, Lda. cedeu a W..., lda. sob condição de boa cobrança, um crédito no valor de 1 640 325$00 sobre J....
5. Pela segunda das sobreditas convenções “TS... & Filhos cedeu a W..., lda. sob condição de boa cobrança, cinco créditos no valor de 5 514 411$50 cedido sobre Z... – lda.
6. Foi acordado que tais créditos apenas se extinguiriam com o bom pagamento pelos terceiros devedores.
7. Em 28/03/2001 foi celebrada entre a assistente e J... termo de transacção pelo qual este se obrigou a pagar o primeiro crédito cedido, reduzido a 1 640 000$00 por consenso, em treze prestações, tendo sido pagas as prestações.
8. Relativamente ao segundo dos créditos, cedido sobre Z... –lda., a assistente não conseguiu cobrar qualquer quantia do referido crédito por a sociedade ter entrado em situação de ruptura e em processo de recuperação com o n.º 129/2000, que correu os seus termos no juízo de Competência cível de Vila Nova de Famalicão, sem que o respectivo liquidatário judicial tenha reclamado ou reconhecido qualquer crédito da assistente.
9. Verificando C..., gerente da assistente que nada conseguia cobrar, no que tange ao segundo dos créditos cedidos, dirigindo-se então a TS... & Filhos, lda. e entre 2001 e 2005 contactando sobretudo com N....
10. Tais contactos eram feitos, em regra, via telefone.
11. O arguido N…, na sequência de tais contactos manteve conversas com os serviços de cobrança da assistente.
12. Os arguidos dirigiram-se ao primeiro cartório notarial de Leiria e no dia 25 de Agosto de 2004 declararam perante notário deliberar dissolver TS... & Filhos, lda., declarando também que tal sociedade “já cessou a sua actividade”, tendo já sido liquidado todo o activo e passivo e ainda que “não existiram quaisquer bens a partilhar, tendo as respectivas contas sido encerradas e aprovadas em 31 de Dezembro de 1999.”
13. O arguido N...sabia que tais declarações não correspondiam à verdade, já que sabia que a sociedade mantinha passivo, consubstanciado na dívida de € 22 495, 27 para com a W..., lda. bem como a sociedade não tinha encerrado as contas em 1999, pois em Janeiro de 2000 a empresa celebrou dois contratos de cessão de créditos.
14. Os arguidos em 22 de Setembro de 2004 vieram a registar a dissolução e encerramento da sociedade TS... & Filhos, lda. na 1.ª Conservatória do Registo Comercial de Leiria.
15. O arguido N...agiu tendo em vista a extinção da sociedade, deixando deste modo a credora sem possibilidade de ver cobrado o seu crédito.
16. O arguido N...sabia que o por si declarado não correspondia à verdade.
17. Os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais.
18. O arguido N...é vendedor, aufere cerca de 800 mensais, assim como a sua esposa, vivem em casa própria com dois filhos menores e pagam de empréstimo à habitação o montante de € 650.
19. A arguida D... é assistente social, aufere cerca de € 1100, o marido é gestor de empresas, aufere cerca de € 1 200, vivem em casa própria com dois filhos menores e pagam de empréstimo à habitação o montante de € 900 mensais.
20. A arguida A... recebe uma reforma de cerca de € 300 mensais, vive sozinha, em casa própria.
*
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente que:
1. As arguidas conheciam os termos dos negócios celebrados entre a empresa TS... & Filhos, lda. e a empresa W..., designadamente sobre a existência da dívida e que esta envidava esforços para a cobrar.
2. As arguidas A...e Dora, juntamente com N..., urdiram um plano para não mais serem importunadas pelas tentativas de cobrança da assistente.
3. As arguidas D...e A...estavam cientes da falsidade das declarações que prestaram perante notário, sabendo que a empresa mantinha passivo, consubstanciado na dívida de € 22 495, 27 para com a W....
4. O arguido N...sabia que ao prestar falsas declarações perante notário estas punham em causa o valor probatório da escritura de dissolução /liquidação da sociedade TS... & Filhos, lda.
5. Agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida por Lei.
*
O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, designadamente:
