Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2393/12.8TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE
LEI
INSTRUÇÃO CRIMINAL
Data do Acordão: 04/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA CENTRAL - SECÇÃO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 286.º, 287.º E 303.º DO CP
Sumário: I - A inadmissibilidade legal da instrução tem a ver essencialmente com requisitos de forma e não com a substância do requerimento, isto é, com os fundamentos de ser deduzido despacho de pronúncia ou não pronúncia.
II - O requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), aplicável ex vi do art. 287.º, n.º 2).

III - A falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constituiu uma nulidade (art. 283.º, n.º 3), o que é facilmente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento por parte do Ministério Público, deve fixar o âmbito ou objecto do processo (art. 303.º e 309.º).

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo supra identificado, findo o inquérito, o Ministério Público, proferiu despacho de arquivamento, nos termos do art. 277.º, n.º 2, do CPP, relativamente a factos participados por A.... contra a arguida B.... , pela prática de um crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo art. 359.°, n.º 1 e 2 do CP e contra o arguido C.... , pela prática de um crime de falso testemunho p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1 e 2 do CP.

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O queixoso, tendo-se constituído assistente, notificado daquele despacho de arquivamento veio requerer abertura da instrução, sustentando que deve ser proferido despacho de pronúncia pelos factos participados, por integrarem a prática de um crime imputado aos arguidos, o que fez nos seguintes termos:

« A.... , divorciado, portador do B.I. n.º (...) , emitido em (...) 2006, pelo Arquivo de Identificação de Coimbra, com o número de identificação fiscal (...) e residente na Rua (...) Coimbra,

Assistente nos autos acima identificados, porque é parte legítima e está em tempo, vem, nos termos do artigo 287.° do Código do Processo Penal, requerer a abertura da instrução, nos termos e com os fundamentos seguintes:

Razões de Facto e de Direito discordantes da não acusação:

1.º - O Assistente participou criminalmente dos arguidos no processo indicado e ai melhor identificados, imputando-lhes os crimes de falsidade de depoimento e falsidade de testemunho constantes nos artigos 359° e 360° do Código Penal

2.º - O Ministério Público, após inquérito profere despacho de arquivamento com os seguintes argumentos, aqui resumidos:

a) O crime de falsidade de depoimento e falsidade de testemunho protegem a realização da justiça, que não foi colocada minimamente em perigo pelos arguidos.

b) Os seus depoimentos não se revelam falsos.

c) A alegada omissão de informação relativa à situação económica de B.... padece de total irrelevância para o objecto do processo.

Do crime de falsidade de testemunho e das situações em que não coloca minimamente em perigo a realização da justiça:

3.º - O Doutor Medina de Seiça refere no Comentário Conimbricense (2001:451) que a realização da justiça é um bem jurídico que merece protecção penal sempre que se verificar um dos crimes previstos e puníveis entre os artigos 359.º e 371.º, e este bem jurídico procura "sublinhar mais a verdade funcional (da tarefa) do que a institucional (do aparelho ou órgãos) ".

4.º - O Doutor Paulo Pinto de Albuquerque (2010: 931), no seu comentário ao Código Penal entende que a realização da justiça quando protegida enquanto bem jurídico com relevância penal protege a veracidade do depoimento das partes ou sujeitos do processo

5.º - O Doutor Figueiredo Dias, nas Actas da Comissão de Revisão do Código Penal (1993: 415) entende haver um agravamento das penas relativas a este bem jurídico uma vez que se procura aproximar a nossa legislação de outras conexas onde a violação da realização da justiça é um dos crimes mais graves.

6.º - O Doutor Taipa de Carvalho (2011: 50), no seu livro Direito Penal Parte Geral, entende, um critério jurídico-constitucional do conceito material de bem jurídico-penal assente na dignidade da pessoa humana e na afirmação do sistema social (confrontando o artigo 1 ° da CRP), sendo um núcleo essencial do bem jurídico a realização e a funcionalidade da justiça e do sistema social.

