Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
462/12.3TJCBR-AF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
GRAU DE SATISFAÇÃO DOS CRÉDITOS
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 23.º, N.º 7, DO ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL, APROVADO PELA LEI N.º 22/2013, DE 26-02, NA REDAÇÃO DA LEI N.º 9/2022, DE 11/01
Sumário: I – Com a alteração introduzida pela Lei 9/2022 ao artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial a intenção do legislador não foi alterar o modo como a majoração era calculada, em função do grau de satisfação dos créditos ou percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita.

II – Se a intenção da lei tivesse sido de alterar o regime até então em vigor, não teria reproduzido na primeira parte do nº 7, o que já constava do anterior nº 5, eliminando a referência ao facto da remuneração ser majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, dizendo apenas – como seria mais lógico – que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6, seria majorado em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, o que não fez. 

III – Ao alterar a redação do artº 23º com a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, a intenção do legislador terá sido apenas a de afastar a remissão que, anteriormente, era feita para uma portaria, passando a regular diretamente essa matéria, mantendo o critério estabelecido, o grau de satisfação dos créditos, majorando a remuneração em 5% da percentagem de créditos satisfeitos em relação aos que haviam sido reclamados e admitidos.

Decisão Texto Integral:
Relator: Helena Melo
Adjuntos: José Avelino Gonçalves
Arlindo Oliveira


Processo 462/12.3TJCBR-AF.C1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

 AA, Administradora de Insolvência, nomeada nos autos em que é Insolvente R... S.A., notificada do despacho datado de 15/07/2022, veio interpor recurso do mesmo despacho que considerou que o cálculo da remuneração variável que a apelante  tinha apresentado,  não se encontrava correto  e que fixou a remuneração variável em 141.730,65 Euros acrescida de Iva, à taxa de 23%, no valor de 32.598,05 Euros, no total de 174.328,70 Euros, ao qual deverá ser deduzido o montante de remuneração variável já adiantado de 51.563,75 Euros.

Concluiu as suas alegações pedindo que seja “Revogado o despacho recorrido, que decidiu considerar incorreto o cálculo da majoração apresentada nos autos, e ser substituído por outro, que considere correta a formula de cálculo no que toca à majoração de 5%, e que corresponde ao montante de 206.281,00 Euros ( Artigo 23.º n.º7 da Lei 22/2013 (EAJ) na redação da Lei 9/2022 de 11.01, e não de 41.730,65 Euros, conforme consta da decisão recorrida, fixando a remuneração variável no total de remunerações de 306.281,00 Euros acrescidos de Iva à taxa em vigor, (= valor global de 376.725,63 Euros), deduzidos da parte já recebida (-41.921,75 Euros, acrescidos de iva= 51.563,75 Euros), pelo que falta receber o montante de 264.359,25 Euros, acrescidos de Iva à taxa de 23%, (= 325.161,88 Euros), ao invés de 174.328,70 Euros, (deduzidos da importância já recebida).

Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Objeto do recurso

Atendendo às conclusões das alegações da apelante – pelas quais se define o objeto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar é  a seguinte:

. se o  n.º 7 do art.º 23.º do Estatuto do Administrador Judicial deve ser interpretado no sentido da remuneração aí prevista dever corresponder  a 5% do montante dos créditos satisfeitos, independentemente do grau de satisfação dos créditos.

III - Fundamentação

A situação factual é a supra descrita.

O presente recurso visa apenas o segmento da decisão que fixou a remuneração prevista no n.º 7 do artº 23º do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro (diploma ao qual se referem todas as disposições legais que venham a ser citadas, sem indicação da fonte) que prevê a majoração da remuneração variável já calculada de acordo com os nºs 4, 6 e 10 do artº 23º, considerando a apelante que a decisão fez errada interpretação da mencionada disposição legal.

O preceito acima citado dispõe, no que toca à remuneração variável e nos segmentos com interesse para a decisão, o seguinte:

(…)

4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:

a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;

b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.

(…)

6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.

7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.

(…)

10 – A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro). (…)”

Na decisão recorrida entendeu-se que a remuneração variável prevista no artº 23º, nº 4, alínea b), ascendia a 212.431,00, correspondendo a 5% sobre o resultado da liquidação no montante de 4.248.620,05, valor este que resultou da seguinte operação: total das receitas de liquidação (4.487.824,00), menos despesas da massa (173.090,60) menos remuneração fixa do Administrador da Insolvência (2.460,00), menos custas do processo de insolvência (63.653,63). A quantia de 212.431,00 foi, seguidamente, reduzida para a quantia de 100.000,00 por força do disposto no artº 23º, nº 10, à qual acresceu Iva, à taxa de 23%, no total de 123.000,00.

