Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1230/14.3T8ACB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
SENTENÇA
ERRO MANIFESTO
DIREITO À MEAÇÃO
PATRIMÓNIO COMUM
HIPOTECA
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.130, 3 CIRE, 1730 CC
Sumário: 1. - Verifica-se erro manifesto a que alude o art.º 130.º, n.º 3, do CIRE, legitimando a intervenção corretora do Tribunal – em vez da simples homologação da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e não impugnada –, se, apreendido no âmbito da ação de insolvência o direito à meação da insolvente no património comum do ex-casal constituído com o seu ex-marido, são vendidos, em sede de liquidação, bens concretos (imóveis) integrantes da comunhão (por ausência de partilha), em vez daquele apreendido direito à meação.

2. - Ainda que o ex-cônjuge da insolvente também haja sido declarado insolvente no âmbito de outro processo insolvencial, sem apensação que permitisse uma liquidação única/conjunta, tal coexistência de insolvências não altera a natureza do que foi apreendido nestes autos (o aludido direito à meação e não quaisquer bens concretos ou quota-parte de bens determinados).

3. - Vendidos pelos administradores das duas insolvências, em atuação conjunta, imóveis integrantes daquele património comum dos ex-cônjuges, sem prévia partilha ou aquiescência do Tribunal ou dos contitulares, ocorre desconformidade entre o apreendido no âmbito desta insolvência e o assim vendido.

4. - Caso em que a verificação e graduação dos créditos deve fixar-se, para efeitos qualificativos, no que foi efetivamente apreendido (a graduação e a liquidação do ativo dependem do património apreendido).

5. - Embora certos credores estejam garantidos por hipoteca sobre imóveis determinados integrantes daquele património comum, tal garantia não incide sobre o apreendido direito à meação, com a consequência de os créditos desses credores haverem, neste plano, de ser tidos como comuns e como tal objeto de graduação.

Decisão Texto Integral:




Acordam no  Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

A (…), com os sinais dos autos,

foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais.

Fixado o prazo de 30 (trinta) dias para reclamação de créditos, a Sr.ª Administradora da Insolvência (doravante, AI) juntou lista de credores reconhecidos, à qual não foram deduzidas impugnações.

Por decisão datada de 05/01/2016 foi sentenciada a reclamação de créditos (verificação e graduação), com o seguinte dispositivo ([1]):

«Pelo exposto, decido:

1. Julgar reconhecidos os créditos comuns resultantes da lista apresentada pelo senhor administrador da insolvência e constante de fls. 2 a 4:

2. Graduar os créditos reconhecidos para serem pagos da seguinte forma:

– Créditos comuns em igualdade, procedendo-se a rateio se necessário.

3. Graduar os créditos reconhecidos para serem pagos pelos montantes recebidos pelo fiduciário durante o período de cessão do rendimento disponível, da seguinte forma:

– Créditos comuns em igualdade, procedendo-se a rateio se necessário.».

É desta sentença que, inconformada, vem a credora “C (…) S. A.” (doravante, CGD), com os sinais dos autos, interpor o presente recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([2])

(…)

A AI tomou posição no sentido de nada opor à pedida revogação da sentença.

A credora “C (…) CRL” (doravante, CCAM), também com os sinais dos autos, veio aderir ao recurso interposto, nos termos do disposto no art.º 634.º, n.º 2, al.ª a), do CPCiv., requerendo lhe seja dado provimento, com a revogação da sentença e a sua substituição por outra que reconheça as hipotecas tituladas pela CCAM e CGD, sendo os seus créditos graduados como garantidos.

Não foi apresentada contra-alegação recursória.

O recurso interposto, tal como a adesão ao mesmo, foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos (do apenso respetivo, “B”) e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos ([3]) ao Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursória, ao conhecimento da matéria da apelação, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito recursório, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([4]) –, o thema decidendum consiste em saber, em matéria de direito, se ocorreu erro na graduação dos créditos, por terem sido reconhecidos e graduados como comuns créditos garantidos por hipoteca (os da CGD e da CCAM).