7.º - O Doutor Figueiredo Dias (2004: 121), no seu livro Direito Penal, parte geral, afirma que para além da noção de bem jurídico dotado de dignidade penal é necessário estar subjacente um critério de necessidade de tutela penal subsidiária, que leva a que o estado intervenha o menos possível, sendo a sua intervenção apenas admissível na medida em que assegure o essencial funcionamento da sociedade.

8.º - O bem jurídico realização da justiça é por isso fundamental ao correcto funcionamento do aparelho judicial mas é, essencialmente, um garante da paz social, pelo que não se compreende urna desvalorização das declarações só porque se revelam laterais à decisão da causa.

9.º - O bem jurídico realização da justiça tem relevância adjectiva quando o artigo 91.º, do Código do Processo Penal (CPP) se refere ao juramento pelas testemunhas, tem, igualmente importância processual quando o artigo 132.º, no seu n.º l alíneas b) e d) se refere ao dever de prestar juramento e responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas, encontra-se igualmente previsto, no artigo 145.º quando se refere ao dever de verdade (ainda que não preceda de juramento) que recai sobre o assistente e partes civis.

10.º - O bem jurídico realização da justiça encontra relevância substantiva nos artigos 359.º e 360.º do Código Penal (CP).

11.º - O Doutor Medina de Seiça no Comentário Conimbricense (2001: 462), relativamente á declaração falsa, afirma: "De facto, a protecção da função estadual não é posta em causa apenas quando a declaração falsa é tida em consideração entre os fundamentos da decisão (...) mas mesmo nos casos em que essa influência não se verificou em concreto" Acrescentando, o insigne jurista, "o fundamento do ilícito é logo a própria declaração falsa, independentemente da consideração da sua efectiva influência na decisão"

12.º - O Professor Paulo Pinto de Albuquerque, ao referir-se no seu Comentário do Código Penal (2010: 932), ao referir-se à noção de declaração falsa afirma "o dever de verdade inclui, não apenas os elementos essenciais do facto sobre que incide o depoimento, mas também as circunstâncias que não tenham significado especial para a prova a que o depoimento, relatório, informação ou tradução se destinar"

13.° - No respeitante à interpretação referente ao crime de falsidade de testemunho, p. e. p. no artigo 360.º do Código Penal relativamente aos comentários dos Doutores Medina de Seiça e Paulo Pinto de Albuquerque que o dever de verdade inclui todo o conhecimento da testemunha sobre o facto, sendo que "a omissão consciente da informação relevante para a decisão da causa também constitui a testemunha em responsabilidade" (Paulo Pinto de Albuquerque, 2010: 935). O Autor acrescenta (2010: 938): "A consumação do crime não exige a verificação de qualquer dano para a descoberta da verdade ou a justiça concreta do caso (...) é pois irrelevante apurar se o meio de prova viciado foi ou não determinante para o sentido da sentença ou decisão processual".

14.° - O Doutor Medina de Seiça (2001: 468) referindo-se ao dever de verdade subjacente a este artigo escreve o seguinte: "Na verdade a essencial idade do facto declarado não constitui elemento típico, pelo que a falsidade de uma declaração respeitante a uma circunstância considerada não essencial mas pertencente ao objecto do interrogatório realiza a tipicidade (...)."

Da falsidade de testemunho

15.º - Reforça, o digno magistrado do MP, o seu argumento com a afirmação que "temos, pois, que os factos posteriores ao período em causa na acusação e na sentença e que terão alterado a situação económica de B.... são, como foram, irrelevantes para o processo onde foram prestados os depoimentos em causa omissivos dos novos elementos (...) ainda que seja como o ofendido refere, tal matéria seria irrelevante já que B.... e C.... apenas tinham em rigor de se pronunciar a quanto ao lapso temporal em causa."

16.º - Quanto ao facto dos seus depoimentos não se revelarem falsos, remetemos para as declarações transcritas no auto de participação criminal, onde, referente às declarações da Arguida B.... (feitas a 21 de Junho de 2012), esta responde às perguntas que lhe são feitas pelo Meritíssimo Juiz sempre no presente do indicativo: "Ganho 750... "; " (...) ela ainda agora farta-se de chorar que quer ir para a ginástica e eu não tenho dinheiro (...) "; "Claro, e por muitas vezes porque não tenho dinheiro para pagar".