O que está em causa, como se referiu, é apenas a remuneração devida nos termos do n.º 7, que a  decisão recorrida considerou que deve ser calculada, tendo como referência o grau de satisfação dos créditos reclamados.

No entender da apelante a atual redação do artº 23º introduzida pela Lei 9/2022, de 11/01, refere-se expressamente ao valor que existe para distribuição e não em percentagem, sendo totalmente irrelevante o grau ou percentagem de satisfação dos credores assume agora, face ao universo da totalidade dos créditos.

Na decisão recorrida efetuou-se a seguinte operação de majoração:

“(…) a majoração é função do grau de satisfação dos créditos: assim o impõe a letra do preceito e a respetiva ratio, que será a de premiar a diligência do AI em função dos resultados alcançados na satisfação do passivo, sem, contudo, prejudicar por via desse prémio o pagamento do passivo. Haverá, por isso, que, antes de aplicar o dito fator de 5%, calcular o grau de satisfação dos créditos, o que se consegue dividindo o saldo líquido da liquidação (produto da liquidação, deduzidas as despesas, custas, remuneração fixa e valor apurado nos termos do n.º 4 do artigo 23.º) pelos créditos reconhecidos e aprovados. O valor percentual obtido corresponderá ao grau de satisfação dos créditos, o qual se aplicará ao valor líquido da remuneração, sendo ao valor assim obtido que se aplica, por seu turno, a taxa de 5%.

Por fim, o valor global da remuneração variável corresponderá à soma do resultado da primeira operação, prevista no artigo 23.º, n.º 4, alínea b), com a majoração a que se reporta o n.º 7.

De acordo com o artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 9/2022, de 11 de março, este novo regime é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, ou seja, a 11 de abril de 2022 (cf. artigo 12.º do diploma em referência).

Aplicando os critérios expostos ao caso vertente, quanto à fixação da remuneração variável importa considerar o seguinte: as receitas da liquidação ascenderam a 4.487.824,28€; as despesas da massa foram de 173.090,60€; a remuneração fixa foi de 2.460,00€; as custas do processo de insolvência ascenderam a 63.653,63€; e o total dos créditos reconhecidos foi de 20.387.093,18€.

Como tal, o resultado da liquidação será de 4.248.620,05€ (4.487.824,28€ - 173.090.60€ - 2.460,00€ - 63.653,63€), pelo que a remuneração variável prevista no artigo 23.º, n.º 4, alínea b), ascende a 212.431,00€, mas que, em face da aplicação da disposição contida no artigo 23.º, n.º 10, do EAJ, se fixa em 100.000,00€, a que acresce o IVA, à taxa de 23%, totalizando 123.000,00€.

Para calcular a majoração a que se reporta o n.º 7 do artigo 23.º haverá, em primeiro lugar, que deduzir ao resultado da liquidação a remuneração variável calculada nos termos do n.º 4, alínea b) (4.248.620,05€ - 123.000,00€). O total, de 4.125.620,05€, é dividido pelo montante dos créditos reconhecidos (20.387.093,18€). Obter-se-á, assim, o grau de satisfação dos créditos admitidos, que é de 0,20% (4.125.620,05€ : 20.387.093,18€ = 0,2023). O montante ao qual se aplicará o fator de majoração de 5% será, então, de 834 612,94€ (4.125.620,05€ x 0,2023) e a majoração de 41.730,65€ (825.124,01€ x 5%).

Adicionando a remuneração prevista no artigo 23.º, n.º 4, alínea b), de 100.000,00€, à majoração, de 41.730,65€, obtemos o valor de 141.730,65€, a que acresce o IVA, no valor de 32.598,05€, num total de 174.328,70€.”

De acordo com a interpretação que a apelante faz do nº 7 do artº 23º, a percentagem de  5% da majoração deve incidir sobre 4.125.620,05, pelo que a majoração deve ser de 206.281,00 e não de 41.730,65, como foi entendido na decisão recorrida, pelo que, considerando a majoração, a remuneração variável deverá ser fixada em 100.000,00 mais 206.281,00 (5% x 4.125.620,05), ambas acrescidas de Iva, à taxa de 23%, no total de 376.725,63, ao invés da quantia que lhe foi fixada na decisão recorrida de 174.328,70, em qualquer dos casos deduzida da importância já recebida.