***

III – Fundamentação fáctico-jurídica
A) Base fáctica ([5])

O quadro fáctico a atender é o que resulta do antecedente relatório, que aqui se dá por reproduzido, a que acresce o seguinte (retirado da sentença recorrida e dos aludidos apensos que acompanham o recurso):

- resulta dos autos apensos de apreensão de bens que foi objeto de apreensão o direito à meação da aqui insolvente, não tendo sido apreendido qualquer bem concreto ou quota parte em determinado bem ([6]);

- resulta dos autos apensos de liquidação a junção de duas escrituras de compra e venda de frações autónomas (duas), em que foram outorgantes C (…) – 1.º outorgante, na qualidade de AI nomeado nos autos de insolvência com L (…), divorciado –, M (…) – 2.ª outorgante, na qualidade de AI nomeada nos autos de insolvência com o n.º 1230/14.3T8ACB, em que foi declarada insolvente A (…) divorciada – e outros (3.ºs outorgantes), na qualidade de administradores e em representação da CCAM numa das escrituras e da CGD noutra dessas escrituras, tendo aqueles AI (1.º e 2.ª outorgantes) declarado, nessa qualidade, vender aquelas frações autónomas (uma à CCAM e outra à CGD);

- na sequência foi proferido despacho nesses autos de apenso de liquidação, com o seguinte teor:

«Notifique a senhora administradora da insolvência para, em 10 dias, informar o motivo da venda de bens imóveis quando a apreensão incidiu sobre direito a meação e não foi tomada qualquer deliberação na assembleia de credores no sentido da venda conjunta com a outra referida insolvência (cf. Ata de fls. 161-162, bem como o relatório, especialmente a fls. 139-140 e 142).»;

- a AI veio tomar posição no sentido de ter sido apreendido e registado “o direito à meação que a Insolvente detinha sobre o imóvel” e de ter o credor hipotecário, notificado nos termos do disposto no art.º 164.º do CIRE – pelos AI, a destes autos e o do processo do ex-cônjuge da aqui Insolvente – defendido “a venda no processo em que primeiramente foi efetuada apreensão”;

- a liquidação foi considerada finda e arquivada por despacho de 13/10/2016.

B) Substância jurídica da apelação

1. - Na decisão recorrida foi exposta a seguinte fundamentação de direito ([7]), baseada em jurisprudência das Relações, de que discordam as partes recorrente e aderente:

«Resulta dos autos de apreensão de bens que os “bens” apreendidos foram o direito à meação e não qualquer bem concreto (ou quota parte em determinado bem).

(…)

O reconhecimento dos créditos e, sobretudo, a graduação dependem dos bens apreendidos (cf. artigos 47º e segs. do CIRE).

Ora, apesar da apreensão referida, o senhor administrador da insolvência acaba por atribuir a natureza de créditos garantidos, por hipoteca, a parte dos créditos reconhecidos à CGD e CCAM do Cadaval.

Estabelece o artigo 690º do Código Civil que “Não pode ser hipotecada a meação dos bens comuns do casal, nem tão-pouco a quota de herança indivisa”.».

E, citando jurisprudência ([8]), acrescenta-se que:

“(…) inexiste um verdadeiro direito do ex-cônjuge insolvente à meação da fracção autónoma do prédio urbano referido no auto de apreensão, (…), já que a meação não pode incidir, na constância do regime de bens em qualquer bem em concreto, antes sobre o património comum no qual também se integra essa fracção, fracção essa que só após a partilha dos bens do casal se saberá se integra o património próprio e individual de um ou outro dos ex-cônjuges. Nenhum dos cônjuges ou ex-cônjuges do dissolvido casal, poderá vender doar ou hipotecar o seu direito sobre bens comuns, não podendo a hipoteca incidir sobre a meação dos bens comuns do casal (art.º 690 do CCiv), muito embora, o direito à meação da insolvente no património colectivo possa ser, decretado que foi o divórcio, objecto de apreensão ou penhora”.

Para logo continuar ([9]):

«Na verdade “O direito de propriedade sobre um imóvel não se confunde com o direito à meação no património comum, do qual esse imóvel faz parte. São realidades diferentes.

A garantia decorrente da hipoteca, (…), só incide e tem efeitos sobre o bem a que respeita, em concreto, e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem.