17.º - Como se pode verificar, o uso do presente do indicativo na frase, implica que o agente se esteja a referir a um tempo presente, e não a um tempo passado, como o Ministério Público quer fazer crer

18.° - Quanto ao arguido C.... (relativo às declarações prestadas a dois de Julho de 2012, em sede de Audiência de Julgamento e após ter sido ajuramentado), das suas declarações facilmente se constata que este tem perfeito conhecimento da real situação económica da primeira denunciada e da empresa, propriedade desta e dos seus pais.

19.º - Às perguntas da Dr.ª E.... : "E... e a sua irmã... como é que ela... tem lidado com esta situação?"; "Como é que a sua irmã... faz face às despesas da educação e da saúde da D.... ?", o arguido, sabendo que estava ajuramentado não hesitou em mentir relativamente à real situação financeira da irmã" (mais uma vez, o tempo verbal das perguntas e das respostas apontam para um momento temporal que se tem vindo a estender até ao presente).

20.º - Além destes factos, pelo assistente imputados, o ora arguido, não se coibiu de o caluniar em sede de julgamento "ó Sra. Dr"... este mercado é um mercado bom para quem não gosta de trabalhar, gosta de ganhar bom dinheiro e de fugir aos impostos"; "É o que eu costumo chamar na sociedade... um necrófago... que é..., aproveita-se, ele levanta-se de manhã, abre o jornal e vê quem tem o pescoço partido"

Da irrelevância das declarações para a decisão da causa:

21.º - Na sentença relativo ao processo n.º 3416/09.3 TACBR (cuja cópia se junta e dá por integralmente reproduzida) de onde constam as declarações passíveis de consubstanciar os crimes de falsidade de depoimento ou declaração (p. e. p. no artigo 359.° do CP) e falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução (p. e. p. no artigo 360.° do CP), consta o seguinte:

22.º - Resultou provada a seguinte matéria de facto, (ponto 14) "O arguido frequenta restaurantes de luxo"; (ponto 15) "A menor D.... reside com a sua mãe B.... (...) auferindo de subsídio €1.100,00 mensais, dos quais 552,00 são destinados a renda da casa"; (ponto 16) " (...) B.... não conseguiu nem consegue suportar sozinha os encargos mensais de D.... (...).

23.° - Na motivação, o Digníssimo Juiz referente a apreciação critica e global de toda a prova escreve o seguinte: "No que se refere aos factos constantes no ponto 14, considerei as declarações da assistente, da testemunha C.... (...) "; "os factos descritos em 16, 17 e 18 também foram confirmados, de forma isente e credível pela assistente e pelas testemunhas C.... (...) ".

24.° - Não podemos acompanhar, portanto, o entendimento do Ministério Público quando afirma que as declarações foram "irrelevantes para o processo".

Da Agravação da pena:

25.º - Resulta do exposto que os ora arguidos cometeram um crime de falsidade de depoimento e falsidade de testemunho (p. e. p. nos artigos 359.° e 360.° do CP) agravados pelo resultado uma vez que:

26.º - O agente, ora arguido, agiu com intenção lucrativa e do facto resultou a destruição das relações sociais e familiares do assistente.

27.º - No entender do Doutor Medina de Seiça (2001: 492), é decisivo na prática dos crimes dos artigos 359° e 360° que "haja sido efectuada com a mira no lucro, isto é, na obtenção de qualquer proveito para o agente"

28.º - O Doutor Paulo Pinto de Albuquerque (2010: 431) considera haver intenção lucrativa sempre que o dolo seja directo "na sua forma mais grave, mas não implica a obtenção efectiva do proveito económico".

Do Prazo para requerer a abertura da instrução:

29.º - O Assistente, desde o início do processo, teve cerca de seis patronos nomeados pela Ordem dos Advogados, por motivos que são estranhos ao actual patrono a realização da justiça sempre lhe foi delegada, tendo este feito mais que uma exposição à Ordem dos Advogados nesse sentido.,

30.º - O actual patrono foi nomeado via SINOA no dia 11 de Junho de 2012.