Efetivamente, não se pode deixar de reconhecer que a redação do nº 7 não é clara. Reconhece-se que leitura literal da segunda parte do referido n.º 7 parece apontar para uma remuneração que corresponderia (em qualquer caso) a 5% do valor dos créditos satisfeitos, como defende a  apelante. Contudo, a  primeira parte do preceito remete, a nosso entender, de uma forma que se nos afigura inequívoca, para um critério de fixação da remuneração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, que não se compadece, de modo algum, com uma remuneração fixada numa percentagem (5%) a incidir sobre o montante dos créditos satisfeitos sem qualquer consideração pela percentagem que esses créditos representam no valor global dos créditos que haviam sido reclamados e admitidos (cfr. se defende nos Acs. desta Relação de 28.09.2022, processo 2495/20.7T8ACB.C1 e de 11.10.2022, processo 3947/08.2TJCBR-AY.C1, este último relatado pelo aqui segundo adjunto).

A considerar-se que a remuneração corresponde a 5% dos créditos satisfeitos (como resultaria da leitura literal da segunda parte da norma), não se teria em atenção o critério estabelecido na primeira parte do preceito legal,  de fixação da remuneração em função do grau de satisfação dos créditos, e,  entendendo-se que a remuneração deve atender ao grau de satisfação de créditos (como resulta da primeira parte da norma), ela não poderá corresponder, em qualquer caso, a 5% do valor dos créditos satisfeitos.

Perante esta redação qual será a interpretação que melhor corresponderá ao pensamento legislativo? Não deixando de reconhecer que a questão é discutível, afigura-se-nos que a interpretação a adotar deve ser a que foi feita na decisão recorrida.

Estabelece o artº 9º do CC que embora não possa ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2) , a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, ali se determinando ainda na fixação do sentido e alcance da lei, que o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados(nºs 1 e 3).

Referindo-se expressamente que a remuneração em causa é calculada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, parece que a intenção do legislador terá sido a de considerar que a remuneração em questão tomasse em conta essa variável. Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 112/IX – que veio a dar origem ao anterior Estatuto do Administrador da Insolvência (aprovado pela Lei n.º 32/2004) – e que também se colhe na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 107/XII – que veio a dar origem ao atual Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei n.º 22/2013) – resulta que a remuneração em questão visa também incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível e premiá-los pelo resultado efetivamente obtido e que se presume resultar, pelo menos em parte, do seu empenho e do seu esforço, pelo que a consideração do  grau de satisfação de créditos resulta coerente com a intenção do legislador, a ser considerada na fixação da remuneração.

O atual Estatuto, na redação anterior à introduzida pela Lei 9/2022, já previa que a remuneração devia ser calculada “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”(nº 5 do artº 23º), como o mesmo ocorria com o anterior Estatuto que previa e regulava essa remuneração nos mesmos termos (art.º 20.º, n.º 4), sendo que, à data, a remuneração era fixada por aplicação de fatores constantes de uma portaria (a Portaria n.º 51/2005, de 20/01) e que estavam estabelecidos com referência e em função da “percentagem de créditos admitida que foi satisfeita” (quanto maior fosse essa percentagem – ou seja, o grau de satisfação dos créditos admitidos – maior seria o fator aplicável com vista à fixação da remuneração).

E, não obstante, por força da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, o EAJ ter passado a conter as regras de cálculo da remuneração (deixando, portanto, de o fazer com referência a qualquer portaria), a redação da primeira parte do n.º 7 do art.º 23.º (anteriormente n.º 5) manteve-se inalterada, continuando, portanto, a fazer referência ao facto de a remuneração ser majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.  Neste circunstancialismo, afigura-se que a intenção do legislador não foi alterar o modo como a majoração era calculada, ou seja, em função do grau de satisfação dos créditos ou percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita. Se a intenção da lei tivesse sido de alterar o regime até então em vigor, não teria reproduzido na primeira parte do nº 7, o que já constava do anterior nº 5, eliminando a referência ao facto da remuneração ser majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, dizendo apenas – como seria mais lógico – que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6, seria majorado em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, o que não fez.  Ao alterar  a redação do artº 23º com a Lei n.º 9/2022, a intenção do legislador terá sido apenas a de afastar a remissão que, anteriormente, era feita para uma portaria, passando a regular diretamente essa matéria, mantendo o critério estabelecido, o grau de satisfação dos créditos, majorando a remuneração em 5% da percentagem de créditos satisfeitos em relação aos que haviam sido reclamados e admitidos (cfr. se defende nos Acs. citados desta Relação que temos vindo a seguir de perto).

Se o valor da remuneração correspondesse sempre a 5% dos créditos satisfeitos, independentemente do grau de satisfação dos créditos, como defende a apelante, a remuneração seria sempre idêntica quer esses créditos correspondessem à globalidade dos créditos admitidos, quer correspondessem apenas a uma pequena parte dos mesmos, desconsiderando-se o grau de satisfação dos créditos expressamente referido na 1ª parte do nº 7 do artº 23º.

Em conformidade com este entendimento, a decisão recorrida não merece censura.

Sumário:

(…).

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 9 de novembro de 2022