É isso que decorre do estabelecido no artº 686 nº 1 do C.Civil, quando estipula que o credor hipotecário tem o direito de ser pago, pelo valor das coisas hipotecadas com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

A meação dos bens comuns do casal nem sequer pode ser objecto de hipoteca, conforme decorre do artº 690 do C.Civil que o exclui expressamente.

Tal como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/02/2012, in. ww.dgsi.pt, também citado na decisão recorrida, “A pretensão da recorrente de que se lhe dê preferência no pagamento pelo produto da venda da meação conjugal do insolvente, na qual se integra o imóvel hipotecado a favor da recorrente, a ser admitida, traduzir-se-ia numa violação indirecta do disposto no artigo 690º do Código Civil, pois dar-se-lhe-ia preferência no pagamento pelo produto da venda de um direito, sem que fosse admitida a constituição da garantia fundamentadora da preferência no pagamento sobre o direito objecto da venda. Por outro lado, o direito à meação conjugal não se traduz num qualquer direito inerente ao imóvel hipotecado a favor da recorrente pois, à semelhança do que sucede relativamente ao quinhão hereditário, não confere qualquer direito sobre bens concretos e determinados integrantes da comunhão conjugal.”

Por outro lado, em caso de venda do direito da meação do insolvente no património comum do ex-casal, a hipoteca da Recorrente não é afectada, porque não é o imóvel sobre o qual a mesma incide que é vendido. Quem adquire tal direito adquire uma parte do património comum no qual se integra um imóvel hipotecado. Apesar do direito passar para outro titular, o bem imóvel hipotecado continua a responder pela satisfação do crédito garantido, como se pertencesse ao titular devedor. Tal resulta da natureza da hipoteca enquanto direito real de garantia e da sequela que lhe anda associada.

Por outro lado, a hipoteca subsiste por inteiro sobre o imóvel em questão, resultando o requisito da indivisibilidade do disposto no artº 696 do C.Civil que, com a epígrafe “indivisibilidade” estabelece que: “Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada um das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que a constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.” A venda da meação não afecta, nomeadamente com redução a metade, a garantia que resulta da hipoteca sobre o imóvel, como receia a Recorrente, nem tal resulta da decisão recorrida.

Em situação idêntica, pronunciou-se neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30/10/2008, in. www.dgsi.pt que conclui: “Acresce dizer que a solução adoptada não belisca o apontado direito de sequela ou, nos dizeres do recorrente, que o imóvel está " gravado" com a hipoteca. De facto, a venda da meação do falido não colide nem diminui o direito de preferência visto que a hipoteca continua a manter-se intocável (…) uma vez que a hipoteca permanece sobre aquele concreto imóvel, independentemente da transmissão desse direito à meação e de quem seja o adquirente”.

A doutrina do citado Acórdão não merce qualquer reparo por corresponder à única interpretação legal dos preceitos em causa (artigos 47º, n. 4, al. a), do CIRE e 690º do Código Civil).

Assim, a lista de créditos apresentada pelo senhor administrador da insolvência não pode ser, na sua totalidade, homologada.

Na verdade, apesar de não existirem motivos para alterar os montantes dos créditos reconhecidos, do que se expôs, resulta que a natureza atribuída aos créditos (a parte deles) não se afigura a legalmente correta e, por esse motivo, terá que ser alterada.

Assim, pelo exposto, homologo parcialmente a lista de créditos apresentada pelo senhor administrador da insolvência mas atribuo a todos os créditos a natureza de créditos comuns.» ([10]).

2. - No presente recurso pugna-se pela inexistência de “erro manifesto” a que alude o preceito do n.º 3 do art.º 130.º do CIRE, pelo que deveria, na falta de impugnações da lista de credores reconhecidos, ter sido proferida sentença de pura e simples homologação dessa lista e graduação de créditos em conformidade.

Por isso, entende a parte recorrente que o erro foi, diversamente, do Tribunal a quo, ao intentar corrigir um erro inexistente, assim incorrendo num juízo que não pode ser mantido, obrigando à revogação da sentença.

Que dizer?

3. - Em primeiro lugar, tem de notar-se que, inexistindo impugnação direcionada para a decisão de facto, está adquirido que a apreensão incidiu, não sobre bens concretos/determinados – ou sequer quota-parte/fração de bens determinados –, mas sobre o direito à meação da aqui Insolvente, A (…), não tendo sido apreendido, pois, nenhum bem concreto ou quota-parte de bens determinados.