31.º - Cremos, salvo melhor opinião, que a realização da justiça, o acesso ao direito e aos tribunais e o direito a uma defesa justa se encontra realizado conjugando os artigos 24.° da Lei n.° 34/2004 com os artigos 13.° e 20.° da CRP.

Nestes termos, e nos mais de Direito se requere a V. Exa. a declarar, porque em tempo útil, aberta a instrução e em consequência a proferir despacho de pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e pelo crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução».

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A senhora juíza de instrução proferiu despacho de rejeição do requerimento de abertura da instrução, por inadmissibilidade legal, nos seguintes termos:

«No termo do inquérito a que respeitam os presentes autos, que tiveram origem numa queixa apresentada por A.... contra B.... e C.... , pela prática por este de factos subsumíveis ao crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1 e 2 do CP, o Ministério Público proferiu o despacho de arquivamento de fls. 138 a 140, nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, por ter entendido não resultarem dos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos de tais crimes.

Inconformada com tal decisão de arquivamento, o assistente apresentou o requerimento para abertura de instrução de fls. 193 e ss.

A instrução, que tem sempre carácter facultativo, visa estabelecer um controlo jurisdicional da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - artigo 286.° do Código de Processo Penal.

Daí que o requerimento de abertura de instrução seja a peça processual, mediante a qual o arguido ou o assistente, expressam as suas razões de divergência com o precedente despacho do Ministério Público, de acordo com o preceituado no artigo 287.°, n.º 1 do Código de Processo Penal.

  No caso da instrução ser requerida pelo assistente, que é o que aqui interessa, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação e os mesmos não sejam susceptíveis, como é óbvio, de acusação particular - pois se assim sucedesse bastaria que tal libelo fosse deduzido.

Por sua vez, segundo o disposto no artigo 287.°, n.º 2 do mesmo diploma “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, só espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.°, n.º 3, alíneas b) e c)…”.

Neste último segmento normativo estipula-se que "a acusação contém, sob pena de nulidade: "b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis".

Assim, tratando-se de uma instrução requerida pelo assistente, que visa sempre a pronúncia do arguido, acresce ainda mais um requisito, ou seja, deve tal requerimento conter ainda a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.

Aliás, tal descrição factual deverá conter os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere ter preenchido - neste sentido a generalidade da jurisprudência, v. g. vejam-se os Ac. RL de 2001/Maio/03: O requerimento de abertura de instrução deverá, pelo menos, conter os factos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o requerente considere ter sido preenchido"; Ac. RC de 1999/0ut./27 (in BMJ 482/293):

Abstendo-se o Ministério Público de acusar em crimes públicos ou semipúblicos, o requerimento do assistente para abertura da instrução, embora não devendo assumir a estrutura de uma acusação, terá de conter os factos que possam integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o requerente entende ter sido violado.

Por sua vez e de acordo com o citado artigo 287.°, através do seu n.º 3 "O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

A propósito desta última vertente tem-se entendido que não tem cabimento legal a instrução quando se tratem de processos especiais, quando seja a requerimento do Ministério Público, quando for requerida pelo arguido, relativamente a factos que exorbitem a acusação, ou então pelo assistente, versando sobre factos já descritos na acusação, ou então por falta de legitimidade de quem a requer - veja-se Souto Moura, nas jornadas sobre "O Novo Código Processo Penal" (1997), p. 119 e ss.

Daqui decorre que neste segmento normativo apenas questões de índole formal, atrás indicadas, podem conduzir à rejeição da instrução.

No entanto, se a instrução for requerida pelo assistente e não contiver os requisitos específicos de uma acusação atrás enunciados, tal requerimento é nulo, tornando, por isso, inexequível, por falta de objecto, o controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de algo semelhante à de uma acusação manifestamente infundada, de acordo com o preceituado no artigo 311.º, n.º 3, als. b) e c) do Código de Processo Penal, que conduz à sua rejeição.

E é compreensível que assim seja, porquanto é esse requerimento que ao reproduzir uma acusação fixa o objecto do processo, limitando os poderes de cognição do juiz de instrução (cfr. artigos 288.°, n.º 4, 307.° a 309.° do Código de Processo Penal) e possibilita o direito do arguido defender-se das imputações que lhe são feitas (artigos 61.°, n.º 1, als. b) e f) do Código de Processo Penal e 32.° da Constituição da República Portuguesa).