. nas declarações dos arguidos relativamente às suas condições económicas e sociais e à circunstância de terem outorgado a escritura de dissolução de sociedade, tendo sido ainda valorado as declarações dos arguidos na parte em que, de forma consonante, referiram que os desígnios da empresa, após a morte de TS..., foram assumidos pelo arguido N…, não tendo a filha D...e a esposa do falecido qualquer intervenção directa na gerência efectiva da empresa;
. na abundante prova documental coligida, designadamente certidão da conservatória de registo comercial de fls. 7 e ss., cópia das factura e de aceite de fls. 16 a 22, certidão da escritura da dissolução da sociedade de fls. 24 e ss., certidão do contrato de cessão de créditos de fls. 105 e ss., transacção no processo de acção sumária n.º 143/2000 de fls. 134 e ss., certidão do processo especial de recuperação de empresa da empresa Z..., de fls. 139 e ss., extracto de conta-corrente de terceiros da sociedade W..., de fls. 188 e ss., facturação detalhada do serviço telefónico de fls. 190 e ss., informação de fls. 353 e ss.
. nos Certificados de Registo Criminal junto aos autos a fls. 442 a 444.
. Foram ainda valorados os testemunhos de C…, L... e B… respectivamente gerente da empresa W..., técnico oficial de contas, gestor e administrativa, os quais esclareceram os contactos tidos com a empresa TS... & Filhos, Lda., bem como as negociações encetadas para cobrança do crédito, de uma forma que o Tribunal reputou de fidedigna, credível e com claro conhecimento de causa, logrando por essa via, esclarecerem o Tribunal.
*
No que concerne à factualidade dada como não provada, relativa à actuação das arguidas A...e D..., o Tribunal entendeu não terem sido recolhidos elementos convincentes de que as arguidas tivessem intervenção efectiva na gerência da empresa arguida e que conhecessem o estado da empresa na altura da dissolução da sociedade, bem como a situação do passivo para com a empresa W....
Efectivamente, a versão dos arguidos apontou para um alheamento por parte das arguida da vida empresarial da sociedade, sendo o arguido N...a pessoa responsável pela gestão da empresa e pela condução dos desígnios da mesma, não tendo a versão consonante dos arguidos sido infirmada por qualquer meio de prova apresentado, tanto mais que as próprias testemunhas acima indicadas afirmaram que os contactos foram tidos sobretudo com o arguido Nélson.
A este propósito, dirá o Tribunal que à luz do princípio da investigação reinante no processo penal (aflorado nos artigos 323.º, alínea a), e 340.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal), que “obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo” (Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Lições policopiadas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-9, pág. 145; cfr. também os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/01/1998, in B.M.J., n.º 473, pág. 133 a 147, de 16/03/1994, in C.J., Tomo II, pág. 183 e de 15/12/1982, in B.M.J., n.º 322, pág. 281 a 284).
Ora, a persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova em julgamento – ou a ausência de uma qualquer convicção firme, como se deixou atrás demonstrado – não pode deixar de fazer funcionar aqui, ao nível da valoração da prova, o princípio in dubio pro reo, dando-se consequentemente como não provado que as arguidas tivessem urdido qualquer plano para dissolver a sociedade, sabendo que as declarações prestadas perante notário eram falsas.
*
No que concerne à factualidade dada como não provada concernente ao arguido N…, tal resultou da abordagem jurídica que iremos encetar infra e que redundou em não se considerar que o comportamento do arguido seja susceptível do preenchimento do tipo de ilícito objectivo e nessa medida não se poderá considerar que abala a confiança e a credibilidade na autenticidade e genuinidade da escritura de dissolução da sociedade e atente contra a fé pública que merecem as escrituras públicas, não tendo nessa medida agido de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.


Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:
- Se se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art 256, nº 1, al d), e nº 3 todos do Cod penal;

A assistente “W... – Lda” interpõe o presente recurso por entender que os factos provados preenchem os requisitos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime por que foram absolvidos os arguidos – crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º nº 1, al d) e 3 do CPenal.
É de notar que a assistente não impugnou a matéria de facto nos termos consignados no artº 412 nº 3 do CPP, pelo que se tem como assente a matéria de facto.
Resulta dos factos apurados que os arguidos dirigiram-se ao primeiro cartório notarial de Leiria e no dia 25 de Agosto de 2004 declararam perante notário deliberar dissolver TS... & Filhos, Lda., declarando também que tal sociedade “já cessou a sua actividade”, tendo já sido liquidado todo o activo e passivo e ainda que “não existiram quaisquer bens a partilhar, tendo as respectivas contas sido encerradas e aprovadas em 31 de Dezembro de 1999.”
O arguido N...sabia que tais declarações não correspondiam à verdade, já que sabia que a sociedade mantinha passivo, consubstanciado na dívida de € 22 495, 27 para com a W..., Lda, bem como a sociedade não tinha encerrado as contas em 1999, pois em Janeiro de 2000 a empresa celebrou dois contratos de cessão de créditos.
O bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documentos é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico.
Estamos perante um crime de perigo, após a falsificação do documento, o bem jurídico ainda não foi violado, mas apenas colocado em perigo – o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico só é violado quando o documento falsificado é introduzido ou utilizado no tráfico jurídico. O tipo legal pune de imediato o perigo de lesão daquele bem – o simples acto de falsificar, mesmo que o documento nunca venha a ser utilizado, já é punido.
Contudo, estamos perante um crime de perigo abstracto. Portanto, para que o tipo legal do crime de falsificação de documento se preencha não é necessária a verificação efectiva de qualquer perigo. O crime de falsificação de documento consuma-se com o simples acto de falsificar, pelo que se penaliza o desvalor da acção, independentemente do desvalor do resultado.
Em relação ao elemento subjectivo a lei exige que o dolo deve abranger não só as circunstâncias relativas á sua acção mas, também, a intenção do agente de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo – dolo específico.
O artº 256 do CPenal engloba tanto a falsidade material, ou seja, quando o documento é total ou parcialmente alterado, quando se imitam elementos de um documento que já existe como a falsidade intelectual, ou seja, quando o documento é verdadeiro, genuíno mas não traduz a verdade por haver uma desconformidade entre a declaração e o que dele consta.
“Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada”. (Helena Moniz – O Crime de Falsificação de Documentos, pg 181 e segs).
Esta alteração e como vem referido no ac. da RP de 14/4/2010 dá-se aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que foi realizada. Esta modalidade de falsificação estará abrangida pela expressão “falsificar ou alterar documento” do artigo 256.º, n.º1, alínea a), do CP.
No caso vertente os arguidos declararam perante notário deliberar dissolver TS... & Filhos, Lda., declarando também que tal sociedade “já cessou a sua actividade”, tendo já sido liquidado todo o activo e passivo e ainda que “não existiram quaisquer bens a partilhar. E foi isso que o notário fez. Portanto, a escritura reproduz o acto. Aliás, a escritura tinha apenas como finalidade a dissolução da sociedade. As declarações inverídicas prestadas pelos arguidos não põem em perigo a segurança jurídica e probatória que o documento, pela sua natureza e característica, está destinado a projectar.
A escritura pública de dissolução da sociedade, enquanto documento autêntico faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo notário, assim como dos factos que neles são atestados com base na percepção deste (artº 371º do CCivil).
As declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo, nem passivo, nem bens a partilhar, são da responsabilidade dos arguidos não representando a escritura prova plena quanto a esses factos.
Como vem referido no acRP de 19/10/2010 “As declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar – são da mera responsabilidade daqueles, não representando a escritura prova plena quanto a esses factos. Trata-se de uma declaração re inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais”.
Portanto e ainda citando o ac. da RP de 14/4/2010 “a escritura pública outorgada não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova susceptível de ser usado para excepcionar eventuais débitos. Portanto, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 256.º, do Código Penal [a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos, e em particular, que os outorgantes produziram perante o notário aquelas declarações] não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina”.
A declaração inverídica feita pelos recorrentes ao notário e inserida na escritura pública não é susceptível de integrar a prática de um crime de Falsificação de documento, do artigo 256.º, do Código Penal: o documento não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado. É um documento exacto [regular] que contém uma declaração inverídica.
É de notar que não tem razão a assistente quando sustenta que com a actuação dos arguidos, ficou impedida de obter os seus créditos. Ora, tal não ocorre face ao regime da dissolução e liquidação das sociedades comerciais previsto nos arts 145 e segs do CSC.
Por outro lado e como considerou o ac da RP de 21/4/2010 e partindo do disposto no artº 1020 do CCivil, onde se dispõe «encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação», se escreveu “Com este normativo, se bem se ajuíza, o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves, causados por uma partilha precipitada, que os próprios sócios provocassem em muitos casos malevolamente. Destarte, com propriedade se poderá dizer que perante terceiros – especialmente credores sociais quer a decisão de dissolução quer a de encerramento da liquidação é res inter alios acta e não lhes pode ser oposta.”
Por último refira-se que não resultou provado factos susceptíveis de revelar o elemento subjectivo do tipo – falsificação de documento- a intenção de causar prejuízo a outra pessoas ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.

Do exposto julga-se improcedente o recurso mantendo-se a decisão recorrida.

Termos em que se têm o recurso interposto por improcedente.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 7 ucs.

Alice Santos (Relatora)
Belmiro Andrade