Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2145/20.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONTRADIÇÃO ENTRE PEDIDO E CAUSA DE PEDIR
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 552.º, N.º 1, AL.ª D), E 186.º, N.ºS 1 E 2, AL.ªS A) E B), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Ocorre ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, de conhecimento oficioso, se o autor, peticionando a condenação da contraparte, a título de enriquecimento sem causa, no pagamento dos valores que, no âmbito de união de facto com esta, alegou ter despendido na aquisição de determinados bens, em simultâneo invoca ser comproprietário desses mesmos bens, na proporção do valor suportado com a aquisição.
Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 2145/20.1T8CBR.C1

Juízo Central Cível de Coimbra – Juízo 2

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Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, residente na Rua ..., ... direito, ..., ...

intentou contra

BB, também residente na Rua ..., ... direito, ..., ...

a presente ação declarativa, de condenação, sob a forma ordinária, pedindo[2], com os fundamentos que aduziu,

“ A) Seja declarado o enriquecimento sem causa da R. em virtude de ter ocorrido, na pendência da relação de união de facto, entretanto cessada.

D) A condenação da R. no reembolso da quantia correspondente ao empobrecimento do A. pelo efeito da (declaração da) dissolução da união de facto;

G) Seja a R. condenada no pagamento de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

H) E por fim, requer-se o registo provisório da ação, mediante comunicação efetuada pelo Tribunal, acompanhada de cópia do articulado, nos termos dos artigos 53º, 92º/11 e 8º- B/3/a do Código do Registo Predial, nos seguintes prédios:

H1) Prédio Urbano: Designado pela Fração Autónoma Letra ..., destinada à Habitação, Rés-do-Chão Direito, do prédio constituído em propriedade Horizontal, sito na Rua ..., Freguesia ..., Concelho ..., Inscrito na matriz no Artigo ...33.º e descrita na CRP ... com n.º ...35,

H2) Prédios Rústicos: Ambos da Freguesia ..., Distrito ..., artigo matricial nº ...90 e artigo matricial nº ...87”.

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A Ré contestou excecionando a ineptidão da petição inicial e impugnando a parte nuclear dos factos alegados pelo Autor.

Nessa peça processual deduziu ainda pedido reconvencional e requereu a condenação do A. como litigante de má fé.

                                                                  *

Por decisão de 17 de junho de 2021 (Ref. ... a Sra. Juíza do Juízo Central Cível ..., por falta de causa de pedir, com a consequente nulidade do processo, absolveu a Ré da instância, e considerou prejudicado o conhecimento da reconvenção.

                                                                  *

Inconformado, o A. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
a) Recorrente e recorrida viveram em união de facto entre meados de 2006 a 2020;
b) Fruto da convivência entre o recorrente e recorrida em união de facto e como de marido e mulher constituíram família;
c) Convivência esta que precisa ser reconhecida, como também precisa ser reconhecida a dissolução da união de facto;
d) Fruto dessa união de facto em conjugação de esforços, nomeadamente de dinheiro, foi constituído um património comum (bens móveis e imóvel), em compropriedade;
e) Durante o período que viveram juntos pelo período indicado este património comum foi construído com o contributo do trabalho e dinheiro do recorrente e recorrida;
f) É justo que o Tribunal a quo reconheça que todo o património identificado na p. i. pertence ao Recorrente em compropriedade, na proporção de metade;
g) No entanto, a sentença recorrida declarou a ineptidão da petição inicial invocando a falta de causa de pedir;
h) Motivo pelo qual restou prejudicado todos os pedidos da PI do Recorrente;
i) Entretanto, a recorrida não demonstrou qualquer dúvida sobre a questão, fazendo mesmo a contestação detalhada da factualidade alegada pelo autor como causa de pedir - provando assim ter apreendido e compreendido a referida causa de pedir.
j) Portanto a sentença violou diretamente o disposto no art. 186.º, n.º 3, alínea c) do CPC, por julgar a p.i. inepta mesmo com a recorrida interpretando de forma correta a p.i. e tomando posição ativa sobre todos os pedidos invocados pelo Autor.

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A Recorrida respondeu acentuando o acerto da decisão impugnada e pugnando pela sua manutenção.