É claro, assim, salvo o devido respeito, que estamos perante apreensão de um direito específico, aquele direito à meação sobre o património comum dos ex-cônjuges – não dividido –, mesmo se ambos foram declarados insolventes, no âmbito de diferentes autos de insolvência ([11]), que, por isso, correram separadamente, com diversos AI, e sem apensação entre si.

Por isso se concorda com a doutrina do já citado Ac. TRL de 13/02/2014, em cujo sumário pode ler-se:

«I - Existe no CIRE uma norma específica relativa à liquidação de bens indivisos que é a do art.º 159 segundo a qual, (…) verificada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens. Daqui decorre uma obrigação para o administrador de insolvência que é a de que apurada, depois da apreensão de bens (por ele efectuada), a existência de bens de que o insolvente não tenha a plena e exclusiva titularidade, de promover a separação desses bens nos termos dos art.ºs 141/3, 144 e 146 do CIRE (o art.º 141/1/c prevê a aplicação das disposições relativas à reclamação e verificação de créditos à reclamação e verificação do direito do cônjuge a separar da massa a sua meação nos bens comuns).

II - Como por força do art.º 17 do CIRE se aplicam subsidiariamente as regras do C.P.C. tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência o de que se aplica à apreensão dos bens em insolvência as regras da penhora de bens, com as necessárias adaptações. À semelhança do que acontece na execução singular movida apenas contra um dos contitulares do património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património autónomo ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso (art.º 826). Se o for, terá lugar o mecanismo do art.º 141/1/c, com a especificidades do n.º 2 do art.º 141, com reclamação, impugnação, eventual resposta à impugnação, parecer da comissão de credores, saneamento, e mecanismo do art.º 136, eventual audiência de discussão e julgamento, decidindo-se a final pelo direito do outro cônjuge a obter a separação da sua meação.

III - (…) o art.º 1730/1 do Cciv estatui a regra da meação ou seja a de que os cônjuges (ou ex-cônjuges sem partilha efectivada) participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido contrário); o direito à meação, de que cada um dos então cônjuges é titular, só se torna exequível depois de finda a sociedade conjugal, ou melhor depois de cessadas as relações patrimoniais entre os ex-cônjuges (…).

IV - Tornando-se exequível esse direito à meação com o decretamento do divórcio, o certo é que essa meação incide sobre a totalidade do património colectivo, não existe um direito à meação de cada um dos bens concretos comuns, esse direito à meação no património colectivo resulta da regra do art.º 1730 do Cciv e uma vez que a sociedade conjugal foi já dissolvida, a forma de concretizar esse direito à meação em bens concretos só pode ser concretizada em processo de inventário e nesse processo de inventário bem pode acontecer que o imóvel em questão, comum embora, venha a ser adjudicado ao outro ex-cônjuge que aqui não é insolvente, integrando-se a quota ideal da aqui insolvente com outros bens ou valores comuns.

V - Parecendo ser da responsabilidade de ambos os cônjuges (ou ex-cônjuges no caso), o que acontece é que neste processo de insolvência não há notícia de que o ex-cônjuge do insolvente tenha intervindo na insolvência por qualquer forma, ou que para ela tenha sido citado, pelo que à semelhança do que ocorre no art.º 825 não pode a liquidação prosseguir sobre o imóvel comum, apenas o poderá sobre aquele direito à meação no património colectivo que não incide especificamente sobre a fracção autónoma.

VI - Não incidindo a apreensão dos autos sobre a fracção autónoma, mas sobre a meação do insolvente, não funciona a preferência que para o Banco apelante resulta da hipoteca que oportunamente constituiu sobre ela, já que na liquidação dos autos nunca poderá ser vendido o imóvel em questão (art.º 174 do CIRE) não existindo, assim na decisão recorrida erro de qualificação do crédito do Banco reclamante (em atenção ao bem apreendido) como crédito comum e erro de interpretação do art.º 47/4/a do CIRE.» ([12]).

Tal como haverá de concordar-se com a orientação semelhante do Ac. desta Relação, também citado, de 24/09/2013.