Tal injunção passa pelo arguido ser informado, em detalhe, dos factos que lhe são imputados e os termos em que tal é feito, conforme decorre do disposto no art. 6.° da DEDH, no seguimento da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que vê neste preceito o direito do acusado poder desde logo preparar a sua defesa, sendo para o efeito suficiente, mas necessário, uma breve descrição dos factos, mormente a data e o lugar de tal ocorrência e a identidade da alegada vítima, e das disposições legais que lhe são imputadas - veja-se o caso Pelissier c. França, de 1999/Mar./25; Matoccia c. Itália de 1999/Nov./03.

Nesta conformidade, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram.

Se tal não suceder, ou se o mesmo se limitar a remeter para o auto de participação ou denúncia, dando por reproduzido o mesmo, esse requerimento é nulo e susceptível de rejeição, por ser destituído dos requisitos enunciados no artigo 287.°, n.º 2 parte final, conjugado com o artigo 283.°, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.

No requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente questiona-se a valoração dos elementos indiciários recolhidos no decurso do inquérito feita no despacho de arquivamento, e requer-se a pronúncia.

Ora, lido o aludido requerimento de instrução constata-se que do mesmo não consta a descrição de factos que consubstanciem a prática pela arguida de qualquer ilícito criminal, não podendo, consequentemente, tal requerimento basear a realização de instrução.

Por outro lado e na sequência do Acórdão n.º 7/2005, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que “"Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 285.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamenta a aplicação de uma pena ao arguido”.

Tal circunstância, entendemos, impõe a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por legalmente inadmissível (cfr. artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Pelo exposto, por inadmissibilidade legal da instrução, rejeito o requerimento para o efeito apresentado».

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Deste despacho interpôs recurso o assistente, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª - Face ao principio da taxatividade das nulidades estabelecidas na lei, o M.M. Juiz não poderia assumir outra interpretação que não aquela que o legislador pretendeu, sendo as nulidades previstas no artigo 283.º, n.º 3, do Código do Processo Penal dependentes de arguição e sanáveis, por analogia ao 311.º, do mesmo diploma.

2.ª - Cabe ao arguido, em sede de julgamento, defender-se do despacho de pronúncia, caso venha a ocorrer, e não daquilo que é vertido no requerimento de abertura de instrução, pelo que um excessivo formalismo na forma como a peça é elaborada só vem entorpecer a justiça com a repetição de fórmulas escritas anteriormente.

3.ª - O requerimento que na narração dos factos remeta para a queixa-crime não é inadmissível legalmente desde que ai estejam claras, concisas e objectivas as circunstâncias de modo, de tempo e de lugar, prestando-se, assim, uma homenagem à justiça material contra as exigências formalistas».

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Notificado o Ministério Público, nos termos do art. 411.º, n.º 6, para efeitos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, apresentou reposta, que seguindo de perto os trilhos do juiz de instrução, conclui que o recurso deve improceder e consequentemente manter-se o despacho recorrido.

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Nesta instância de recurso, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, acompanhando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, emitiu douto parecer no sentido de que o requerimento de abertura de instrução deve configurar, equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada, bem assim deve conter o elemento subjectivo da infracção, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento.

Conclui assim também pela manutenção do despacho recorrido.

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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve resposta.

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Colhidos os vistos legais, cumpre-nos decidir.

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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:

Aferir se há fundamentos para rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

Apreciando:

A instrução, nos termos do art. 286.º, n.º 1, do CPP, diploma do qual farão parte os preceitos a citar, sem menção de origem, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Em conformidade com o disposto no art. 308.º, n.º 1, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. 

Porém, a simples apresentação de requerimento para abertura de instrução não determina de forma automática que esta fase processual tenha lugar.

No caso dos autos a senhora juíza de instrução indeferiu o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

A participação deve ser escorreita e concentrada, fazendo constar da mesma os elementos estritamente necessários e que fazem parte da estrutura do crime participado.   

No caso dos autos o Ministério Público ordenou o arquivamento dos autos por falta de indícios.