       *

Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

*

II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (art. arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar e decidir é a de saber se a decisão recorrida, ao julgar inepta a petição inicial, apesar de a recorrida ter interpretado de forma correta esse articulado e ter tomado posição ativa sobre todos os pedidos formulados pelo A., violou o disposto no art. 186.º, n.º 3, alínea c) do CPC.

                                                                  *

III-Fundamentação

Na decisão recorrida considerou-se ter sido omitida na petição inicial “uma densificação concretizadora mínima da (…) causa de pedir relativamente aos pedidos” (pág. 5, 2.º parágrafo), a menção em termos conclusivos dos bens que serão compropriedade/comunhão de ambos, e a falta de alegação do lastro fático da causa de pedir (pág. 6), para nela se concluir no sentido de a petição inicial ser inepta por falta de causa de pedir.

Decorre do art. 552.º, n.º 1, d) do CPC que na petição com que propõe a ação deve o autor “Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”.

Essa narração deve, pois, conter os factos sobre que assenta o pedido ou a conclusão; o ato ou facto jurídico de que procede a pretensão do autor - a causa de pedir.

Como refere Alberto dos Reis "a causa de pedir em qualquer acção não é o facto jurídico abstracto, mas o facto jurídico concreto de que emerge o direito de que o autor se propõe declarar (...) o que tem valor e eficácia jurídica, o que tem vida, é o facto individual e concreto " (Comentário ao C.P.C., vol. II, pág. 375) ou, na expressão de Ulpiano "a causa de pedir é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petionis.

O que interessa, no ponto de vista da apresentação da causa de pedir, é que o acto ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição (...)>> (Alberto dos R., Comentário, vol. II, págs. 370 e 371).

O incumprimento deste dever (o de exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir) conduz, quando se trate de meras insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, à possibilidade de suprimento nos termos do art. 590.º, n.º 4 do CPC, ou, agora para as situações em que falte ou seja ininteligível a causa de pedir, à ineptidão da petição inicial (186.º, n.º 2, alín. a) do CPC).

Como esclarece Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, V. II, Almedina, 1982, pág. 219-220) “com a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar correctamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência de pedido ou de causa de pedir, (…). Propõe-se ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o pedido contra ele formulado e o respectivo fundamento”.

No mesmo sentido, Rodrigues Bastos (Notas ao CPC, Vol. I, 3ª ed., 253) “A p.i. há-de expor um facto jurídico (causa de pedir) e tirar dele, como conclusão, um efeito de direito, que o autor impetra lhe seja reconhecido (pedido). Se não (…) se expõe a causa de pedir, ou se se faz aquela formulação, ou esta exposição em termos incompreensíveis, só materialmente se poderá falar em p.i., porque substancialmente é evidente que o não é. Tal peça jurídica, com falta desses requisitos, não se mostrará apta a reproduzir, em Juízo, o litígio – daí a sua ineptidão.”

É que, como refere Alberto dos Reis (Comentário, 2.º, pág. 372) “Podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”.

Cuidando agora, como se impõe, da situação presente, constata-se que, dos 59 artigos contidos na petição inicial, apenas 12 (os primeiros) se referem à concreta situação justificadora da pretensão judicial do A., sendo os demais destinados a considerações jurídicas sobre a união de facto no nosso ordenamento jurídico e às diferentes soluções jurídicas que disciplinam os efeitos patrimoniais dessa união de facto (arts 13 a 59).

Desses 12 primeiros artigos da petição inicial 5 deles (os artigos 2, 3, 8, 9 e 12) não revestem qualquer interesse para aferir da pretensão do A. (pretensão, repete-se, de obter a declaração do enriquecimento sem causa da Ré e condenação desta a reembolsar a quantia correspondente ao empobrecimento do A. e juros de mora respetivos).

Quanto aos demais, no 1.º o A. limita-se a alegar de forma conclusiva a vivência com a Ré em união de facto desde agosto de 2006 (faltou, para consubstanciar, essa união de facto, os factos que demostrem a vivência em condições análogas às dos cônjuges e as circunstâncias impeditivas da sua relevância jurídica (art.º 1.º, n.º 2 e 2.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).

Ou seja, tal como ficou alegado, trata-se da mera referência conclusiva ao instituto jurídico da união de facto.