Com efeito, é certo, salvo melhor fundado entendimento, que:

«1. O direito à meação do insolvente no património comum do casal formado por este e pela sua ex-mulher, é único e indiviso, não incidindo sobre bens concretos e determinados, sendo que só por via da separação dos bens e partilha com liquidação do património do casal há lugar a essa concretização.

2. O direito de propriedade sobre um imóvel não se confunde com o direito à meação no património comum, do qual esse imóvel faz parte. São realidades diferentes.

3. A garantia decorrente da hipoteca, só tem efeitos sobre o bem a que respeita, em concreto, e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem.

4. Em caso de venda do direito da meação do insolvente no património comum do ex-casal, a hipoteca da Recorrente não é afectada, porque não é o imóvel sobre o qual a mesma incide que é vendido. Quem adquire tal direito adquire uma parte do património comum no qual se integra um imóvel hipotecado. Apesar do direito passar para outro titular, o bem imóvel hipotecado continua a responder pela satisfação do crédito garantido, pois tal resulta da natureza da hipoteca enquanto direito real de garantia e da sequela que lhe anda associada.

5. O crédito da Recorrente terá de ser tido como comum, por existir apenas um único bem apreendido que é o direito à meação do insolvente no património comum do casal.» ([13]).

Conforme escrituras juntas, foram vendidos imóveis integrantes do património comum do ex-casal constituído pela aqui insolvente e seu ex-marido – o qual não é parte nestes autos, embora, segundo parece resultar, também já foi declarado insolvente no âmbito de outro processo –, vendas essas em que outorgaram os identificados AI das respetivas insolvências (não os insolventes), sem que se mostrasse efetuada a partilha, sendo certo que apenas com esta se definiria qual dos ex-cônjuges (contitulares) adquiriria a propriedade dos imóveis (ou de algum deles) sobre que incidiam as garantias (hipoteca), direito de propriedade esse que poderia nem sequer vir a ser adjudicado à aqui insolvente (mas ao seu ex-cônjuge), caso em que não poderia, logicamente, ser vendido no âmbito destes autos.

Assim, apreendido nestes autos de insolvência, que se reportam apenas à insolvente A (…), o seu direito à meação no património comum, omitiu-se a partilha, para se passar de imediato à venda de cada um dos imóveis (não partilhados), sob a argumentação de que ambos os contitulares eram insolventes, não houve impugnações creditórias e nas vendas intervinham ambos os respetivos AI.

Porém, a haver insolvência do dito ex-cônjuge – o que não se mostra certificado judicialmente nestes autos –, inexiste apensação de processos, pelo que haverá duas diversas ações de insolvência, com os respetivos (diversos) autos de apreensão e liquidação, o que, para lá da omissão de partilha, sempre deveria inviabilizar a realização das vendas aludidas, nos moldes em que ocorreram (de concretos bens imóveis, na sua totalidade), no âmbito dos presentes autos (ou, do mesmo modo, da liquidação na outra insolvência).

Em suma, o que poderia ser vendido no âmbito da insolvência destes autos era, efetivamente, o apreendido direito à meação da insolvente no dito património comum, donde que, independentemente da ausência de impugnação à lista de créditos, não haja erro, a nosso ver, de apreciação do Tribunal a quo nesta parte ([14]).

Neste contexto, para efeitos de verificação e graduação de créditos, deve atender-se, como entendido na sentença, ao que foi apreendido (a graduação depende, efetivamente, do que haja sido apreendido, pois a liquidação do ativo incide sobre o património apreendido), e não ao que veio a ser injustificadamente vendido.

Ora, sobre o direito à meação que foi objeto de apreensão não incide, como visto, hipoteca ou outra qualquer garantia, com a consequência de os créditos da CGD e da CCAM haverem de ser tidos como comuns (apesar da garantia incidente sobre bens concretos integrantes do património comum/indiviso).

Donde que não haja, que se veja, erro (de qualificação) na sentença recorrida, seja quanto à verificação, seja relativamente à graduação, dos créditos em discussão.

Tal determina a improcedência do recurso, bem como, do mesmo modo, da ocorrida adesão, devendo manter-se a decisão apelada.