O juiz de instrução pode e deve rejeitar o requerimento só e apenas nas situações previstas no art. 287.º, n.º 3, isto é, por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Quando a lei fala em “inadmissibilidade legal”, tem em vista os casos em que da própria lei resulta clara e expressamente, como não admissível aquela fase processual, ou seja: nas outras formas de processo que não a comum e abreviado (art. 286.º, n.º 3); se requerida por outras pessoas não o arguido ou assistente, ou ainda que requerida por estes, quando o fazem fora dos casos definidos no art. 287.º, n.º 1, al. a) e b), do mesmo código, ou se o requerimento do assistente não configurar uma verdadeira acusação (não contiver a identificação do arguido, ou não descrever os factos componentes do crime imputado ou se os factos descritos não constituem crime, nomeadamente), caso em que faltará o próprio objecto do processo.

Em conclusão diremos que a inadmissibilidade legal da instrução tem a ver essencialmente com requisitos de forma e não com a substância do requerimento, isto é, com os fundamentos de ser deduzido despacho de pronúncia ou não pronúncia.

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, como requisitos indispensáveis as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (...), sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b) e c).

Por seu turno, o art. 283.º, n.º 3, do mesmo diploma diz-nos, sob pena de nulidade, quais os elementos que uma acusação deve conter, onde consta, na al. b), que a acusação deve narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

A al. c) refere que a acusação deve conter as disposições legais aplicáveis.

Finalmente há, ainda, que ter em conta o art. 303.º, do mesmo diploma, que vincula o Juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o n.º 3 desse artigo que uma alteração substancial do requerimento de abertura de instrução leva a novo inquérito.

Da conjugação destes citados artigos conclui-se que o requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), aplicável exvi do art. 287.º, n.º 2).

Logo, a falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constituiu uma nulidade (art. 283.º, n.º 3), o que é facilmente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento por parte do Ministério Público, deve fixar âmbito ou objecto do processo (art. 303.º e 309.º).

Tal mais não é do que uma decorrência do princípio do acusatório consagrado no art. 32.º, n.º 5 da CRP, um dos princípios estruturantes da constituição processual penal, como garantia do próprio arguido, em que a acusação (ou requerimento de abertura de instrução, como reacção ao despacho de arquivamento do Ministério Público) é condição e limite do julgamento.

Quando os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não integram, só por si, qualquer tipo de ilícito, a inclusão de outros no despacho de pronúncia que integram um tipo de ilícito não pode deixar de ser vista como uma alteração substancial dos factos (art. 1.º, al. f)).

Neste sentido vai precisamente o Ac. da RC de 2/11/99 ao estipular que:

«No requerimento para abertura de instrução, caso não tenha sido deduzida acusação, devem constar os factos concretos a averiguar através dos quais se possam retirar os elementos objectivos e subjectivos do crime».

De todo o explanado temos de concluir que quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, não pode haver pronuncia, sob pena de violação dos artigos 303.º, 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP e 32.º, n.º 1 e 5, da CRP.

De facto, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no art. 309.º, n.º 1.

Ora, uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido, como pretende o assistente no seu requerimento, é uma instrução que a lei não pode admitir.

É um requerimento de abertura de instrução sem objecto.

Não faz qualquer sentido admitir uma instrução que, desde o início, está condenada ao insucesso.

Enferma pois o requerimento do assistente da omissão da própria configuração do objecto da instrução, o que inviabiliza a sua abertura, tornando-a inexequível, cfr. escreve Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 120 e 121:

«Se o Assistente requer a abertura de instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o Juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados».

De acordo com a lei, nomeadamente de acordo com os já citados artigos 287.º, 283.º e 303.º, um requerimento para abertura de instrução que não contém factos através dos quais se possam retirar os elementos objectivos e subjectivos do crime deve ser indeferido, por ferido de nulidade, nos termos do art. 283.º, n.º 3, aplicável ex vi do art. 287, n.º 2.

Sendo o requerimento para a abertura de instrução nulo por falta de objecto, o mesmo tem de ser obrigatoriamente indeferido, não sendo admissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento, sob pena de violação dos citados artigos 287.º, n.º 3 e 283.º, n.º 3 (neste sentido cfr., entre outros, Ac. da RL de 11 de Outubro de 2001, in CJ, T. IV, pág. 141).