No art. 4.º mencionou a não subsistência dessa alegada união de facto por comunicação da Ré (o que se traduz na sua dissolução de acordo com o art. 8.º, n.º 1, b) da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).

Nos art. 5.º, 6.º e 7.º, o A. alega que as prestações do mútuo contraído para a compra do imóvel onde está instalada a casa de morada de família, que se encontra registado em nome da Ré, têm vindo a ser pagas por A. e Ré, na proporção de “metade cada um”.

No artigo 10.º da petição inicial, sem qualquer justificação adicional, o A. elenca um conjunto de bens (entre eles o aludido imóvel que constitui a casa de morada de família), que designa como “bens comuns” e o seu valor.

Finalmente, no art. 11.º alega que tais bens foram adquiridos “em comunhão de esforços ou no âmbito do regime de compropriedade e pertencem a um património comum carecido de liquidação”.

Ou seja, para além de um conjunto de expressões conclusivas e de natureza jurídica, sem qualquer suporte factual justificador, resulta o ostensivo arrogar por parte do A. do direito de compropriedade sobre esses bens, incluindo o imóvel relativamente ao qual tem vindo a custear metade dos encargos devidos pelo mútuo bancário contraído para a sua aquisição.

E por aqui se queda a construção da pretensão do A. no sentido de obter a declaração de enriquecimento sem causa da Ré à custa do A. e a condenação da mesma ao reembolso da quantia correspondente ao empobrecimento do A.

Ainda que se ignore a falta de consubstanciação da invocada existência da união de facto, tendo o A. apoiado o seu direito exclusivamente com base do enriquecimento sem causa, importava alegar o concreto enriquecimento da Ré, sem causa justificativa, à custa do A. (art. 473.º do Cód. Civil).

Ora, a esse propósito, limitou-se a alegar que relativamente a um imóvel não especificado, o A. tem vindo a contribuir, desde 2013, com o pagamento de metade das quantias relativas ao mútuo bancário contraído (pela Ré) com a sua aquisição e que, tal imóvel, em conjunto com outros bens que elencou, se tratam de bens em regime de compropriedade, carecida de liquidação.

Do exposto resulta que, para além da inexistência de consubstanciação da base factual necessária a aferir a pretensão de obter a prestação indevida, estamos em presença de um pedido que se encontra em contradição com a causa de pedir.

É que se por um lado o A. se arroga da qualidade de comproprietário dos bens elencados 10.º, ao mesmo tempo, e em termos inconciliáveis, pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe o montante correspondente ao valor com que se viu empobrecido por via dessas aquisições.

O A. ou é comproprietário desses bens e pode, se assim o entender, exigir o reconhecimento dessa qualidade e (eventualmente) a sua divisão (arts. 1403.º e 1412.º do Cód. Civil), ou é detentor de um mero direito de crédito que emerge do facto de a Ré, sem causa justificativa, ter enriquecido à sua custa (art. 473.º do Cód. Civil).

O que se mostra totalmente incompatível e totalmente incongruente em termos jurídicos é fundamentar esse aludido direito de crédito na existência da compropriedade (que pressupõe o status e medida do seu direito incorporados na quota respetiva).

Do exposto decorre que a petição inicial não apenas é inepta por falta de causa de pedir, como também o é por o pedido se apresentar em contradição com a causa de pedir, conforme sancionado pelo art. 186.º, n.º 1 e 2, b) do CPC, sendo para esse efeito indiferente que a Ré tenha ou não interpretado convenientemente a petição inicial.

Sendo a ineptidão (com o fundamento agora enunciado) de conhecimento oficioso, nada obsta que este tribunal a verifique e reconheça nesta fase, uma vez que tal vício não se mostra sanado (art. 196.º do CPC).

                                                                  *

Sumário[3]: (…).

                                                                

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, com fundamento acrescido relativamente à decisão impugnada, julga-se inepta a petição inicial e, em consequência, improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                       *

Custas pelo apelante.

                                                                  *

Coimbra, 24 de maio de 2022

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(Paulo Correia)

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(Helena Melo)

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(José Avelino)




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2]- Apenas se enunciam os pedidos residuais que subsistiram após a verificação da incompatibilidade com outros originariamente formulados.  
[3] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).