                                               *

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Verifica-se erro manifesto a que alude o art.º 130.º, n.º 3, do CIRE, legitimando a intervenção corretora do Tribunal – em vez da simples homologação da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e não impugnada –, se, apreendido no âmbito da ação de insolvência o direito à meação da insolvente no património comum do ex-casal constituído com o seu ex-marido, são vendidos, em sede de liquidação, bens concretos (imóveis) integrantes da comunhão (por ausência de partilha), em vez daquele apreendido direito à meação.

2. - Ainda que o ex-cônjuge da insolvente também haja sido declarado insolvente no âmbito de outro processo insolvencial, sem apensação que permitisse uma liquidação única/conjunta, tal coexistência de insolvências não altera a natureza do que foi apreendido nestes autos (o aludido direito à meação e não quaisquer bens concretos ou quota-parte de bens determinados).

3. - Vendidos pelos administradores das duas insolvências, em atuação conjunta, imóveis integrantes daquele património comum dos ex-cônjuges, sem prévia partilha ou aquiescência do Tribunal ou dos contitulares, ocorre desconformidade entre o apreendido no âmbito desta insolvência e o assim vendido.

4. - Caso em que a verificação e graduação dos créditos deve fixar-se, para efeitos qualificativos, no que foi efetivamente apreendido (a graduação e a liquidação do ativo dependem do património apreendido).

5. - Embora certos credores estejam garantidos por hipoteca sobre imóveis determinados integrantes daquele património comum, tal garantia não incide sobre o apreendido direito à meação, com a consequência de os créditos desses credores haverem, neste plano, de ser tidos como comuns e como tal objeto de graduação.

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação (com a ocorrida adesão), mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

Custas da apelação pela parte Apelante.

Escrito e revisto pelo relator

Elaborado em computador


Coimbra, 07/02/2017

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Que se transcreve (negrito e sublinhado retirados).
([2]) Que se transcrevem.
([3]) Acompanhados dos apensos de apreensão de bens (“A”) e liquidação (“C”), para melhor compreensão e apreciação recursória.
([4]) Processo instaurado após a entrada em vigor daquela lei, ocorrida em 01/09/2013 (cfr. art.ºs 1.º e 8.º, ambos dessa Lei n.º 41/2013).
([5]) Pugna expressamente a Apelante por ter havido “errada subsunção do direito aos factos, na correção de um erro inexistente” (cfr. ponto 17 da alegação e al.ª E) das conclusões), erro esse traduzido na qualificação, operada pelo Tribunal a quo, de créditos garantidos por hipoteca como créditos meramente comuns. Assim, inexiste qualquer impugnação ao nível da decisão de facto, matéria de que, por isso, não cabe aqui cuidar.
([6]) Do auto de apreensão constante do apenso “A” (a fls. 02 e seg.), consta como objeto de apreensão “o direito correspondente à meação” de cada uma de duas frações autónomas e de um prédio urbano, sobre que recaem hipotecas e penhoras registadas a favor da CGD e da CCAM.
([7]) Por referência ao disposto no art.º 130.º, n.º 3, do CIRE, segundo o qual “Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que consta dessa lista”.  
([8]) Ac. TRL de 13/02/2014, Proc. 2448/13.1TBALM-B.L1-2 (Rel. Vaz Gomes), disponível em www.dgsi.pt.
([9]) Citando agora o Ac. TRC de 24/09/2013, Proc. 1260/12.0TBGRD-A.C1 (Rel. Maria Inês Moura), também subscrito pelo aqui Exm.º Desembargador 1.º Adjunto, disponível em www.dgsi.pt.
([10]) Negrito retirado.
([11]) O que nem sequer está cabalmente comprovado nestes autos.
([12]) Itálico aditado.
([13]) Sumário deste último aresto.
([14]) Verifica-se erro manifesto a que alude o art.º 130.º, n.º 3, do CIRE, legitimando a intervenção corretora da 1.ª instância. Com efeito, “Perante a lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência, e mesmo que dela não haja impugnações, o Juiz não pode abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes dessa lista, nem dos documentos e demais elementos de que disponha, com a inclusão, montante, ou qualificação desses créditos, a fim de evitar violação da lei substantiva” – assim o Ac. STJ, de 25/11/2008, Proc. 08A3102 (Cons. Silva Salazar), em www.dgsi.pt.