A este propósito escreve-se no citado Acórdão:

«(...), estando em causa, como se disse, uma peça processual equiparável à acusação, um convite por parte do Juiz, à sua reformulação (por forma a descrever com suficiência e clareza factos que consubstanciam acusação), para além de exorbitar a comprovação judicial objecto da instrução referido no art. 286.º do CPP- e bem assim os correspondentes poderes do Juiz- envolveria de alguma forma “orientação” judicial que, em certa medida, poderia reconduzir-se a procedimento próprio de um processo de tipo inquisitório, banido desde há muito da nossa legislação».

O assistente deve ser convidado a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, excepto quanto à falta de narração dos factos, que constitui o elemento definidor do âmbito temático da instrução.

No caso dos autos, o assistente, no requerimento de abertura de instrução limita-se a argumentar expondo os seus pontos de vista que diferem da posição assumida pelo MP, bem como a imitir os seus pontos de vista e a fazer o exame crítico do despacho de arquivamento dos autos.

Esta não é, no caso subjudice, a função essencial do requerimento de abertura de instrução.

Esquece-se que, enquanto assistente, tendo havido despacho de arquivamento do inquérito, nos termos do art. 277.º, por parte do Ministério Publico, embora o requerimento não esteja sujeito a formalidades especiais, devia deduzir uma verdadeira acusação, com todos os elementos e requisitos constantes do art. 283,º, n.º 3, por força do disposto no art. 287.º, n.º 2, ambos do CPP.

Que o requerimento para abertura de instrução, requerida pelo assistente, quando o MP tenha arquivado os autos, tem de vir minimamente explícito, quanto à narração dos factos integradores do tipo legal de crime em análise, em termos idênticos ao de uma acusação, está patente no facto de não poder haver lugar a convite para aperfeiçoamento.

Esclarecendo divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a tal respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12/05/2005 (Assento do STJ n.º 7/2005, in DR 1.ª Série A, de 4/11/2005), que decidiu no seguinte sentido:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o entendimento dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 4.ª ed., pág. 522, em anotação ao art. 32.º, n.º 5, da CRP, sustentando que «…a estrutura acusatória do processo penal implica:

a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação;

b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador

(…)».

Daqui resulta, no caso subjudice, que o juiz de instrução não pode intrometer-­se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura da instrução.

E não se discuta que a não formulação de tal convite viola os direitos de garantias de processo criminal, consignados no art. 32.º, da CRP, pois o Ac. do TC n.º 175/2013, decidiu não ser inconstitucional a norma do art. 287.º, n.º 2, com referência ao art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução.

Tal requerimento não constituiu substancialmente uma verdadeira acusação, mas deve imperativamente obedecer àqueles requisitos mínimos acima apontados, de modo a descrever os factos concretos de ordem objectiva e subjectiva susceptíveis de integrarem a prática pelos denunciados do crime de falsidade de falsidade de depoimento p. e p. pelo art. 359.°, n.º 1 e 2 do CP pela arguida e do crime de falso testemunho p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1 e 2 do CP pelo arguido.

O requerimento de abertura de instrução é manifestamente omisso quanto à descrição factual, da qual devem constar os elementos objectivos e subjectivos, integradores do tipo de ilícito imputado a cada um dos arguidos, para que possa possam ser pronunciados, não podendo o juiz de instrução, como já vimos - mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática por parte dos arguidos de um crime - alterar ou criar por si a factualidade.

Assim sendo, bem andou a senhora juíza de instrução ao rejeitar o requerimento para abertura de instrução, formulado pelo assistente, por nulidade do mesmo, e, consequente inadmissibilidade legal.

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III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

Negar provimento ao recurso interposto pelo assistente A.... , e, consequentemente se mantém o despacho recorrido que rejeitou o requerimento para abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.

Custas pela assistente cuja taxa de justiça se fixa em 6UCs.

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NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.

Coimbra, 15 de Abril de 2015

(Inácio Monteiro - relator)

(Alice Santos - adjunta)